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Revista de Psicologia da UNESP

On-line version ISSN 1984-9044

Rev. Psicol. UNESP vol.17 no.1 Assis Jan./June 2018

 

ARTIGOS

 

Heterossexismo e a (in)existência lésbica

 

 

Paula Ferreira de Santana; Emerson Fernando Rasera

 

 


RESUMO

Na sociedade contemporânea, a suposta supremacia masculina e heterossexual é perpetuada através do sexismo e do heterossexismo, deslegitimando a existência lésbica. O objetivo deste ensaio é refletir sobre os discursos de opressão e a busca de enfrentamento lésbico por meio do diálogo com a obra cinematográfica Amor por direito. A análise realizada mostra como a opressão sofrida pelas mulheres lésbicas está intimamente ligada com a violência simbólica que as invisibiliza. Os impasses presentes no filme convidam a pensar como a luta não pode ser de responsabilidade apenas das mulheres oprimidas, nem se restringir à busca por direitos na justiça. É necessária uma busca da sociedade como um todo pela desconstrução de discursos que perpetuam o heterossexismo e o sexismo, na forma de ordens sociais de dominação.

Palavras-chave: Heterossexismo; sexismo; lésbica; violência


ABSTRACT

In contemporary society, the supposed masculine and heterosexual supremacy is perpetuated through sexism and heterosexism, delegitimizing the lesbian existence. The objective of this essay is to reflect on discourses of oppression and the lesbian confrontation of them through the dialogue with the movie "Freeheld". The analysis shows how the oppression suffered by lesbian women is closely linked with the symbolic violence that makes them invisible. The impasses present in the movie invite us to think how the struggle cannot be the responsibility of only oppressed women, nor be restricted to the search for rights in justice. It is required that society deconstructs discourses that perpetuate heterosexism and sexism as social orders of domination.

Keywords: Heterosexism; sexism; lesbian; violence


 

 

Introdução

A violência existente contra a comunidade de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT) é uma realidade, muitas vezes, ignorada. Segundo Hernández e Torres (2005), as formas de opressão vivenciadas por esse grupo podem ser desde violências interpessoais graves, como agressões físicas ou psicológicas, abandonos e privações, até discursos no âmbito da violência simbólica que implicam a deslegitimação de qualquer vivência do sujeito que não se adequa a uma norma imposta de coerência entre sexo biológico, gênero e orientação sexual. Trata-se de formas de hostilidade que reforçam a noção de que a homossexualidade é algo negativo e desprovido de aprovação.

Apesar de ser um tema que afeta toda a comunidade LGBT, as mulheres lésbicas o vivenciam de forma particular, pois a existência lésbica é, muitas vezes, invisibilizada. Como trazido por Swain (2000), no mundo há uma desqualificação das mulheres diante de uma ordem masculina (sexista) e uma depreciação dos homossexuais em detrimento de uma supremacia heterossexual (heterossexista). Portanto, há na sociedade um modelo de existir no qual as mulheres lésbicas são duplamente vítimas de preconceito, intolerância e invisibilidade.

Além disso, nas produções acadêmicas brasileiras não há muitos estudos que trabalham com a temática da violência sofrida pelas mulheres lésbicas especificamente. Ao realizar uma busca na plataforma Scielo, utilizando simultaneamente as palavras- chave "violência" e "LGBT", aparecem 14 artigos, mas apenas dois artigos tratam especificamente da temática lésbica: Lira, Morais & Boris (2016) trabalham com a invisibilidade lésbica no âmbito da homoparentalidade, e Lacombe (2016) aborda a sociabilidade de mulheres homossexuais entre 40 e 70 anos e os efeitos das mudanças legislativas nos modos de vivenciar a sexualidade. Dessa forma, justifica-se a importância deste trabalho tanto pela vivência particular que as lésbicas possuem diante da violência, mais especificamente da violência simbólica que as invisibiliza, quanto pela falta de estudos específicos que tratem do assunto e dêem visibilidade às necessidades desse grupo.

