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Revista de Psicologia da UNESP

versão On-line ISSN 1984-9044

Rev. Psicol. UNESP vol.15 no.2 Assis jul./dez. 2016

 

RELATO DE EXPERIÊNCIA

 

A escuta psicológica ao envelhecimento em Centro de Referência da Assistência Social (CRAS): relato de experiência

 

Offering psychological listening support to the aging process in Social Care Referral Center: an experience report

 

 

Igor Costa Palo Mello

Doutorando em Psicologia e Sociedade pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquista Filho" (UNESP/Assis), professor universitário e psicólogo. Email para contato: igorcpm@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

O presente artigo relata uma experiência de escuta psicológica ao envelhecimento no contexto de um caso de busca espontânea feita por uma idosa a um Centro de Referência da Assistência Social (CRAS). Para tanto, utiliza-se dos conceitos de "Acontecimento" de Gilles Deleuze e de "Velhice", segundo Simone de Beauvoir, para retomar o interesse pelo que emerge, ao mesmo tempo, como diferença e como produção de subjetividade. Encerra defendendo a necessidade de conter, no trabalho do psicólogo, o automatismo compulsivo que passa da escuta ao encaminhamento, sem o devido registro do que é dito em meio a encontros caóticos com as demandas pelos serviços.

Palavras-chave: envelhecimento; escuta psicológica; assistência social


ABSTRACT

This article reports an experience of psychological listening support to the aging process using as reference a senior woman's case who spontaneously looked for assistance at the Social Assistance Referral Center (CRAS).
The report is going to use Gilles Deleuze's concept of "Happening" and Simone de Beauvoir's concept of "Old Age" in order to reframe what emerges from the woman's history to underline underling the points of difference and the ones of production of subjectivity. In conclusion, the paper stands the necessity to contain in the psychologist's work the compulsive automatism that goes from listening to referral without the outstanding record of what is said in the midst of chaotic encounters with the demands for services.

Key words: Aging; psychological listening; social care


 

 

Introdução

O Centro de Referência da Assistência Social (CRAS) é parte integrante do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e o serviço articulador da Proteção Social Básica, em um território identificado pelo ente público como de alta vulnerabilidade social em um determinado município.

O trabalho do psicólogo no Centro de Referência da Assistência Social (CRAS) envolve, entre outras coisas, escutar atentamente o que há de singular no que está sendo solicitado pelo usuário, antes de empreender qualquer outra ação técnica (orientações, encaminhamentos, sugestão de inclusão em atividades sócio educativas no próprio serviço etc.).

Procurando trazer reconhecimento à importância dessa atividade, algo para que supomos haver pouca atenção no cotidiano da atuação nesses serviços, o presente trabalho1 visa relatar uma experiência de escuta psicológica ao envelhecimento ocorrida quando o autor trabalhava como psicólogo em um Centro de Referência da Assistência Social (CRAS), entre os anos 2008 e 2009.

Trata também de uma articulação entre o relato do fenômeno e sua compreensão por meio do do recurso aos conceitos de acontecimento (DELEUZE, 1969/1974) e de velhice (BEAUVOIR, 1970).

 

A caótica do acolhimento

Estabeleceu-se um desconforto instantâneo no acolhimento a uma usuária do Centro de Referência da Assistência Social (CRAS), local em que trabalhava como psicólogo fazia pouco menos de um ano. O acolhimento, compreendido como "[...] forma primordial de atendimento à demanda espontânea [...]" e meio de identificação de demandas familiares passíveis de encaminhamentos, é hoje reconhecido como uma das atividades às quais os profissionais de psicologia inseridos em Centros de Referência da Assistência Social (CRAS) têm se dedicado com maior frequência (OLIVEIRA et al., 2014, p.105). Trata-se de algo curioso, já que esse termo específico utilizado pelos profissionais para designar uma modalidade de atuação nesse contexto institucional não aparece em documentos importantes de referência técnica para funcionamento desse serviço (SILVA; CRUZ, 2017).

