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Revista de Psicologia da UNESP

On-line version ISSN 1984-9044

Rev. Psicol. UNESP vol.16 no.2 Assis July/Dec. 2017

 

ARTIGOS

 

Conexões entre a arte e a prática clínica

 

Links between art and clinical practice

 

 

Rafael dos Reis BiazinI; Sonia Regina Vargas MansanoII

IMestre em Psicanálise, Clínica e Cultura pela UFRS. Docente do curso de Psicologia da UNICAMPO/PR e do Curso de Especialização em Psicoterapia Psicanalítica da UNIFIL
IIDocente do Departamento de Psicologia Social e Institucional, do Programa de Pós-graduação em Administração e do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Londrina

 

 


RESUMO

A organização socioeconômica capitalista produz efeitos subjetivos que são amplamente trazidos para serem analisados nas clínicas psicológicas. A presente pesquisa, de cunho qualitativo, buscou investigar como acontecem as práticas clínicas na contemporaneidade, valendo-se, primeiramente da análise de documentos elaborados pelos conselhos profissionais que possuem uma característica mais prescritiva e instituída. Todavia, em função das dimensões de acaso e de imprevisibilidade que atravessam a existência clínica, este modelo instituído demanda uma análise mais situada. Assim, buscou-se pensar naquelas práticas clínicas que vão além das prescrições com objetivos curativos e que colocam em curso processos de criação de modos de vida. Nesta via, foi possível delinear conexões entre a arte e a clínica, buscando destacar uma prática que se propõe a acompanhar a vida em seus movimentos de transformação e criação.

Palavras-chave: clínica; arte; subjetividade


ABSTRACT

The capitalist social and economic organization produces subjective effects which are widely present and analyzed in psychological clinical practice. The present qualitative research sought to investigate how clinical practices take place in contemporary times, through an analysis of documents prepared by professional councils that have a more prescriptive and established feature. However, considering the dimensions of chance and unpredictability that traverse the existence, this established model demands an analysis that take into account current issues surrounding clinical practice. Therefore, practices that go beyond prescriptions and purely curative aims were taken into account, and interventions related to processes of creating ways of life were of special interest. In that sense, connexions between clinical practice and art were drawn, aiming to highlight practices that accompanies life in its movements of transformation and creation.

Keywords: Clinic; art; subjectivity;


 

 

Introdução

O que se vislumbra atualmente no campo social é a disseminação de uma busca demasiada pela obtenção, a qualquer custo, de um equilíbrio psíquico. Desse modo, não é necessário procurar muito para encontrar toda a sorte de práticas terapêuticas que prometem estabelecer uma homeostase, propondo-se a moldar o desejo de modo a adquirir uma vida estável e cristalizada. Isto pode ser observado, por exemplo, em livros

Todavia, como bem se observa pelo ritmo acelerado dos centros urbanos, esta busca pela estabilidade torna-se algo idealizado, visto que somos constantemente afetados pela imprevisibilidade dos encontros e dos acontecimentos do cotidiano. Assim, para além das promessas de equilíbrio, a questão dirigida à área de Psicologia diz respeito aos efeitos que os desafios cotidianos colocam para as práticas clínicas: afinal, como a clínica responde à expectativa por uma vida estável trazida frequentemente pelo paciente em relação aos mais diversos âmbitos da sua existência, como o afetivo, amoroso, social e profissional?

A estratégia que escolhemos para problematizar esta questão consiste em recorrer ao campo mais instituído da Psicologia: o conjunto de regras e diretrizes elaborado pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP) e pelos Conselhos Regionais de Psicologia (CRPs). Seu campo prático e conceitual apresenta-se como múltiplo tanto em relação aos referenciais teórico-epistemológicos quanto em relação às possibilidades de atuação do psicólogo. A supremacia da prática clínica, em relação aos outros campos de atuação (Moreira; Romagnoli & Neves, 2007), acarreta alguns questionamentos sobre a constituição dessa profissão, bem como sobre a atuação do psicólogo na interface entre a clínica e a realidade psicossocial situada historicamente.

