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Revista de Psicologia da UNESP

On-line version ISSN 1984-9044

Rev. Psicol. UNESP vol.17 no.1 Assis Jan./June 2018

 

ARTIGOS

 

Núcleo de apoio à saúde da família (NASF): (des)construindo a prática profissional individualizada e promovendo saúde

 

 

Alice Marli MoratelliI; João Batista de Oliveira JuniorII; Fernanda Cornelius LangeIII; Luciano Bernardes JuniorIV; Carlos Alberto Severo Garcia JrV; Luana Bertamoni WachholzVI

IPsicóloga. Residente em Atenção Básica/Saúde da Família da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). Email: alicemm.psi@gmail.com
IIProfissional da Educação Física. Residente em Atenção Básica/Saúde da Família da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI)
IIIFonoaudióloga. Residente em Atenção Básica/Saúde da Família da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI)
IVFisioterapeuta. Residente em Atenção Básica/Saúde da Família da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI)
VPsicólogo. Ex-residente. Dr. Ciências Humanas (UFSC). Tutor da Residência em Atenção Básica/Saúde da Família da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). Email: carlos.garcia@univali.br
VINutricionista. Msc. Saúde e Gestão do trabalho (UNIVALI). Tutora da Residência em Atenção Básica/Saúde da Família Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). Email: luana_@univali.br

 

 


RESUMO

O presente texto pretende refletir sobre o trabalho multiprofissional na prática profissional do psicólogo inserido no Núcleo de Apoio a Saúde da Família, bem como sobre o desenvolvimento de novas práticas de saúde, através de um grupo terapêutico para a comunidade. Serão relatadas algumas atividades desenvolvidas no grupo "MovimentaSUS", criado por residentes da Atenção Básica vinculados à Universidade do Vale do Itajaí, que envolveram práticas de atividades físicas, técnicas de relaxamento, rodas de conversa, pintura de mandalas e outras atividades que foram pensadas e construídas pelos participantes do grupo. Entende-se que o objetivo da formação de grupos de promoção de saúde, dentro do Sistema Único de Saúde, representa, além de um sonho individual de cada profissional e pessoa envolvida, um enlace ao sonho coletivo em realizar uma ação compartilhada e participativa, capaz de ampliar a concepção de saúde. Trata-se, portanto, de considerar a prática multiprofissional como uma oportunidade da construção de um olhar para além da doença, implicado em enxergar a pessoa em sua integralidade, analisando as relações entre dimensões econômicas, políticas, culturais e sociais, alcançando, assim, a desejada promoção de saúde.

Palavras-chave: Promoção de saúde, Sistema Único de Saúde, pesquisa interdisciplinar, saúde mental, atenção básica.


ABSTRACT

The present text intends to reflect on the multiprofessional work in the professional practice of the psychologist inserted in the Nucleus of Support to the Family Health, as well as on the development of new health practices through a therapeutic group for the community. Some activities developed in the "MovimentaSUS" group, created by residents of Primary Care linked to the University of the Vale do Itajaí, will involve activities of physical activities, relaxation techniques, conversation wheels, painting of mandalas and other activities that were designed and built by group participants. It is understood that the objective of the formation of health promotion groups within the Unified Health System represents beyond an individual dream of each professional and person involved a link to the collective dream in carrying out a shared and participative action capable of broadening the conception of Cheers. Therefore, it is a question of considering multiprofessional practice as an opportunity to construct a look beyond disease, implied in seeing the person in its entirety, analyzing the relations between economic, political, cultural and social dimensions, desired health promotion.

Keywords: health promotion; single health system; interdisciplinary research; mental health; basic attention.


 

 

Introdução

O presente texto pretende refletir sobre o trabalho multiprofissional na prática profissional do psicólogo inserido no Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) e sobre o desenvolvimento de novas práticas de saúde, através de grupo terapêutico que iniciou com o objetivo de realizar o sonho comum do trabalho multiprofissional dos integrantes de um NASF, no município de Itajaí/SC, bem como da necessidade do território de integrar, vincular, fazer saúde e promover saúde nessa comunidade.

