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Revista de Psicologia da UNESP

versão On-line ISSN 1984-9044

Rev. Psicol. UNESP vol.15 no.1 Assis jan./jun. 2016

 

ARTIGOS

 

O dispositivo intercessor na Assistência Social: um modo de transformação da realidade1

 

The Intercessor Device on the Social Assistance: basis to transform reality

 

 

William Azevedo de Souza

UNESP

 

 


RESUMO

O Dispositivo Intercessor pode ser considerado como um modo de produção de subjetividade singularizada e de saber em dois momentos: o primeiro, na práxis de trabalho com os sujeitos considerados em situação de vulnerabilidade e/ou risco social que demandam atendimento em estabelecimentos do Sistema Único da Assistência Social (SUAS). No segundo momento, a posteriori, na produção de conhecimento de estatuto epistemológico, diferente do produzido na Universidade, pois é um saber voltado para a práxis e para implicar trabalhadores que desejam se tornar intercessores. Esse dispositivo pode ser considerado como um modo pesquisa eminentemente qualitativa, e pretende romper com a divisão social do trabalho, entre pensar e fazer, considerando a Universidade como lócus essencial dessa contradição.

Palavras-chave: SUAS. Dispositivo intercessor. Produção de saber. Assistência social.


ABSTRACT

The Intercessor Device can be considered basis to production of knowledge and singular subjectivity at two moments: on the first, on the work praxis along the subjects considered in vulnerability situation and/or social risk, which demand attendance at Social Assistance Unic System (SUAS). On a second moment, a posteriori, at the knowledge production in the epistemological state, different of the one produced at the University, since it's knowledge driven to the praxis and imply workers that aim to become intercessors. This device can be considered an important qualitative research tool, and intend to break with the social division of work, between think and make, taking the University as an essential locus of this contradiction.

Keywords: SUAS; Intercessor Device; knowledge production; Social Assistance.


 

 

Articular lacunas, ver relações nos lugares onde só se percebiam elementos coerentes e homogêneos, comprovar um problema onde só se julgava existirem soluções, não será este o caráter próprio de todo o método novo, aquilo que, segundo a palavra de Bachelard, justifica o caráter polêmico da prática científica? (RENÉ LOURAU, 1975).

 

1. Introdução

Houve um momento em que não existia a divisão social do trabalho; formava-se na práxis, no fazer, no cotidiano de trabalho, no contato com o objeto a ser elaborado, imerso nas intercorrências que surgiam e na gama de possibilidades e impossibilidades do cotidiano. Nesse tempo, a teoria era derivada da prática, aliás, do trabalho surgia a teoria. Com o passar do tempo, houve uma inversão e a teoria passou a formar as pessoas para a prática, estabelecendo a divisão social do trabalho, entre fazer e pensar.

A divisão social do trabalho, visualizada no Modo Capitalista de Produção (MPC), encontra seu paralelo nos estabelecimentos que prestam serviços públicos. Nessa divisão, existem aqueles que pensam e mandam, por estar numa posição hierárquica superior, e aqueles que obedecem e fazem, por estar numa posição inferior. No primeiro, supõe-se um conhecimento que possa ensinar e, no segundo, supõe-se apenas a realização das diretrizes do primeiro. O que existiria, no entanto, entre um e outro, além da realidade? Toda a práxis tem em si a teoria que a legitima e a respalda, então, o que lhe faltaria seria acrescentar as letras. Dito de outra forma, falta a produção de um conhecimento próprio ao campo.

Temos a hipótese de trabalho de que todos os envolvidos na produção (atendimentos) têm um saber sobre a ação que executa, e o que difere é que, nas instituições onde impera o Modo Capitalista de Produção (MPC), esse saber tem pouco ou nenhum valor, ao contrário dos estabelecimentos que funcionam sob o Modo Cooperado de Produção (MCP), no qual o saber-fazer assume a posição central. Portanto, os produtores assumem extrema importância e o produto terá que ser sempre remodelado de acordo com as demandas dos sujeitos que demanda atenção.

Pensando sobre possibilidades de intercessão quanto às conflitivas do cotidiano de trabalho, quanto aos sujeitos (usuários) e, ainda, quanto aos modos de produção de conhecimento nas ciências humanas, Costa-Rosa cunhou o Dispositivo Intercessor (DI): uma modalidade de produção de saber e conhecimento que pretende exercitar possibilidades concretas de romper com a divisão social do trabalho, entre aqueles que pensam e aqueles que executam, logo, entre trabalhadores e sujeitos ou entre pesquisadores e trabalhadores. O DI conta com arcabouço teórico-técnico e éticopolítico de intercessão na práxis, ou seja, no fazer e no pensar diário dos trabalhadores inseridos nos estabelecimentos institucionais.

A autoria do DI deve-se ao prof. Dr. Abílio da Costa-Rosa, cuja trajetória - de trabalhador e pesquisador do campo da Saúde Coletiva, Psicanalista, Analista Institucional e professor na Universidade - o fez pensar em meios e modos de interceder e pesquisar a fim de que os sujeitos implicados pudessem criar e se apropriar do saber produzido no ato de sua produção. Um dispositivo que permitisse ao trabalhador repensar constantemente o seu fazer e produzir um saber que lhe permita se reposicionar, ou seja, repensar o seu próprio fazer e o conhecimento instituído, tanto no seu campo de trabalho quanto na Universidade, visando pensar um modo de driblar e superar a divisão social do trabalho, entre aqueles que pensam (pesquisadores) e aqueles que fazem (técnicos). Na tentativa de operar uma superação dialética, o autor conceitua o DI em dois momentos específicos.

