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Revista de Psicologia da UNESP

versão On-line ISSN 1984-9044

Rev. Psicol. UNESP vol.15 no.1 Assis jan./jun. 2016

 

ARTIGOS

 

Recursos artístico-expressivos na terapia familiar: um estudo teórico-clínico

 

Artistic and expressive features in family therapy: a theoretical and clinical study

 

 

Ricardo da Silva Franco; Marisa Cássia Subtil de Almeida; Maíra Bonafé Sei

Universidade Estadual de londrina

 

 


RESUMO

Objetiva-se com este artigo discutir o emprego de recursos artístico-expressivos na terapia familiar. Organiza-se como um estudo teórico-clínico, pautado na metodologia qualitativa. Dessa forma, inicia-se com uma apresentação dos aspectos teóricos que fundamentam esse tipo de intervenção com o público em questão. Posteriormente, apresenta-se uma ilustração clínica de uma família acompanhada em um serviço-escola de Psicologia, cujo atendimento foi mediado pelos recursos artístico-expressivos. Finaliza-se apontando para o potencial da arteterapia em intervenções familiares, compreendendo-se que esta favorece não apenas a comunicação dos participantes como também a elaboração de questões concernentes ao grupo familiar.

Palavras-chave: Terapia familiar; Arteterapia; Serviço-escola de Psicologia.


ABSTRACT

This article aims to discuss the use of artistic and expressive resources in family therapy. It is organized as a theoretical-clinical study, based on qualitative methodology. Thus begins with a presentation of the theoretical aspects underlying this type of intervention with the public involved. Then, it presents a clinical illustration of a family accompanied in a psychological university service, whose treatment was mediated by artistic and expressive resources. Terminates, pointing to the potential of art therapy in family interventions, it being understood that it promotes not only the communication of the participants but also the elaboration of issues concerning the family group.

Key-words: Family therapy; art therapy; psychological university clinic.


 

 

Terapia familiar: aspectos gerais

O conceito de família configura-se como um tema controverso no contexto atual, marcado por mudanças. Dentre as transformações vivenciadas, pode-se mencionar a ampla possibilidade de fertilização in vitro, por meio da qual mulheres cada vez mais velhas passam a se tornar mães, o número crescente de famílias reconstituídas e a legalização do casamento homoafetivo, com a constituição de família por parte desses casais (RODRIGUEZ; GOMES, 2012). A despeito dessas mudanças, entende-se ser possível afirmar a presença, na família, de laços de aliança, filiação e fraternidade, cujas relações são influenciadas pelo fenômeno da transmissão psíquica geracional (CORREA, 2000).

O fenômeno da transmissão psíquica geracional é entendido como o processo de transmitir conteúdos psíquicos de uma geração à outra, por vezes de forma consciente e passível de elaboração, quando é intitulada como transmissão intergeracional. Outras vezes ocorre por uma via inconsciente, usualmente quando se trata de conteúdos traumáticos, transmitidos de forma bruta, sem elaboração, razão pela qual é denominada como transmissão transgeracional (SCORSOLINI-COMIN; SANTOS, 2016).

No que se relaciona à formação do casal, percebe-se que esta se pauta, frequentemente, por expectativas fantasiosas de que um possa suprir as necessidades do outro. Os parceiros apresentam seus melhores aspectos, escondendo os defeitos, com generalizações e projeções acerca do futuro. As diferenças tendem a ser ignoradas e "o enamoramento é vivido como um encontro mágico [...] e, no entanto, cada união está baseada em necessidades mútuas que têm exigências a serem satisfeitas" (RAMOS, 2006, p.10). Busca-se uma diminuição do sentimento de desamparo, com o desejo de que o outro possa ofertar condições para o desenvolvimento pessoal, incluindo a atividade afetiva e social. Contudo, as diferenças de expectativas, quando não pensadas e elaboradas, podem causar conflitos no relacionamento, frequentemente intensificados com a vinda de filhos.

De acordo com Dias (2006), o que influencia a escolha do parceiro, assim como o que mantém um casamento, está relacionado a motivações inconscientes. Assim, o casamento tanto pode assumir caráter criativo de "uma tentativa [...] de lidar com o passado e continuar a desenvolver-se no sentido do crescimento", quanto de destrutividade, "porque o casamento implica na repetição de conflitos vivenciados com os próprios pais (ou outras pessoas significativas), que são revividos na nova composição do casal" (p. 34-35).

