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Revista de Psicologia da UNESP

versão On-line ISSN 1984-9044

Rev. Psicol. UNESP vol.15 no.1 Assis jan./jun. 2016

 

ARTIGOS

 

As vivências de morar só em interface com a pós-modernidade: perspectivas de jovens universitários

 

Living Alone experiences in postmodernity: young undergraduate students points of view

 

 

Laura Meira Bonfim Mantellatto

Unesp

 

 


RESUMO

A presente pesquisa teve como objetivo problematizar as hipóteses, principalmente, de Lasch (1983) e Sennett (1988), sobre relações interpessoais no contemporâneo, tendo como plano de fundo o processo de individualização, do qual elegemos como referência o crescente número de pessoas morando sozinhas no Brasil (IBGE, 2011). Os dados bibliográficos foram confrontados com o conteúdo de entrevistas semidirigidas com 5 estudantes de graduação que residem sozinhos(as). A despeito de ser um estilo de vida engendrado pelas demandas do sistema econômico vigente, constatamos que tal experiência é ressignificada pelos sujeitos, os quais atribuem sentidos de liberdade e desenvolvimento a tal vivência. Além disso, a solidão representa uma sensibilidade à ausência dos demais e abertura de possibilidades para o encontro com o outro.

Palavras-chave: Individualização; Contemporaneidade; Jovens adultos; Morar só.


ABSTRACT

Abstract: This study aimed to discuss the hypothesis, especially in Lasch (1979) and Sennett (1988), about interpersonal relationships in the contemporary, with the background of the individualization process, which we have chosen as an exponent the growing number of people living alone in Brazil (IBGE, 2011). Bibliographic data were confronted with the contents of semi-structured interviews with 05 undergraduate students who lives alone. Despite being a lifestyle engendered by the demands of the current economic system, we found that such experience is re-signified by the subjects, who attribute meanings of freedom and development of such experience. Also, loneliness is a sensitivity to the absence of the Other and opening possibilities for meeting Others.

Keywords: individualization; contemporaneity; young adults; living alone.


 

 

Introdução

O crescente fenômeno da habitação individual, que nos países desenvolvidos já atinge números expressivos - na Suécia, 60% das residências são habitadas por apenas uma pessoa; nos Estados Unidos, em Nova Iorque, 50% dos adultos vivem sozinhos (LIMA, 2013) - também se manifesta em escala progressiva no Brasil. No ano de 1991, 6,5% da população brasileira viviam só; já em 2000, eram 9,1% da população; por fim, em 2010, atingiu-se o número de 12,2%. (IBGE, 2011) Ainda segundo esses dados, observa-se que houve um aumento de 82%, entre idosos que moram sozinhos, em relação aos censos de 2000 e 2010. Já entre os jovens (15-29 anos), o aumento também foi significativo, corresponde à quantia de 50%. No entanto, a maioria das pessoas que moram sozinhas, no Brasil, são aquelas entre 30 e 59 anos, faixa etária em que houve aumento de 55% no mesmo período indicado.

Berquó (1998) identifica uma mudança na estruturação familiar brasileira a partir dos anos 70, quando é desencadeado o crescimento de unidades domésticas. Naquela década, o aumento de residências foi de 4,1%, enquanto o crescimento populacional foi de 2,5%, colocando em cheque a ideia de que a multiplicação de residências seja reflexo do aumento populacional. No contexto nacional, a partir do ano de 1967, o ideal de modernização fortalece-se, e o movimento de progresso tem como meta a aproximação dos padrões de vida do chamado Primeiro Mundo. Esse período corresponde à intensificação das migrações, industrialização e urbanização do país. Até 1980, o Brasil já alcançava o objetivo de se colocar lado a lado com as principais potências mundiais, quanto à produção e consumo. Para isso, a assimilação da ideologia capitalista - liberdade individual e enfraquecimento da tradição - também foi abundante, principalmente pela chegada da televisão e, consequentemente, da cultura de massa, no seio familiar. (MELLO; NOVAIS, 1998)