O primeiro constitui o momento da "intercessão propriamente dita", momento no qual o trabalhador está no campo e em contato com os sujeitos que demandam atenção e com outros trabalhadores. Espera-se produzir subjetividade singularizada e um saber que possa ser útil aos sujeitos (intercessor e o sujeito) e ao campo. O segundo é o momento da reflexão teórica (Dispositivo Intercessor como Modo de Produção de Conhecimento) sobre o primeiro momento da práxis e tem como horizonte a produção de um saber que possa produzir alterações não só em sua práxis como também na de outros intercessores, isto é, a produção de conhecimento de consistência epistemológica. (PÉRICO, 2014; GALIEGO, 2013; PEREIRA, 2011; MARTINI, 2010; STRINGHETA; COSTA-ROSA, 2007; COSTA-ROSA, 2007, 2008, 2011a, 2013a). O Dispositivo Intercessor como Modo de Produção de Conhecimento (DIMPC) pretende produzir um saber transdisciplinar, que ultrapasse a conceituação das disciplinas e interrogue o conhecimento produzido na Universidade e a sua funcionalidade em termos práticos, isto é, um conhecimento para ser "aplicado" na realidade, na sua transformação.

O intercessor é um trabalhador precavido, essencialmente, pelos seguintes referenciais teórico-técnicos e ético-políticos: Psicanálise do campo de Freud (1988a, 1988b, 1996a, 1996b, 1996c, 2010, 2012, 2013) e Lacan (1992, 2003), Materialismo Histórico (ALTHUSSER; BADIOU, 1979; MARX, 2004, 1993), Filosofia da Diferença (DELEUZE, 1992) e a Análise Institucional em sua vertente francesa (LOURAU, 1975); e que assume uma posição intercessora, inserido nas instituições públicas prestadores de serviços. Para assumir tal posição, não precisa ser um trabalhador da Assistência Social, ser psicólogo ou assistente social, pois a intercessão independe de formação profissional, visto que se forma na práxis, na medida em que produz intercessões e se aprofunda em seus elementos teóricos-técnicos e no próprio campo de intercessão. De fato, a complexidade do campo exige elementos complexos, podendo ser necessária a introdução de outros campos do conhecimento.

Uma vez que, ao adentrar no campo de trabalho e se aprofundar nele, acaba por exigir conhecimentos sobre os processos de trabalho e da realidade que circunscreve a instituição, todavia, esse movimento de apropriação do saber e do conhecimento ocorre de forma dialética. Atentamos sobre a necessidade ética e técnica de ter conhecimentos sobre o campo em que se pretende atuar e de se estar imerso no campo de intercessão precavido de seus atravessamentos. Além disso, é preciso também se situar na transferência de trabalho com o coletivo, ou seja, um modo de posicionamento no qual o trabalhador está implicado subjetivamente com a realização do seu fazer. Nesse processo, o trabalho deixa de lado o seu caráter alienante e abre vazão para ações produtivas e criativas. A responsabilização pelas demandas que possam surgir no território está implícita nesse modo de operar.

Iremos denominá-lo "o trabalhador-intercessor" por sua condição de ser necessariamente um trabalhador da e na práxis e que pode atuar em diversos campos ou instituições, tais como na Saúde Coletiva, na Educação, no Lazer, no Esporte, na Cultura, e na Assistência Social e nos seus diversos estabelecimentos: prisões, escolas, hospitais, Casas de Convivência, Universidades, CAPS, CREAS, CRAS, Unidade Básica de Saúde (UBS), Abrigos, Casas de Passagem, etc., desde que esteja, tanto quanto possível, em formação contínua, situado numa ética e técnica transdisciplinar, que, nesse caso, é a ética do carecimento e do desejo (COSTA-ROSA, 2013a). O DI é uma proposta de trabalho que pretende ser um avanço para além das disciplinas, dos seus especialismos, do saber-poder que lhe é correlato e das tentativas de tomar o sujeito como objeto de intervenção.

Como ensinamento básico da psicanálise, temos que o trabalhador-intercessor só poderá ir, em suas intercessões, até onde a sua análise (pessoal) lhe permite chegar. Portanto, pode acabar por não visualizar os impasses, as situações ou as causas estruturais que produzem as demandas de ajuda, e as problemáticas vivenciadas pelos sujeitos, ou, como denominado pela Política Nacional de Assistência Social (BRASIL, 2004), as situações de vulnerabilidade e risco social e pessoal por violação ou por falta de acesso aos direitos sociais. E por desconhecer a sua existência e estrutura, pouco poderá fazer para além do já instituído, haja vista que mesmo visualizando e acolhendo os pedidos, são necessários instrumentos para produzir as intercessões (transformações). Destarte, algum saber o trabalhador-intercessor precisa ter, saber que lhe permita posicionar-se e interceder no campo, desde que haja contexto para tal, pois em alguns casos, mesmo visualizando os impasses e as situações, pouco pode fazer, uma vez que as transformações não dependem apenas de suas ações ou de seu posicionamento, mas dos sujeitos e do coletivo no qual está inserido. Tal condição não o impede de propor questões no curto prazo e de criar brechas no médio ou longo prazo, para, em outro momento, produzir intercessões.

Costa-Rosa (2008) esclarece que o trabalhador-intercessor não é um mestre, pesquisador (apesar de fazer isso num segundo momento), psicanalista, governador, professor, no entanto, conhece os impossíveis freudianos: ensinar, psicanalisar, governar e desejar. Ele "[...] aposta no desenvolvimento das potencialidades dos sujeitos. Daí que proponha uma ação a partir do lugar de intercessor como a mais efetiva para responder às demandas dos sujeitos frente à realidade vivida" (COSTA ROSA, 2008).

Segundo Karl Popper (1996), a teoria deve se submeter criticamente aos fatos. O estar no "campo de intercessão" possibilita ao trabalhador-intercessor ir além da prática, aliás, do modus operandis que os trabalhadores adquirem com o cotidiano de trabalho, pois implica repensar o seu fazer-saber e extrair a teoria que toda a prática contém, no sentido de repensá-la, colocá-la em análise, uma vez que as intercessões devem seguir uma direção: a da produção de subjetividade singularizada e de um saber que possa equacionar os impasses cotidianos tanto dos sujeitos como do seu grupo social mais amplo. O trabalhador-intercessor trabalha na transferência (vínculo) e leva em consideração o contexto, já que as intercessões descoladas de um contexto dificilmente levarão para outro lado que não seja o da repetição do mesmo que se tentou evitar. Por exemplo, o trabalho que visa produzir autonomia dificilmente seria alcançado por ações que desimpliquem o sujeito, o tutelem e desconsiderem o seu próprio saber.