Este artigo busca refletir sobre a lesbofobia que existe na sociedade, a partir da obra cinematográfica Amor por direito. Mais especificamente, o objetivo do estudo é analisar a opressão vivenciada pelas mulheres lésbicas diante de uma ordem social que deslegitima sua existência, focando na violência simbólica vivenciada por esse grupo, bem como em sua busca de enfrentamento e visibilidade.

Metodologicamente, a escolha da realização de uma análise cinematográfica, muito mais do que por proporcionar reflexões psicossociais, se deve ao fato de que filmes e outras formas de produção cultural são (re)produções de discursos sociais. As obras cinematográficas são, como dito em Rasera (2013), fontes de compreensão a respeito do funcionamento da sociedade, pois possibilitam uma análise de sentidos e há, com isso, uma potencialidade de intervenção no ambiente onde elas são produzidas e também reproduzidas.

O texto apresentará, inicialmente, o referencial teórico de compreensão da opressão às homossexualidades com foco na (in)existência lésbica, passando pelo conceito de heterossexismo, sexismo, até uma reflexão sobre a política do armário em nossa sociedade. A análise da obra está dividida em duas partes: a primeira parte articula heterossexismo, sexismo, e violência simbólica sofrida pela personagem principal para problematizar a autoafirmação homossexual. Já a segunda parte trará o combate a essas formas de opressão, acompanhado pela luta da personagem por direitos. Por fim, são feitas algumas reflexões críticas sobre essa busca pelo fim da invisibilidade lésbica e da opressão que a acompanha.

 

A opressão às homossexualidades e a invisibilidade lésbica

Durante a história da sociedade ocidental, houve um longo percurso de desqualificação e opressão da homossexualidade por parte dos grupos dominantes. Observam-se dois grandes discursos que contribuíram para tal situação: o da religião e o científico. Por influência da Igreja cristã na Idade Média, relacionar-se com pessoas do mesmo sexo passou a ser considerado pecado e isso foi difundido por todo o mundo ocidental. Assim como, no fim do século XVIII e durante o século XIX, o discurso médico definiu a homossexualidade como uma patologia; a partir de tal discurso, iniciaram-se buscas incessantes de uma forma de curar os homossexuais (Poeschl, Venâncio & Costa, 2012).

Por décadas, tais discursos foram reproduzidos e cristalizados. Contudo, seu questionamento se intensificou a partir da década de 1970, quando a American Psychiatric Association (APA) retirou a homossexualidade do Manual Diagnóstico e Estatístico das Perturbações Mentais (DSM II, 1973) e defendeu que os profissionais de saúde deveriam possuir responsabilidade ética de reconhecer que a homossexualidade não significava, em si, um desajustamento (Moleiro & Pinto, 2009).

A patologização, a criminalização e a invisibilização da homossexualidade são formas de opressão ainda presentes em nossa sociedade. Vivenciamos um sistema ideológico de dominação que deslegitima todas as vivências não heterossexuais, pois a heterossexualidade é institucionalizada e considerada como norma. Dessa forma, é garantido aos heterossexuais - considerados como grupo dominante - certos privilégios, enquanto aos gays, lésbicas, bissexuais, transexuais e travestis - considerados grupos inferiorizados - há uma retirada de direitos, há opressão, diversas formas de violência física, psicológica e simbólica (Welzer-Lang, 2001). Esse sistema ideológico, conhecido como heterossexismo, parte, portanto, do pressuposto de que todos são heterossexuais e, mais do que isso, há uma promoção constante, por parte das instituições e dos indivíduos, de garantir que a heterossexualidade seja sempre considerada superior diante das outras formas de se vivenciar a sexualidade. Como dito em Rios (2015):

(...) o binômio heterossexualidade/homossexualidade é critério distintivo para o reconhecimento da dignidade dos sujeitos e para a distribuição dos benefícios sociais, políticos e econômicos. Isto porque o pertencimento a grupos inferiorizados implica a restrição, quando não a supressão completa e arbitrária, de direitos e de oportunidades, seja por razões jurídico-formais, seja pelo puro e simples exercício da força física bruta ou em virtude dos efeitos simbólicos das representações sociais. Exemplos destas situações são, respectivamente, a impossibilidade jurídica do acesso de homossexuais a certos institutos jurídicos, como o casamento civil, e o elevado número de agressões físicas e verbais experimentadas por homossexuais. (Rios, 2015, p. 244).