Produzir saúde é algo que ainda é bastante discutido no meio acadêmico, nos cursos da área da saúde e também nas demais áreas. No tocante à psicologia, parte-se do pressuposto de que o ser humano se constitui na sua "relação dialética entre o singular e o universal e no fato de cada sujeito ser único, singular, mas ao mesmo tempo, ser social, coletivo e universal" (Schneider, 2002, p. 167). Desse modo, partindo da premissa de que a constituição do ser humano seja multifatorial, esse acaba subjetivado por todos esses determinantes aos quais está exposto. Ao mesmo tempo, deve-se considerar a saúde como resultado das formas de organização social de produção, conforme a indicação do relatório da 8ª Conferência Nacional de Saúde, de 1986; portanto, pode ser compreendida como produto da sociedade em que cada pessoa está inserida e dela se faz produtora e produto, constituindo assim seu ser no mundo.

Essa constituição de ser no mundo acontece na relação singular e universal, sendo o homem atravessado por processo social e caracterizado como fenômeno histórico (Vygotsky, 1986). Com o intuito de conhecer as histórias de cada um e o território que habitam, os profissionais de saúde do NASF - refletindo como seria possível potencializar a relação entre serviço de saúde, território e usuário, para assim criar a possibilidade de construção e produção do cuidado, transformação do espaço e visibilidade da cultura nesta população - pensaram a importância de analisar: como o trabalho multiprofissional pode desenvolver novas práticas de saúde por meio de grupo terapêutico e contribuir para a promoção da saúde?

Primeiramente, é no território que se produz e é produzido o sujeito que se faz no seu dia a dia. O território "diz respeito à construção e à transformação que se dão entre os cenários naturais e a história social que os homens inscrevem e produzem" (Lima & Yasui, 2014, p. 597). Compreendendo que o homem está no território, se constitui nele e nas relações que aí estabelece, entende-se que "o outro é indispensável para a minha existência, tanto quanto, ademais, o é para o meu autoconhecimento" (Sartre, 2012, p. 34).

Assim, não há como não levar em consideração a importância do trabalho multiprofissional, vinculado ao território, para refletir sobre prática profissional que a psicologia e as demais áreas são capazes de ampliar, relacionando a dimensão específica e individual para a integral e singular. Desse modo, partindo do pressuposto de que é necessária a articulação de diferentes saberes na busca pelo mesmo sonho de produzir saúde, necessitamos de profissionais comprometidos e atentos aos "aspectos das relações humanas: a história, a política, a economia, o preço do arroz, do feijão, da carne, ou mesmo como cozinhamos tudo isso" (Zurba, 2011, p. 7). É no processo de "vir a ser" do homem na comunidade que se trama aquilo que encontramos como saúde coletiva, e no qual é possível o trabalho multiprofissional e da promoção de saúde.

"A promoção de saúde prioriza como estratégias a constituição de políticas públicas saudáveis, a criação de ambientes sustentáveis, a reorientação dos serviços de saúde, o fortalecimento de ações comunitárias e o desenvolvimento da autonomia individual e comunitária" (Silva-Arioli, Schneider, Barbosa, Da Ros, 2013, p. 679). Nesse sentido, devemos considerar que os profissionais de saúde envolvidos em atividades de grupos na Atenção Básica trabalham com intuito de pensar e fazer promoção da saúde, levando em consideração a determinação social da produção de saúde.

Assim, pretende-se com esse relato contribuir para fortalecer as ações desenvolvidas no SUS e indicar modos de fazer e construir práticas multiprofissionais relacionadas ao desejo de produzir saúde, visando ao sujeito em sua dialética indivíduo/sociedade. Com a observação, participação e análise das práticas de saúde desenvolvidas em grupo, compreende-se que os envolvidos acabam por "criar a si próprios pelas escolhas que faz, reciprocamente cria nos grupos a que pertence a sua realidade social, num dado contexto material, situado num ponto do tempo e num lugar do espaço com suas especificidades culturais" (Rosa & Busarello, 2013, p.141).

 

Método

O grupo terapêutico que será evidenciado neste relato de experiência teve início com a chegada de residentes ao Programa de Residência Multiprofissional em Atenção Básica/Saúde da Família, relacionada à atuação do NASF e vinculada ao apoio de uma Unidade Básica de Saúde (UBS), responsável por quatro Estratégias de Saúde da Família (ESF), no município de Itajaí/SC.