Nesse sentido, este trabalho lançará mão de algumas problematizações sobre as práticas do campo psi, sendo dividido em três momentos. Primeiramente, é realizada uma análise histórica sobre a prática clínica, buscando compreender seus primeiros passos e as áreas de conhecimento com as quais esteve alinhada. Em seguida, serão analisados alguns documentos que servem de referência para a prática clínica e que foram elaborados pelos conselhos de classe (CRPs e CFP). Por fim, buscaremos traçar algumas características do que seria uma prática clínica historicamente situada e comprometida com os processos de criação. Assim, entre a prescrição presente nos documentos e a criação cotidiana das intervenções, acreditamos existir um amplo espaço para experimentação de possibilidades nesse campo profissional que é tanto marcado pelas expectativas defensivamente idealizadas quanto por um social múltiplo e mutante.

 

A prática clínica: problematizações históricas

Antes de iniciar a retomada histórica, porém, cabe fazer algumas considerações sobre a própria noção de clínica. Recorrendo a uma análise oriunda de um dicionário etimológico de 1913, nota-se que a palavra clínica tem sua origem no latim clinicus, que pode ser entendido como "médico que visita os pacientes em seus leitos"; ou ainda, do grego, klinike tekhne, sendo traduzido como "prática â beira do leito" (Figueiredo, 2001, p. 462). O que se configura no tocante à gênese da palavra clínica é que esta diz respeito a uma práxis exercida por um indivíduo que responde à ciência médica. Esse modelo trouxe inúmeras repercussões a esse campo de atuação do psicólogo, inclusive na construção de sua imagem junto à população, sendo associado, muitas vezes, à figura de um profissional que intervém no campo da medicina. Nessa via, Dutra (2004) exemplifica que, naquilo que diz respeito ao psicólogo clínico,

É possível se constatar, ainda hoje, no cotidiano da prática clínica, que muitos procuram esse profissional com a disposição de apresentar o seu sofrimento, problema ou o que quer que seja que assim se apresente. E, ao final, esperar uma solução rápida e eficaz, que atenda à cura do seu mal psíquico, aproximando um sofrimento que é da ordem do psicológico e do simbólico, à doença do físico, e que poderia ser tratado através da prescrição de uma medicação adequada, como o faz o médico (Dutra, 2004, p. 382).

Nesse sentido, a Psicologia clínica herdou alguns resquícios de um modelo médico propedêutico que, segundo autores como Moreira, Romagnoli e Neves (2007, p. 613), busca "observar e compreender para, posteriormente, intervir, isto é, remediar, tratar, curar". Assim, o que se verifica é que no horizonte da clínica psicológica ainda se encontra a busca por uma prática de cunho curativo, a saber, uma prática que elimine o sofrimento psíquico do sujeito que recorre ao psicólogo clínico. E é nesse sentido que os autores citados alegam o quanto a clínica psicológica esteve, por muito tempo, centrada em objetivos que correspondiam ao de uma prática higienista (Moreira, Romagnoli e Neves, 2007, p. 613).

Em relação a isso, como analisado por Mansanera e Silva (2000), as práticas de higienização que se desenvolveram no Brasil a partir da segunda década do século XX, principalmente no campo da medicina e da psiquiatria, visavam combater o mau funcionamento da sociedade, buscando atuar "sobre seus componentes naturais, urbanísticos e institucionais" (Mansarena & Silva, 2000, p. 118), com vistas a controlar e curar as doenças mentais. Assim, a higiene, de modo geral,

[...] tornou-se analista das instituições; transformou o hospital em "máquina de curar"; criou o hospício como enclausuramento disciplinar do doente mental; inaugurou o espaço da hegemonia da clínica, condenando formas alternativas de cura; ofereceu um modelo de transformação à prisão e de formação à escola (Mansarena & Silva, 2000, p. 118).

Nessa via, o higienismo não só se preocupou com as práticas ditas curativas da doença mental, como também buscou abarcar práticas preventivas dirigidas aos indivíduos que apresentassem qualquer propensão a um desvio da instituída normalidade psíquica.

Nesse ponto, é válido salientar o surgimento da noção de loucura e a consequente circunscrição da normalidade dentro de uma produção de saber psiquiátrico, cujo desdobramento foi o caráter de denúncia e docilização daquele sujeito que escapava à norma. Para Garcia-Roza (2008, p. 29), "o passo seguinte ao da denúncia da loucura não era propriamente a cura, mas o controle disciplinar do indivíduo. O louco não era curado, mas domado". Nesse sentido, aqueles que não atendiam a um requisito de funcionamento regular, eram retirados de cena, passando a ocupar as instituições asilares e manicomiais.