Nada substitui a realidade objetiva, por isso uma práxis intercessora: "A questão de saber se ao pensamento humano pertence a verdade objetiva não é uma questão da teoria, mas uma questão prática. É na práxis que o ser humano tem de comprovar a verdade, isto é, a realidade e o poder, o carácter terreno do seu pensamento" (MARX, 1978), ou seja, o campo da Assistência Social é atravessado pela imprevisibilidade, dificilmente se podem prever os acontecimentos que possam ocorrer, já que o território, suas instituições, equipamentos e sujeitos são dinâmicos, o que justifica uma práxis intercessora e a necessidade de um fazer-saber dialético.

O contato com o "campo de intercessão" permite ao trabalhador-intercessor produzir um saber sobre o campo e sobre a sua práxis no campo, criando possibilidades de introduzir e operar, de um modo diferente, os seus instrumentos, constantemente afiados por meio da supervisão técnica, estudo da literatura do campo, práxis de trabalho e a análise pessoal, ações que lhe permitem fazer uma singular leitura dos processos que atravessam tanto o trabalhador como o seu campo de atuação. Sabemos que nem sempre isso é possível, devido ao cotidiano de trabalho nos estabelecimentos da Assistência Social, em decorrência das longas jornadas de trabalho, dos baixos salários, da falta de tempo para reflexão, para formação e outros contratempos do cotidiano. Por isso, mais uma vez enunciamos a necessidade de um dispositivo que vá além de um simples método de pesquisa ou de intervenção.

"Uma prática não precisa ser elucidada para operar" (COSTA-ROSA, 2013b), mas quando está situada numa ética singularizante, adquire uma potência diferente. Toda prática traz dentro de si uma teoria que a legitime, até mesmo o fazer automático ocorre quando já se internalizou o conhecimento e pensou saber o que poderá ocorrer, portanto, há a construção de uma teoria não explicitada. Condutas ou ações feitas a priori já contêm essa teoria ou a suposição de um conhecimento prévio, por exemplo: o sujeito vai ao CRAS e passa por atendimentos, relata não ter dinheiro e estar desempregado, o profissional o encaminha automaticamente para a transferência2 de renda ou o orienta a ir para uma agência de emprego; ou mulher relata estar sofrendo violência doméstica e, na sequência, é encaminhada para a delegacia ou para um estabelecimento específico que atende mulheres vítimas de violência doméstica. Tais ações não consideram o sujeito nem sequer a sua fala para além do enunciado, pois ela é usada somente para extrair conhecimento a fim de que o profissional compare esse dizer do indivíduo com o conhecimento técnico já acumulado (enciclopédico), e assim possa encontrar uma saída para a problemática do indivíduo. No entanto, acaba por desconsiderar o sujeito como um participante ativo, sem implicá-lo em sua demanda.

O DI é uma via de superação das dicotomias entre fazer-pensar, decidir-executar e saber-ação das Formações Sociais fundamentadas no Modo Capitalista de Produção (COSTA-ROSA, 2013a). A inserção na prática a partir de parâmetros teórico-técnicos e ético-políticos, numa posição de trabalhador-intercessor, permite a posteriori, num segundo momento (DIMPC), produzir reflexões capazes de produzir intercessões (transformações e revoluções) na prática de outros profissionais e na Universidade. Tais reflexões são feitas com o propósito de colocar algumas questões e tentar ampliar o campo de discussão. Esse dispositivo se encontra entre as abordagens que procuram transformar a realidade conhecendo, em vez de conhecer para transformar.

Nessa primeira fase da intercessão, o trabalhador-intercessor não faz pesquisa, situa-se como um trabalhador da Assistência Social. Nesse momento, ele pode ser considerado como o "mais um"3 do cartel lacaniano (JIMENES, 1994), que tem uma função bem situada no "coletivo de trabalho" (OURY, 2009). Vale ressalvar que, para o trabalhador-intercessor estar operando na posição de mais-um, é preciso antes estar sob um campo transferencial, onde uma suposição de saber recai sobre ele.

Nessa primeira fase, o trabalhador-intercessor constrói o "diário de intercessão", instrumento similar a um diário de campo, com a diferença de que, ao fazê-lo, já está repensando a sua práxis no caminhar dos atendimentos, momento em que já se interroga sobre o saber que foi produzido no ato do atendimento. Esse conhecimento que se produz na reflexão, na escrita do diário de intercessão, ainda não é a pesquisa, pois o diário de intercessão é apenas mais um dos instrumentos de trabalho do trabalhadorintercessor, ou seja, um guia para a ação, um diário de bordo que o auxiliará em seu percurso no território, não um simples instrumento de coleta de dados. No entanto, difere do diário de campo e do guia para a ação, pois visa produzir intercessões no trabalho diário do intercessor, uma vez que, à medida que constrói o diário de intercessão já se interroga sobre o seu fazer, reflete e se reposiciona, quando for o caso, sobre as direções tomadas nesses percursos.

O "material" que será a referência da pesquisa para o trabalhador-intercessor é constituído dos registros feitos por ele no diário de intercessão, sempre ao final das situações de intercessão ou do dia de trabalho - devemos frisar que o modo de trabalho do DI exige a "dissociação instrumental" entre intercessão e pesquisa, pois esta última só se coloca em perspectiva após a intercessão. Logo, no momento da intercessão, não se faz pesquisa, fazem-se apenas intercessões. O material mais precioso será, sobremodo, a experiência vivida e intransferível do trabalhador-intercessor, que estará registrada em suas memórias, pois é muito além daquilo que ele pode passar para o diário de intercessão. Também podem ser usados como referências: jornais, atas de reuniões, documentos oficiais ou internos da instituição, literatura do campo da assistência social e de outros campos que lhe são correlatos.