A deslegitimação das vivências não heterossexuais, identificada como heterossexismo, se combina com uma constante promoção da heterossexualidade que é amparada por duas formas de perpetuação da dominação heterossexual em nossa sociedade: a heterossexualidade compulsória e a heteronormatividade. O primeiro conceito diz respeito a uma exigência de que todos os indivíduos sejam heterossexuais, exigência perpetuada pela violência que se propaga por meio dos discursos que naturalizam a heterossexualidade, como, por exemplo, a tentativa de se buscar causas patológicas para a existência de vivências que se diferenciem do padrão heterossexual. Já a heteronormatividade é um conceito que traz a exigência política e social de que as pessoas organizem sua vida dentro do padrão heterossexual, ou seja, nesse sistema de opressão é aceitável que uma pessoa seja homossexual, desde que ela construa seu modo de ser baseado no modelo da construção social da heterossexualidade, como, por exemplo, casando-se, tendo filhos e mantendo diante da sociedade uma postura considerada adequada ao seu sexo biológico, construindo sua vida de forma coerente em torno do que se espera de uma mulher ou de um homem (Colling & Nogueira, 2015)

Essas opressões estão de muitas formas relacionadas com a dominação feminina e o machismo, pois muito mais do que exigir que todos sejam heterossexuais, há sobre as mulheres uma expectativa desde que nascem: a de que em algum momento cumprirão com seu destino de mulher inevitável, ou seja, se casar com um homem e se reproduzir, garantindo a ordem tomada como natural (Swain, 2010). É necessário observar que existem duas formas de buscas por garantir o estabelecimento dessa ordem: por meio da força ou por imposições e suposições culturais que são aprendidas ao longo da vida. A utilização da força não é tão comum nas sociedades ocidentais atualmente, como o casamento obrigatório e o cinto de castidade. O que é mais comum são os discursos que espalham o ideal do amor romântico, do casamento heterossexual monogâmico, e também transforma em invisível a existência lésbica (Rich, 2010).

A existência da invisibilidade lésbica tem também uma ligação clara com determinados estereótipos que atribuem aos indivíduos papéis sociais e atitudes de acordo com seu sexo biológico, priorizando a superioridade masculina. Dessa forma, as pessoas que fogem a essa regra podem vir a sofrer diversos tipos de violência, especialmente mulheres que fogem à norma e ameaçam, de algum modo, a supremacia masculina. Esse fenômeno pode ser definido como sexismo, o qual pode ser hostil ou benevolente, sendo aquele um reflexo de uma clara intolerância ao não cumprimento dos papéis sociais, gerando violências interpessoais. O sexismo benevolente constitui uma reafirmação dos papéis sociais por vias mais sutis, que envolvem a violência simbólica, como, por exemplo, o homem sempre ser considerado o provedor da família e assim ser mais valorizado, visto como protetor da mulher (Sales-Oliveira, Villas-Boas & Las-Heras, 2016).

Observa-se, assim, que as mulheres frequentemente são colocadas em posições inferiores aos homens em muitos aspectos e se tem expectativa de que elas cumpram certos papéis sociais, como o de ser extremamente sensível, submissa, esposa, mãe e dona de casa, dentro de um casamento heterossexual monogâmico e assim por diante. Com isso, são reproduzidos discursos deslegitimadores a respeito do fato de ser mulher e não há espaço para a existência lésbica nesses papéis pré-determinados, gerando a invisibilidade desse grupo perante a sociedade.