A chegada dos filhos acrescenta questões ao relacionamento familiar, e tal panorama demonstra a complexidade presente no contexto da terapia familiar. O lugar ocupado pelo filho pode ser bem diferente (RAMOS, 2006) e, por vezes, ele encontra dificuldades para uma vivência mais livre, sendo-lhe designada a função de porta voz das dificuldades vividas por todos os familiares. Em casos como esses, a indicação da terapia familiar faz-se pertinente, de maneira a se trabalhar a família como um todo. Em outras situações, mais do que um trabalho individual, nota-se ser interessante uma intervenção com o casal (GOMES; LEVY, 2010). Compreende-se que o terapeuta deve estar sensível a esses aspectos e ser capaz de contemplar a dinâmica familiar, para a ampliação de seu olhar sobre os encaminhamentos possíveis em cada situação, visto que raramente o casal ou família vêm à clínica com uma demanda para a terapia familiar.

Observa-se que a terapia familiar se apresenta como um tipo de intervenção complexo, haja vista a presença de indivíduos de variadas idades na sessão (MANICOM; BORONSKA, 2003), se configurando como um grupo cuja formação transcende o setting terapêutico (KWIATKOWSKA, 2001), com uma dinâmica própria de comunicação (LEVISKY, 2003). Diante desse panorama, acredita-se que há benefícios na utilização de recursos artístico-expressivos no contexto terapêutico (SEI, 2011).

Pensa-se que os recursos artístico-expressivos podem colaborar para melhor investigar a composição familiar, as histórias e segredos partilhados, os papéis assumidos por cada membro, assim como o material inconsciente que subjaz à dinâmica da família, promovendo a reestruturação ou o equilíbrio dos vínculos. Tais recursos ainda podem ser empregados no contexto da avaliação da demanda familiar, nas entrevistas preliminares (MACHADO; FÉRES-CARNEIRO; MAGALHÃES, 2011), ou durante o processo terapêutico, com o objetivo de favorecer a comunicação no setting terapêutico (SEI, 2009) e promover a elaboração de conteúdos concernentes às relações estabelecidas e às questões trazidas pelos familiares (ZANETTI, 2013).

 

A arteterapia como estratégia no atendimento a famílias

A arteterapia se apresenta como uma estratégia de intervenção que prima pelo uso de recursos artístico-expressivos no atendimento, podendo se pautar em variados referenciais teóricos, como psicologia analítica (OLIVEIRA, 2014), gestalt-terapia (SILVA; CARVALHO; LIMA, 2013) e psicanálise (SEI, 2011). O foco dado às sessões também pode centrar-se mais no desenvolvimento da criatividade, do potencial expressivo, proposta intitulada como "Arte como terapia" e, por outro lado, pode-se buscar empreender um processo psicoterapêutico mediado pelos recursos artístico-expressivos, prática nomeada como "Artepsicoterapia" (ANDRADE, 2000). Com isso, a arteterapia pode se configurar como um instrumento para a atuação do psicólogo (REIS, 2014), tal como a intervenção clínica focalizada neste artigo.

Quanto à arteterapia com famílias, compreende-se que ela facilita as sessões familiares e o entendimento da problemática de cada família atendida. Pensa-se que os recursos artístico-expressivos contribuem para que conteúdos não ditos e de difícil aceitação possam ser trazidos à consciência, burlando a censura usualmente presente no discurso verbal (NAUMBURG, 1991). Tem-se, com a arteterapia, uma ponte entre o mundo consciente e o inconsciente do indivíduo, que favorece um olhar para dentro de si próprio (WINNICOTT, 1949/1994).

Trata-se de uma via de expressão que valoriza desde os rabiscos da criança pequena até produções mais elaboradas. Além disso, os desenhos, pinturas e demais expressões configuram-se como algo concreto que pode ser posteriormente analisado e revisto tanto pelo terapeuta quanto pelos próprios participantes da sessão, algo que diferencia a arteterapia das terapias pautadas estritamente na linguagem verbal (LIEBMANN, 2000).

