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Revista de Psicologia da UNESP

On-line version ISSN 1984-9044

Rev. Psicol. UNESP vol.17 no.1 Assis Jan./June 2018

 

ARTIGOS

 

Clínica do consultório na rua: atenção à população em situação de rua no centro da cidade de São Paulo

 

 

Julia de Araujo Magalhães

 

 


RESUMO

Esse artigo apresenta a prática de duas equipes do Programa Consultório na Rua, que atende a população em situação de rua, no território do centro da cidade de São Paulo. Com essa prática, pretendemos investigar as dificuldades e inovações trazidas por esse fazer e problematizar a clínica que opera nesse contexto de desterritorialização. Realizamos uma cartografia, acompanhando os processos de trabalho desses profissionais e identificamos os saberes culturais e populares dos trabalhadores, assim como os aprendizados e conhecimentos adquiridos no cotidiano do trabalho. Ao mesmo tempo, nos aproximando da realidade do serviço, pudemos perceber a distância e diferenças entre a Portaria que define o Programa e o preparo das políticas. As separações da atenção em regiões administrativas, por exemplo, não levam em conta o território vivo que esses usuários habitam. A falta de formação, capacitação e cuidado aos trabalhadores acaba prejudicando sua atuação e atendimento. Os arranjos burocráticos, muitas vezes, podem nos distanciar da clínica. Concluímos que é necessário fortalecer a clínica da rua, sendo necessário resgatar a potência criativa dos trabalhadores, dar mais voz a eles e incluí-los na construção das políticas, a fim de garantir também a saúde do trabalhador.

Palavras-chave: Consultório na Rua, clínica, cartografia, território.


ABSTRACT

This article presents the practice of the "Consultório na Rua" Program - that assists homeless people in the streets of São Paulo, Brazil - and explore difficulties and innovations of this clinic. Therefore, we made a cartography accompanying the work proc ess of professionals of this Program and identified their knowledge, that where built on the practice of everyday. During the research we realized that there is a gap between theory and practice: the divisions in administrative regions don't take into acco unt the reality of the service and the lives assisted; the lack of preparation, training and taking care of professionals undermines the work; and the bureaucratic arrangements deviate the professionals from the clinic. We concluded that is necessary to fo rtify the clinic of the streets, listen to what the team has to say and include them in the construction of public politics, also to ensure the health of the worker.

Key words: clinic, cartography, territory.


 

 

Apresentação

Este artigo é fruto de uma pesquisa de mestrado realizada no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UNESP (Assis)1, na qual acompanhamos a prática de duas equipes do Programa Consultório na Rua2 (eCR), que opera no território, referenciadas em uma Unidade Básica de Saúde (UBS) no centro da cidade de São Paulo, em uma região com grande número de pessoas vivendo na rua e grande concentração comercial. Cada equipe é composta por 1 médico, 2 enfermeiras, 1 assistente social e 2 agentes sociais, além de 6 agentes de saúde3. Participamos das reuniões de ambas as equipes, estivemos presentes e ao lado das agentes em vários momentos de acolhimento (para receber os usuários na porta de entrada da Unidade) e realizamos saídas para diversas regiões sempre com profissionais. O material das entrevistas e das observações realizadas foi anotado em um diário de campo e analisado com o objetivo de identificar tanto as inovações trazidas por esse fazer, quanto as dificuldades encontradas no caminho, além de problematizar a clínica que opera nesse contexto. Nas narrativas e descrições, foram analisados os seguintes eixos: acolher a multiplicidade; construindo coletivos; processos de trabalho; (des)articulações intersetoriais; e território vivo da saúde.

Um dos alicerces no qual se baseia o Programa Consultório na Rua é o atendimento in loco. É um dispositivo de atenção e cuidado em saúde e saúde mental, que, interligado em rede com outros serviços de saúde, provoca uma intervenção no território, na própria política voltada para a população em situação de rua e na rede de relações dos usuários, promovendo uma atuação não apenas na esfera individual. Podemos afirmar que essa forma de atuação demanda outra clínica, na qual as funções dos profissionais da saúde são ampliadas e flexibilizadas. O lugar onde eles atuam é modificado: não é mais no interior das instituições e dos consultórios com seus jalecos, mas na imprevisibilidade da rua. Surge uma questão essencial: como manter sua identidade nos mais diferentes espaços? Como manter-se profissional da saúde quando a demanda é por um banho ou uma muda de roupa?

Como Lancetti (2009) afirma, esta é uma clínica praticada em movimento, fora dos settings tradicionais e dos espaços de reclusão convencionais. Uma nomadização da clínica, que inaugura outras formas de engate terapêutico e outras conexões com os fluxos da cidade e da cultura.

Assim, o trabalho clínico exercido pela equipe do eCR, pauta-se por uma outra clínica, uma clínica nômade (Rolnik, 1997). Trata-se de uma clínica coletiva, multiprofissional e transdisciplinar, que procura oferecer atenção integral aos usuários, olhando o sujeito como um todo. Dessa forma, os trabalhadores do eCR têm que se adaptar às mais diversas demandas, entrando em contato com a vida, nos atendimentos na rua.

O presente artigo busca discorrer sobre os desafios da construção dessa clínica, na rotina do processo de trabalho das equipes e no enfrentamento das contradições entre a prática e o proposto pela portaria.