A luta contra a opressão, portanto, é mais do que simplesmente conquistar direitos na justiça. Significa ir além e buscar o fim da invisibilização, com o objetivo de obter reconhecimento diante da sociedade, além de buscar legitimação e respeito pelas experiências e vivências pessoais de todos os sujeitos. Nesse sentido, um dos aspectos que merecem reflexão diz respeito ao conceito de sair do armário que, para a comunidade LGBT, significa basicamente um processo identitário de autoafirmar e assumir sua sexualidade diante de outras pessoas (Sedgwick, 2007). Porém, a construção das formas de definir a sexualidade atualmente tem separado drasticamente pessoas homossexuais de pessoas heterossexuais, considerando hetero como dominantes e maioria, de forma que não se faz necessário se assumir hetero para mostrar à sociedade que se é heterossexual. Isso porque há uma constante dicotomia entre hetero/homo que reafirma que ser heterossexual é o normal e ser homossexual é uma fuga da regra, reafirmando a ordem social vigente. Dessa forma, uma pessoa homossexual passa por diversos processos de autoafirmação diante das pessoas que conhece durante toda sua vida, correndo risco de sofrer vários tipos de violência com essa situação e carregando o fardo e a responsabilidade de se assumir, como se essa fosse a condição para que ela seja respeitada.

Observa-se que os conceitos apresentados se entrelaçam, se relacionam ou se sobrepõem em alguns aspectos, visto serem expressão de formas distintas de um fenômeno no qual há um poder social juntamente com um controle dos corpos e das formas de expressão de gênero e sexualidade, desvalorizando a experiência de quem foge à norma dominante. E há, por outro lado, um constrangimento e uma busca de enfrentamento a essas formas de opressão por parte das pessoas afetadas por esses discursos. O filme a ser analisado traz a história de duas lésbicas que têm seus direitos negados e lutam pela conquista deles e, por isso, serão expostas cenas do filme articuladas com os conceitos trazidos aqui, mais especificamente, com o de heterossexismo e sexismo que permeiam os discursos da sociedade.

 

Amor por direito: muito além de um drama pessoal

Amor por direito (Freeheld) é um filme dirigido por Peter Sollett, baseado em uma história real da policial de New Jersey, Laurel Hester (Julianne Moore) e sua companheira Stacie Andree (Ellen Page) (Sollett, 2015). A obra é dividida em dois momentos. O primeiro deles apresenta a aproximação do casal e a consolidação de sua relação. O segundo momento é marcado pela descoberta de que Laurel está com um câncer terminal. A partir daí, há a luta de ambas para que as autoridades relutantes permitam que Stacie possa receber os benefícios da pensão da polícia, após a morte da esposa. A análise da obra está dividida em duas partes: a primeira parte articula o heterossexismo, o sexismo e a violência simbólica sofrida pela personagem principal, e a segunda parte trará o combate a essas opressões, acompanhado pela sua luta por direitos.

1. Articulações entre heterossexismo e sexismo: violência simbólica na vida de Laurel

O filme traz a história de Laurel Hester, uma detetive policial lésbica de New Jersey que, em seu meio de trabalho, não é assumida e não conta para ninguém que é homossexual, pois tem medo das reações dos colegas de profissão e medo de não ser promovida à tenente. Ela divide suas funções com seu amigo e parceiro de polícia, Dane, e nem mesmo ele - que possui certa intimidade com a detetive - imagina, durante boa parte da história, que ela seja lésbica.

Logo no início do filme, Laurel vai para uma cidade vizinha para participar de um time de vôlei de mulheres lésbicas e é lá que ela conhece Stacie, sua futura esposa. Stacie, em um primeiro momento, não entende por que a policial viajou para outra cidade para realizar uma atividade tão rotineira como jogar vôlei e conhecer novas pessoas, pois até o momento ela não sabe que Laurel é policial. Laurel apenas explica: "Sou conhecida por lá, é difícil sair e ter privacidade".

Observa-se, desde já, como dito em Sedgwick (2007, p. 26), que "o armário é a estrutura definidora da opressão gay" e até mesmo pessoas assumidamente gays se encontram no armário, de alguma forma em algum meio social de que fazem parte, seja meio de família, de amizades ou do trabalho. Cada nova aproximação social é mais um momento de análise das opções entre sair ou não do armário, avaliando-se os prós e os contras de tal atitude. E, portanto, observa-se com Laurel, durante toda primeira parte do filme, seu medo de se assumir diante dos colegas de trabalho ou de desconhecidos.

