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Revista de Psicologia da UNESP

versão On-line ISSN 1984-9044

Rev. Psicol. UNESP vol.16 no.1 Assis jan./jun. 2017

 

ARTIGOS

 

A resistência à colonialidade: definições e fronteiras

 

Fighting against coloniality: limits and definitions

 

 

Felipe Augusto Leques TonialI; Kátia MaheirieII; Carlos Alberto Severo Garcia JrIII

IPsicólogo. Ms. Psicologia (UFSC). Doutorando em Psicologia PPGP-UFSC. E-mail: felipetonial@gmail.com
IIPsicóloga. Dra. Psicologia (PUC/SP). Docente do curso de psicologia (UFSC). E-mail: maheirie@gmail.com
IIIPsicólogo. Dr. Ciências Humanas (UFSC). Docente curso de medicina (UNIVALI). E-mail: carlosgarciajunior@hotmail.com

 

 


RESUMO

A colonialidade, sendo parte do projeto civilizatório da modernidade, pode ser entendida como um padrão ou uma matriz colonial de poder que, com base na naturalização de determinadas hierarquias (territoriais, raciais, epistêmicas, culturais e de gênero), produz subalternidade e oblitera conhecimentos, experiências e formas de vida daqueles/as que são explorados/as e dominados/as. Esse movimento colonizador, por sua fez, possibilita a reprodução e a manutenção das relações de dominação ao longo do tempo nas diversas esferas da vida social. Sendo assim, a presente proposta de reflexão visa discutir algumas problematizações que estão sendo formuladas nos últimos anos quando pensamos em resistir ou enfrentar a colonialidade, a saber, a ideia das "Epistemologias do Sul" de Boaventura de Souza Santos, a proposta da "interculturalidade" de Catherine Walsh e o "pensamento fronteiriço" e o "paradigma outro", como proposto por Walter Mignolo. Ressalta-se que importa, mais do que solucionar problemas, contribuir com elementos e reflexões que problematizem a (des)colonização da psicologia e que primem pelo reconhecimento da diversidade de conhecimentos e formas de vida presentes no contexto latino-americano.

Palavras-chave: Epistemologia; Produção de conhecimento; Colonialidade.


ABSTRACT

Coloniality, being part of the civilizational project of modernity, can be understood as a colonial standard or matrix of power. This pattern produces the naturalization of specific hierarchies (territorial, racial, epistemic, cultural and gender), and also produces subalternity. It can obliterate knowledge, experiences, and ways of life of those who are exploited and dominated. This colonizing movement, in its right, makes it possible to reproduce and maintain the relations of domination over time in the various spheres of social life. Thus, the present proposal for reflection aims to discuss some problematizations that are being formulated in recent years regarding the resistance or even confronting coloniality. It is going to be made by using the idea of "Epistemologies of the South" defined by Boaventura de Souza Santos; the proposal of "interculturality " created by Catherine Walsh and" frontier thinking "and the" other paradigm, "as proposed by Walter Mignolo. It is crucial to contribute, rather than solve problems, to elements and reflections that problematize the (des) colonization of psychology and which are prized for the recognition of the diversity of knowledge and life forms present in the Latin American context.

Keywords: Epistemology; Knowledge Production; Coloniality.


 

 

Introdução

O ensaio aqui apresentado fez parte de uma apresentação feita no I Congresso Catarinense de Psicologia Ciência e Profissão, em uma mesa intitulada: "É possível uma psicologia livre do pensamento colonizado?". No nosso entendimento, quando pensamos em "uma psicologia livre do pensamento colonizado", estamos discutindo colonialidade e, principalmente, os efeitos da colonialidade em uma disciplina específica, a psicologia, e voltando nossa atenção a um campo de discussão da colonialidade que, em geral, se denomina de "colonialidade do saber". É dessa perspectiva que iremos trabalhar e problematizar a resistência à colonialidade. Para tanto, sustenta-se essa discussão com base nos seguintes autores: Walter Mignolo, Catherine Walsh e Boaventura de Souza Santos.