O NASF configura-se como uma política instituída pelo Ministério da Saúde (MS), por meio da Portaria Gabinete do Ministro/Ministério da Saúde (GM/MS) nº 154, de 24 de janeiro de 2008 (Brasil, 2008). Constituído por equipes de profissionais de distintas áreas do conhecimento, que atuam em articulação com as Equipes de Saúde da Família (EqSF) e as equipes da Atenção Básica (AB) para populações específicas - consultório na rua, equipes ribeirinhas e fluviais, entre outras -, em territórios definidos, esse arranjo tem por objetivo ampliar a resolutividade da AB (Brasil, 2011).

Essa equipe de profissionais (psicóloga, fisioterapeuta, profissional da educação física, fonoaudióloga, farmacêutica e nutricionista) tem o objetivo de trabalhar com o matriciamento, territorialização e responsabilidade sanitária, trabalho em equipe, autonomia dos indivíduos e coletivos e, também, com a clínica ampliada, superando a lógica fragmentada da saúde, bem como olhar para além da doença, levando em consideração o sujeito em sua história de vida, contexto e território no qual está inserido; isso tudo deve permear para a construção da integralidade do trabalho em redes de atenção e cuidado compartilhadas entre ESF, NASF e Rede de Atenção à Saúde (Brasil, 2010; 2014).

Levando em consideração as necessidades observadas no território e as demandas dos usuários que frequentam a UBS, fez-se de extrema importância a criação do grupo que, de início, foi organizado por convites realizados aos usuários do território, por meio de visitas domiciliares compartilhadas, consultas compartilhadas e/ou individuais, entre profissionais da UBS e do NASF. O grupo iniciou com cinco integrantes e, até o término da residência dos integrantes, contava com quinze pessoas. Os encontros aconteciam nas terças e quintas-feiras, no período da manhã, com início às 8h30 e término de acordo com a combinação do grupo.

Todas as atividades desenvolvidas no grupo, desde as práticas de atividades físicas, técnicas de relaxamento, rodas de conversa, pintura de mandalas, oficina de chás, até as brincadeiras infantis foram desenvolvidas pelos profissionais residentes do NASF. O objetivo era que o sonho individual de cada profissional e pessoa se entrelaçassem ao sonho coletivo de realizar trabalho multiprofissional, tendo em vista o olhar para além da doença, a fim de poder enxergar a pessoa em sua integralidade, em suas dimensões econômicas, políticas, culturais e sociais, induzindo, assim, a promoção de saúde.

As atividades foram sempre planejadas com antecedência de um encontro e em conjunto com profissionais e usuários do grupo, no intuito de desenvolver trabalho multiprofissional e promover autonomia e fortalecimento do próprio grupo na tomada de decisão e responsabilidade pelas atividades escolhidas, para que, assim, pudessem se sentir pertencentes àquele espaço, sendo conhecedores da comunidade e agentes importantes no processo de pensar e fazer saúde (Schneider, 2016).

Para isso, conversava-se e discutia-se com os participantes do grupo sobre o cronograma das atividades de ações e sobre como ele seria construído, organizado e modificado pelo coletivo grupal. Por esse motivo, não será descrito aqui um cronograma, que foi sendo criado em cada encontro, no qual se decidia o que seria realizado no próximo encontro. Pela mesma razão, não serão descritas as atividades realizadas, mas sim o sentido e o significado que elas trouxeram para a vida individual e coletiva de cada pessoa.

 

Resultados e discussões

Os participantes eram na maioria mulheres na faixa etária entre 25 e 70 anos, já aposentadas ou usuárias dos benefícios sociais do CRAS (Centro de Referência e Assistência Social) ou desempregadas. As demandas iniciais dos participantes do grupo foram: tristeza, vínculo social e familiar fragilizado, necessidade de perda de peso, aprender a confeccionar artesanato, sair um pouco de casa, aliviar a mente das preocupações, ter pessoas para conversar, necessidade de praticar atividade física e, por fim, melhorar a saúde física, biológica, mental e espiritual.

No primeiro encontro, foi realizada roda de conversa com o intuito de conversar sobre as necessidades e expectativas das pessoas ali presentes, de compreender a sua busca pelo grupo, além de apresentar uns aos outros para melhor integração, confiança e respeito entre os participantes. Nesse primeiro momento, os profissionais de saúde negociaram os melhores dias e horários, de acordo com as possibilidades de cada um, e expressaram também o objetivo do grupo, o qual, inicialmente, começaria com um alongamento, caminhada e atividade física e, posteriormente, com alguma atividade sugerida pelos participantes.