A questão de ser mulher é fator ainda mais forte para que ela não se sinta à vontade de sair do armário. Por exemplo, em uma cena em que Stacie está na casa de Laurel, esperando por ela sozinha na sala, o telefone começa a tocar e Stacie pergunta se Laurel gostaria que ela atendesse ao telefone. Laurel chega bastante irritada na sala, retirando o telefone da mão de Stacie antes que ela atenda, dizendo: "Nunca atenda meu telefone, poderia ser meu parceiro ou meu chefe (...) Na polícia, mulheres não conseguem casos importantes, nem são promovidas. As lésbicas nem em sonho.". Durante todo o filme, o receio de Laurel de se assumir para outras pessoas vai se mostrando evidente, pois há diversas cenas em que ela chama Stacie de "colega de quarto" ou "irmã", para justificar a presença da esposa em certas situações, antes mesmo que as pessoas as questionassem.

A polícia, mais do que um simples local de trabalho, é uma das várias instituições que exercem seu poder na forma de agir dos indivíduos que a compõem. A forma de Laurel expor seu pensamento sobre a instituição mostra que o poder exercido vai muito além de ações opressoras de fato, que ocorrem naquele âmbito. Trata-se de um poder invisível que legitima a supremacia masculina e heterossexual, gerando reverberações, como a fala da personagem, carregada de uma perspectiva antecipatória, pois mesmo antes de receber uma coerção ou mesmo que ninguém nunca tenha cometido algum ato violento contra ela, tem-se uma norma instituída que afeta diretamente suas ações e seu discurso.

No discurso de Laurel, cristalizam-se ideias sexistas que foram sendo reproduzidas ao longo da história da sociedade ocidental. O sexismo é entendido como uma forma de discriminação e preconceito dirigida às mulheres devido ao seu gênero, é observado por meio das ações ou dos discursos dos indivíduos e está intimamente ligado com a cultura patriarcal, sendo uma forma de os homens buscarem manter sua supremacia perante as mulheres, tanto no contexto público quanto no privado. O sexismo se divide em institucional e interpessoal, sendo o primeiro aquele relacionado às práticas de exclusão e inferiorização das mulheres no quesito dos meios de trabalho, organizações e comunidades; já o segundo diz respeito à forma que os homens se portam com as mulheres em seus relacionamentos de cunho pessoal (Ferreira, 2004).

O sexismo institucional é resultado de uma divisão sexual do trabalho, existente desde os primórdios da sociedade capitalista, divisão esta que segregava o espaço público como pertencente aos homens e o espaço privado pertencente às mulheres, de forma que o homem se tornava o provedor financeiro das famílias e as mulheres eram as responsáveis por cuidar do lar. Como é mostrado em Sousa e Guedes (2016), o discurso que pauta essa forma de divisão sempre relaciona a mulher com um dom natural para atividades domésticas, e é por isso que, à medida que as mudanças socioeconômicas foram ocorrendo e as mulheres foram alcançando sua independência, ainda foi mantido um discurso que deslegitima a atuação feminina no mercado de trabalho e coloca as mulheres em uma posição bastante inferior à dos homens em seus cargos.

O receio de Laurel de se assumir lésbica na polícia é, portanto, resultado do conhecimento da personagem a respeito dessas condições, pois ela já se sente bastante inferiorizada na instituição por ser uma mulher detetive que almeja ser tenente e, se assumir-se lésbica diante desse cenário, para a personagem, seria correr o risco de perder o que havia conquistado até ali e de ser barrada em conquistas futuras. Uma cena muito característica disso se dá quando Dane, seu parceiro na polícia, vai até a casa de Laurel e acaba descobrindo que ela é casada com uma mulher. Dane se chateia pelo fato de a parceira nunca ter contado a ele que era lésbica e ela fala para ele o porquê de nunca ter se assumido no trabalho: "Você é hetero, branco, homem... Dão as coisas a você, já eu preciso lutar por elas.". É importante observar que a norma é tão instaurada que Dane não reconhece a opressão e o silenciamento que exerce, ao pressupor a heterossexualidade de Laurel o tempo todo.