Nem mais, nem menos, sequer igual, tal desconforto era uma sensação diferente de tudo o que havia experimentado naquele serviço até aquele instante. A princípio, o lamento que ouvi como algo incompreensível, projetado através da boca escondida pelas mãos, aos poucos foi tomando a forma de palavras e frases que traduziam, com o forte sotaque interiorano da voz de uma senhora de mais de sessenta anos, o motivo de sua procura: a necessidade de auxílio para obter uma nova dentadura, visto que sua antiga havia se quebrado há cerca de uma semana. Queixava-se de há dias não poder se alimentar como de costume e de sentir-se incomodada com a aparência das gengivas expostas, sem os dentes.

Em pesquisas posteriores, encontrei algum respaldo científico que justificasse seu incômodo como elemento social comum entre idosos. Moriguchi (citado por COLUSSI; FREITAS, 2002, p.1317) ressalta o impacto negativo da perda da dentição natural sobre aspectos estéticos, de dicção, de digestão e de mastigação, principalmente nos casos de edentulismo (ou perda total dos dentes). Marcolino et. al. (2009, p.194-195), ao enfocar a presbifagia ou disfagia decorrente da idade, destacam como a alta correlação entre o prazer da alimentação, a socialização e aspectos culturais podem acarretar prejuízo ao idoso que não mantém preservada a saudável capacidade funcional de deglutição.

Procurei atentar a outros aspectos da situação, buscando identificar os motivos de sua demora em buscar ajuda naquele local. O serviço recém-inaugurado, localizado em área identificada pela Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social como de alta densidade populacional e de vulnerabilidade social, para os padrões da cidade do oeste paulista de 60 mil habitantes, já contava com mil famílias cadastradas que conseguiam, com alguma frequência e relativa facilidade, acesso a oficinas socioeducativas, cestas básicas em situações emergenciais, benefícios de prestação continuada e programas de transferência de renda concedidos ou não mediante atendimento a condicionalidades.

Em geral, essas condicionalidades, no caso dos programas de transferência de renda mantidos pelo governo paulista em meados de 2008 ("Renda Cidadã" e o "Ação Jovem"), abarcavam a manutenção de filhos, dependentes de cuidados parentais, frequentando a escola e postos de saúde e da presença de ao menos um dos familiares responsáveis em reuniões mensais de orientação, coordenadas pelos técnicos do serviço. Tais condicionantes possibilitavam, portanto, um monitoramento próximo dos recursos e um direcionamento de seu uso aos fins estabelecidos pela equipe técnica (poupança, reforma da residência e construção, alimentos etc.), sendo por isso elogiados pelos profissionais, na comparação com a ausência de possibilidade de acompanhamento sistemático do emprego dos recursos distribuídos pelo programa federal "Bolsa-Família".

Pensava que a mistura entre desconhecimento da presença do serviço, em virtude de seu curto tempo de existência, e o incômodo relatado pela usuária não caracterizasse motivo suficiente para que ela protelasse em buscar ajuda ali onde muitos de seus vizinhos frequentemente estavam também a fazer suas solicitações, muitas delas consideradas menos graves que essa. Persistia algo incompreensível naquela situação.

Essa mulher adulta aparentava ser mais jovem que a idade cronológica afirmada por ela: 62 anos de idade. O primeiro elemento notável na descrição de sua condição de vida era a de que ela, assim como o companheiro, estava desempregada e que não via possibilidade próxima de se aposentar, embora relatasse já ter trabalhado muito na vida.

Ambos moravam sozinhos, sem a presença de dependentes. Sua alimentação era garantida pela criação doméstica de algumas galinhas caipiras e por algumas doações de vizinhos, comportamento solidário tão comum naquele local quanto o ato egoísta de uma única família solicitar e obter, num único mês, três cestas básicas junto a diferentes órgãos governamentais e não governamentais.

 

A velhice e o registro da diferença na escuta psicológica

Em meio a tantas coisas típicas, algo naquela voz testemunhava a existência de uma diferença irredutível que solicitava não mais um olhar para algo com o objetivo de oferecer alguma resolução, atitude pragmática que reconheço ter adotado algumas vezes durante o acolhimento e suponho seja comum entre os técnicos que trabalham em serviços ligados à Seguridade Social (Previdência, Assistência Social e Saúde), até como uma forma de proteção ante os frequentemente intensos relatos de sofrimento alheio.