Buscamos, neste trabalho, fazer alguns apontamentos com a noção de colonialidade e descolonialidade. Para isso, percorremos o seguinte caminho: num primeiro momento, apresentamos a colonialidade e sua cumplicidade com a modernidade, explorando três perspectivas em especial: a colonialidade do poder, a colonialidade do saber e a colonialidade do ser; num segundo momento, exploraremos algumas perspectivas que apontam para os processos de descolonização e, num terceiro momento, faremos breves considerações à psicologia.

Colonialidade: algumas perspectivas

Na tentativa de entender a noção de colonialidade, precisamos partir de uma diferenciação fundamental, a saber, a distinção entre colonialismo e colonialidade. O colonialismo significa a chegada de um povo, com uma identidade X (os colonizadores/as), a um território de outro povo, com uma identidade Y (os/as colonizados/as) e, pela força política e/ou militar, subjuga essa população para garantir a exploração das riquezas e do trabalho da colônia em benefício dos colonizadores, ficando a soberania do povo colonizado sob os interesses do povo que coloniza (Quijano, 2007).

Por outro lado, a colonialidade é entendida como uma dimensão simbólica do colonialismo que mantém as relações de poder que se desprenderam da prática e dos discursos sustentados pelos colonizadores para manter a exploração dos povos colonizados. Restrepo e Rojas (2012) a definem como um fenômeno histórico complexo que se estende para além do colonialismo, referindo-se a um padrão de relações de poder que opera pela naturalização de hierarquias territoriais, raciais, culturais, de gênero e epistêmicas. A naturalização é o que possibilita a reprodução das relações de dominação. Esse padrão de poder mantém e garante a exploração de uns seres humanos sobre outros e subalterniza e oblitera os conhecimentos, experiências e formas de vida do grupo que é explorado e nominado (Restrepo; Rojas, 2012).

A colonialidade, então, se refere à ideia de que, mesmo com o fim do colonialismo, uma lógica de relação colonial permanece entre os saberes, entre os diferentes modos de vida, entre os Estados-Nação, entre os diferentes grupos humanos e assim por diante. Se o colonialismo termina, a colonialidade se propaga de diferentes formas ao longo do tempo.

Essa matriz colonial de poder, como apresenta Mignolo1, é um tipo de controle que está baseado na questão da visibilidade, ou da percepção, que é privilegiada pelas epistemologias modernas. Como diz o autor, a matriz colonial de poder dá visibilidade para determinadas formas de existência e saberes pela invisibilidade de outros, que passam a ser considerados inferiores e não científicos. Essa estética colonial nos impossibilita ver, sentir e pensar o que não tenha a percepção moderno/colonial como ponto de referência. Fazendo alusão a Michel Foucault (2014), Mignolo assevera que a colonialidade funciona como um panóptico.

Como podemos ver, a definição de modernidade nos remete diretamente à colonialidade. A modernidade, nessa sistematização, é uma narrativa europeia/ocidental que tem na colonialidade seu suporte e fundamento (Restrepo; Rojas, 2012), sendo entendida como um modo de vida e um projeto civilizatório. A colonialidade é considerada o outro lado da modernidade, seu lado oculto, como uma moeda que tem duas faces. A colonialidade é constitutiva da modernidade, ou seja, sem colonialidade não há modernidade (Mignolo, 2013), nos obrigando a escrever com uma barra (/): modernidade/colonialidade, moderno/colonial e assim por diante.

Enrique Dussel, filósofo argentino, faz uma análise interessante para entender a modernidade. Ao contrário do que normalmente se supõe, a modernidade não pode ser entendida como um movimento endógeno a Europa, ou seja, como um caminhar histórico que nos remete ao Renascimento, à Reforma Protestante, ao Iluminismo, à Revolução Francesa, ao desenvolvimento do capitalismo e assim por diante, sem considerar a relação dos povos europeus e sua história com a história da colonização dos povos nas Américas. A modernidade, sustenta Dussel (1992), surge na verdade entre o século XV e XVI, com a chegada dos espanhóis e portugueses nas Américas.