Sobre a utilização dos registros feitos nesse formato, sua pertinência e validação em termos de importância, Mezan (2002) pontua que as anotações ou escritas realizadas pelo próprio psicanalista (ou trabalhador-intercessor), feitas a posteriori, têm cabal legitimidade, por várias razões, ou melhor, a transcrição fidedigna das palavras tem pouca importância se comparada ao teor geral do discurso, pois o que geralmente embasa o raciocínio analítico é o teor dos elementos e as similaridades que apresentam em comum, raramente é um fato isolado. Logo, o que adquire importância é a compreensão geral da situação, já que as situações insistem perante o contexto e é "próprio dos processos dinâmicos e de encontros regulares, como os referidos, que tais elementos se repitam, facilitando a sua compreensão por parte do pesquisador" (STRINGHETA; COSTA-ROSA, 2007, p.159).

Podemos comparar o saber produzido pelo trabalhador-intercessor como um produto produzido nos moldes das antigas escolas de ofício de artesões, nas quais uma parte do que se produz (o saber) é consumida no ato de sua produção, e a outra parte (conhecimento) pode circular como moeda de troca, passando de uma pessoa para outra, e tem como horizonte a implicação de outros trabalhadores-intercessores nos seus fazeres cotidianos e na produção de Intercessão-Pesquisa.

1.1. O trabalhador-intercessor na Assistência Social e a sua ética

O DI visa romper com a divisão social do trabalho, pois considera que todos os envolvidos têm um saber e um fazer sobre a ação que executa. A sua ética, baseada no Materialismo Histórico e na Psicanálise do campo de Freud e Lacan, consiste em incluir os sujeitos como sendo capazes de produzir rupturas e mudanças nos estabelecimentos institucionais e na Formação Econômica e Social. Essa ética se fundamenta na ideia de que toda a produção de vida do Homem é simultaneamente produção e reprodução de saber e conhecimento (COSTA-ROSA, 2008), subjetividade. Há uma produção de conhecimento que é autoconhecimento (SANTOS, BOAVENTURA, 2002), que acaba por ser escamoteado por conta da divisão social entre saber e pensar, e toda reprodução é simultaneamente produção, pois, ao fazer, o homem faz a si mesmo (MARX, 1844/2004). Por isso, as nossas reflexões são dirigidas ao campo, na tentativa de intensificá-lo, e à Universidade, na busca de ampliá-la.

A Intercessão-Pesquisa é um método que não faz metodologia, pode ser conceituada como uma pesquisa eminentemente qualitativa, em que o trabalhadorintercessor escreve com base na sua inserção na práxis, sobre as experiências presentes e passadas, sobre uma vivência, no campo de trabalho, que é atravessada pelas intempéries do cotidiano, não assepsiada da realidade que o cerca, pois sofre a influência do contexto social, composto pelos: trabalhadores, sujeitos de direitos, coordenadores dos estabelecimentos, território, gestor municipal, da política da Assistência e demais políticas setoriais e da sua própria subjetividade. No entanto, devese posicionar de modo crítico e fazer uma leitura estrutural e conjuntural da realidade social que possibilite fazer intercessões nas situações consideradas como vulnerabilidade, risco social e nos impasses subjetivos e sociais - com os sujeitos e não sobre eles.

O trabalhador-intercessor não tem um caminho preestabelecido a percorrer. A inserção no campo permite uma visão privilegiada dos acontecimentos e cada campo tem as suas peculiaridades, diferente do pesquisador-observador que apenas observa o trabalho dos outros para depois produzir um saber acadêmico. Segundo Costa-Rosa (2008), o intercessor não é um intelectual profissional ou "intelectual orgânico" (GRAMSCI, 1976), ou agente da "pesquisação", ou "interventor pesquisador" (MINAYO, 2000), ou "psicanalista-pesquisador" (ELIA, 2000), ou "cartógrafo" (PASSOS; EIRADO, 2000), muito menos um analista institucional (ALTOÉ, 2004; LOURAU, 1975) ou psicanalista (LACAN, 1992), embora o intercessor possa ter algo deles e de seus campos de saber.

O trabalhador-intercessor tem um saber para a ação não como um a priori preestabelecido que desconsidera as demandas4 que não lhe foram apresentadas ainda. O intercessor usa os acontecimentos naturais ou construídos no cotidiano dos estabelecimentos institucionais para contestar o instituído, usa seus impasses e contradições com o objetivo de fazer movimento, de criar possibilidades para que os sujeitos da práxis desbloqueiem o que fazia a movimentação cessar. "Não se trata de buscar um equilíbrio das forças, mas de potencializá-las", interceder em sua multiplicação, "lançar-lhes luz para que possam imprimir ao campo de intercessão novos sentidos" (MARTINI, 2010, p.33).

Umas das principais características do Dispositivo Intercessor é a singularidade da relação entre objetividades e subjetividade. Pois, compreende que existem forças instituintes e instituídas constitutivas das Formações Sociais e dos próprios homens. Sua ética inclui a consideração de que eles podem identificar essas forças e transformá-las dialeticamente (PEREIRA, 2011, p.15).

O trabalhador-intercessor é um movimentador precavido, impulsiona o movimento daquilo que pode se movimentar, não força o outro ao movimento, pois sabe, por sua ética, que o desejo de movimento pertence aos sujeitos e que a verdade é buscada em cada encontro, não sendo uma verdade única e muito menos toda. Verdade que não pretende dar conta de toda uma realidade em constante movimento. Também não desconsidera que cada sujeito possa ter uma velocidade diferente na busca dessa verdade.