 

Acolher a multiplicidade

No eCR há um momento de recepção que é nomeado de acolhimento inspirado no dispositivo do Acolhimento da Política Nacional de Humanização (Brasil, 2010). Neste momento, duas agentes (sendo uma de cada equipe) são escaladas para receber as pessoas que chegam à unidade, a fim de identificar as necessidades de cada usuário. Por exemplo, alguns têm consultas marcadas, que podem ser internas ou externas (e podem necessitar de acompanhamento); alguns chegam por uma demanda espontânea ou alguma emergência, cujo grau de urgência precisa ser identificado para pensar a resposta adequada à situação; outros vêm retirar medicação, semanal ou diariamente (outros ainda não conseguem se organizar para isso, então as agentes precisam levar os remédios), entre outros.

A equipe do eCR trabalha para acolher a população com as mais diversas demandas. Como porta de entrada do sistema de saúde, muitas coisas aparecem nesse espaço, e os profissionais têm de estar preparados para o inesperado. Às vezes aparecem questões emocionais, das relações na rua e de violência. Como uma usuária que chega brava, gritando e brigando com as agentes de saúde que não entendem o motivo de ela estar assim. Ou outra ocasião, em que apareceu um usuário que tinha tomado uma facada de outro usário que também é conhecido pelas pessoas do serviço. Em relação à imprevisibilidade presente nesse trabalho, Londero, Ceccim e Bilibio (2014, p. 6) afirmam:

Num certo sentido, este desafio está colocado para todo e qualquer serviço de saúde, porém, estas exigências, na rua, parecem impor-se de forma intensa, persistente e inusitada. A falta de paredes. A não presença da mesa. O encontro em locais moventes. A luz do sol, o vento, o frio, o calor. A sujeira, o forte odor. A conversa sobre saúde em roda de uso de drogas. O medo da polícia e da chuva. Estranhas sensações, intempestivas alegrias.

As agentes de saúde parecem habituadas com a variedade e gravidade das situações que acontecem e respondem muitas vezes por meio da improvisação, sustentando-se no trabalho em equipe e na articulação com a rede externa.

 

Construindo coletivos

As reuniões de cada equipe são semanais, com duração de duas horas, aproximadamente. Todos os integrantes da equipe participam. Essas reuniões são importantes para a construção da grupalidade no interior da equipe e possibilitam conversas sobre temas relacionados ao trabalho, especialmente, sobre os casos atendidos. Quinzenalmente ocorre um encontro para discussão de temas, intercalando com as discussões de caso, que acabam predominando nas reuniões. Também quinzenalmente um profissional do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) participa da reunião.

As equipes apresentaram dinâmicas muito diferentes, o que demonstra certa liberdade dos profissionais em relação ao exercício de sua função, mas, ao mesmo tempo, indica a ausência de acompanhamento dos processos do trabalho.

Para organização do trabalho, o território é dividido em micro áreas, que ficam sob a responsabilidade de cada agente de saúde. Na reunião de uma das equipes, os integrantes discutem os casos atendidos pelas agentes de saúde de referência e pelas agentes sociais, que também acompanham os mesmos usuários, de acordo com os papéis de encaminhamento e marcação de consulta, e prontuários, que estão nas mãos da enfermeira - é ela quem coordena o encontro. Esse é o momento em que os integrantes da equipe ficam sabendo dos casos. Fica evidente uma certa autoridade médica, pelo lugar que essa profissional ocupa, atrás da mesa, e por sua postura ao longo da reunião. Mas as agentes enfrentam, discordam, discutem, debatem, demonstrando como se apropriam de seu cargo e de sua função.

O processo de afirmação das agentes de saúde em relação ao seu papel provoca um movimento em direção a sair da lógica medicamentosa e médico-centrada. Segundo Dimenstein (2005), a Estratégia Saúde da Família (ESF), inserida na Atenção Básica, tem como uma das propostas descentralizar a relação médico-paciente em proveito da relação usuário-equipe. No entanto, sua integração

[...] com as políticas de saúde mental, [...], implica também transformações profundas nas práticas de saúde institucionalizadas. A lógica dos 'especialismos', ainda muitoarraigada à cultura médico-hospitalocêntrica, encontrada entre os técnicos e mesmo entre a população usuária, dificulta a implementação de novas formas de cuidado. (Dimestein, 2005, p. 26).

A equipe discute por volta de 30 casos em cada reunião, apenas acompanhando alguns, e se aprofundando mais em outros. Surgem principalmente casos de ausências em consultas marcadas e necessidade de fazer exames. Identificamos também muitas falas sobre pessoas que mudaram de território. Assim, o grande desafio não é somente realizar o trabalho no território, mas realizá-lo considerando esses contextos de desterritorialização4.

Já na reunião da outra equipe, que ocorre num espaço externo à UBS para evitar interrupções, percebemos um jeito mais dinâmico. Todos levaram pautas e falavam com mais detalhes sobre os pacientes que apresentavam alguma demanda específica. As pessoas ocupavam posições horizontais e as relações eram próximas. O médico dessa equipe é novo no trabalho, fato que talvez esteja relacionado ao clima acolhedor gerado por parte de todos os integrantes, que escutavam e valorizavam as contribuições dos outros.