É por esse motivo que Dussel consegue identificar uma primeira e uma segunda modernidade. Para Dussel (1994, 2005), a modernidade se originou, de fato, na Europa, mas nasceu quando a Europa se confrontou com o/a outro/a, controlando-o/a, vencendo-o/a, violentando-o/a. Em outras palavras, a modernidade nasce quando a Europa pode definir-se como um "ego descobridor", conquistador e colonizador da alteridade.

La primera modernidad no sólo antecede a la segunda sino que se perfila como sucondición de possibilidad. Antes de que fuera articulado el ego cogito cartesiano (pienso, luego soy), se produce el ego conquiro (conquisto, luego soy). La subjetividad derivada de la experiencia del descubridor y conquistador es la primera subjetividad moderna que ubica a los europeus como centro y fin de la historia (Restrepo; Rojas, 2012, p. 85).

Quem apresentou o termo colonialidade pela primeira vez foi Anibal Quijano, sociólogo peruano, sob o termo colonialidade do poder. Quijano (2000, 2007) cunha o termo colonialidade do poder para articular dois eixos fundamentais para entender a colonialidade de sua perspectiva: capital/trabalho e europeu(eia)/não europeu(eia). Com a articulação desses dois eixos, quer chamar a atenção para a ideia de raça, presente na distribuição dos lugares no mundo e na sociedade. O racismo (que da perspectiva da colonialidade está próximo ao etnocentrismo), para Quijano, é o princípio organizador da economia, da política e das diversas formas de poder e existência.

Cabe pontuar, como muitas teóricas feministas da América Latina têm feito (Lugones, 2014; McClintock, 2010; Paredes; Guzmán, s/d), que a ideia de colonialidade de Quijano (2000, 2007) parece ignorar que as relações de gênero também são tão constituintes do imaginário da colonialidade quanto as relações raciais. Esse enclave do gênero na colonialidade é conhecido sob os nomes de patriarcado, machismo, sexismo, heteronormatividade etc. Essa crítica à Quijano (2007) é feita porque o autor subordina o gênero â questão da raça. "Ver o gênero como categoria colonial também permite historicizar o patriarcado, salientando as maneiras pelas quais a heteronormatividade, o capitalismo e a classificação social se encontram sempre já imbricados" (Costa, 2012, p. 47). Trabalhar com base em uma perspectiva interseccional que articule etnia, classe e raça e gênero, para falar de colonialidade, tem sido um dos desafios na América Latina, porque a questão da raça tem predominado.

A noção de colonialidade nos apresenta também questões subjetivas e de produção de conhecimento vinculadas à colonialidade. Para Quijano (2000, 2007), não apenas a constituição de uma subjetividade centrada na hegemonia europeia, como apresentou Dussel, define esse padrão de poder, mas também uma centralidade na produção de conhecimento. A colonialidade afirma perspectivas eurocentradas de produção de conhecimento, entendendo o eurocentrismo como uma metáfora para uma atitude colonial perante os saberes, na medida em que sustenta as relações de poder na certeza de que os europeus, a Europa e sua história são a "versão mais completa de história humana" (Mendoza, 2014, p. 93).

Assim, podemos tentar resumir afirmando que a colonialidade está também voltada à produção e aplicabilidade do conhecimento e ao controle das formas de pensar e de viver. Podemos fazer, então, mesmo que por mera didática, uma divisão que contempla três esferas principais de atuação da colonialidade. Pensar, num primeiro momento, em uma esfera econômica-política (a colonialidade do poder); num segundo momento, numa esfera epistemológica (a colonialidade do saber) e, numa terceira, a colonialidade do ser, voltandonos a uma reflexão mais ontológica.