Outro ponto a ser considerado é que a preocupação com o adoecimento da população não se deu sem que houvesse, concomitantemente, a busca por melhorias econômicas. Visava-se, pela via do trabalho, alcançar a organização de uma sociedade saudável que pudesse atender à demanda da produção capitalista, ou seja, uma população composta por sujeitos sadios e aptos à produção e ao estudo. Assim, o higienismo no Brasil centrava-se no objetivo de "aplicar os conhecimentos científicos na prevenção das perturbações, atuando junto a populações nas quais a prevenção poderia trazer lucro, não só individual mas também coletivo" (Mansarena & Silva, 2000, p. 119). Tanto que grande atenção foi dada à consolidação e expansão da prática da Psicologia no âmbito escolar.

Os objetivos curativos de exclusão do sofrimento psíquico da clínica psicológica obviamente atendiam aos valores apregoados pelo movimento higienista que pretendia a consolidação de indivíduos sadios e hábeis para a participação ativa em uma economia que alcançava seu pleno desenvolvimento. Desse modo, a prática clínica não só fugia apenas das amarras da medicina higienista, como também da psiquiatria e sua normatização, a partir de uma propedêutica, a saber, o conjunto de técnicas que deveria ser seguido para se elaborar um diagnóstico preciso e um consequente tratamento com vistas à cura.

A despeito disso, atualmente, não se extingue da clínica psicológica alguns resquícios e fundamentações teóricas que recorrem à busca de um saber prescritivo tal como verificamos na história da ciência médica. Mesmo que os movimentos de higienização tenham perdido força como práticas constituídas, prescritas e legitimadas, seus fundamentos encontram-se ativados, atendendo à demanda de produção do capitalismo e sua necessidade de mão de obra produtiva, passiva e saudável.

 

As práticas clínicas e os documentos de referência

Recorrendo à descrição das atribuições profissionais do psicólogo clínico no Brasil, elaboradas e difundidas pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP), verifica-se marcadamente a presença de um modelo médico que elabora a prescrição do fazer clínico com ênfase nos objetivos curativos. O psicólogo que atua na clínica é definido nos documentos do CFP como aquele que intervém "colaborando para a compreensão dos processos intra e interpessoais, utilizando enfoque preventivo ou curativo, isoladamente ou em equipe multiprofissional em instituições formais e informais" (Conselho Regional de Psicologia, 1992).

Para essa delimitação da atuação do psicólogo clínico, como também para outras áreas, tais como psicologia do trânsito, psicologia do trabalho, psicologia jurídica, o que se observa é a existência de prescrições e detalhamentos de atribuições que buscam prescrever tarefas com certa rigidez e tentar produzir a sensação de segurança nas práticas instituídas. Para tanto, o CFP configura-se como uma organização que se ocupa da regulamentação do campo da Psicologia responsável pela formulação das normas e deveres a ser seguidos por todos aqueles que receberam o título de graduação em Psicologia.

Seguindo as análises de Baremblitt (2002) acerca da institucionalização da vida humana, podemos pensar nos múltiplos efeitos gerados pelas regras instituídas nesse campo profissional. As formas prescritivas de atuação do campo psi, definidas pelo CFP, geram uma espécie de dispositivos de controle sobre a profissão e sobre a qualidade dos serviços prestados por essa categoria profissional. Ocasionalmente, isso pode gerar certos entraves para intervenções do psicólogo, que porventura deseja ir além daquilo que é prescrito pelos documentos de referência. Além disso, naquilo que compete à psicologia clínica, vale frisar que a delimitação do seu campo de atuação, por meio de prescrições, apresenta certos limites em relação ao acolhimento das dimensões de acaso e imprevisto que marcam o encontro entre um psicólogo clínico e um sujeito que a ele recorre.