Concorda-se com Païn (2009, p.12), que descreve que:

[...] na arteterapia, a arte é concebida como uma metáfora, ou melhor, algo que se assemelha à arte, indicada por sua dupla condição: por um lado, aquele que frequenta o ateliê não se compromete com um aprendizado sistemático das regras do ofício, nem com a criação de ideias plásticas cuja coerência estética seja completa e socialmente reconhecida; por outro lado, a arteterapia demanda da arte um serviço útil. Este serviço terapêutico constitui a própria definição de arte, projetando simultaneamente sobre o paciente a tensão contraditória inerente à possibilidade de cura.

Quanto à aplicabilidade dessa técnica no contexto familiar, Riley (1998) aponta que o produto da arte "é a janela para o mundo do cliente e a fonte que informa o terapeuta sobre o significado da história do casal" (p.134) e igualmente da família. Possibilita, ademais, que a família se torne consciente de sua dinâmica de funcionamento, que pode estar sendo contraproducente, no sentido de resultar em tentativas mal sucedidas de resolução dos conflitos familiares. A arteterapia poderia ser, com isso, uma maneira diferente que resolver os problemas enfrentados pela família.

Segundo Riley (1998), as atividades expressivas presentes na terapia familiar colaboram para a resolução de problemas, pois estão baseadas "no processo criativo, tanto na execução das expressões artísticas como no convite para ser inovador ao solucionar problemas" (p.134). Encoraja-se a saída de um enquadramento rígido para outro mais flexível - e com perspectivas de solução -, com a criação de novas possibilidades. Mesmo quando não há uma extensa elaboração verbal dos receios, fantasias, problemas vivenciados, tem-se uma visualização de questões e, às vezes, de soluções expostas nas produções.

Nota-se, portanto, que a arteterapia pode ter a função de retrabalhar emoções e eventos do passado dos membros de uma família, frequentemente inconscientes, que podem estar na gênese das dificuldades vivenciadas por eles, além das problemáticas conscientes e passíveis de apresentação pela via verbal (SEI; ZANETTI, 2016). Esses conteúdos podem ser trazidos para o concreto por meio de recortes ou colagens que os representem e/ou desenhos que os simbolizem, ilustrando as crises e os sucessos e, por vezes, colaborando para a melhora na comunicação e compreensão do outro.

Ao explorar esse potencial da arteterapia no campo da terapia familiar, almeja-se ilustrar e discutir a inclusão, por meio de uma ilustração clínica, dos recursos artístico-expressivos em atendimentos psicológicos a famílias, focalizando o papel de comunicação advindo das produções. A terapia familiar foi realizada em um serviço-escola de Psicologia de uma universidade pública por meio de um projeto de extensão. Propõe-se, agora, uma articulação entre teoria e clínica, de maneira a possibilitar uma ampliação acerca do conhecimento desse campo, favorecendo o desenvolvimento de novas técnicas de intervenção e a sua apropriação por parte de pesquisadores e profissionais da área.

 

Método

Trata-se de um estudo teórico-clínico no campo da terapia familiar (ZUANAZZI, SEI, 2014), em que o método qualitativo se mostra apropriado, haja vista que, além de se perceberem as regularidades presentes no estudo de pequenas amostras, tem-se um maior interesse e preocupação com as singularidades nas análises de cada grupo familiar em especial (WENDT; CREPALDI, 2007). Não se privilegia o estudar das sequências específicas dos comportamentos interpessoais, de modo classificatório (TURATO, 2005), entendendo-se que

[...] as ações de cada pessoa são visualizadas em uma sequência interativa que depende das ações dos demais parceiros de interação, ou seja, inclui aspectos complexos de interdependência nas relações familiares, sejam eles emocionais, relacionais, e comunicacionais. (WENDT; CREPALDI, 2007, p.303)

 

Procedimentos

Para a concretização deste estudo, foram acessados e analisados, à luz do referencial psicanalítico, os relatos de sessões e as produções artístico-expressivas advindas dos atendimentos familiares realizados em um serviço-escola de Psicologia. As propostas expressivas estavam embasadas no referencial da arteterapia psicanalítica (NAUMBURG, 1991; SEI, 2011), com a compreensão da dinâmica familiar pautada em autores da psicanálise de casal e família (GOMES; LEVY, 2009; RAMOS, 2006).