Para Maldonado-Torres (2006, 2007), o surgimento da colonialidade do ser responde à necessidade de aprofundar a pergunta sobre os efeitos da colonialidade na experiência vivida e tem como característica fundamental a experiência da negação do outro não eurocêntrico. Esses efeitos atravessam a constituição do sujeito, tanto daqueles e daquelas que podemos identificar como estando do lado do/a colonizado/a quanto daqueles e daquelas do lado do/a colonizador/a. Na perspectiva de Fanon (1968), o processo de colonialismo não afeta apenas quem é inferiorizado/a, desumanizado/a, mas também aquele e aquela que encarna a humanidade, bestializando o/a inferiorizado/a, na medida em que, pela argumentação da superioridade, justifica uma gama infinita de atrocidades cometidas contra os outros povos. Podemos afirmar, de acordo com Restrepo e Rojas (2012), que a inferiorização do/a subalterno/a colonial é uma característica da colonialidade do ser, já que este passa a identificar seu modo de vida e saberes como inferiores aos modernos. E, pela perspectiva de Castro-Gómez (2012), nos obrigamos a considerar também que a colonialidade funciona e se sustenta nas produções de subjetividade eurocentradas.

Podemos entender a colonialidade do saber como a dimensão epistêmica da colonialidade. Esta é efeito de subalternização, folclorização ou invizibilização de uma multiplicidade de conhecimento e saberes que não correspondem às modalidades de produção de conhecimento associadas à ciência moderna (Restrepo, Rojas, 2012). Para Catherine Walsh (2007), pedagoga equatoriana, na medida em que a colonialidade perspectivou a produção de conhecimento da ciência moderna como única válida, também descartou outras produções de conhecimento, questionando inclusive a capacidade intelectual dos povos que não partem da ciência moderna.

Como apresenta Mignolo (2008, 2010), a colonialidade do saber deve ser alvo de constantes desobediências epistêmicas. Para esse autor, a desobediência epistêmica é uma medida inicial para o processo de descolonização do saber, pressupondo um despreendimento das racionalidades modernas. Assim, podemos afirmar que o núcleo da colonialidade do saber consiste no governo de si e no governo dos outros, em nome de verdades produzidas pelo saber expert (Restrepo; Rojas, 2012). E é na pretensão da neutralidade, objetividade e universalidade do pensamento científico que se assenta a suposta superioridade epistêmica que inferioriza as outras formas de produzir conhecimento e compreender o mundo.

 

Perspectivas descoloniais: resistindo à colonialidade e construindo mundos diversos e inclusivos

Mignolo (2013) apresenta duas ideias que nos auxiliam quando tentamos entender o que seria uma resistência à colonialidade: o paradigma outro e o pensamento fronteiriço. O paradigma outro, expressão que, para Mignolo (2013), deve aglutinar diferentes saberes fronteiriços, não tem um lugar de origem ou autor/a de referência. Trata-se de uma diversidade de proposições que, em última instância, se apresenta como um pensamento utópico e crítico que se articula em todos os lugares nos quais a colonialidade negou a possibilidade de pensar, de ter razão, de pensar o futuro (Mignolo, 2013).

Na sua perspectiva, são formas críticas transversalizadas por aquilo que o autor denomina de ferida colonial: uma marca deixada no corpo dos/as condenados/as da terra (Fanon, 1968). Tal ferida é provocada pelo que Mignolo (2013, 2009) chama de diferença colonial, que consiste em classificar grupos ou populações do planeta e identificá-los segundos suas faltas e excessos, "marcando uma diferença e uma inferioridade com respeito a quem classifica" (Mignolo, 2013, p.39). Afirma o autor que "O pensamento fronteiriço, da perspectiva da subalternidade colonial, é um pensamento que não pode ignorar o pensamento da modernidade, mas que também não pode se subjugar a ele" (Mignolo, 2013, p.51, tradução nossa).