O trabalhador-intercessor é um coadjuvante nos processos dos quais participa. Quanto aos sujeitos, é a partir da sua posição circunstancial de alienação do contexto social que demandam a ajuda do trabalhador-intercessor. Eles apostam na sua figura como intermediador entre aquilo que buscam e aquilo que precisam e o que o estabelecimento institucional pode ofertar. Colocam-no em uma posição de detentor do saber-poder-ajudar e resolver as situações em que se encontram. Essa suposição que recai sobre ele é, na realidade, a sua própria potência de forma invertida.

Inicialmente, os sujeitos o procuram supondo que ele tem algo que possa ajudálos. Devido às condições socioculturais e subjetivas, os sujeitos posicionam-se de modo a não perceberem mais o lugar que ocupam nas contradições e conflitos de cujos efeitos são produtos (COSTA-ROSA, 2008). Não percebem que o saber que tem potência de equacionar seus impasses sociais possa advir ou ser produzido por eles mesmos, uma vez que "[...] os únicos conhecimentos [saber] que possam influenciar o comportamento [subjetividade] de um indivíduo [sujeito] são aqueles que ele próprio descobre e dos quais se apropria (LAPASSADE, 1983, p.57).

A neutralidade, tão cara às pesquisas positivistas, não é almejada nessa forma de fazer pesquisa porque acreditamos na sua impossibilidade, o que não significa que o trabalhador-intercessor irá manipular os dados para fazer a sua teoria caber no que foi pesquisado ou interpretará selvagemente os dados colhidos. Para ele, isso pouco importa, pois, como se trata de um saber que não se sabe, a não ser por quem o produz no ato de sua produção, logo, o que se pode tentar repetir são as formas de produzir esse saber. Diferentemente da pesquisa positivista, na qual o método deve ser fixo e o conhecimento terá que ser sempre reproduzido nas mesmas condições de sua criação, visto que esse tipo de pesquisa (positivista) tem o objetivo predeterminado, e o método visa alcançá-lo. O DI visa produzir enunciação e não conhecimento enciclopédico, visa produzir um saber5 para a emancipação dos sujeitos que a ciência positivista sempre tentou objetificar e amordaçar. Portanto, o intercessor, dado seu norte ético-político, se posiciona perante as contradições sociais, pois não se posicionar é estar a favor do instituído e do polo social que detém o poder.

Pereira (2011) destaca a diferença entre saber e conhecimento produzidos na Intercessão-Pesquisa (DI/DIMPC):

Trata-se da diferença entre saber (sempre inconsciente ou referente ao não-sabido das Formações Sociais) e conhecimento, esse arcabouço acumulado pela Ciência e mesmo a Filosofia, e que se pretende ligado diretamente à razão e à consciência. De modo aproximado se pode dizer que o operador no DI se remete ao saber de extração não cartesiana, ao passo que o conhecimento propriamente dito, cujo lócus comum é a Universidade, tem sua extração derivada do Cógito Cartesiano. (PEREIRA, 2011, p.16)

As pesquisas em geral tendem a desconsiderar ou excluir a história do pesquisador ou o seu passado, a escolha do tema e os motivos que o levaram a realizar a pesquisa ou a ser um pesquisador. Ao tentar excluir esses elementos, acaba por desconsiderar o que lhe é mais sagrado, o seu desejo, isso que o move e o implica. A Intercessão-Pesquisa tem como base a implicação subjetiva e sociocultural dos sujeitos e o papel que eles podem ter no desenrolar da realidade. A história do pesquisador entra em cena, desde o início; é um a priori da intercessão e da pesquisa, pois o pesquisador existe antes de sua pesquisa, mesmo que essa pretenda ser um discurso sem palavras, que propague suas ideias para além das torres de marfim da Universidade ou dos livros.

1.2. Contribuições da Psicanálise para o DI/DIMPC

A "metodologia" e a ética do DI são tributárias da psicanálise do campo de Freud e Lacan, com a diferença essencial de que o campo de que se trata não é o da clínica, mas o de uma práxis na qual a psicanálise é "aplicada" (COSTA-ROSA, 2007, 2008). Conceitos centrais como sujeito, desejo, inconsciente, transferência, demanda, etc. são reutilizados levando em conta o campo (considerando as peculiaridades da Assistência Social). As recomendações freudianas sobre a formação dos analistas também são consideradas como percurso de formação do trabalhador-intercessor: estudo da teoria (técnica, ética, dos processos e modos de subjetivação e do campo de atuação), práxis de atendimento com os sujeitos, supervisão sobre essa práxis e, por fim, e não menos importante, a análise pessoal.

O trabalhador-intercessor em alguns casos se posiciona como o analista e se pauta na ignorância douta que não é uma posição de saber, ou compreender os sujeitos, é um local de suposição de saber, aliás, uma posição de ignorância, não de ignorância ignara (desconhecimento), mas de ignorância douta, que sabe que o saber tem os seus limites - e o seu limite é não saber pelo outro - haja vista que a comunicação é baseada no malentendido (QUINET, 2005). É porque não nos entendemos que tentamos nos explicar e, assim, fazer-nos entender. Não significa que o trabalhador-intercessor não saiba ou não compreende, ele simplesmente coloca seu conhecimento em suspenso para que os sujeitos possam produzir um Outro saber, um saber-se.

O saber em psicanálise não é um saber intelectual ou do senso comum, muito menos uma mistura desses dois campos (ELIA, 2010); é um saber inconsciente, acessível por meio do dispositivo analítico ou do DI, ocorrendo apenas sobre transferência. Logo, é um saber determinado pelas condições de sua elaboração, isto é, inteiramente baseado na práxis e nos próprios sujeitos envolvidos em sua produção. Ou, em outros termos, segundo Elia (2010), o acesso ao saber inconsciente exige um trabalho (a práxis), que ocorre por meio de um método, em nosso caso o Dispositivo Intercessor, que estabelece um dispositivo e requer um operador dessa função, o psicanalista (trabalhador-intercessor).