Certamente, há uma tentativa de abarcar essa multiplicidade atualizada nos encontros profissionais. Tanto que as atribuições do psicólogo são detalhadas em 19 pontos que fundamentam seus objetivos de maneira técnica e objetiva, estabelecendo em quais especificidades da vida humana um psicólogo pode atuar. Ao psicólogo clínico são atribuídas as atividades de avaliação e diagnósticos psicológicos de entrevistas, observação, testes e dinãmicas de grupo "com vistas â prevenção e tratamento de problemas psíquicos" (Conselho Regional de Psicologia do Paraná, 1992). Ora, como descrito pelo CRP, as atribuições da psicologia clínica busca atender às possíveis práticas de controle dos sofrimentos psíquicos, como também fornecer tratamento curativo. Pode-se dizer que isso não se afasta, sobremaneira, das práticas higienistas do século passado: a exclusão do sofrimento psíquico e a sua prevenção são norteadores da função do psicólogo clínico ainda hoje, tal como considerado por Mansarena e Silva, (2000).

Seguindo esses passos, se o psicólogo clínico busca atuar no sentido de prevenir e curar, tal como o modelo médico faz, não é de se estranhar que se almeje, também, a delimitação de prescrições para esse campo de atuação. A prescrição é doadora de credibilidade e segurança, uma espécie de passo-a-passo a ser seguido em cada caso atendido. E não é por outros motivos que o trabalho clínico do psicólogo é amplamente descrito em Manuais de Psicologia fornecidos pelos Conselhos de Psicologia. Como o próprio título já denota (a saber, manual), trata-se de definições precisas e técnicas sobre como efetivar a atuação do psicólogo.

No que diz respeito ao uso de recursos técnicos, como os testes para embasar a área de avaliação diagnóstica, alguns manuais explicitam que uma avaliação deve se pautar em procedimentos precisos, a fim de estabelecer um diagnóstico confiável. Assim, "a Avaliação Psicológica refere-se a um conjunto de procedimentos confiáveis que permitem ao psicólogo julgar vários aspectos do indivíduo através da observação de seu comportamento em situações padronizadas e pré-definidas" (Pasquali, Conselho Regional de Psicologia, 2007).

É notável, desse modo, que os documentos de referência cooperam para instituir e dar parâmetros para o trabalho da clínica psicológica. Pode-se dizer, então, que a prática clínica consolida-se como uma instituição. Para Baremblitt,

As instituições são lógicas, são árvores de composições lógicas que, segundo a forma e o grau de formalização que adotem, podem ser leis, podem ser normas e, quando não estão enunciadas de maneira manifesta, podem ser hábitos ou regularidades de comportamentos (Baremblitt, 2002, p. 24).

Todavia, reconhecendo a importância social e política dos órgãos de classe profissional, consideramos importante pensar a prática clínica para além das prescrições. Cabe considerar que ela está entrelaçada a diversas outras instituições e que, por meio de articulações, rupturas e alianças, configura novas maneiras de compreender e atuar junto à diversidade mutante e provisória da vida humana.

Pensadas assim, as instituições podem ser visualizadas como um conjunto amplo de valores e regras em constante movimento de criação e ruptura. Seguindo nessa via, pode-se pensar a regulamentação da prática clínica realizada pelo CFP e pelos CRPs, na esfera destacada por Baremblitt (1994), qual seja, um conjunto amplo de valores instituídos, mas que comporta também outras diferentes forças que estão em embate e que colocam em movimento a instituição clínica.

Por dar importância ao instituinte, essa perspectiva permite que se problematizem as prescrições que os Conselhos de Psicologia elaboram sobre a prática clínica, além de permitir que se procure pensar em novos modos de trabalho no campo vivo da Psicologia. Nesse sentido, questionamos: é possível pensar novos modos de fazer a clínica operar na contemporaneidade? E também: é possível articular uma prática clínica que não se reduz às prescrições e aos objetivos curativos, mas que coloque em curso processos de criação de novos modos de vida? Traçaremos, na seção seguinte, alguns caminhos teóricos para ensaiar respostas parciais e provisórias a essas questões.

 

Uma prática clínica situada: os processos de criação

Após algumas problematizações a respeito do trabalho do psicólogo no contexto clínico, tal como prescrito pelos CRPs e CFP, o que se configura, consequentemente, é o desafio de pensar para além dos documentos de referência, dando visibilidade aos modos situados e emergentes de intervir no campo clínico. Como frisam Neves e Josephson (2002), repensar as práticas clínicas no campo da Psicologia é um desafio que não acontece sem que haja um exercício trabalhoso, visto que logo se impõe a questão: "como discorrer sobre clínica não estando enquadrado nos parãmetros classicamente instituídos do que seja o psicólogo e a atividade clínica?" (Neves & Josephson, 2002, p. 100).