Quando há casos mais desafiadores, os trabalhadores são orientados por outros profissionais. Em um dos encontros, contaram de uma usuária com demandas de saúde mental que ficava no Terminal Bandeira. Segundo as agentes de saúde, tiveram bastante dificuldade em acessá-la, pois era muito sozinha e "xingava" todos que se aproximam. Também parecia apresentar delírios, pois falava de um marido que ninguém havia visto, entre outras coisas. As agentes trocavam informações, tentando compor à história dela. Elas dizem: "nós não duvidamos dela, quando ela fala do seu marido, nós perguntamos dele, damos continuidade à conversa". Essa fala demonstra uma delicadeza na escuta adquirida e construída no cotidiano de trabalho. Relataram ainda sobre um dia que era aniversário dessa moradora, e, como estratégia de aproximação, as agentes levaram um bolo para comemorar, e isso a deixou muito feliz - "talvez porque ela nunca teve isso, ou pelo menos fazia muito tempo que não acontecia". Essa cena revela uma invenção clínica que modificou a relação dessa usuária com os profissionais e com o sistema de saúde, possibilitando uma construção gradual do vínculo de confiança.

No acompanhamento e observação das reuniões, percebemos a estrutura dessas reuniões e a variedade dos temas abordados. Evidenciaram-se ainda questões que se referem às relações de poder, aos processos de trabalho e também a elementos relativos à articulação com outros serviços5. De todo modo, ficou evidente que a reunião é um espaço essencial para esse tipo de trabalho, para oferecer suporte e sustentação às atuações, na forma de apoio e reconhecimento para que as agentes possam continuar a realizar o trabalho que fazem. Trata-se ainda de um lugar para explicitar diferenças e divergências, embora marcado pelas relações de poder.

 

Processos de Trabalho

Em certa ocasião, uma agente contou sobre um usuário:
"Outro dia, ele perguntou pra mim:
- Você tá com medo, né?
- Que isso, medo de quê?
- Você tá com medo..."

Um dos alicerces no qual se baseia a atuação do eCR é o atendimento in loco. Enquanto as agentes de saúde vão para a rua quase todo dia, os médicos acabam fazendo aproximadamente três saídas por mês. Aconteceram discussões em relação a isso e, para exemplificar, vou relatar uma situação ocorrida em uma reunião de equipe com os diferentes profissionais.

O grupo estava falando de uma parte da cracolândia, onde o reforço do policiamento provocou muitas mudanças. "A gente não conhece mais os pacientes que estão lá". A agente que cuida da região propôs que eles colhessem o sangue lá no território, na perua, já que muitos eram novos. Surgiram divergências com o profissional da medicina, que falou do risco, por conta da alta concentração de usuários de drogas e traficantes; da vulnerabilidade na "Kombi"; e reclamou de condições inadequadas de atendimento: "porque atendendo no meio do barulho, eu tenho que ficar gritando, todo mundo ouvindo, não dá!". Contou histórias de momentos em que se expôs a situações desse tipo, e disse que não fará isso de novo, exigindo que se criassem condições melhores de atendimento e segurança. E continuou falando de seu "pavor", que só se sente segura se ficar sentada do lado da polícia, "mas aí ninguém vai" contra-argumentam as agentes. A agente ainda contesta: "Imagina eu! Indo lá todo dia...", colocando-se numa posição de horizontalidade enquanto profissional da saúde, e negando a estrutura hierárquica estabelecida dentro da equipe.6

Mesmo considerando que a formação em medicina, de forma geral, não prioriza a preparação para esse outro modo de exercer a prática médica, essa fala evidencia uma atuação mais rígida com pouca adaptação a essa forma de atendimento. Mas, ao mesmo tempo, denuncia a falta de condições adequadas de trabalho e reflete algo que muitos sentem, mas poucos conseguem falar e expressar: o medo.

Prossegue a cena:

[...] a enfermeira, então, sugeriu que as visitas fossem intensificadas, possivelmente diárias, "pra gente conhecer mais eles, eles conhecerem mais a gente", e depois realizar a coleta de sangue, fazendo uma ponte entre as agentes e o outro profissional. "Temos que perceber e anotar como é o movimento ali nos diferentes horários. Comércio, base comunitária, etc.", explicou. Além disso, trouxe a ideia de marcar uma reunião com o pessoal do CR de lá e conversar para saber do histórico de saúde de cada um deles, para não precisar refazer o que já foi feito. Em seguida, uma agente de saúde se disponibilizou a ir com a agente de referência por ter já trabalhado durante três anos na craco (modo como elas se referem à cracolândia) e ter um vínculo estabelecido com alguns usuários. Outras agentes e a enfermeira também se colocam à disposição para ajudá-la.

Isso demonstra uma rede de sustentação que a equipe promove, mas da qual esse profissional, médico, parece não fazer parte. Há um modo de operar que reproduz o processo de trabalho hegemônico da saúde no qual prepondera a figura do médico em torno da qual as outras profissões ficam secundárias. As relações verticalizadas afastam as pessoas, que vão ficando cada vez mais solitárias no seu ofício, e são reproduzidas nos atendimentos.