O intercessor é uma posição assumida pelo trabalhador, homóloga à do analista, só que em outro lócus. Isso não significa que o trabalhador-intercessor não possa dar explicações, orientações, encaminhamentos, oficinas, grupos, palestras, seguir fluxos ou protocolos. O diferencial é que, quando o faz, visa a um para além das demandas básicas ou mínimas (imaginárias) de auxílios, renda, benefícios e outros, já que visa à produção de sentido novo e ao desvelamento das contradições pelos próprios sujeitos que demandam sua ajuda devido a impasses sociais ou subjetivos. Ele almeja a implicação subjetiva e sociocultural, pois aí está o motor do movimento e do protagonismo do sujeito, o resto vem por acréscimo, ou melhor, a inserção na família, no grupo social mais amplo, no trabalho, no lazer, na renda e no trabalho; na medida em que vai se implicando, vai descobrindo modos de lidar com seu próprio impasse e com a parte que lhe cabe em meio a todo o contexto, não desconsiderando a Formação Sociocultural e Subjetiva e suas implicações em sua vida. A diferença é que, por hipótese, possa conseguir minimamente diferenciar o que é dele e o que é do "Outro".

O trabalhador-intercessor adota algumas táticas: interrogações, sublinhamentos, assinalamentos, escansões, proposições que desvelam e evidenciam os impasses dos sujeitos. Isso não significa que o trabalhador-intercessor também não faça uso do conhecimento já acumulado, quer dizer, do conhecimento que armazenou em sua prática ou da literatura ou das leis e normas que regem o acesso aos direitos sociais. Significa apenas que ele os usa de acordo com o contexto e os intercala com a produção de saber novo. No entanto, a utilização do conhecimento pode levar a ocupar a posição de mestre detentor do saber, que pode resolver, curar, ajudar e salvar os sujeitos. A posição do intercessor deve contribuir para implicar os sujeitos em suas questões para que assumam uma outra posição: em vez de objetos de intervenção, tornem-se sujeitos da ação.

O conceito lacaniano de Sujeito Suposto ao Saber (QUINET, 2005) nos auxilia a entender a posição intercessora. Os sujeitos supõem, no trabalhador-intercessor, um saber que possa resolver, ajudar, curar, consertar, salvar e arrumar aquilo que lhes faltam e que lhes faltam por diversos motivos, porque não receberam, não tiveram, perderam, lhes fora roubado ou negado no decorrer de suas vidas. As táticas usadas pelo trabalhador-intercessor visam desvelar as contradições e ocupar as brechas existentes entre Encomenda Social (o que traz diretamente em seus pedidos) e a Demanda Social (o que realmente demandam e precisariam para solucionar os seus impasses, no entanto, após sofrer ação da ideologia capitalista, se transforma em Encomenda Social), possibilitando meios de diferenciar e, quando for o caso, referenciar em seus respectivos locais de interlocução.

As táticas do trabalhador-intercessor visam abrir a dimensão de um não-saber que possibilita redimensionar a práxis, já que é um saber que não se sabe até o momento de seu aparecimento, diferente do modo de pesquisa positivista que valoriza a produção de conhecimento mecânico ou repetitivo. No DI, pretende-se produzir um saber novo, acessível apenas àqueles presentes no ato de sua produção. E cada sujeito, no ato da produção, apreende esse saber de um jeito próprio, portanto, o trabalhador-intercessor e sujeito terão contato com o saber de um modo diferente, e esse saber ainda poderá produzir sentido para além do momento da intercessão. Por hipótese, quando esse sentido surge, tem potência de ressignificar uma série de acontecimentos anteriores, passados. Na medida em que a fala é polissêmica, pode trazer sentidos para além dos imaginados pelos sujeitos; logo, o modo de produção de saber do intercessor e da psicanálise traz algumas características em comum.

Como o analista, o intercessor tem a particularidade de não se inserir totalmente no grupo de trabalho e não entrar nas intrigas imaginárias que tendem a ocorrer nos estabelecimentos, ou é pego pelos pressupostos básicos do grupo (luta e fuga, acasalamento e dependência) (BION, 1975). "A ética da psicanálise, como sua teoria e sua técnica, exige que o último seja, sobretudo, uma bússola para o primeiro" (COSTA-ROSA, 2008, p. 7), já que é uma prática feita por muitos (DI-CIACCIA, 1999).

 

2. Dispositivo intercessor como modo de produção do conhecimento (DIMPC)

O DIMPC é uma reflexão sobre o momento vivido pelo trabalhador-intercessor, é a pesquisa propriamente dita. A intercessão não pressupõe esse segundo momento, mas ele só ocorre porque o intercessor estava em campo (trabalhando). Nessa etapa, o diário de intercessão é retomado, não mais para a práxis cotidiana, mas como "material" de referência para a reflexão da escrita, junto com as memórias da experiência vivida, jornais, documentos oficiais ou internos e a literatura da área. O DIMPC visa à fundamentação da práxis já executada, isto é, a construção de um texto que retrate um percurso de acontecimentos, intercessões, caminhos e histórias. Aliás, trata-se da produção e transmissão de um conhecimento de estatuto epistemológico.

O DIMPC pretende interrogar (interferir) (n)a forma de produção de conhecimento, colocando algumas questões para a Universidade, considerando-a lócus essencial da contradição entre fazer-pensar, pois produz trabalhadores (fazedores) para o mercado de trabalho, professores (pensadores) para continuar ensinando e produzindo mais trabalhadores, e também produz conhecimento. Lacan denominará esse modo de produzir conhecimento como Discurso da Universidade (LACAN, 1992), no qual o conhecimento acumulado pretende ser totalizante e saber sobre tudo, e, por querer ser objetivo, acaba por excluir a subjetividade, que é singular por natureza. A Universidade produz teorias e discursos (conhecimento enciclopédico) que, por sua vez, engendra práticas. Neste segundo momento, confrontam-se situações vividas no campo - na realidade - com o conhecimento acumulado, e compararemos o particular com o universal, na tentativa de evidenciar as contradições (singular) e produzir novos saberes com o propósito de ampliar o campo.