O pensamento fronteiriço é parte do imaginário do mundo moderno/colonial, mesmo que tenha sido subalternizado pelo controle do conhecimento, pelo domínio da colonialidade do saber no campo da hermenêutica e da epistemologia. De acordo com Mignolo, o pensamento fronteiriço pode ser entendido como uma máquina de descolonização intelectual, política e econômica (Mignolo, 2013).

Walsh (2005, 2007) também introduz um conceito interessante para se pensar estratégias descoloniais: a interculturalidade. Trata-se da possibilidade de construir outro imaginário social que permita criar e pensar condições para outra organização social, outra organização de saberes e modos de vida. Para a autora, o projeto da interculturalidade, com base nas experiências e propostas indígenas, por exemplo, coloca em evidência um questionamento à colonialidade, estabelecendo como meta a descolonização, ou seja, projetos vinculados à necessidade de transformar as relações, estruturas e instituições dominantes. Não haverá efetividade no projeto da interculturalidade sem que se produza, de fato, outras formas de relações, outros saberes e outros sujeitos. Como sustenta a autora, é somente a afirmação da diferença, aquilo que pode ser identificado como exterior à modernidade, mesmo que não seja possível afirmar uma exterioridade absoluta, que podemos reestruturar as relações coloniais, nos levando a outros paradigmas de existência e produção de conhecimentos.

Walsh propõe que essa estratégia seja "interculturalizar criticamente a partir de da relação entre vários modos de pensar" (Walsh, 2005, p.30). Esse posicionamento estratégico com a interculturalidade

(...) não tem como principal fim pluralizar ou abrir o pensamento eurocêntrico e dominante (um fim talvez associado ao pensamento fronteiriço), mas também, e ainda mais importante, construir vínculos estratégicos entre grupos e saberes subalternos (...) Iniciativas para estabelecer lugares epistêmicos de pensamentos-outros como a Universidade Intercultural ou a etnoeducação afro são ilustrações do posicionamento crítico fronteiriço que oferece a possibilidade de colocar ' outros' conhecimentos e cosmovisões em diálogo crítico com eles, mas também com conhecimentos e modos de vida tipicamente associados ao mundo ocidental (Walsh, 2005, p.31, tradução nossa).

Da perspectiva de Walsh e de Mignolo, podemos aproximar também a ideia das Epistemologias do Sul de Boaventura de Souza Santos, sociólogo português. Santos (2010) sustenta que a epistemologia ocidental se assenta sobre a ideia de um pensamento abissal, como estratégia de dominação colonial.

O pensamento abissal divide o mundo entre dois lados: o lado moderno, útil e desejado, e o lado não moderno, fadado ao esquecimento. Para Santos (2010), o que faz essa divisão de lugares é fundamentalmente o conhecimento científico e o direito moderno. O autor argumenta que a realidade colonial ainda é tão verdadeira hoje como foi no período colonial e que a característica do pensamento abissal é a impossibilidade de coexistência dos dois lados da linha. "A negação de uma parte da humanidade [o lado não moderno da linha] é sacrifical, na medida em que constitui a condição para a outra parte da humanidade se afirmar enquanto universal" (Santos, 2010, p.39).

Como estratégia de resistência ao pensamento abissal, Santos (2010) entende que é necessário construir um pensamento pós-abissal, que tem como premissa a ideia da "diversidade epistemológica do mundo e o reconhecimento da existência de uma pluralidade de formas de conhecimentos além do conhecimento científico" (Santos, 2010, p.54). Para o autor, precisamos identificar as diferentes formas não ocidentais que surgem e podem compor "compreensões híbridas", misturando componentes ocidentais e não ocidentais.

A condição para um pensamento pós-abissal é a copresença radical, o que implica considerar que "as práticas e os agente de ambos os lados da linha são contemporâneos em termos igualitários" (Santos, 2010, p.56). Como Mignolo e Walsh, esse pensamento tem como fundamento a ideia da diversidade, e o reconhecimento da existência de uma pluralidade de conhecimentos e formas de vida, científicas ou não.