A solicitação pelo atendimento familiar podia acontecer por encaminhamento ou por demanda espontânea. As famílias interessadas passavam por uma entrevista de triagem, na qual se solicitava já a presença de todos os familiares. Em seguida, a terapia familiar podia ser iniciada, passando a ter frequência semanal e duração aproximada de uma hora e meia. Os terapeutas familiares eram estudantes de Psicologia treinados para essa prática por meio de estudos teóricos e vivências arteterapêuticas, com a supervisão dos atendimentos realizados por parte de docentes da área (SEI; ZANETTI, 2014).

 

Resultados e discussão

O caso clínico aqui discutido refere-se a uma família que procurou o atendimento por demanda espontânea. Era composta por pai, mãe, uma menina e um menino, de 8 e 3 anos de idade, respectivamente. A queixa centrava-se no desejo dos pais por informações a respeito de medicar ou não a filha, pois a escola e uma neurologista tinham-na diagnosticado com hiperatividade. O diagnóstico médico foi contestado pela mãe, que disse à médica que não iria medicar sua filha com cloridrato de metilfenidato e buscaria maiores informações. Quando questionados pela terapeuta acerca do que pensavam sobre a forma como a menina se comportava, a mãe rapidamente respondeu que achava normal, pois, nas palavras dela, a filha "sempre foi agitada".

Os recursos artístico-expressivos foram inseridos desde o momento da triagem, momento em que os materiais foram dispostos na sala, mas sem propostas indicadas pela terapeuta para uso deles. Nas sessões seguintes, foram estipulados alguns temas e atividades para uso dos recursos, com o intuito de conhecer melhor a família e sua dinâmica. Assim, foi solicitado o delineamento do genograma da família (FRANCO; SEI, 2015), desenho da família (SEI, 2009) e atividades similares. Além disso, era também possível que os participantes utilizassem livremente o material.

Pôde-se observar, na entrevista de triagem, que as crianças fizeram um intenso uso dos recursos, produzindo trabalhos de colagens, desenhos e pinturas, nos quais representaram a família e seus componentes. Nessa ocasião, nenhum tema foi proposto pela terapeuta; assim, o tema "família" foi elaborado de forma espontânea. Compreende-se que tal escolha pode remeter a um desejo ou necessidade, da família como um todo, de um espaço em que pudesse ser ouvida.

Nas sessões que se seguiram, a família expressou-se, além do relato verbal, também por meio de produções. Foram representadas, graficamente, a constituição da família, a casa onde moram, e outros desenhos que expressaram suas expectativas em relação à terapia. Quando os familiares finalizavam suas produções, era solicitado que discorressem sobre o que haviam feito, estimulando associações por meio da produção (NAUMBURG, 1991). Tais associações eram discutidas, indicando-se compreensões construídas pela observação das imagens, relacionando-as ao conteúdo verbal trazido pelos familiares. Entende-se que a produção expressiva e a verbalização decorrente permitem o acesso a conteúdos outrora pré-conscientes ou inconscientes e, com isso, uma possibilidade de elaboração dessas questões (ZANETTI, 2013), processo que acelera o desenvolvimento da terapia (NAUMBURG, 1991).

A família em questão fez algumas produções que colaboraram para a percepção de sua dinâmica. Nesse sentido, aponta-se a Figura 1, que se apresenta como uma produção em conjunto de toda a família. Foi realizada no primeiro atendimento após a triagem, após a consigna da terapeuta, para que construíssem juntos a sua família. A terapeuta somente apontou-lhes uma proposta de atividade e o tema, e o modo de criação foi livre, ou seja, poderiam se utilizar de qualquer material disponível na sessão, tais como: tinta, lápis de cor e grafite, revistas, cola, tesoura, giz de cera, régua, entre outros materiais. A solicitação para o trabalho em conjunto almejava, além de refletir sobre o material produzido, também perceber o modo de relacionamento da família, como realizavam a produção, os papéis ocupados por cada membro na família, ou seja, uma apreensão da dinâmica familiar.