Nesse modo de pesquisa, o conhecimento é interpretativo, organizado a posteriori, não após o momento que os "dados" foram coletados e selecionados. Para sua construção há também um processo de reconstrução constante de sentido sobre o que foi observado e experenciado pelo trabalhador-intercessor. O sentido advém da integração, de sucessivas situações significantes que podem ganhar significação, conforme o seu aparecimento e o contexto de que emergem; se tomados separadamente, podem não adquirir o mesmo sentido (GONZALEZ-REY, 2002).

Nesse segundo tempo, o trabalhador-intercessor posiciona-se na intenção de produzir intercessões na práxis da Universidade, quer dizer, na sua forma e no modo de produzir conhecimento. Para tanto, utiliza o saber vivenciado no primeiro momento e ressignifica-o, no segundo momento, para questionar, discutir, redirecionar os saberes pré-estabelecidos, inclusive na sua estrutura discursiva (MARTINI, 2010), pois o conhecimento deve estabelecer uma relação direta com a práxis e servir para operar o próprio desenvolvimento da práxis (FODRA et al., 2007). Lacan denomina como Discurso da Histérica ou do Sujeito (LACAN, 1992; QUINET, 2006) o modo de produção de saber que interroga o conhecimento, na tentativa de fazer movimentar conceitos e significantes instituídos. Portanto, o trabalhador-intercessor se coloca como um questionador do conhecimento posto nos livros, manuais e leis, para produzir um saber mutante, transitório, provisório e parcial sobre os meios, as técnicas e sobre o próprio processo de produção do conhecimento.

O saber produzido com o DIMPC é um saber sobre o caminho percorrido pelo trabalhador-intercessor em seus acertos, erros, derrapagens, sucessos, insucessos, desafios e impasses. A reflexão sobre esse percurso pode servir para desvelar os motivos que levaram a tal desfecho. Todavia, analisar os acontecimentos permite que, nos próximos percursos, esteja minimamente precavido, de maneira que, mesmo experiências falhas devem ser repensadas na tentativa de serem evitadas ou problematizadas. A análise de um caso falho possibilita conhecer os jogos de forças que o fizeram falhar e ver a existência de possibilidades de fazer diferente.

Mas, para quem serviria a produção de um saber dinâmico que, à medida que se produz, interroga-se e se transforma, ou para quem serviria a produção de intercessões que tivessem como pretensão alterar a realidade, e que confrontassem com os impasses e as dificuldades que a realidade impõe? A resposta é simples: interessaria, certamente, aos outros intercessores. Um saber sobre os processos de produção da práxis, na práxis, só poderia servir para instrumentalizar outros intercessores na práxis.

Temos a hipótese de que os atendimentos, nesse formato de intercessão, produzem um duplo ganho para os sujeitos. Primeiro, porque têm a potência de produzir saber de estatuto outro (inconsciente) que pode ser aprendido no ato de sua produção pelos sujeitos envolvidos e que leve em conta o rompimento com o status de passividade em que são colocados, abrindo caminho para que possam assumir o papel de protagonista. Segundo, por receber os atendimentos de um trabalhador que está em constante formação.

O trabalhador-intercessor planta a possibilidade de subverter a produção de conhecimento: ao invés de ir para a academia buscar um saber que mude o campo, por que não trazer o seu conhecimento para a academia e repensá-lo junto com o campo? Repensar o conhecimento é essencial, mas a entrada na Universidade torna-se uma opção, pois para repensar o trabalho não há necessidade de sair do campo onde ele ocorre.

O que se apreende na Universidade acaba por ser universal ou particular, logo, a práxis, por ser essencialmente singular, é fundamental. Apesar da política de AssistênciaSocial estar sendo pautada por um Sistema Único de Assistência Social (SUAS) (BRASIL, 2005) e seus Estabelecimentos estarem sendo implantados em todo o território nacional (FEITOZA, 2011), com os saberes disciplinares de diversos campos: direito, psicologia, antropologia, serviço social, ciências sociais e outros (BRASIL, 2006), ela ainda não abarca a realidade do campo, que tem por característica a imprevisibilidade, no sentido de que não se podem prever os encontros nem os acontecimentos.

Como um exemplo sobre a imprevisibilidade do campo, podemos citar uma pequena passagem de um caso para ilustrar, uma vez que todos os dias, na Assistência Social, atendemos pessoas que acabaram de ficar em situação de rua. No primeiro encontro, geralmente fazemos algumas perguntas como nome, endereço, escolaridade, profissão, estado civil e outras, com o objetivo de fazer uma espécie de cadastro. Ele chega ao CREAS para atendimento, muito sério e lacônico, tinha cerca de 20 anos. Iniciamos uma breve conversa, após passado um certo tempo faço algumas perguntas como as citadas para cadastro. Pergunto o que ele faz - era uma pergunta relacionada a qual trabalho fazia para sobreviver na rua - a pergunta foi realizada logo depois de: "Qual era a sua profissão?". O sujeito responde seriamente, "eu danço". Ele, então, levanta da cadeira e começa a dançar break dentro da sala de atendimento. O sujeito achou que tivesse perguntado o que ele mais gostava de fazer e não o que faz na rua para sobreviver.

2.1. O trabalhador-intercessor na Assistência Social

Resumindo, o DI é um instrumento de ação, intercessão e produção de subjetividade singularizada, junto aos sujeitos no cotidiano dos estabelecimentos da Assistência Social públicos e como modo de produção de conhecimento (pesquisa), nos quais os sujeitos estejam implicados no seu fazer e possam se apropriar do saber produzido no ato de sua produção. O trabalhador-intercessor, dentro da Assistência Social, pode trabalhar em diversos dispositivos ou lugares, como equipes de trabalho, atendimentos com os sujeitos, visitas domiciliares, oficinas, abordagens na rua, grupos e até mesmo em atividades do dia a dia, como acompanhar sujeitos até outros lugares. A ações podem ir além dos muros da instituição: nas reuniões de rede, discussão de casos com outros estabelecimentos, Conselhos de Direitos do Idoso, da Criança e do Adolescente, da Pessoa com Deficiência, da Assistência Social, sobre Álcool e Drogas, ou em fóruns de discussão como sobre PSR, ou sobre a Erradicação do Trabalho Infantil etc.