Ao lembrar aquela voz, penso na declaração de intenção e na convocação a seus leitores feita por Simone de Beauvoir (1970, p.8-13), ao escrever a introdução de sua obra seminal sobre a velhice. Afirmava ela que escrevera o livro para "romper a conspiração do silêncio" em torno do assunto e solicitar a ajuda de seus leitores para tanto, forçando-os a escutar e a reconhecer, acima do murmúrio existente em todos nós, que insiste absurdamente em dizer-nos que a imagem projetada de nosso futuro pelos idosos não nos alcançará como acontece aos outros, que a voz dos velhos é uma voz tão humana quanto a nossa.

Em sua citação, ressalto minha percepção da assimetria entre a imagem fria e estática do idoso, com toda sua visualidade objetiva e prospectiva acerca de um futuro que relutamos em assumir como sendo o nosso, e a dimensão dinâmica e sensível do reconhecimento da humanidade de sua voz. Reconhecê-la, entretanto, seria possível apenas através de um esforço coletivo de escuta, capaz de romper o silêncio conspirativo e sobrepor-se ao murmúrio insistente e absurdo de que a velhice não nos alcançará, permanecendo como realidade restrita aos outros.

Naquele momento, percebi que sabia exatamente o que precisava ser feito (em termos de encaminhamentos, orientações etc.) e, no entanto, tudo evocava a falta momentânea de importância de fazê-lo. Isso porque, realizá-lo com a rapidez habitual, implicaria menosprezar o momento paradoxal em que a escuta se fazia com função de registro de diferenças radicais: entre a vida dessa pessoa antes e depois da perda temporária dessa funcionalidade plena do mastigar, do sorrir, do falar com a dentadura e com a dentição natural; entre as questões habituais trazidas pelas famílias que frequentavam o serviço e esse questionamento específico que, levado a sério, punha em xeque aspectos do funcionamento institucional e das próprias políticas públicas; entre o meu posicionamento habitual como psicólogo que recepciona e o que assumia agora diante do inusitado, como uma escuta, entre outras.

Ficar um tempo sem a dentição que já tinha perdido pela terceira vez (dentes de leite, permanentes e dentadura) e relatar isso, ainda que de forma envergonhada, parecia colocar a ela e a mim em contato com a experiência paradoxal da contra efetuação de discursos identitários que supõem, de antemão, a existência de características comuns à população do bairro, aos trabalhadores do serviço, às mulheres, aos homens, à espécie humana etc., capazes de conferir dignidade à vida de qualquer um que se constitua subjetivamente de acordo com tais discursos.

Não gozando de aposentadoria por conta do desconhecimento da realidade do trabalho formal e, no entanto, tendo conhecido por um longo tempo a condição de trabalhador informal; não sendo dependente e nem cuidadora de alguém, a ponto de justificar sua inclusão em programa de transferência de renda; não tendo idade suficiente para solicitar o Benefício de Prestação Continuada (BPC) ao mesmo tempo que já poderia ser considerada idosa; ela solicitava apenas naquele momento que eu acolhesse e registrasse a diferença radical introduzida pelo acontecimento da simultânea perda dos dentes e da quebra da dentadura em sua vida. Aliás, "[...] pensar a velhice como um acontecimento [...]" é uma provocação feita recentemente pela filósofa Silvana Tótora (2015, p.14).

Muitas questões me mobilizavam: como, naquelas circunstâncias, ela persistira paradoxalmente sobrevivendo sem dentes e sem procurar ajuda? E por que não antes, nem depois, mas naquele instante específico recorria ao serviço? Por que não a outros e sim a mim cabia acolher essa diferença? Como fazê-lo sem banalizá-la? Por que o meu desconforto com a situação?

Com relação a minha condição, também parece paradoxal me perguntar por que se direcionou a mim sua queixa, já que eu trabalhava exatamente como alguém responsável pelo acolhimento de pessoas com as mais diversas demandas. Mas me questionar sobre meu incomparável desconforto com a demanda específica trazida pela usuária é compreender que trabalhar realizando acolhimento implica não conhecer as demandas até elas aparecerem, não conhecer o próprio desejo senão pelos efeitos de uma escuta também com o caráter de acontecimento.