 

 

No que se refere à produção, pode-se notar o desejo por representar uma família perfeita e feliz. Todos rindo, boas roupas, uma boa interação familiar, uma casa colorida enfeitada com flores e um bom carro. Liebmann (2000) argumenta que o uso da arte possibilita outra via de comunicação e expressão além das palavras. Nesse sentido, enquanto pai, mãe e filha se preocuparam em retratar uma família com uma moldura perfeita, o garoto de 3 anos manchou toda a produção com tinta preta. Pode-se pensar que tal ato foi decorrente de uma tentativa de mostrar que, por trás de todos esses sorrisos felizes, havia alguma coisa não tão clara, não tão bem definida e elaborada assim, como se ele quisesse dizer que os familiares não são perfeitos.

Em uma produção individual desse menino, a Figura 2, acaba sendo evidenciada a carga emocional que sua irmã tinha que carregar. Ramos (2006) aponta para o papel de paciente identificado como porta voz das dificuldades vividas por todos os familiares que os filhos podem carregar. A criança poderia estar fazendo esse papel de porta voz das dificuldades, tentando desmascarar ali no setting esse retrato de família perfeita. Quanto à menina, ela chega como o paciente identificado, tendo sido por meio de seu comportamento e diagnóstico que a família chega à terapia. Na Figura 2, nota-se como ela é a menor e a mais longe do sol, como se tivesse de guardar os segredos da família e isso fosse pesado ou a colocasse num papel menor. O garoto é o mais próximo do sol e o maior de todos, o menos enquadrado nessa moldura de papéis perfeitos, como se tivesse de trazer à consciência os conteúdos inconscientes que permeiam todos eles.

 

 

As produções do filho mais novo são mais livres e espontâneas e as da sua irmã parecem mais vinculadas a essa estética de família perfeita. Ela tem de ser a boneca da família e questiona-se o quanto isso pode remeter a um processo de não encarar um outro lado, como se tivessem de esconder e não lidar com sentimentos tristes. Por isso, talvez encontre na sua "hiperatividade" uma via de expressar os conflitos dentro dela, de ter de ser alguém que não é. Durante as sessões, foram observados os pais, sempre a repreendendo por causa da bagunça. Essa ambivalência entre ser a menina comportada e a criança verdadeira e espontânea pode ter sido expressa por meio da Figura 3, com a imagem de uma menina idealizada, que segue os moldes de perfeição, possivelmente a expectativa em relação a ela.

 

 

Outra produção feita pela garota está expressa na Figura 4, na qual podem ser observados alguns elementos interessantes, com ela igualmente desempenhando um papel de porta voz. O sol está sendo encoberto por todas as nuvens e, entre os raios, também existem pequenas nuvens. Para Naumburg (1991), os recursos artísticos podem contribuir "com a liberação do inconsciente por meio de imagens espontaneamente projetadas na expressão plástica e gráfica" (p.388). Nesse sentido, acredita-se que o sol escondido pode simbolizar esse material inconsciente ainda encoberto pela censura dos familiares.

 

 

Todavia, abaixo do sol aparecem outras composições, como a imagem do palhaço, a face da mulher sorrindo e, mais uma vez, o retrato de uma família perfeita e feliz. Chama-se atenção para o palhaço colado pela menina, podendo simbolizar o quanto tudo isso pode ser cômico, essa busca e ilusão de uma família sempre feliz, sem dar espaço para um outro lado da vida, carregado de elementos mais pesados. A mulher sorrindo foi um recorte sugerido pela menina para representar a mãe na Figura 1, mas a mãe recusou a foto por, talvez, o sorriso não ser tão convincente quanto o escolhido por ela. Trata-se de um sorriso mais forçado.