Para acolher esse desafio, cabe delinear, primeiramente, a perspectiva teórica que será adotada nessa empreitada. Seguindo as análises dos autores mencionados no parágrafo anterior, pensar para além da prática clínica instituída é, antes de tudo, procurar pensá-la tomando certa distância das "linhas duras da estratificação que produzem práticas e indivíduos por oposição binária, ou seja, que os conecta a identidades definidas" (Neves & Josephson, 2002, p. 100). Essa estratificação tende a reduzir a diversidade dos encontros e a circunscrever o indivíduo no campo do normal e do patológico, por exemplo.

Desse modo, é recorrendo a uma epistemologia que concebe o homem como devir, ou seja, que não se reduz "nem a uma entidade individuada, nem a uma entidade social predeterminada" (Guattari & Rolnik, 1986, p. 31), que procurará pensar uma clínica aliada dos movimentos de transformação e invenção.

Nessa perspectiva, o indivíduo não é concebido como portador de uma personalidade cristalizada e centralizada em si. Trata-se, antes, como bem discorrem Passos e Benevides (2005, p. 10), de "tomar a existência fora dos limites do indivíduo". Neste sentido, o que se delineia é que "no lugar de sujeito, falamos, então, de subjetivação como processo de criação" (Passos & Benevides, 2005, p. 10), donde os mais variados efeitos existenciais são produzidos. Ainda nessa via, os autores explicam:

Nesse sentido, a subjetividade se faz coletiva, já que sempre circunstanciada por muitos vetores. E, por coletivo, entende-se uma multiplicidade que está para além e aquém do indivíduo e do social -multiplicidade de vetores e intensidades como os afetos, as sensibilidades artísticas, os movimentos sociais, isto é, todo um conjunto de forças que atravessam as formas individuais e as formas sociais, provocando a sua desestabilização e a criação de novas composições (Passos & Benevides, 2005, p. 11).

Em decorrência disso, não se pode deixar fora do campo de análise clínica o contexto social em que vivemos, analisado por Rolnik (2003a) como "capitalismo mundial integrado", expressão cunhada por Félix Guattari em 1970, por meio do qual ele procurou fugir da generalização presente no termo globalização, visto que, com a denominação de capitalismo mundial integrado, o que se esboça é a conexão da produção de capital como a produção de subjetividades. Nesse plano, atividades humanas que outrora escapavam à definição clássica de capitalismo, agora são por ele capturadas. Assim, "as atividades da vida doméstica, do esporte, da cultura, do turismo, da religião e da educação, por exemplo, foram investidas por certo modo de subjetividade que procurou fazer com que todos os setores se tornassem duplamente produtivos" (Camargo, 2011, p. 70). Desse modo, o capitalismo mundial integrado incorporou nas suas engrenagens as atividades humanas que eram consideradas como não produtivas, tal qual a arte, a contemplação e o tempo livre.

Com isso, uma análise do contexto atual necessita tomar em consideração os novos modos de existência humana que se configuram por meio dos valores disseminados, legitimados e desejados socialmente. Tais modos de existência também chegam à clínica e, consequentemente, levam seus agentes (pacientes e terapeutas) a se esbarrarem na questão do manejo dessa prática e em seus respectivos arcabouços teóricos. Rolnik (2003b, p. 1) indaga: "Que questões esta situação coloca para as práticas clínicas na atualidade?".