Em outro momento, falam de um caso que requer internação em Campos do Jordão, e o mesmo profissional se irrita com o paciente: "Não pode ser tudo do jeito que ele quer. Ele nunca vem nas consultas marcadas, ele quer tudo no tempo dele".A visão de que o usuário deve cumprir o estabelecido pela equipe, e de que eles são responsáveis pelas falhas do programa, leva-nos a questionar: será possível estabelecer um vínculo enquanto o trabalhador necessitar da obediência do usuário? Ao concebermos o usuário como sujeito, esse deve ser autônomo e pode julgar quais as orientações que irá ou não respeitar (Schimith; Lima, 2004). Londero, Ceccim e Bilibio (2014, p. 8) apresentam questionamentos interessantes sobre esse ponto:

Será que os objetivos do CR em oferecer um serviço de cuidado em saúde inclusivo são compatíveis com o querer do usuário (o "seu" não morrer)? E se ele quiser apenas ser importante para alguém (o "seu" estar vivo), ele terá de ficar participando de ações que não quer? Esta é a única maneira de conseguir certa atenção? Até quando? E, se não atender as expectativas da equipe de saúde, o usuário será deixado de lado porque não cumpre as combinações sobre o cuidado (então pode/deve morrer)?

Por fim, há o caso de um sujeito que parou de tomar medicamento porque disse que não estava tendo tempo de beber, porque dormia muito, e "agora tá fugindo de nós", completa a agente. Na defensiva, o profissional da medicina explica que não foi erro de medicação, ele queria parar e agora diz que quer morrer bebendo e fumando maconha, "e parece que vai atingir seu objetivo" complementa em tom raivoso.

Esse profissional específico está nesse trabalho desde 2010, e antes trabalhava na cracolândia. A partir da perspectiva da análise dos processos de trabalho, pode-se pensar que a tensão gerada pela falta de segurança a que estão expostos esses profissionais diariamente acaba prejudicando a disponibilidade interna deles para esse tipo de trabalho. Além disso, as dificuldades que aparecem no cotidiano são potencializadas por não existirem outros espaços para que os profissionais possam falar e cuidar dessas questões. Já o profissional da medicina da outra equipe7, atua de forma diferente.

Em relação a um sujeito que toma um remédio que dá sonolência mas não tem autonomia ainda para tomá-lo sozinho, a agente pergunta para o médico: "O remédio tem que ser dado à noite? Pois a agente responsável sai às 17 horas, acho que ela quer dar a medicação porque o paciente é dela, mas outras duas agentes podem entregar às 18 horas". Ao que uma outra agente contrapõe, discordando: "Não, o paciente não é dela, o paciente é da equipe". O médico diz que o remédio dopa, mas tudo bem dar um pouco mais cedo; o que temos que ver é a real necessidade de tomar e continuar tomando, "então devemos marcar consulta e realizar exames de sangue". Isso demonstra uma abertura da prática médica à população em questão.

No caso da condição de trabalho das agentes, essas situações somam-se aos baixos salários. Embora esses profissionais não tenham formação superior específica na área da saúde, eles são fundamentais para essa prática.

Esse estado instituinte favoreceu a formação de equipes onde o agente comunitário de saúde não se transformou num subordinado do médico. Quanto ensinamos e quanto aprendemos com agentes comunitários de saúde! A regra fundamental do funcionamento das equipes é fazer circular o saber - tanto o técnico e o científico, como o cultural e o popular. (Lancetti, 2009, p. 92).

Nas palavras das agentes de saúde, surgem muitas frustrações relacionadas ao trabalho, pelo fato de elas considerarem que ele só é bem-sucedido quando conseguem retirar o sujeito da rua, com um possível retorno para a família. Para elas, todo o resto é fracasso. Por exemplo, no relato sobre um sujeito com questões de saúde mental, em que é possível verificar que tiveram várias conquistas, que elas não reconhecem e continuam frustradas. No início, ele era muito agressivo, violento e pouco sociável, estava sempre sozinho e não queria contato com profissionais da saúde. A aproximação inicial das agentes teve que ser feita sem o uniforme de identificação da prefeitura, pois ele tinha muito preconceito em relação às políticas públicas. Primeiro elas foram criando um vínculo e, posteriormente, começaram a associar a própria imagem ao serviço público com o uso dos coletes dos profissionais de saúde. Atualmente, ele toma medicação psiquiátrica diariamente e está inserido no laço social, tanto com as agentes quanto com outros moradores de rua, "mas ele não quer sair da rua por causa dos seus gatos", complementam as agentes, em tom decepcionado. Aparecem falas preocupadas em relação ao seu local de moradia, pois ele está ficando velho e, tomando remédios psiquiátricos, pode cair em decorrência dos efeitos colaterais da medicação. Mas o modo como falam dessa localidade, demonstra também certo preconceito: Como alguém pode morar num lugar desses e estar bem?

De onde vem essa ideia de que a resolutividade está em voltar para casa? Lembrando Foucault (1982), na biopolítica, o controle incide na própria produção de subjetividade, resultando em padronização dos processos e dos sujeitos. Ou seja, está no imaginário social a ideia de que as pessoas devem se fixar, morar em casas; é um pensamento moral e normatizante, que não comporta a singularidade desse modo de vida, possivelmente mais livre e coletivo.

Por mais que existam tais pensamentos, as agentes ainda conseguem se aproximar verdadeiramente dessa população. Para ilustrar a importância e, ao mesmo tempo, a dificuldade de escutá-los, cito um exemplo de um homem que estava hospitalizado, não estava comendo, e recebeu o diagnóstico de falta de apetite. Nesses casos, as agentes acompanham o processo para manter o vínculo e quando elas foram conversar com ele entenderam que ele achava que era comida demais, pois não está acostumado com isso na rua: "eles querem que eu tome café da manhã, almoce, lanche e jante, é muito" disse.