O intercessor também pode atuar em outros campos: na Saúde Coletiva, Saúde Mental, Educação, AS etc., e em diversos estabelecimentos tais como escolas, hospitais, CAPS, CREAS, CRAS, UBS etc. desde que estejam minimamente situados numa determinada ética e técnica, que, nesse caso, é fundada por elementos da Psicanálise de Freud e Lacan, do Materialismo Histórico, bem como de alguns outros elementos da Filosofia da Diferença e da Análise Institucional. A práxis intercessora se pauta essencialmente num fazer e pensar crítico, que coloque em xeque o modo tanto de fazer como o de produzir saber a partir da práxis.

O dia a dia de trabalho nos estabelecimentos, nos coletivos e com os sujeitos exige um repensar constante do fazer dos trabalhadores, e as situações que chegam são singulares, mesmo quando parecem ter semelhanças com situações já vivenciadas no cotidiano. A Formação Econômica e Social, o seu modo de produção, as suas incidências no território, os impasses subjetivos, e as situações consideradas como vulnerabilidades e risco se atravessam mutuamente e se atualizam em cada caso, daí a sua complexidade singular e a necessidade de instrumentos complexos tanto de leitura do social como de intercessão.

O trabalho do CREAS não é apenas atender e encaminhar, ou seja, gerenciar a demanda. O trabalho do CREAS é complexo e especializado, atender e encaminhar são apenas uma pequena parte, o trabalho se estende para muito além disso. Inclui, dentre outras ações, identificar demandas, atender, orientar, acompanhar (quando for o caso) e encaminhar para a rede socioassistencial, desvencilhar as demandas, interrogá-las, fazer os sujeitos se situarem em meio ao território etc.

O conhecimento ou o saber nunca darão conta do real, ou seja, das possibilidades e problemas do cotidiano, nos quais os trabalhadores são convocados a interceder (dar respostas), muitas vezes visando resolver, consertar, arrumar, ajudar e acabar com as crises. No entanto, é o mais próximo que se pode chegar da realidade. Lacan vai dizer que o real é inapreensível, mas que o simbólico é capaz de significá-lo, aliás, simbolizá-lo. E, por isso, o saber do outro é essencial e determinante (LACAN, 1992). Segundo Boaventura Souza Santos (2002), todo o conhecimento tem sua validade maximizada, quando visa se tornar autoconhecimento.

 

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1 Este texto, no qual tento apresentar algumas ideias do trabalhador-intercessor na Assistência Social, faz parte de um recorte da dissertação de mestrado "A Assistência Social e o trabalho com as Pessoas em Situação de Rua: um campo de intercessão".
2 Um modo de vinculação que se caracteriza por uma repetição, no qual os modos de se relacionar anteriores são transferidos para outras relações, nas quais os representantes de afeto investido no objeto (pessoa, instituição, etc.) do passado se transferem para o objeto presente, quando os sujeitos podem assumir os mesmos papéis que assumiam outrora. Para Lacan, transferência não é apenas repetição, pois existe um saber em jogo e um gozo. A transferência é um dos conceitos fundamentais da psicanálise - o manejo da transferência faz ligar o analisante à figura do analista "no começo da psicanálise está a transferência" (LACAN, 2003, p.252). A psicanálise apenas ocorre sobre transferência (MILLER, 1989b). Miller (1989a) conceitua três tipos de transferência: anônima, significação e analítica. A primeira pode ser considerada igual ao modo que o aluno se relaciona com o professor, do leitor com o autor, do doente com o médico, do sujeito com a assistência social, uma relação em que o primeiro já supõe algo sobre o segundo, razão pela qual acaba por demandar algo. A segunda é um momento de abertura, passa como se fosse um flash, ocorre em um instante. A terceira constitui um momento em que o saber adquire outras significações e o sujeito assume o lugar do trabalho na produção desse saber. A mutação de uma transferência para outra ocorre por meio de um quarto de giro de discurso ou revolução de discurso. Nesse caso, muda do discurso da Universidade e do Mestre para o Discurso da Histérico ou Discurso do Analista. (QUINET, 2006; LACAN, 1992, COSTA-ROSA, 2013a).
3 O Cartel é um dispositivo de formação de analistas, inventado por Lacan. O "mais um" é um psicanalista chamado pelo Cartel para auxiliar o grupo, observando os impasses que o coletivo apresenta em seus estudos clínicos (psicanálise em intenção) e teóricos (psicanálise em extensão), podendo em alguns casos específicos ser um pouco mais diretivo. O "um a mais" é o indivíduo em um grupo sem grupalidade, são pessoas que não se somam, ou melhor, o grupo é formado por 4 pessoas, sua configuração seria 1+1+1+1 e não somariam quatro, já que não se unem. No Cartel ocorre a produção de saber em dois momentos, no primeiro momento da clínica e no segundo momento as elaborações teóricas sobre clínica, a teoria (JIMENEZ, 1994).
4 Existem momentos das demandas e tipos de demandas: as que surgem logo no início nos primeiros encontros (demanda manifesta), as que são desveladas nos atendimentos (latentes), e aquelas que surgem como algo novo a demandar e que vão além do horizonte de resolutividade dos estabelecimentos; essa última, por hipótese, teria uma maior conexão com a demanda no sentido psicanalítico. Para esta última apenas os sujeitos podem buscar e dar respostas, pois é um movimento de desejar constante que pode surgir por meio de uma ação intercessora.

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