Para Lasch (1983), o papel exercido pelo consumismo, e sua incessante veiculação midiática, corresponde a um fator determinante nas transformações sociais e subjetivas que se verificam. Trata-se do fato de que o recurso imagético atua diretamente no fantástico mundo infantil, recrutando a criança ao consumo, além de a terceirização dos cuidados a ela destinados - como a babá, a creche e o especialista -, proporcionar o empobrecimento da figura de lei, antes atribuído ao exercício paterno. Essas condições serão, portanto, favoráveis para o desenvolvimento do indivíduo narcisista. Este autor compreende o processo de individualização como uma fuga do eu perante a possibilidade de contato com o outro, referindo-se ao significante aumento do número de pessoas que moram sozinhas nos Estados Unidos como um apreço pela independência, mas, acima de tudo, como uma aversão ao estabelecimento de vínculos. (LASCH, 1983)

Severiano (2006) postula que vivemos em uma época de pseudoindividuação; ainda que seja exacerbado o paradigma de liberdade individual, por outro lado, são colocados em prática mecanismos homogeneizadores. Isso se torna possível em virtude do empobrecimento simbólico - retirada do sujeito das relações interpessoais - e a consequente colonização dessa esfera pelo discurso e imagens de consumo. A liberdade de escolha do sujeito, segundo essa construção, diz respeito a optar por determinados rótulos numa prateleira, um tipo de filme, ou estilo de vida. Trata-se, na verdade, da domesticação do humano via publicidade. Assim ganha corpo o sujeito - ou seria mais apropriado chamá-lo de objeto? -, da cultura do narcisismo/consumismo.

Aprofundando-se nessa temática, Carvalho (1995), na dissertação de mestrado intitulada Home Sweet Lonely: Solidão e Modernidade,explora o crescente número de pessoas morando sozinhas no Brasil, partindo da perspectiva de isolamento e narcisismo da atualidade. O autor ressalta o caráter intrínseco da solidão nas cidades, o qual é entendido como reflexo do investimento do indivíduo em si mesmo e desprezo pelo diferente:

Entrincheirados em si próprios, aparentados a ostras insensíveis e, muitas vezes, na periferia das relações sociais [...] em seus pequenos 'jardins de delícias', reforçam paradoxalmente as bases de uma sociabilidade difusa e vulnerável, em constante reorganização que, inúmeras vezes, remete-nos a ideia de um deserto emocional de almas. (CARVALHO, 1995, p.155)

Não há, em tal dissertação, qualquer pudor em associar a condição de morar só com o isolamento, além da construção de uma visão distópica quanto aos relacionamentos interpessoais no contemporâneo. Para isso, o autor enuncia o importante nicho mercadológico que tal categoria de pessoas constitui; a superação da relação com as pessoas para aquela com objetos; e, por fim, o enquadramento do mundo, pelo sujeito solitário, por meio da tecnologia.

A concepção de sujeito que norteia esta pesquisa, diferenciando-se do que foi colocado até então, baseia-se no pensamento de Giddens (2002), o qual se opõe à condição acrítica de absorção subjetiva do conteúdo ideológico circundante no social. De forma que o eu não se constitui como mero recipiente - armazenando o conteúdo proveniente do meio externo - e, sim, numa perspectiva dialética, forma-se através de uma relação ativa com a realidade. O recolhimento do indivíduo é entendido como um estilo de vida a ser adotado, não constituindo uma regra, mas um dos valores que compõem o modo de funcionamento capitalista, responsável por estruturar práticas sociais segundo a lógica individualizante. À luz disso, o eu autônomo em relação ao meio é uma proposta que se torna muito mais eloquente quando entendida como uma ideologia, e não uma realidade dada. (FIGUEIREDO, 1995)