Podemos pensar que faz parte essencial do processo de trabalho das eCR, aqui ilustrado pelo fazer das agentes, ativar os territórios existenciais nos encontros que vão se produzindo cotidianamente. Isso é radicalmente distinto de realizar as ações reproduzindo um modelo de saúde em que apenas o saber sobre um corpo doente importa.

 

(Des)Articulações intersetoriais

Há uma grande necessidade de articulação intersetorial. As agentes de saúde falam principalmente da construção de projetos e de um trabalho em rede com as Secretarias de Trabalho e de Habitação. Segundo elas, as políticas estão mal colocadas e mal direcionadas, pois não há porta de saída. E perguntam ainda: "Cadê a lei que não funciona pra essas crianças que estão na rua, quando, por exemplo, o conselho tutelar não vem buscar as crianças em situação de rua?".

Além disso, é preciso ressaltar a importância da articulação intersetorial para que os outros setores possam compreender melhor o trabalho do CR. A esse respeito, houve um episódio em que a urbanização fez uma "limpa" na casa de um morador atendido por elas, e isso afetou a relação dele com o serviço. "Pra ele, é tudo a mesma coisa" disseram, "e a gente caminha na contramão das outras intervenções públicas". Por isso essas intervenções e abordagens deveriam ser pensadas conjuntamente.

Ao mesmo tempo, há parcerias fortes com outros equipamentos da saúde e da assistência social, o que possibilita que realizem encaminhamentos e possam garantir vagas.

No caso da Assistência Social, os principais parceiros são os Centros de Convivência e os Albergues. Para conseguir vaga fixa em albergue, o usuário deve começar com pernoite, para que a instituição possa avaliar sua permanência. Em albergues de outras regiões, o contato é feito pelo Centro de Referência Especializado em Assistência Social (CREAS). Já em relação às vagas em Hotel Social, estas são ainda mais difíceis de conseguir. Novamente, primeiro entra no regime de pernoite, havendo permanência, o usuário é encaminhado. Mas há uma regra no Hotel Social: é preciso trabalhar.

A esse respeito, em certo momento no acolhimento, uma usuária, sentada na cadeira, após um banho, conversa afirmando a importância de estabelecer um lar próprio. Falando sobre o trabalho de reciclagem e as possibilidades de moradia, diz que desistiu de albergue, porque aí tem que começar com pernoite e considerava ruim não ter a garantia de dormir sempre no mesmo lugar; na rua, ela já tem o seu canto.

No caso da rede de saúde, quando os usuários mudam de território, a equipe faz um contato com a Unidade que os atendia anteriormente, para que não seja necessário repetir nenhum procedimento; ou eles encaminham para dar continuidade ao tratamento em outro local.

Outras vezes, os usuários continuam sendo atendidos por eles, e o encaminhamento é para algum serviço especializado. No entanto, os equipamentos de saúde frequentemente não facilitam a construção dessa rede, por preconceito ou por seus funcionamentos burocráticos, e a fragilidade da rede pode prejudicar o vínculo que os usuários estão estabelecendo com os profissionais do serviço. Além disso, as dificuldades encontradas na construção do trabalho em rede acabam prejudicando ainda mais sua consolidação, pois, em alguns momentos, os profissionais pareciam desgastados também para investir num diálogo institucional.

Por exemplo, quando se trata de marcar consulta externa, segundo as agentes, muitas vezes a demora atrapalha o processo de cuidado em andamento. Contaram de um paciente que demorou muito para se vincular com as agentes e com o serviço. Quando ele já estava construindo uma relação de confiança, a agente foi acompanhá-lo a uma consulta que tinham marcado, só que eles esperaram por mais de duas horas e o médico acabou não indo. "Ele ficou muito bravo" disse a agente, "e com razão", acrescentou. Disse que o médico o tinha desrespeitado, que ele tem outras coisas para fazer, que os seus gatos não podem ficar sozinhos... e essa raiva estava também voltada para a agente: "você me enganou!" - ele não conseguia entender que o erro não tinha sido dela. Isso acabou prejudicando a relação dele com os trabalhadores da saúde como um todo, e agora estão tendo que reconstruir essa confiança passo a passo.

Ao mesmo tempo, a rede vai sendo construída pelos casos:

Certa ocasião realizamos uma saída conjunta com profissionais do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) para um lugar com alguns moradores fixos em frente ao prédio da Secretaria Municipal de Saúde. Havia uma proposta de construir uma oficina de futebol para eles e organizar a Copa da Inclusão. Chegando lá encontramos três travestis, uma delas disse que não gostam de futebol, e propôs vôlei. As outras concordaram. Os profissionais do CAPS (um redutor de danos e um educador físico) juntamente com as agentes aceitaram a ideia e começaram a pensar: "precisamos achar um espaço, talvez em uma escola...".

Além disso, lá encontramos dois homens com diferentes questões de saúde mental e resistentes ao tratamento que aos poucos foram se abrindo a partir de estratégias realizadas e pensadas conjuntamente, como o modo como eles chegam, se abaixam, ficam de cócoras para se aproximar, o tom acolhedor da conversa e a possibilidade de combinar um dia que o carro da prefeitura possa levá-los para conhecer o CAPS.