Assim, Santos (2010) faz uma diferenciação entre epistemologias do Sul e epistemologias do Norte. Sul e Norte não aparecem aqui como uma distribuição geográfica; Norte e Sul aqui aparecem como uma metáfora. O Sul é o lugar daqueles/as que vivem e pensam a partir da subalternidade instaurada pela colonialidade e o pensamento abissal, vendo as consequências do domínio colonial, imperialista e/ou capitalista (Norte). O Sul, então, aparece como um lugar epistêmico e existencial, não um lugar geográfico. As epistemologias do Sul são lugares de enunciação que emanam uma série de pensamentos, relações e intervenções que buscam horizontalizar os saberes e os modos de vida; são formas de (re)produzir reflexões que resistem à colonialidade e às epistemologias dominantes que refutam os modos de vida, os saberes e as formas de se relacionar que não fazem parte do lado moderno da linha (Santos, 2010).

A potência de uma proposição, assim, não está no lugar geográfico, mas no seu potencial de descolonização, não restringindo as contribuições a lugares privilegiados, mas àqueles lugares que questionam a ordem e a hegemonia dominante do capitalismo e da modernidade, em seu projeto civilizatório. Assim, para Santos (2010), as epistemologias do Sul devem se assentar sobre três movimentos/orientações principais: 1) aprender que existe o Sul, 2) aprender a ir para o Sul e 3) aprender a partir do Sul e com o Sul.

 

Considerações Finais

As perspectivas de descolonização trazidas aqui, sejam as de Boaventura de Souza Santos, de Catherine Walsh ou de Walter Mignolo, nos remetem a um lugar de fronteira. Todas essas proposições partem da certeza da igualdade como princípio (Ranciére, 2012), buscando, com base na composição entre saberes e modo de vida, descolonizar o mundo, a vida e a sociedade. Deve-se considerar, sobretudo, que pensar em descolonização pressupõe evidenciar as assimetrias de poder presentes na sociedade. Além de pensar no diálogo com saberes fronteiriços, epistemologias do sul ou na interculturalidade, sem evidenciar as relações de poder, com muita facilidade a descolonização pode ser cooptada e instrumentalizada pelo poder hegemônico colonial e a cultura dominante.

Assim, com essas contribuições, consideramos a necessidade da ampliação da discussão com/na psicologia, como um campo teórico-prático. Os autores citados colaboram para ampliar a problematização sobre a função/lugar da psicologia na modernidade e na nossa sociedade, questionando se seria possível colocar-se mais como um discurso fronteiriço e uma prática entre mundos, entre saberes, vidas e percepções. Ou seja, um campo teórico-prático que, por estar entre, questione as distribuições e divisões, as hierarquias, que questione as valorações e que se coloque entre o que está prescrito e o que está excluído; um campo teórico-prático que entre no meio do jogo, primando pela (re)configuração dos campos de saber, na medida em que olha para perspectivas subalternizadas, saberes marginalizados, vidas fronteiriças, primando fundamentalmente pela construção de outros conhecimentos e outras relações em termos igualitários, sempre evidenciando as assimetrias de poder.

Devemos buscar romper com as certezas naturalizadas, com as competências e as delimitações de lugares, funções e identidades destinadas em sociedade para cada grupo ou pessoa. Em outras palavras, nossos questionamentos devem buscar englobar formas de enunciar a vida e se relacionar que mudem também o mapa do que é pensável, perceptível e portanto possível em sociedade, buscando a igualdade como princípio e a diversidade como fim.

 

Bibliografia

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1 A reflexão deste parágrafo retirada da palestra de Walter Mignolo, "Estéticas descoloniais", disponível no em: <http://www.youtube.com/watch?v=mqtqtRj5vDA&list=PLAA3420687DACF1AB&index=1>. Evento Acadêmico "Sentir-Pensar-Fazer", realizado em novembro de 2010 pela Academia Superior de Artes de Bogotá, na Universidade Distrital Francisco José de Caldas, Bogotá.

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