Por mais que haja um receio tanto de gays quanto de lésbicas, quando o assunto é afirmar sua sexualidade nos meios sociais, como mostrado nesse filme, ser mulher é um fator crucial que dificulta a personagem principal de se assumir. Isso ocorre devido ao fato de que sexismo e heterossexismo caminham juntos: ser homem, branco e hetero é uma garantia de privilégios nos diversos âmbitos sociais. Dessa forma, como dito em Nogueira (2001), mesmo os indivíduos sendo agentes de mudança, eles passam por constantes constrangimentos institucionais e são afetados de diversas formas pelas hierarquias e relações de poder social. Dessa forma, Laurel não afirmar sua orientação sexual em seu trabalho na polícia é muito mais uma submissão e constrangimento diante de uma ordem social do que uma simples escolha.

É visível o quanto o heterossexismo e o sexismo são sistemas de dominação que estão cristalizados nos discursos, razão pela qual se torna extremamente problemático esperar que a luta contra essas opressões parta apenas dos indivíduos homossexuais. A luta deve partir da sociedade como um todo, que deve buscar compreender e modificar os discursos geradores de violências simbólicas que atingem os indivíduos que fogem a uma regra. Ou seja, a ideia de que a heterossexualidade é a forma normal de se vivenciar a sexualidade deve, aos poucos, ser desconstruída e dar lugar a uma pluralidade de vivências desse fenômeno da mesma forma que discursos que quebrem a relação de poder entre os sexos devem substituir as ideias sexistas cristalizadas em nossa sociedade.

2. Combatendo o heterossexismo: a luta pela pensão de Stacie

A segunda parte do filme ocorre a partir do momento em que Laurel sente um mal estar, uma dor próxima ao pulmão, e vai ao hospital fazer exames. Sua esposa Stacie a está esperando, logo vê a médica encarregada e questiona sobre a saúde da companheira. Então, a médica diz: "Você é irmã dela?". Stacie responde que não e que é a parceira de Laurel. A médica diz, então, "eu esperava alguém da família", antes de prosseguir e informar Stacie sobre os exames. Nessa cena, se tem uma clara expressão do heterossexismo devido à deslegitimação da existência de Laurel e Stacie, como casal. Isso se repete até mesmo com Dane, inicialmente, pois, ao descobrir a gravidade de seu estado de saúde e do câncer que a aflige, Laurel diz ao parceiro de polícia que se morrer deseja que a pensão vá para Stacie, e Dane responde: "Mas isto vale apenas para casais casados, não?". Tem-se, a partir desse momento no filme, a imagem do adoecimento como um evento duplamente estressor: foi preciso para Laurel lidar com a doença ao mesmo tempo que tinha de buscar reconhecimento nos espaços sociais dos quais fazia parte.

Por ser uma história real, que ocorreu nos Estados Unidos, em New Jersey, é importante ressaltar o contexto histórico em que ocorreu. Ao descobrir que estava com um câncer terminal, Laurel e Stacie já viviam em uma união de parceria doméstica reconhecida por lei, mesmo que Laurel ainda não fosse assumida no trabalho. Porém, o sistema de pensões dos Estados Unidos não abrangia relações que não fossem de casais heterossexuais. No filme, a primeira tentativa de Laurel de entrar em contato com os legisladores foi por via de um documento que continha o pedido e mencionava a lei que garantia que sua união fosse reconhecida. A reunião do grupo dos cinco líderes republicanos é marcada por comentários voltados para afirmações de cunho moral, que nada tinham a ver com a possibilidade de atender às exigências da personagem. Foram ditas coisas como: "estou tentando me acostumar com a ideia dela ser lésbica", "ela não parece lésbica", "o contrato com a polícia não dá a ela o direito de passar os benefícios para uma colega de quarto" e, por fim, "a lei da qual está falando viola a santidade do casamento.". Nessa primeira reunião, já foi negado o pedido de Laurel.

O heterossexismo é reforçado por uma posição confortável, na qual as pessoas se colocam, ao simplesmente dizerem que defendem os chamados "valores tradicionais", reforçando e reproduzindo ideias preconceituosas e julgadoras, construídas ao longo da história da sociedade ocidental e cristalizadas como "valores tradicionais" e como verdades irrefutáveis. Os discursos podem ser nitidamente preconceituosos, simbolicamente preconceituosos ou simplesmente existir um silenciamento diante da existência de sexualidades dissonantes (Junqueira, 2009). Observa-se, na postura dos legisladores, que são discursos que se misturam em uma clara negação de direitos - sem ao menos existir um possível debate -, ligados a essa ideia de valores tradicionais, como a menção à santidade do casamento por um dos políticos.