Resta então compreender o que se pode considerar como acontecimento. A proposta aqui será seguir o que nos propõe o filósofo Gilles Deleuze, em sua abordagem ao conceito.

 

Acontecimento e velhice

Em uma primeira referência à concepção deleuziana de acontecimento, recordarei a proposição de Abrahão e Mehry (2014, p.314) ao afirmarem que:

[...] o acontecimento é um conceito paradoxal, não segue o bom senso (que fecha o sentido) e nem o senso comum (que dá identidade fixa). O acontecimento é o local de troca entre o estado de coisas e o improvável, o sujeito neste instante é tomado, buscando produzir algum tipo de sentido na efetuação. É exatamente por não ter sentido em meio àquilo que já existe que o acontecimento obriga o sentido, fazendo com que o sujeito busque novos significados para dar conta do que acontece a ele.

Ruptura paradoxal com possíveis conceitos pré-existentes de causalidade, de sentido e de sujeito, o acontecimento, no entanto, os obriga a efetuar um deslocamento que os refunda em termos mais provisórios e instáveis: a quase-causa, o provisório sentido e o evanescente sujeito. Em relação a situação acima descrita, talvez isso explique em parte a referida experiência de desconforto que a acompanha e a evidencia.

Podemos explorar ainda mais o conceito com um exemplo de acontecimento puro que o próprio Deleuze propôs a partir da personagem Alice, de Lewis Carrol:

[...] Quando digo 'Alice cresce', quero dizer que ela se torna maior do que era. Mas por isso mesmo ela se torna menor do que é agora. [...] é ao mesmo tempo que ela se torna um e outro. [...] Tal é a simultaneidade de um devir cuja propriedade é furtar-se ao presente. Na medida em que se furta ao presente, o devir não suporta a separação nem a distinção do antes e do depois, do passado e do futuro [...] (DELEUZE, 1969/1974, p.1).

No exemplo, crescer indica que alguém ou algo (uma personagem, um animal, um objeto de preocupação ou de admiração) não cabe mais no mesmo espaço representacional, a um só tempo confortável e irrisório, que antes lhe era destinado pelos discursos identitários. Foi isso o que experimentei ante a situação de acolhimento em questão.

Dessa forma, no acontecimento puro estaria a ruptura com noções clássicas de causalidade, de sujeito, de sentido, de espaço e, principalmente, de "tempo-Cronos" (sincrético de presente, passado e futuro) pela afirmação da "simultaneidade de um devir" paradoxal.

Segundo o sistema estóico, nos informa Deleuze, [...] o Cronos [...] diz respeito à mistura de corpos ou estados de coisa, e por isto preside a ordem das causas; é caracterizado pela sucessão de instantes, ou seja, sua gênese deve-se à "forma cíclica do infinito" em que um eterno presente, que contrai todos os instantes, se descontrai em presentes pontuais que são passados ou futuros uns em relação aos outros [...] (CARDOSO JÚNIOR, 2005, p.110).

Por outro lado, Cardoso Júnior (2005, p.110) afirma ainda que "[...] o Aion [...] diz respeito aos incorporais e por isso é caracterizado pela fuga incessante do presente, seja no sentido do passado seja no sentido do futuro, ou melhor, sua gênese deve-se à 'forma da linha reta ilimitada'".

Retomando a situação em questão, só é possível apreender os paradoxos descritos em torno da minha posição como psicólogo e a dela como usuária do serviço, a partir da fuga do presente, ora em direção à descrição detalhada mais próxima aos estados de coisas, ora em direção às proposições de linguagem, mais conceituais e menos descritivas.

Dessa forma, no lugar de um presente vasto e espesso, o Aion propõe um instante inextenso e vazio que extrai singularidades de todos os elementos que compõem o tempo atual e as projeta sobre uma linha fronteiriça duplamente: por um lado, sobre o acontecimento do registro descritivo e passado dos estados de coisas referenciados e, por outro, sobre o sentido futuro das proposições conceituais de linguagem (DELEUZE, 1969/1974, p.171).