Elias (1994) salienta que, seguindo o desenvolvimento da modernidade, a cidade foi postulada como espaço comum de trabalho, moradia e constituição de vínculos interpessoais, de maneira que o local, caracterizado pela tradição e laços sanguíneos, progressivamente abre-se para a diversidade urbana. A família e comunidade - agências de controle do sujeito - perdem suas funções para o Estado. Se antes o eu tinha um grupo de associação estável, a atualidade se contrapõe a isso:

A mobilidade das pessoas, no sentido espacial e social, aumenta. Seu envolvimento com a família, o grupo de parentesco, a comunidade local e outros grupos dessa natureza, antes inescapável pela vida inteira, vê-se reduzido. Elas têm menos necessidade de adaptar seu comportamento, metas e ideais à vida de tais grupos, ou de se identificar automaticamente com eles. (ELIAS, 1994, p.102)

Holanda (1995) pontua que, entre a família e o Estado, não existem continuidades, muito pelo contrário: trata-se de instituições opostas entre si. Uma sociedade organizada com base na centralização do Estado engendra um contexto onde se excluem as particularidades, a fim de promover a igualdade de direitos entre os

cidadãos. A valorização de estruturas familiares tradicionais promove um dinamismo social conservador, gerando uma situação de embate entre os valores "antifamiliares" (HOLANDA, 1995, p.144) - especialmente o de livre iniciativa - e aqueles há tempos hierarquizados. No Brasil, portanto, o ideal de um Estado democrático afastado de interesses particulares ainda nos é distante. Para o autor em questão é, sobretudo, no âmbito da família que a força conservadora opera e se reproduz de forma mais intensa: "as relações que se criam na vida doméstica sempre forneceram o modelo obrigatório de qualquer composição entre nós." (HOLANDA, 1995, p. 146)

Figueiredo (1995) aborda essa questão referindo-se ao pressuposto de independência, próprio da atualidade, como afastamento do sujeito da necessidade invariável de seguir valores advindos de uma ordem hierárquica, razão pela qual se abre a possibilidade de a pessoa orientar-se segundo suas próprias premissas. No entanto, o exercício dessa liberdade, afirmará o autor, restringe-se ao campo do privado, onde o sujeito usufrui da ausência de normas sociais. O espaço privado, antes referência necessária ao ambiente familiar, afrouxa-se e assume novas configurações na atualidade. Para Ariès (1981), em consonância com Adorno e Horkheimer (1982), a família representa um espaço de reprodução de normas sociais e, apesar de sua dinâmica compreender dois polos distintos - a transmissão de regras de um lado, e afeto por outro - o que predomina em sua gênese é o aspecto coercitivo:

O sentimento da família, o sentimento de classe e talvez, em outra área, o sentimento de raça surgem, portanto, como as manifestações da mesma intolerância diante da diversidade, de uma mesma preocupação de uniformidade. (ARIÈS, 1981, p.196)

A ideia de derrubada dos vínculos interpessoais pode ser entendida como o enfraquecimento dos modelos convencionais de relacionamento, responsáveis por edificar o padrão de família tradicional, por exemplo. Quando se fala de empobrecimento da esfera pública, em oposição ao crescimento desmedido do espaço íntimo (SENNETT, 1988), podemos depreender dessa oposição uma busca pela significação de si e das relações estabelecidas, dado que o ambiente público tende à impessoalidade (AUGÉ, 2012). O âmbito privado representa, então, o lugar onde são desenvolvidos os referenciais de confiança, e isso não é sinônimo de isolamento do sujeito, já que a coerência dos seus projetos, construídos reflexivamente, requer a apropriação e concretização no enredo social:

O privatismo é, sem dúvida, característico de grandes áreas da vida urbana moderna, consequência da dissolução do lugar e do aumento da mobilidade. Por outro lado, áreas urbanas modernas permitem o desenvolvimento de uma vida pública cosmopolita de maneiras que não estavam disponíveis em comunidades mais tradicionais. Pois os ambientes urbanos modernos oferecem uma diversidade de oportunidades de os indivíduos procurarem outros com interesses semelhantes e com eles formarem associações, além de oferecer mais oportunidades para o cultivo de uma pluralidade de interesses em geral. (GIDDENS, 2002, p. 162)