Nesse dia, as pessoas se apresentaram e falaram um pouco das suas histórias de vida e de como elas haviam chegado naquele encontro e de como estavam indo embora, devendo utilizar uma palavra para dimensionar como estavam se sentindo. Dentre as palavras expressadas, citam-se: "ansiedade", "alívio", "medo", "acolhida". Acredita-se que nesse dia foi possível enxergar uns aos outros, olhar nos olhos, tocar através de um abraço, mas, principalmente, acolher, o que implica aceitar o sujeito como ele é, do jeito que ele se encontra, em sua cultura, sua diversidade e experiências de dor e alegria, experiência de vida, ainda que cause estranhamento com "normalidade" ou a "expectativa social" que se espera deste (Brasil, 2014).

No encontro seguinte, o grupo solicitou "alguma coisa para relaxar". Com essa demanda, os profissionais presentes ofereceram técnica de relaxamento acompanhada de respiração guiada. Nesse encontro, vieram algumas pessoas novas, razão pela qual foi novamente realizada a apresentação entre os participantes. Em seguida, iniciaram a atividade solicitada pelo grupo.

Todos se sentaram confortavelmente nas cadeiras e o fisioterapeuta iniciou a atividade de respiração, com o intuito de fazê-los refletir sobre a respiração atrelada à consciência corporal e sobre o quanto, no dia a dia, não percebemos a forma como respiramos. Nesse momento, a psicóloga pediu que continuassem com a respiração guiada e que tentassem soltar a respiração com pensamentos de liberação de mágoas ou algum sentimento que estava incomodando. À medida que o fisioterapeuta ia conduzindo a respiração e observando um a um, o profissional da educação física, a farmacêutica e a fonoaudióloga participavam da atividade, estabelecendo assim relação horizontal. Com música relaxante ao fundo, o fisioterapeuta acompanhava a respiração, enquanto a psicóloga continuava com o relaxamento guiado por um texto criado para fornecer imaginação, levar as pessoas às memórias e perspectivas de futuro, aos sonhos e à construção de lugar, naquele momento relaxante, onde gostariam de estar e como poderiam se sentir nesse lugar que, na imaginação, era só deles, de cada um.

Ao fim, concluiu-se a atividade com o fisioterapeuta explicando o porquê de respirar corretamente e os benefícios emocionais, psicológicos, corporais que poderiam estar associados à forma de respirar. Na sequência, a psicóloga e os demais profissionais conversaram com participantes sobre como haviam se sentido durante a técnica de relaxamento, gerando, assim, momento de construção individual e coletiva na ressignificação de histórias.

Para os profissionais, nesse encontro, foi possível evidenciar a promoção de saúde, visto que não se fez a atividade solicitada pelo grupo pensando na prevenção de doença, mas sim na promoção de saúde, com o trabalho das questões emergentes de cada pessoa ali presente por meio de tecnologias leves que "priorizam a vida e a saúde em seu significado mais amplo, pautado em relações horizontais e em parâmetros de corresponsabilização" (Arioli et al., 2013, p. 677).

O que se observou é que, historicamente, as pessoas têm dificuldade de colocar em prática o protagonismo e autonomia com relação a sua saúde, visto que existe um histórico de relações pautadas no poder do profissional da saúde e relações verticalizadas e propulsoras da normatização e biologização do ser "paciente". Nesse encontro, pretendeu-se então trabalhar com pessoas e não com "pacientes". Para isso, construiu-se novamente o próximo encontro, agora trabalhando com eles a promoção de saúde no sentido do que nos traz a Carta de Otawa: "o processo de capacitação da comunidade para atuar na melhoria da sua qualidade de vida e saúde, incluindo maior participação no controle desse processo" (Brasil, 2002, p. 19).

Quanto a isso, foi realmente necessário repensar, através de diálogo, sobre o que é ter saúde, já que a população desse território está acostumada com o "adquirir saúde" somente por meio da consulta por profissional da saúde, modelo fortemente enraizado historicamente, na qual alguém com poder precisa prescrever algo a alguém. Com esse questionamento, tornou-se possível que profissionais da saúde e participantes do grupo refletissem sobre o que é saúde e o que é fazer saúde. Nessa atividade, obtiveram-se as seguintes falas: "saúde é estar bem", "saúde é não estar se sentindo mal", "saúde é sorrir" e assim por diante. A promoção de saúde "constitui um modo de dar significado à saúde e à doença e, nesse sentido, pode trazer contribuições para o rompimento do modelo biomédico" (Heidmann, 2006).