Em outra tentativa de conseguir que os legisladores atendam seu pedido, Laurel vai a uma audiência pública e discorre sobre seu trabalho de vinte e três anos na polícia, diz que nunca teve medo de morrer cumprindo seu trabalho e que nunca pediu tratamento especial, só buscava igualdade, pois se seus parceiros da polícia heterossexuais morressem, suas esposas receberiam o benefício da pensão. A resposta dos políticos exalta a importância do trabalho de Laurel para a sociedade, repetindo o quanto ela é uma funcionária valiosa e confiável, mas tenta falar sobre questões contratuais, sem explicar explicitamente o que os impede de atender seu pedido, finalizando com "Deus te abençoe, a sessão está encerrada". Essa cena é bastante ilustrativa do quanto esses políticos assumiram discursos e posturas heterossexistas, separando a policial Laurel da Laurel homossexual, exaltando aquela função e deslegitimando a existência dessa outra face da personagem. E também é visível, nessa e em outras cenas, o quanto eles buscam justificar juridicamente sua decisão de negar a Laurel seu pedido. Mas toda a argumentação é baseada em discursos morais, construídos socialmente, que inferiorizam a personagem. As explicações dadas publicamente, que pareciam respaldadas em questões legais e não morais, desaparecem em outra cena, em que um dos legisladores na audiência diz que "o condado não pode custear tal decisão", mas é interrompido por outro que completa: "podemos custear sim, mas quem decide como gastar o dinheiro somos nós e nossos eleitores.".

As tentativas de fazer que os legisladores mudem de ideia são acompanhadas pelo agravamento do câncer de Laurel. Ela vai conseguindo apoio de pessoas próximas, como de Stacie e Dane, mas surge também um ativista pelo casamento gay, chamado Steve, que tenta unir a causa da personagem com as suas causas. A sociedade local, como um todo, passa a defender Laurel, que ganha grande visibilidade na mídia, devido à gravidade do seu estado de saúde. Steve repete, durante todo o filme, que Laurel está lutando pelo casamento gay, de certa forma, mas é interessante a postura dela de ir até o fim, pois sempre que ele diz isso ela repete que luta apenas pela igualdade. Ou seja, Laurel, a partir do momento em que adoece e luta pelos seus direitos, não luta apenas para defender a garantia de direitos aos homossexuais, ela vai além, defendendo um discurso que busca o direito à igualdade a todos, sejam eles hétero ou homossexuais; e a tentativa da personagem, durante todo o filme, é de sensibilizar os legisladores e a sociedade para essa ideia.

A postura de Laurel se aproxima do que é considerado fundamental por Silva (2007): há uma necessidade que as lutas busquem o fim de um binarismo entre hétero/homo que apenas reforça e legitima a violência. Ou seja, é imprescindível que a sociedade como um todo, ao lutar pelos direitos da comunidade LGBT, não lute apenas por isso, e sim que foque a luta nas desconstruções desses binarismos que exaltam a diferença e legitimam um modo de vivenciar a sexualidade, deslegitimando todas as outras formas. É preciso que se incorporem discursos de que as diferenças estão em todos os âmbitos, e que não existe um modelo único ideal de ser humano, nem mesmo de sexualidade, gênero ou performance na sociedade. Ou seja, deve haver uma busca pela igualdade entre as múltiplas formas de existência, para que a sociedade assimile discursos que não coloquem a experiência afetiva heterossexual como uma norma a ser seguida e, sim, que todas as formas de vivenciar a sexualidade sejam possíveis e aceitas.