Na dissertação de mestrado Entre a solidão e a amizade: cartografias contemporâneas da subjetividade,Peres (2000) aborda a vivência de jovens universitários que deixaram suas cidades para iniciar os estudos acadêmicos. Para isso, o autor vale-se de um grupo terapêutico, sem um tema pré-definido, em que esses

jovens expõem suas novas experiências, dentre as quais a que atinge maior incidência é o conflito entre o contato e o distanciamento do outro. A iniciar pela mudança de cidade, os jovens relatam que um sentimento de desamparo surge de tal distanciamento do núcleo familiar, resultante da falta de referências até então bem conhecidas e fixas. Essa mudança de vida os coloca numa condição de desterritorialização, em que deverão buscar novos pontos de confiança por si mesmos, como condição desse processo de descolamento do que era conhecido. Disso também advém a necessidade de ressignificar valores e modos de relacionamento que até então se tinha, baseados no contexto de onde vieram. O que emerge de tal condição é, inicialmente, o encontro com a solidão, a qual é bastante estigmatizada pelos estudantes, e, a partir de então, surge o imperativo de proximidade com outras pessoas, já que a solidão é entendida, pelos jovens em questão, como um sentimento a ser evitado.

[...] associada à ideia de isolamento e de abandono, a solidão representa, na nossa cultura, a negação de alguns valores considerados fundamentais à realização humana, como o trabalho, o amor e a aceitação social. Nesse sentido, aquele que sente ou que busca a solidão é visto, quase sempre, como um desajustado, um doente, um marginal. (ORTELAN, 1996, p.15, citado por Peres, 2000, p.79)

Peres (2000) indica uma tendência à patologização do estar só, o que é bem visível no trabalho de Carvalho (1995), anteriormente referenciado. A fuga da condição de estar só orienta os jovens e, amplia o autor, a sociedade, posto que esta é uma máxima difundida no senso comum. O que é defendido nessa dissertação, no entanto, é a solidão como uma possibilidade de potência, ou seja, de recolhimento para cultivo da reflexão e produção de novas formas de se lançar para o outro. O autor pontua que a reprodução do descrédito quanto à solidão viabiliza mecanismos de homogeneização subjetiva, uma vez que projeta a repetição do que está dado, afastando a possibilidade de ruptura, estranhamento e diferenciação, portanto: "Tomar a experiência da solidão como uma estilística da existência [...], um trabalho sobre si mesmo para a construção de um estilo de vida, permite às pessoas fomentarem novos processos de subjetivação que produzam outros modos de viver." (PERES, 2000, p.146).

Nesse mesmo sentido, se desenvolve a dissertação intitulada Só há solidão porque vivemos com os outros: um estudo sobre as vivências de solidão e sociabilidade entre mulheres que vivem sós no Rio de Janeiro, (MARTINS, 2010). A autora defende que se deve ampliar o entendimento sobre a condição de morar só, já que isso não é referência necessária à condição de isolamento. Com base em entrevistas realizadas, a autora identificou que tais pessoas investem, sim, em relações sociais, e que isso atua diretamente nos significados atribuídos às experiências de estar só. Há, nessa situação, uma preferência pela privacidade como pressuposto de liberdade e empoderamento, de forma que esse recolhimento só se dá em relação aos outros, numa teia de relações, das quais o sujeito se refugia: "O espaço da casa - espaço de privacidade - representa [...] um locus de construção do sujeito na medida em que é o terreno no qual ele expressa sua vontade e estabelece proximidades com um reino da liberdade." (MARTINS, 2010, p.34)

A aproximação, na categoria de sinônimos, entre solidão e isolamento, que amplia o estigma referente a essa experiência, não condiz com as vivências de quem mora só, justamente pela questão do empoderamento já mencionado neste texto. Ou seja, a solidão representa uma opção de recolhimento do sujeito, enquanto o isolamento está para uma vivência forçada de distanciamento da sociedade. Disso decorre a afirmação de uma das entrevistadas, em tal dissertação, que diz gostar de estar sozinha, e não de ser sozinha; o que opera no gerenciamento entre essas duas situações é, justamente, o seu desejo de busca ou distanciamento das demais pessoas.