Após a reflexão sobre o que era saúde, o grupo decidiu escolher uma atividade, para o próximo encontro, que estivesse vinculada à satisfação que sentiriam, à alegria e ao desejo de viver. Atendendo a essa demanda, decisão do grupo foi pela confecção de artesanato, e o material utilizado seria angariado por cada participante, que traria o que tinha em casa, bem como com materiais disponibilizados pela Unidade Básica de Saúde. Eles ainda combinaram que uns ensinariam aos outros e que, a cada encontro, alguém com habilidade e vontade, ensinaria algo ao grupo.

Para esse encontro, uma das integrantes - que já desenvolvia trabalhos de artesanato como fonte de renda - ensinou o grupo a elaborar garrafas de vidros com folhas de revistas. Nessa atividade, as revistas foram picotadas e os participantes colaram os picotes na garrafa "sem deixar espaços entre as colagens", enfatizava ela. Em seguida, com acetona e pano, removeram o colorido das colagens das revistas até o tom que lhe agradassem, para poder passar o betume (coisas que nós profissionais da saúde nunca tínhamos ouvido falar). Todos participaram, e o aprendizado maior foi para nós, profissionais da saúde, que pudemos observar o diálogo de igual para igual entre o grupo, movimentando a autonomia, a coparticipação, o coletivo e o fazer saúde. Ali surgiam histórias e memórias.

Percebeu-se que, no processo de elaboração, criação e transformação por meio do artesanato, naquele momento da produção, não só o artesanato ganhava novas cores, mas também a vida de cada pessoa, confirmando que "quanto mais o ser humano cria, mais ele se abre para o outro e expande o seu ser no mundo, logo, amplia a sua vitalidade em significações em si e fora de si" (Ditrich, 2013, p. 3).

Junto ao grupo, surgiam também novos profissionais, com a possibilidade de perceber, na realidade da prática, a importância do trabalho multiprofissional horizontal, no qual os saberes são repassados entre todos, sem distinção, com ênfase na solidariedade, na cultura, nas experiências de vida, uns com diploma acadêmico, outros com diploma da vida.

Para o próximo encontro, o grupo pediu que continuássemos com os alongamentos, caminhadas e atividades físicas e que, na sequência, pudéssemos desenvolver alguma atividade, com o intuito de conversar e expressar sentimentos. Para tanto, a psicóloga perguntou ao grupo se todos gostariam de pintar mandalas, já com o objetivo de, através das pinturas, poder, em roda de conversa, apresentá-las e conversar. O grupo aceitou e muitas pessoas comentaram que adoravam pintar e perguntaram se ao final poderiam levar algumas mandalas em branco para pintar em casa.

O intuito de trabalhar com a pintura da mandala foi para realizar a solicitação do grupo de ter momentos de conversa, além de trazer ao grupo o significado da mandala, a qual significa "palavra do sânscrito que quer dizer círculo mágico, que é um importante símbolo do arquétipo do Si-mesmo, qualquer forma circular remede à ideia de totalidade, da restauração da harmonia e da cura psíquica" (Moura, 2016, p. 1156). Sendo assim, pintar as mandalas teve o objetivo de que cada um pudesse "transcender as suas vivências imediatas, experimentando novos sentimentos e disponibilizando-se para novas oportunidades" (Pontes, 2016, p. 6). Além disso, a pintura é também uma arteterapia que possibilita a reconstrução e a integração do ser.

Para essa atividade de pinturas das mandalas, foram dedicados dois encontros. Durante as pinturas, solicitou-se que os integrantes pintassem, tentando expressar sentimentos passados, presentes e desejos de realizações futuras; que prestassem atenção na música que estava tocando ao fundo e que pudessem viver o momento presente, cada um em seus pensamentos, fazendo suas buscas. Ao final das pinturas, todos sentaram em roda e cada um olhou seu desenho, escrevendo uma palavra atrás da folha que expressaria o que sentia ao olhá-la. Assim, passaram a pintura da mandala para o colega ao lado, que também olharia para a pintura do colega e escreveria uma palavra sobre si e sobre o que aquela pintura expressava em si mesmo. Foi enfatizado que a palavra se dirigia a si mesmo e não ao colega que pintou.