Um trabalho complexo como esse do eCR demanda uma forte articulação de múltiplas ações em diferentes setores. Trata-se aqui de construir projetos de vida para pessoas que habitam as ruas e pouco ou nada tem. Contudo, esse imperativo que emerge do processo de trabalho, muitas vezes perde-se nas desarticulações.

 

Território vivo da Saúde

[...] no atravessamento do território geográfico com o território existencial somos obrigados a fabricar mundos (Lancetti, 2009, p.109)

Voltando nosso olhar para o trabalho nas ruas, pensamos que a proposta do Consultório na Rua faz que o serviço saia da instituição, e se encontre com a vida e sua complexidade. As saídas são sempre realizadas com uma demanda definida, seja cadastrar novos usuários, seja acompanhar algum usuário ou grupo específico, mas aparecem muitas coisas que escapam ao serviço, pois não há como dar conta de toda essa complexidade, mas há um rastro de uma tentativa do controle da vida dos usuários. Essa é a contradição e o paradoxo dessa estratégia. Os profissionais e os pesquisadores estão nessa encruzilhada: entrar em contato com isso, produz marcas que ficam no seu corpo.

Em outra saída, encontramos uma mulher que estava grávida e não estava fazendo pré-natal. Na reunião, a agente falou sobre ela: tem 31 anos, oito filhos (todos abrigados), e a gestação está com 33 semanas. Quando chamada para ir à Unidade, disse: "Ah tia... eu vou, mas hoje não, vou segunda-feira". Iria tomar banho e injeção. Diz que o companheiro irá com ela. Estão juntos há um ano e meio, mas os profissionais não têm certeza se ele é o pai. O médico deixa as receitas no prontuário e também o pedido para colher sangue para fazer o exame. Como ela não aceita nenhum tratamento para ela, a enfermeira sugere que falem de escutar o coração do bebê, como estratégia para trazê-la, pois o foco de sua atenção está voltado para o bebê. E diz, preocupada: "Teremos problema no pós-parto, porque ela não sai da maternidade com o bebê, e ela quer porque ela acha que esse filho vai segurar o marido que está com ela agora".

Essa frase da enfermeira revela uma decisão sobre a qual têm conhecimento, mas não alcance para interferir, pois algumas atuações não serão responsabilidade deles, mesmo sendo o serviço mais próximo da usuária. Os profissionais parecem angustiados em relação a esse tipo de encaminhamento, pois é difícil saber que a mãe vai ser separada do seu filho e não poder fazer nada, por causa da sua posição. A pesquisadora também entrou em contato com isso, não só pelos relatos, mas no seu corpo.

Esses momentos de saídas do CR estão presentes na proposta de atendimento in loco, associado ao princípio de responsabilidade territorial do SUS. No entanto, é importante ressaltar que esse trabalho não se define somente pelo fato de os profissionais estarem nas ruas, o que, por si só, não garante uma escuta aos usuários e suas diferentes necessidades. Nas palavras de Rolnik (1997, p. 95) é preciso estar atento, para o fato:

Deslocar-se concretamente [...] em nada garante uma sensibilidade ao fora como nascente de linhas de tempo e, menos ainda, uma capacidade de acolher a dor da desestabilização que o surgimento de tais linhas provoca. [...] é prudente precaver-se do perigo de constituir na rua [...] um novo dentro absolutizado, uma nova insensibilidade às reverberações das diferenças que se engendram no fora da subjetividade. Perigo de parar de nomadizar no tempo e de sedentarizar-se numa nova seção do supermercado de saúde mental, para a infelicidade de nossos pacientes e de nós mesmos.

Entendemos que a clínica do eCR está pautada na ideia de saúde, em contraposição à ideia de normalidade. Centrada nos percursos e nas conexões, o atendimento também volta seu olhar para a diferença e assume um posicionamento político em relação às desigualdades de oportunidades, ao mesmo tempo que luta contra a produção homogeneizante de subjetividades.

No caso da população que habita as ruas da cidade, a atenção à saúde precisa levar em conta que não está enraizada em um território específico. Isso torna a questão ainda mais complexa: são pessoas com grande mobilidade que os serviços precisam acompanhar em sua movimentação e modos de vida. Enquanto isso não for feito, elas ficam realmente desassistidos em vários momentos.

Como vimos, a fragilidade da rede potencializa essas dificuldades; razão pela qual as ações da saúde precisam fortalecer a articulação intersetorial, pois não há produção de saúde sem educação, sem trabalho, ou sem cultura.

Um exemplo de deslocamento foi o de uma usuária do CAPS que mudou de lugar, eles entenderam como resistência o fato de ela não estar mais indo aos serviços e quando as agentes foram conversar com ela, ela disse: "Tô passeando, eu sou assim, eu gosto de passear". O pessoal do CAPS ficou de se organizar para procurá-la.

Nômades, errantes, por vezes dormindo cada dia em um lugar, essas pessoas acabam carregando seu território em seu corpo. É necessário considerar que o setor saúde tem pouca experiência no atendimento a essa população específica, pois até pouco tempo atrás ainda se exigia documentos e comprovantes de residência para realizar o cadastro nas UBS. O trabalho de abordagem nas ruas é relativamente novo, e o Consultório na Rua está em processo de implementação. Os profissionais desse campo sentem a necessidade de reinventar sua prática no contato com essa outra forma de organização da vida.