Aprofundando-se nesse pensamento, para Bachelard (1974), a casa - referência primeira à proteção, ao acolhimento e à segurança -, convida o sujeito a entrar em contato com experiências sensitivas e a dar-lhes significados através dos devaneios. Dessa forma, por convidar o sujeito ao processo de reelaboração, resgate de memórias e produção de novos sentidos, a casa aparece como um espaço de integração psíquica. Para o autor, a vivência de abrigo associada à busca pela solidão está atrelada à constituição do sujeito, ou seja, a segurança do espaço proporciona à pessoa elementos que lhe permitem um mergulho em si mesmo: a integração externa proporciona a interna e vice-versa. A casa corresponde, então, ao lugar onde experiências de solidão, tédio, sonhos e devaneios estão resguardadas. Quando angustiantes, essas sensações tornam-se suportáveis devido ao contorno de segurança e acolhimento. O espaço habitado, experimentado, significado, é, portanto, vetor de subjetivação. Assim, residir só pode representar uma possibilidade para o estabelecimento de vínculos interpessoais mais íntegros, uma vez que a pessoa se fortalece nos momentos de resguardo: o jogo desejo/frustração - impreterível no relacionamento com outras pessoas -, pode ser elaborado e, portanto, suportado.

 

Metodologia

Esta pesquisa é de ordem qualitativa, portanto, toma como meio de produção do conhecimento o trabalho de "interpretar o que as pessoas dizem sobre tal fenômeno e o que fazem ou como lidam com isso" (TURATO, 2003, p.280). Nosso objetivo foi delinear os sentidos atribuídos ao fenômeno contemporâneo de individualização, com base nas experiências de quem o vive. Nesse caso, por jovens universitários que, após deixarem suas respectivas cidades, optam por morar sozinhos. Foram entrevistados, individualmente, 5 estudantes, cada um pertencente a um diferente curso de graduação oferecido pela Faculdade de Ciências e Letras de Assis. Essa faculdade, criada em 1956, é uma instituição de ensino pública, compõe um dos diversos campus, distribuídos no estado de São Paulo, da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho". A unidade em questão possui cursos de graduação em Ciências Biológicas, Engenharia Biotecnológica, História, Letras e Psicologia. A amostragem foi intencional: a escolha das pessoas que fizeram parte do estudo foi deliberada pelo(a) pesquisador(a), pensando-se naquelas que poderiam oferecer informações consideráveis e heterogêneas ao estudo (TURATO, 2003). O sistema de seleção da amostragem foi por variedade de tipos (TURATO, 2003), sendo o grupo composto por 3 mulheres e 2 homens, com idades entre 19 e 25 anos. Somente duas dessas pessoas moram no mesmo condomínio, portanto, a pesquisa compreendeu 4 condomínios distintos de quitinetes, localizados nos bairros próximos à universidade, onde predominam construções voltadas a uma só pessoa. As entrevistas, semidirigidas, com questões abertas (TURATO, 2003), foram realizadas no Centro de Pesquisa e Psicologia Aplicada "Drª Betti Katzenstein" (CPPA), na instituição sede desta pesquisa.

 

Resultados e discussão

Com os dados obtidos nas entrevistas, pretendemos desenvolver uma análise de conteúdo e interpretativa (TURATO, 2003), tendo como plano de fundo a aproximação ou distanciamento da produção teórica debatida na introdução deste artigo. A seguir, apresentaremos os resultados das entrevistas e análises, mediante categorias estabelecidas previamente pelo roteiro das entrevistas.