Por fim, a Figura 5 pode vir a sustentar as possíveis hipóteses levantadas acerca do uso dos recursos expressivos. Trata-se de uma produção da mãe, feita no terceiro atendimento após a triagem, depois da consigna da terapeuta de que eles expressassem, da maneira que desejassem, as expectativas em relação ao atendimento. A mãe repetiu o retrato de família perfeita e feliz, tendo desenhado em torno das imagens recortadas uma espécie de moldura. Cabe ressaltar que não necessariamente a terapia familiar poderá proporcionar a vivência de família feliz, haja vista que os familiares poderão se tornar conscientes de segredos, conteúdos transmitidos transgeracionalmente, de difícil elaboração, algo que pode explicitar o sofrimento psíquico antes mascarado por meio de sintomas como a hiperatividade da filha. Com isso, podem-se observar resistências para a continuidade da terapia, ocasionando desistências do atendimento (SEI, 2009)

 

 

Ao explicar sobre seu desenho, a mãe apontou para uma das gravuras e relatou que gostaria que todos falassem a mesma língua, por isso todos estariam apontando para a mesma direção; seu desejo era que houvesse união e que todos ficassem felizes. Tal fala da mãe, de que todos falassem a mesma língua, pode-se pensar na dificuldade em lidar com a alteridade, haja vista que, se por um lado a comunicação entre os familiares é importante, por outro deve-se ter em mente que cada indivíduo é diferente do outro.

Essa produção que demonstra o quanto ela ansiava por essa família perfeita, enquadrando-os, para que não pudessem sair daí, para que não pudessem ser diferentes. O mesmo vale para o externo, no sentido de que ninguém pode adentrar nesse grupo. Não há espaço para o de fora, pois a mãe relata na triagem que não gosta de outras pessoas chamando a atenção de seus filhos. A própria queixa trazida por ela pode representar isso também, se pensarmos no fato de ela não ter escutado a escola ou a médica sobre a filha. Entende-se com isso uma comunicação sobre a dificuldade da própria família se envolver no processo terapêutico, visto que ele demanda a entrada de um terceiro no grupo, o terapeuta, com sua visão e seus assinalamentos, e a própria mudança implicada neste tipo de intervenção, algo pertinente de ser considerado diante da interrupção da terapia por parte da família, após o quarto encontro (terceira sessão após a triagem).

 

Considerações Finais

A via imagética de comunicação, que transcende apenas o uso das palavras, pode ser visto como um modo de expressão dos pensamentos e sentimentos mais primários do ser humano (NAUMBURG, 1991). Isso ocorre porque o processo criativo, o ato de criar, de fazer, de modo livre e espontâneo, facilita a regressão, em que o mundo interno do sujeito se torna a grande inspiração do processo expressivo (SEI, 2009).

A partir das figuras apresentadas, advindas de um dos atendimentos familiares realizados em um serviço-escola de Psicologia, e da compreensão acerca dos possíveis significados nelas implícitos, pode-se observar a arteterapia como uma importante ferramenta no atendimento familiar. Mostra-se como um instrumento interessante para se entender a dinâmica da família, fomentando a intensa participação das crianças, que apresentaram contribuições tão significativas quanto os relatos verbais dos pais.

Notou-se o desejo da mãe por uma família perfeita e feliz, sem condições para se ver em um outro lado da vida, que demanda um contato com a tristeza e a dor. Parecia que a filha devia ser a princesa da família, sem lugar para a espontaneidade e o lúdico. Compreende-se, assim, que a desistência da família pode ter ocorrido pela resistência decorrente da percepção de que a terapia abriria espaço para conteúdos difíceis, especialmente um espaço no qual os filhos teriam voz por meio dos recursos artístico-expressivos, como a mancha preta do garoto se contrapondo à família sorridente. Perceber esses aspectos não era o objetivo apontado pela família para o atendimento, que indicava a intenção de obter maiores informações a respeito do diagnóstico da filha, com o desejo de que não houvesse um problema que demandasse uma ação terapêutica, seja medicamentosa, seja psicoterapêutica.

Soma-se a esses aspectos o fato de que a produção artística, no setting analítico, funciona como um objeto mediador e mobilizador dos processos psíquicos. Dessa maneira, além do caráter de comunicação de conteúdos inconscientes, tem-se também um aspecto de elaboração trazido pelo uso da mediação no setting terapêutico (ZANETTI, 2013). Acredita-se que, mesmo que a família não tenha podido participar da terapia por um número maior de sessões, ainda assim conteúdos foram expressos e alguma elaboração pôde ser realizada, justificando a inserção da linguagem artístico-expressiva na terapia familiar.

 

Referências

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Recebido: 02 de maio de 2015.
Aprovado: 20 de maio de 2015.

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