Assim, os acontecimentos puros possibilitam a própria existência da linguagem, distinguindo-a tanto dos sons identificados a "[...] estados de ações e paixões incorporais [...]" como também do próprio "[...] barulho dos corpos". Por sua vez, a pureza deles só é possível "[...] na linguagem que os exprime" (DELEUZE, 1969/1974, p.171).

Como efeito da projeção simultânea, dupla e dicotômica que o instante faz da singularidade do acontecimento puro sobre "[...] a linha reta de dupla direção simultânea", que articula e aponta aos contornos do passado e do futuro, advém o que Deleuze (1969/1974, p.171-172) nomeia "acontecimento-sentido". Esse seria o produto de uma articulação paradoxal e necessária entre o atributo lógico dos estados de coisas (efetivado na descrição de suas qualidades físicas) e o exprimível ou o expresso nas proposições conceituais que lhe criam algum sentido, ao invés de interpretar um significado previamente existente.

Somos forçados a questionar o que haveria na passagem do acontecimento puro ao acontecimento-sentido. Na situação relatada, para além de um olhar pragmático à situação, suponho que tenha sido o esforço coletivo (meu e dela), para escutar a humanidade da voz que se enunciava em seu lamento, suportando o desconforto de romper com o silêncio conspirativo em torno do envelhecimento - que desde a época do trabalho de Simone de Beauvoir ainda subsiste - e sobrepondo sua fala ao absurdo e insistente murmúrio de que sua imagem projeta somente o presente e o futuro dos outros.

Segundo o Deleuze (1969/1974, p.172), há três momentos abstratos (o ponto, a linha reta e a superfície) a serem percorridos no conjunto da organização do acontecimento-sentido: "[...] o ponto que traça a linha, a linha que faz fronteira, a superfície que se desenvolve, se desdobra dos dois lados". Alguns anos mais tarde, supomos ser a essa superfície que Guattari (1979/1988, p.10) nomearia como "plano de consistência".

Em nome da coerência com a proposição de substituição da função do olhar pela de escutar, proponho aqui que substituamos a nomenclatura visual da geometria de Euclides (ponto, linha e plano), emprestada por Deleuze (1969/1974), pelos termos auditivos de audiência vazia, vozes singulares e projeções acústicas extensas e conceituais.

A audiência vazia simularia a dimensão oca do instante que percorre todos os sons presentes para extrair-lhes as singularidades das vozes e projetá-las acusticamente na dupla e paradoxal direção das dimensões extensas (como a descrição de estados de coisas) e conceituais (como a criação do sentido a partir das proposições de linguagem).

 

Conclusão

Acreditamos que o recurso pontual aos conceitos de velhice (BEAUVOIR, 1970) e de acontecimento (DELEUZE, 1969/1974) possibilitaram a compreensão de como a experiência paradoxal de escuta psicológica ao envelhecimento aqui relatada pode questionar toda a forma com que o trabalho de acolhimento vinha sendo conduzido até então pelo profissional.

Nesse sentido, compreende-se a necessidade de aprofundar os estudos acerca do suposto pragmatismo com que pode estar sendo conduzido o trabalho de acolhimento nos Centros de Referência da Assistência Social (CRAS) e em outros serviços sócio assistenciais e de saúde, principalmente os vinculados à atenção primária, incluindo no círculo de preocupações a rigidez burocrática do cumprimento de protocolos de atendimento (sempre estabelecidos num nível hierárquico superior e pouco afeto a atuação cotidiana dos servidores) e a consequente constituição de barreiras invisíveis entre o trabalhador e o usuário do serviço que tendem a funcionar como isolamento acústico.

Termino o presente relato de experiência convidando a todos os profissionais a romperem com essas barreiras invisíveis, esses ambientes acusticamente isolados, a fim de resgatar a potência amplificadora que a escuta psicológica pode promover não só no que diz respeito ao envelhecimento, mas também à multiplicidade de demandas que um serviço como o CRAS explicita diariamente.

 

Referências

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1 O conteúdo do presente artigo é parte integrante da minha tese de doutorado "Cartografia da Escuta ao Envelhecimento".

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