- A escolha por morar só

Anterior à decisão de residir só, 3 sujeitos da amostra relatam que, no primeiro ano de faculdade, moraram com mais pessoas, com as quais dividiram, inclusive, o quarto; dentre eles, 1 diz que já tinha a vontade de residir só, entretanto, seus pais acharam melhor que morasse com mais uma pessoa. Outra delas, durante o primeiro mês na cidade, morou com familiares, enquanto procurava um lugar definitivo para ficar, que seria, posteriormente, uma quitinete. Por fim, 1 estudante optou, de imediato, por morar só, contrariando o desejo dos pais que viam nas repúblicas maior possibilidade de segurança para o(a) jovem.

-A experiência de morar só

Dois estudantes relatam uma experiência ambivalente no tocante a morar só: a solidão, de um lado, e liberdade, de outro. A saída encontrada para balancear essas vivências consiste no contato com outro. Quando as experiências de tédio e solidão são intensas, essas pessoas vão para a casa de amigos, ou os convidam para fazer-lhes companhia. As outras 3 pessoas atribuem o sentido de independência como principal característica do estilo de vida adotado, e não manifestam queixas sobre a situação de estarem sozinhos:

É bom, e é ruim. Bom, porque já passei pela experiência de dividir. E agora tenho meu espaço e liberdade para fazer o que quiser, manter as coisas como gosto, só que o lado negativo é estar sozinho(a): não há ninguém para conversar fisicamente. (sic)

Gosto de um ambiente tranquilo: casa é um lugar pra você descansar, pra pensar. (sic)

-As diferenças entre morar só ou em república

Para aqueles que já tiveram a experiência de morar em república, a diferença se refere à privação de vontades e a compartilhar um espaço de excessivo tumulto. Aqueles que não passaram por isso, ainda enxergam um lado positivo: dizem que, apesar de ser um ambiente mais restritivo, a república oferece companhias. Quanto a morar só, o que predomina é a autonomia pela qual dão vazão aos seus desejos e organizam-se segundo seus próprios critérios, sem precisar negociar com o outro, ao mesmo tempo que a responsabilidade pelas atividades domésticas como limpeza, contas, alimentação recai somente sobre eles(as) mesmos(as), sendo este o ônus de residir só.

A diferença está na convivência com as pessoas, de ter que dividir e as pessoas serem diferentes. E não possuem uma abertura para mudar, que mesmo conversando não adianta. (sic)

-A relação com os vizinhos

A maioria dos(as) entrevistados(as) diz de um contato protocolar com os vizinhos, resumido a cumprimentos breves. No entanto, 2 sujeitos afirmam que, no primeiro ano de curso, os moradores eram unidos, realizavam atividades de lazer juntos, dentro do próprio condomínio, e isso mudou depois que algumas dessas pessoas foram morar em outro local. Destoando disso, um(a) dos(as) entrevistados(as) relata que sentia medo de morar só, mas por estar rodeado(a) de mais pessoas, sente-se seguro(a). Além disso, construiu um vínculo de amizade com os(as) vizinhos(as) que residem mais próximos à sua quitinete:

Foi um(a) vizinho(a) que me apresentou o prédio, é com quem tenho mais contato, até queria alugar o apartamento ao lado do dele(a) [...] As pessoas do prédio são bem reservadas, e não mantêm contato. Acho que seria útil, porque poderíamos nos unir para cobrar melhorias no prédio, que geralmente apresenta muitos defeitos.

- Internet e Redes Sociais

Os(as) entrevistados(as) não demonstram excessiva dependência de tais ferramentas, o que figura em seus discursos é, predominantemente, a televisão. Portanto, parece ser adequado concluir que a sensação de companhia que esse aparelho oferece é mais significativa. Apesar disso, a Internet é, sim, utilizada como modo de driblar os momentos de solidão por alguns, especialmente os programas de conversas, como o Skype. Essas pessoas informam que, no primeiro ano de faculdade, não eram adeptos de tais tecnologias, e o sentimento de solidão, intensificado pela recente mudança de cidade, era refreado pelo contato com os vizinhos ou outras amizades fora do condomínio.