Alguns autores contemporâneos, que estudam as problematizações difundidas por Antonio Negri, indicam um possível delineamento para analisar a questão proposta por Rolnik. Trata-se da força de criação que vem sendo tão cara para o capitalismo desde os anos 70 ou 80, e que tem sido mobilizada por todo o âmbito social. Essa disseminação, como aponta Rolnik (2003a), tem como consequência a aparição de novas problematizações que se apresentam às práticas clínicas. Nesse sentido, "o destino da força de criação hoje, ao qual poderíamos agregar o destino da relação entre a força de criação e a força de resistência, estaria no cerne do que deve ser enfrentado por estas práticas na atualidade" (ROLNIK, 2003a, p. 1). Para tanto, vale a questão: O que seriam estas forças de criação e de resistência que constituem o ponto nodal em relação ao aparecimento de novos problemas no que concerne às práticas clínicas? O que se coloca como problematização para a prática clínica a partir dessa questão é que a vida humana não pode ser concebida como estanque ou linear, mas envolve processos de variação decorrentes dos encontros sociais.

O que se configura no contexto atual do capitalismo que, vale lembrar, também é uma invenção sócio-histórica, é que os modos de subjetivação produzidos nos encontros tendem a evitar os efeitos de apreender o mundo como campo de forças, ou seja, com a disparidade de afetos, que configuram novas sensações, colocando-nos em contato com novos universos sensíveis. Há um risco nesse contato: o de produzir um esvaziamento de sentido nos modos de existência contemporâneos, por meio do qual "instaura-se então na subjetividade uma crise que pressiona, causa assombro, dá vertigem" (ROLNIK, 2003b, p. 02). Esse assombro, que em um primeiro momento ganha contornos de incômodo e se torna até aterrorizante, pode precipitar várias ações: desde a abertura para outros mundos, maneiras de viver, sentir e pensar, até um fechamento para a mudança, visto que assusta, anestesia e solicita intervenções mais conservadoras, voltadas para a supressão do incômodo e suposta retomada do equilíbrio.

É na tentativa de buscar respostas a essa vertigem, a esse assombro que, por vezes, o sujeito recorre à clínica. Nota-se que uma produção social, como a organização socioeconômica vigente, coopera para que seja gerada uma crise afetiva no tocante à fluidez da vida. Crise esta que, em larga medida, pode ser uma oportunidade para experimentação de outras maneiras de viver. É nesse sentido que a prática clínica ganha uma dimensão mutante quando atenta ao que acontece no nível mesmo dos componentes de subjetivação que circulam em um dado tempo histórico. Isso lhe exigirá um contato constante com um social multifacetado, também ele mutante. Nota-se, assim, que, aparentemente distante dos problemas da clínica, o capitalismo produz efeitos diretos em seu manejo cotidiano.

É nesse sentido que se pode pensar sobre as potencialidades da clínica psicológica naquilo que compete à sua conexão com a vida social cotidiana e a fluidez da produção dos modos de existência. A partir disso, seria possível pensar a conexão entre as práticas clínicas e sua dimensão criadora? Uma clínica que dialoga com a arte ou, ainda, uma clínica capaz de acolher o que está prescrito em documentos de referência, tendo em vista tratar-se de uma profissão regulamentada, mas também ir além dos modos de viver já formatados e familiares, provocando experimentações?

Tomando em consideração essa questão, cabe pensar em modos para exercer a prática clínica, valendo-se de um olhar crítico sobre algumas práticas tradicionais. Nessa via, a questão que se configura é: Como pode o psicólogo fazer da sua área de atuação - e, neste sentido, mais precisamente, da prática clínica - um espaço para criação e experimentação de modos de vida? Em nosso entendimento, isso só é possível quando a análise do vivido acontece em uma esfera problematizante, sem um objetivo previamente definido que até pode aliviar sintomas, mas, em larga medida, sufoca os processos de criação. O desafio consiste em sustentar as interrogações tensas e se abrir a outro regime de experiência que esteja mais próximo da vida com seus acasos e fluxos díspares.

Nessa direção, é possível conceber a existência como algo que é da ordem dos movimentos e da transformação, sustentando uma prática clínica que acolha tais ondulações subjetivas geradas no campo social, sem ficarmos paralisados em alguma referência teórica mais rígida. Certamente, não se trata de lançar fora as teorias mais tradicionais que temos, mas criar novos dispositivos para praticar a clínica de modo aberto, acolhendo e analisando as variações e mudanças precipitadas nos encontros. Pensar o contexto social em que nos encontramos é essencial para questionarmos o que nos leva a oferecer nossa força de criação à exploração da produção capitalista, em que a regra geral estabelecida consolida-se na máxima tempo é dinheiro. E, nesse âmbito, inclui-se grande parcela das manifestações artísticas que se prendem a um valor de mercado, visto que as forças de criação, nesse plano, se direcionam a uma lógica meramente rentável. A Psicologia, por vezes, não caminha também por essa via quando atua majoritariamente no alívio de sintomas?