Em determinado trajeto, a enfermeira, olhando a rua, foi contando que aquele território tinha sido de sua equipe, mas depois foi alterado, passando para outra unidade. Mudança autoritária, vinda de cima para baixo, que desconsiderou a realidade do serviço. Então as agentes não podiam mais passar ali a pé, vestidas com o uniforme da saúde, porque eram abordadas com demandas, as pessoas perguntavam por que não íam mais lá; "eu quero ser atendido por você", diziam, pedindo para marcar consultas ou outros atendimentos. E elas não podiam mais responder por esses usuários. A agente, que já estava há oito anos no serviço, sentia isso mais ainda, pois tinha construído um vínculo forte e longo com aquelas pessoas. "Como eu posso dizer pra eles que agora não sou mais eu que atendo eles?" - questionava.

O esquizo está presente e ausente simultaneamente, ele está na tua frente e ao mesmo tempo te escapa, sempre está dentro e fora, da conversa, da família, da cidade, da economia, da cultura, da linguagem... Ele ocupa um território mas ao mesmo tempo o desmancha, dificilmente ele entra em confronto direto com aquilo que recusa, não aceita a dialética da oposição, que sabe submetida de antemão ao campo do adversário, por isso ele desliza, escorrega, recusa o jogo ou subverte-lhe o sentido, corrói o próprio campo e assim resiste às injunções dominantes. O nômade, como o esquizo, é o desterritorializado por excelência, aquele que foge e faz tudo fugir. (Pelbart, 2003, p. 34)

Às vezes, essa desterritorialização, se reterritorializa em territórios mínimos, efêmeros, e por vezes paradoxais, quando se faz da própria desterritorialização um território subjetivo (Pelbart, 2003). Esses processos de desterritorialização podem ser pensados também como processos de resistência que engendram novas territorialidades pois, como sugere Deleuze (1992), o território é o lugar do controle.

Mesmo assim, é preciso construir um mínimo de contorno, que possa funcionar como ancoragem e proteção contra o caos. As marcas da vida e da história de cada um vão constituindo essa ancoragem. E, ao mesmo tempo, essa forma estabelecida é percorrida por movimentos de saída e de fuga do instituído.

Lima e Yasui (2014) propõem que "trata-se, então, de acompanhar, cuidar e investir em movimentos de reterritorilização, para que estes possam operar a criação de uma nova terra na qual seja possível traçar linhas de vida. É preciso sustentar a construção de territórios existenciais, mesmo que efêmeros e nômades, que possam se abrir, estabelecendo relações com outras vidas e com outros mundos". É importante ressaltar que esses territórios não coincidem necessariamente com aqueles circunscritos pelos serviços e podem constituir vetores de enfrentamento a certas lógicas enrijecidas.

Portanto, território, tal como estamos trabalhando aqui, é diferente de região administrativa, ou seja, da delimitação geográfica sobre a qual um determinado serviço se torna responsável, devendo atender às pessoas que habitam aquele local. Território é o lugar onde as pessoas vivem e que as pessoas ocupam. Desse modo, esse conceito não é compreendido só como espaço físico, mas como um território existencial, pois a concepção de território considera o modo como a vida transita em determinado local e as marcas que deixa, culturais, históricas, etc (Lima; Yasui, 2014). Assim, a saúde deve responder a um território vivo e flutuante, uma vez que compreendemos que as pessoas irão cruzar as fronteiras geográficas.

Desse modo, organizar um serviço territorial que opere segundo a lógica do SUS é escutar a vida que pulsa nesse lugar. Pensar na organização da atenção em uma cidade é mapear os distintos territórios, com suas histórias sociais, políticas e econômicas de ocupação e uso dos espaços, que determinam os lugares e as formas de acesso, incluindo os territórios de trânsito.

O acompanhamento no território da cidade para as pessoas em situação de rua, se institui no entre, no meio, no deslocamento, no trânsito. Ou seja, estamos nos referindo à construção de uma morada, que pode emergir da circulação e dos deslocamentos; de um "sentir-se em casa" (Guattari; Rolnik, 2005, p. 323), levando em conta que há muitos modos possíveis de viver e estar e até debaixo de uma ponte se criam territórios. Nós, profissionais da saúde, precisamos experimentar formas de acolhimento desses jeitos singulares de viver a cidade. Trata-se de uma invenção cotidiana de como construir e se relacionar com isso, de criar novos territórios e agenciamentos, de viver e suportar a territorialização e a desterritorialização, continuamente.

O deslocamento, além daquele que os usuários fazem no espaço, é também o de uma clínica centrada no sintoma, para uma clínica inserida em processos de produção de saúde e de subjetividade voltados para a criação de novos territórios e sentidos. Isso exige ampliar o nosso olhar sobre o território para além dos movimentos no espaço físico e, a partir dos modos de vida que estão sendo produzidos, pensar qual clínica pode ser realizada. As ações dos serviços devem se pautar em uma concepção do território que inclui as vidas que passam, mas não se estabelecem, com porosidade.

No entanto, a Portaria é diferente da prática, as alterações institucionais passam muitas vezes por cima dos vínculos estabelecidos. "Ninguém pergunta pra nós", repetem as agentes, enquanto falam do problema de quebra de vínculo; "muda tudo, passa o prontuário pra colega, como se fosse assim, só isso. Isso nos desmotiva". É a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) e a prefeitura que determinam as regiões e, segundo afirmam as agentes, essas divisões são alteradas inúmeras vezes.