[...] É importante, presente no dia-a-dia, no começo não usava tanto, porque as pessoas demonstravam bastante curiosidade umas pelas outras, mas passando o tempo, cada um se recolhe ao seu espaço.

Quando eu já sabia lidar com a solidão que eu usava mais a internet. No começo da graduação usava menos que hoje.

- O que significa morar só?

Os(as) estudantes atribuem os sentidos de "amadurecimento"; "crescimento"; "aprendizagem"; "independência" e "liberdade" à condição de morar só, no contexto universitário. Isso se dá pelo fato de lidarem com mais responsabilidades, as quais poderiam ser divididas, caso estivessem numa república. Essa relação, que implica zelo pelas atividades cotidianas e por si, assume contornos mais significativos, pois a condição de não terem a quem recorrer faz que desenvolvam uma postura autônoma perante as circunstâncias que se desdobram, além de utilizaram-se do desamparo como uma cenário propulsor à criatividade e, consequentemente, de desenvolvimento de novas formas de ser. Ademais, entendem a liberdade ofertada - não só por morarem sozinhos, como também pelo distanciamento dos dogmas familiares - como possibilidade de lançarem-se ao contexto de diversidade, que identificam no campus.

[...] querendo ou não, quando você está na sua casa, você tem alguém pra gritar: 'me socorre', 'to precisando de ajuda', 'faz isso pra mim?' E aqui, não. É você e você mesmo(a). Você paga suas contas, você tem que organizar o seu dia, você tem que fazer sua comida, lavar sua roupa, passar sua roupa, limpar sua casa, você não tem proteção - é você sozinho(a). É um aprendizado muito bom porque eu sei que não vou sentir mais dificuldades, caso tenha que me mudar novamente, essa fase eu já passei - de ficar com medo -, acho que consigo me virar bem sem os meus pais.

A universidade é um momento em que você entra em contato com a maior diversidade possível, então eu acho que toda minha história subjetiva na faculdade, se eu tivesse morado com outras pessoas ou até com meus pais, não seria possível. Liberdade pra você se apropriar dos diferentes costumes [...] Eu acho interessante porque eu comecei a pensar e repensar meu viver.

A experiência de morar só, no contexto universitário, aproxima-se de significados que tangenciam a emancipação dos sujeitos. A mobilização desse conteúdo é inerente à faixa etária tomada como foco de análise, a qual vivencia, de maneira mais acentuada, o conflito entre dependência e autonomia, condição expressa na dissertação de mestrado de Peres (2000). A contribuição da presente pesquisa consiste em capturar uma mudança em relação ao modo dos jovens-adultos lidarem com a solidão. Enquanto o trabalho de Peres (2000), realizado no mesmo campus universitário, e também com alunos(as) de graduação, sustenta uma postura de esquiva e temor dos momentos em que se avizinha a solidão, identificamos que, passados 15 anos, o modo como os jovens interpretam essa vivência de individualização assume contornos distintos daqueles até então estigmatizados. As falas das pessoas entrevistadas se distanciam do cenário proposto por Lasch (1979) e Sennett (1988), no qual os sujeitos, encapsulados e voltados a si mesmos, deixam de investir nas relações interpessoais.

A vontade de recolhimento aparece em meio aos outros, assim como o desejo de contato emerge nos momentos de solidão: trata-se de uma relação que implica movimento. Em Introdução ao Narcisismo, Freud (1914/2010) aborda tal dinâmica entre o investimento libidinal no Eu e aquele direcionado aos objetos. A máxima proposta pelo autor corresponde à plasticidade dos investimentos, assim, o indivíduo pode inclinar-se tanto para um investimento em si mesmo, como no outro, e a particularidade disso é que, ao investir em uma dessas instâncias, a outra se empobrece. À luz disso, podemos observar as ações de recolhimento e de lançamento ao exterior como expressão de tal inquietação psíquica, e ambos os movimentos podem ser visualizados como uma balança que o sujeito equilibra em suas relações cotidianas. Em consonância com os relatos obtidos por Martins (2010), os(as) estudantes demonstram gosto pelo empoderamento oriundo da situação de morar só; da mesma forma, subjetivam esses momentos como basais para o desenvolvimento de si. O exercício de autonomia não se refere ao distanciamento do outro, mas, sim, daquelas relações que têm como paradigma a dependência e que impõem restrições ao sujeito.