Ora, levantar essas questões coopera tanto na problematização dos documentos de referência quanto na prática clínica tradicional que tende a reproduzir essa anestesia nos corpos e que, assim agindo, tende a frear a vida em seu processo de criação de novos mundos. E, nesse sentido, se pensarmos junto com Deleuze a sua conceituação de estado patológico, temos que a doença é oriunda de "estados em que se cai quando o processo é interrompido, impedido, colmatado" (Deleuze, 1997, p. 13). É preciso lembrar que o processo assinalado por Deleuze envolve o próprio fruir da vida, com suas disparidades, conflitos e caos.

Vale, no entanto, frisar que abandonamos a pretensão teórica de renomear e redefinir de maneira prescritiva o que seria essa clínica, uma vez que, assim agindo, cairíamos nas armadilhas daquilo mesmo que nos propusemos a analisar criticamente: as prescrições. Em seu lugar, buscamos problematizar o fazer clínico em sua dimensão instituinte (Baremblitt, 1996). Nessa perspectiva de compreensão das práticas clínicas, as respostas parciais, construídas no dia-a-dia das intervenções clínicas, vão dialogando com a criação, tanto no seu âmbito prático quanto no seu âmbito teórico. Entretanto, as respostas no plural, como ensaios, implicam o próprio processo de criação que não se esgota em uma resposta verdadeira e definitiva.

 

Considerações Finais

O percurso investigativo que se colocou neste trabalho, a respeito da problematização da prática clínica em Psicologia, configura-se como sendo algo da esfera de um desafio, visto que se trata de discorrer sobre essa prática para além dos seus parâmetros mais instituídos pelos CRPs e CRF. Esse desafio acabou por se colocar como um meio de pensar novas maneiras para atuar na clínica, sem que para isso fosse necessário negar absolutamente a clínica psicológica instituída e seus referenciais teóricos legitimados. Trata-se de pensar, a partir dessa prática tão presente na Psicologia, quais seriam as novas ferramentas conceituais emergentes, por meio das quais fosse possível atuar perante as novas modalidades de produções subjetivas que ora estão em curso.

As questões que permanecem e insistem, juntamente com as outras levantadas neste trabalho, são: Como pode o psicólogo aliar-se com uma clínica da criação? Como promover um diálogo entre a arte e a vida? Tais questões são abertas e complexas demais para uma resposta unívoca, mas, justamente por isso, convoca-nos, como profissionais da área, a experimentar os encontros clínicos na singularidade que os atravessa. Desse modo, por se tratar de questões que não propiciam uma resposta absoluta, elas exigem que se abra mão das certezas e das convicções das prescrições, uma vez que estamos bem mais próximos do risco e da experimentação.

O profissional da clínica sabe que, comumente, o sujeito que recorre a esse tipo de atendimento tende a demandar uma remoção precisa (e de preferência indolor) de seu sofrimento, reafirmando uma prática médica higienista voltada para a extinção rápida do que gera desconforto. Deixar de acolher tal demanda, pela própria impossibilidade que nela está colocada, é uma tarefa árdua para o psicólogo. Entretanto, não é algo da ordem da impossibilidade. É precisamente ao colocar tal demanda em análise que reconhecemos uma possibilidade de ativar a potência de criação para inventar novos modos de fazer a clínica que acolham esse corpo afetado pelos encontros com o mundo.

É nesta via que encontramos ressonância com o trabalho de Rolnik (2003a), que questiona: O que pode a clínica? Ao final desta pesquisa, acreditamos na força da conexão entre a arte e a clínica, uma vez que ela pode oferecer pistas para pensar novos modos de acolher, sustentar e analisar aqueles que nos procuram. Sabemos da importância das teorias e técnicas que já foram inventadas e colocadas em prática no decorrer da história da psicologia clínica. Cabe-nos, então, a tarefa de colocá-las em movimento e, assim, continuar questionado, inventado e explorando novas possibilidades de atuação no cotidiano dos encontros clínicos.

 

Referências

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