Se desconsiderarmos as pessoas, estaremos olhando para o mapa e não para as relações. Dessa forma, os arranjos administrativos vão nos distanciando da clínica. A máquina burocrática a que todos os serviços de saúde estão submetidos vai distanciando, cada vez mais, os profissionais do raciocínio clínico e enrijecendo suas ações. E a rua evidencia isso e nos possibilita perceber um processo de maquinaria, de dessensibilização, de anestesiamento ao sofrimento do outro. A burocratização dos serviços serve como anteparo do profissional em relação às dores dos usuários.

No caminho, estávamos passando por um lugar pelo qual as agentes tinham deixado de ser responsáveis. Uma usuária reconhece a agente e pede ajuda pois estava com muita dor. Nesse momento, a agente tenta explicar a mudança e as ordens burocráticas, mas ela não lhe dá ouvidos. Está com muita dor. Então, a agente diz pra ela se sentar ali e esperar enquanto ela vai chamar alguém que responde por aquela região. Porém, ela vai embora sem fazer nada porque ela não se sente mais responsável pelo cuidado das pessoas daquele local.

O processo do trabalho em saúde, por sua natureza, coloca-se entre responder a certas exigências administrativas e, ao mesmo tempo, esforçar-se para flexibilizá-las ao contato com a realidade dos territórios. Para isso, é necessário resgatar a potência criativa do trabalhador, buscando soluções para os casos e maneiras de contornar essas barreiras.

Num contexto de desterritorialização generalizada, procura-se inventar linhas de fuga e investir nas existentes, na direção de outras possibilidades de subjetivação, também buscando estratégias e lugares estabelecidos para se proteger. Assim, fazer clínica nessas condições implica olhar para as subjetividades - dos usuários, dos profissionais e dos pesquisadores - que são constantemente atravessadas por inúmeras sensações.

 

Considerações finais

Com essa pesquisa, identificamos no programa do Consultório na Rua forças de construção de autonomia e empoderamento dos sujeitos e, ao mesmo tempo, forças de controle e exclusão, em permanente embate. Há linhas de submetimento e padronização, como a ideia de voltar para casa e para as famílias, mas percebemos também escutas verdadeiras desses sujeitos, que caminham em direção à construção de vidas autônomas e inventivas e à participação social emancipatória. Nesse sentido, encontramos tanto perigo quanto oportunidades.

Alguns conceitos trabalhados nessa pesquisa são polissêmicos, e as pessoas os têm usado em sentidos variados, sem atentar para eles. Por exemplo, pudemos perceber que as agentes falam do Acolhimento com o sentido de recepção, mas demonstram também um cuidado para ouvir e perceber a real necessidade do sujeito e responder a ela. Do mesmo modo, elas utilizam Território para se referir a um espaço físico ou região administrativa, mas se aproximam do conceito de território existencial quando questionam as transformações que não acompanham a vida que habita aquele lugar.

Como o trabalho da equipe do CR, e mais especificamente o trabalho das Agentes de Saúde, é um trabalho clínico, em que as funções dos profissionais da saúde são colocadas em questão cotidianamente, impondo uma necessária e constante reflexão e mudança. Seu lócus é a imprevisibilidade da rua. E para oferecer uma atenção integral aos usuários, olhando o sujeito como um todo, deve adaptar-se às mais diversas demandas, em contato com a vida, nos atendimentos nas calçadas, nos banhos e nas festas de aniversário.

Concluímos que é necessário fortalecer a clínica dos trabalhos na rua, se quisermos atender essa população flutuante. Para isso, é importante resgatar a potência criativa dos trabalhadores, pois eles têm muito a dizer e nos ensinar, considerando a proximidade de vínculo que estabelecem com a população. Assim que abrimos espaço para suas falas, eles os preenchem tanto com histórias e saberes, quanto com questões, medos e sofrimento. É importante fortalecer os espaços horizontais de trocas e identificação entre os próprios trabalhadores e reconhecer os conhecimentos construídos por eles, que muitas vezes ficam desvalorizados. Precisamos começar por desconstruir a hierarquia presente no interior das equipes e a estrutura de poder consolidada pelo saber médico, técnico, formal, científico, acadêmico. E, assim, garantir que a voz dos outros profissionais seja escutada inclusive para a construção das políticas, como forma de cuidar também da saúde do trabalhador e dos corpos que estão oferecendo cuidado.

No fim, uma das agentes me perguntou pra onde iria essa pesquisa, pois ela tinha interesse de que isso chegasse até os políticos que pensam e constroem os programas, pois "eles não sabem da realidade dos serviços".

 

Referências

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1 E aprovada pelo comitê de ética, número do parecer: 660.520
2 Programa definido pela Portaria nº 122 (BRASIL, 2011).
3 Apesar das equipes serem mistas, todas as agentes de saúde são mulheres. Essa questão foi tratada na dissertação, mas não será aprofundada no presente artigo.
4 Vamos aprofundar essa questão mais adiante na parte do território vivo da saúde.
5 Analisados mais adiante, na parte de processos de trabalho e (des)articulações territoriais, respectivamente.
6 Trecho retirado do diário de campo
7 Como foi dito, é novo no serviço.

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