A despeito de as produções científicas - em especial Lasch (1979) e Carvalho (1995) - pontuarem que, diante da condição de desamparo, inerente ao sujeito moderno, este buscará segurança no consumo, substituindo pessoas por objetos, o conteúdo que obtivemos nas entrevistas se distancia de tais asserções, visto que, no momento inicial de chegada à nova cidade, a postura dos indivíduos foi a de construir uma nova rede de vínculos, inclusive, deixando de lado o uso da internet, o que também contradiz a ideia de substituição de vínculos concretos por aqueles virtuais. Com o decorrer dos anos, na universidade, e morando sozinhos(as), essas pessoas parecem desenvolver outras formas de lidar com tal situação, além de enxergar outras formas de utilizaram-se dela.

 

Considerações Finais

A condição de individualização no contemporâneo é entendida, em grande parte da produção bibliográfica, como algo empobrecedor para o sujeito, uma vez que consiste numa esquiva do eu perante as relações interpessoais, tendo como contraponto o investimento do sujeito em si mesmo, daí seu caráter narcisista. O crescente número de pessoas morando sozinhas, que no Brasil ainda é deveras inferior, quando comparado a países desenvolvidos, traduziria a indiferença dos sujeitos em relação à alteridade. Valendo-nos das propostas de Giddens (2002) e Elias (1994), que identificam o processo de individualização como condição da passagem de uma sociedade ancorada em preceitos tradicionais para aquela orientada segundo a ruptura de fronteiras e descolamento do indivíduo do contexto local, aprofundamo-nos em como tal situação - reflexo dos interesses capitalistas de produção e consumo -, pode ser ressignificada pelos sujeitos.

Por meio das entrevistas realizadas com estudantes universitários, entre 19-25 anos, que moram sozinhos, pudemos constatar que as experiências preponderantes na vivência de morar só são as de autonomia, desenvolvimento e liberdade. Além disso, evidenciou-se que, perante a situação de desamparo, eles recorrem ao outro, o que perfaz uma dinâmica de recolhimento e aproximação das demais pessoas.

A individualização aproxima-se tanto da solidão quanto da liberdade, e, apesar de a condição de estar só ser uma vivência multifacetada, ainda é dominante a interpretação estigmatizada, associando-a ao isolamento. Neste trabalho, buscamos revisitar tal experiência, por meio do exame bibliográfico e entrevistas, e identificamos que a continuidade de certa crítica no tocante à solidão se dá num contexto em que os valores familiares, de ordem conservadora, ainda reverberam. O modelo de vínculos familiares transborda os lares e conduz à reprodução de tais relações no âmbito social, de tal forma que o sujeito que se recolhe e resguarda sua intimidade corresponde ao oposto do homem cordial, enunciado por Holanda (1995), o qual ainda parece ser um paradigma de socialização contumaz no Brasil.

Por fim, as vivências que aparecem como compulsórias ao sujeito da atualidade podem ser, sim, reconstruídas e subjetivadas por outras vias que não aquelas que já estão sobremaneira dadas. A experiência de individualização, entre os jovens universitários que compuseram a amostra desta pesquisa, diz sobre uma aproximação de si e busca por relações que se estruturem por outras vias que não as de dependência e hierarquia. Assim, de maneira ambígua, a solidão diz de uma sensibilidade à ausência do outro e da abertura de possibilidades para tal encontro. É impreterível que se desenvolvam mais pesquisas que problematizem tais condições, a fim de enriquecer a produção bibliográfica sobre este tema, tratado majoritariamente por meio de uma perspectiva cristalizada.

 

Referências

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Recebido: 02 de maio de 2015.
Aprovado: 20 de maio de 2015.

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