Esse momento foi muito bonito, pois ao fim todos haviam trocado experiências a partir da observação e troca das mandalas: cada uma expressava algo diferente ao ser olhada, ou seja, a mandala do outro expressava algo também sobre si, mostrando a cada um as dores e alegrias singulares, mas também plurais, coletivas, sociais... e que cada um tem suas experiências, seu jeito de sentir, sua forma de dor, seu sabor de alegria. Depois de todos terem escrito uma palavra de como se sentia ao olhar a pintura do colega, um a um foi contando ao grupo sobre a palavra inicial que havia escrito no verso de sua pintura e as palavras que o grupo havia escrito, e o que sentia sobre aquilo tudo que havia acontecido naquele momento.

Uma das falas que mais chamaram a atenção foi a de uma senhora que havia pintado com a cor amarela a maior parte de sua mandala e, em algumas partes, também pintou com a cor preta. Então, ela nos contou: "essa parte aqui amarela é a alegria que eu sinto de ter a memória de um vestido amarelo lindo que a minha mãe havia me dado de presente quando eu era criança, eu adorava aquele vestido, para mim, era a coisa mais linda". No entanto, "depois que eu fiquei maiorzinha e o vestido não cabia mais em mim, minha mãe doou ele a outra criança e eu lembro que chorei muito e senti muita tristeza, tal qual sinto até hoje, pois queria muito ter esse vestido comigo".

Esse movimento de criação, que trabalha os movimentos de interioridade e exterioridade, faz o ser humano desenvolver a capacidade de percepção de si, do outro e de elaboração e ressignificação de histórias e sentimentos. A percepção de grupo que se formou, a partir dessa interação e escuta respeitosa pela história de vida do outro, transcende o aprendizado sobre um trabalho arraigado no desejo de ser multiprofissional e de produzir saúde com um processo relacional e criativo. O trabalho criativo impulsiona o sentir-se em si e além de si mesmo, expande-se para o outro e se reconhece nele (o aquele, o aqui, o em si) que também ama, por isso tem desejos, tem sonhos, tem imaginações criativas legítimas que caracterizam a sua existência (Ditrich, 2013).

Ao fim desse encontro de pinturas das mandalas, a senhora que expressou sua história sobre o vestido amarelo foi até a psicóloga e disse: "sabe o que farei? Vou comprar um tecido amarelo bem lindo e mandar fazer um vestido amarelo para eu usar". Diante dessa fala, observa-se nessa participante sua riqueza de sentimentos ao perceber o quanto a atividade desenvolvida num coletivo conseguiu promover ressignificação e elaboração de sentimentos, pois ela conseguiu criar um novo final, abraçando e acolhendo sua criança interna, com a possibilidade de iniciar uma nova história com seu ser adulto de mãos dadas com sua criança.

 

Considerações Finais

A tentativa de desenvolver um trabalho multiprofissional refletindo um agir e pensar em saúde é uma manifestação e uma postura no cotidiano dos serviços de saúde. A dimensão relacional é primordial nesse processo, pois deixar-se afetar e permitir ser afetado é para aqueles que lutam e fazem dessa luta um ato de solidariedade.

Perceber que é possível desenvolver uma atividade que se proponha subverter modelos hegemônicos de trabalho - no qual a clínica individual fortemente influenciada pelo modelo biomédico predomina como única fonte de saúde - é libertador. Ao mesmo tempo, poder vivenciar outras formas de construir saúde, sem que precisemos medicalizar a vida, é sonho coletivo dos profissionais que participaram da conquista desse grupo de promoção da saúde.

Os desafios ainda são muitos, conseguir sair da caixa profissional individual para a coletiva nem sempre é fácil, são desconstruções diárias e, como diria, Deleuze e Guattari (2007), é necessário desterritorializar para reterritorializar, ou seja, é necessário desconstruir e reconstruir a todo instante, praticar a ação-reflexão-ação, que é a ação antiga ou atual praticada com reflexão, e nova ação, caso se note a necessidade de aprimoramento profissional e humano.

Dessa forma, entende-se que o trabalho multiprofissional pode sim desenvolver novas práticas de saúde e aqui, neste relato, isso se fez com um pouco de palavras, mas na prática isso se faz no dia a dia, na construção do afeto e do ser profissional em saúde coletiva, através de um grupo terapêutico, por exemplo, na qual se permitiu afetar e ser afetado e, assim, acredita-se que se conseguiu construir promoção de saúde, cuidado e respeito à vida.

 

Referências

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