 

Considerações Finais

A partir da postura de Laurel e da comoção que ela causou em toda a sociedade local, na sua luta por direitos, ela conseguiu que a pensão fosse cedida à sua esposa após a sua morte. Os legisladores cederam o direito à Laurel por pressão popular, muito mais do que por uma mudança em suas posturas e discursos. Mas, ao fim do filme, se vê que, pouco tempo depois da morte de Laurel, foi criada uma emenda de união estável que cedia benefício da pensão a todos os parceiros de funcionários públicos de New Jersey. E em 2013 - 7 anos após a morte de Laurel - New Jersey passou a emitir certidão de casamento para pessoas do mesmo sexo, mostrando que houve uma sensibilização real para o fato de o casamento ser um direito de todos.

Lutar pelo casamento entre pessoas do mesmo sexo é uma busca de que sejam garantidos aos casais homossexuais os mesmos direitos que os casais heterossexuais possuem ao se casarem. Esse enfrentamento é, portanto, uma busca pela igualdade em todos os patamares, pois privar um grupo de certos direitos que todas as outras pessoas têm é uma forma grave de opressão e violência simbólica. É por isso que Laurel afirma, durante toda a trama, que a sua luta era pela igualdade, pautando-se em um discurso que busca legitimar a existência de todos os indivíduos, hetero ou homossexuais, descolando-se da ideia de que existe um único modelo a ser seguido.

Porém, muito se discute entre os próprios ativistas LGBT sobre a questão do casamento. Casar-se, ao longo da história, sempre se constituiu como uma ordem social que pressupõe que as pessoas, ao se casarem, tenham filhos e formem uma família economicamente ativa. Dessa forma, para muitos indivíduos, ter garantido o direito de pessoas homossexuais se casarem é apenas mais uma forma de perpetuação da heteronormatividade. Porém, a promoção constante de uma ordem que envolve a heterossexualidade afeta a todos os indivíduos, não apenas homossexuais, pois uma pessoa heterossexual, especialmente se for mulher que decide não se casar, é alvo de diversas interrogações e até mesmo preconceitos, por estar fugindo a uma regra da nossa sociedade atual. Portanto, a questão de o casamento se tratar de uma forma de dominação é uma discussão importante, porém, está para além do que foi trazido neste trabalho.

O que se observa durante todo o filme é que, após muita pressão social, os legisladores cederam ao pedido de Laurel e ela conquistou seu direito na justiça. Mas resta um questionamento final: isso é suficiente? Ter garantido o direito constitucional de se casar e, como é o caso da personagem, dar a sua parceira a garantia de receber a pensão após sua morte é uma vitória importante, mas ainda há muito pelo que se lutar, pois a violência simbólica e a invisibilidade lésbica não deixam de existir a partir do momento que algumas leis são criadas. Como é o caso do filme, o direito foi garantido à personagem principal, mas não houve o movimento contrário de reflexão e desconstrução por parte dos legisladores, que cederam ao seu pedido apenas por pressão popular. Pode-se supor, por exemplo, que, em sua atuação dali em diante ou até mesmo em seus âmbitos pessoais, eles, bem como tantas outras pessoas o fazem, seguiriam mantendo a ordem heterossexista e sexista.

É importante ressaltar, novamente, que mesmo nunca tendo sofrido alguma forma de violência física ou psicológica explícita, durante grande parte do filme, Laurel se sentiu coagida e constrangida socialmente, em decorrência de sua sexualidade. Essa condição mostra o quanto a lesbofobia pode se dar por vias mais sutis do que o que é claramente definido como "violência" em nossa sociedade; e ter consciência de que a opressão simbólica é tão grave e violenta quanto qualquer outra forma de violência é fundamental para que mudanças sejam possíveis. O sofrimento de Laurel é a realidade de muitas pessoas LGBT, em geral, e de mulheres lésbicas, especificamente, sendo reflexo de discursos cristalizados que perpetuam as relações de poder entre os sexos e as formas de vivenciar a sexualidade. A busca de enfrentamento não deve ser uma responsabilidade exclusiva dos indivíduos oprimidos, mas deve partir de toda a sociedade uma busca da desconstrução de ideias que colocam, em patamares superiores, a heterossexualidade e o masculino, e, em posições inferiores, a homossexualidade e o feminino. Isso é possível por meio de constantes questionamentos sobre as ordens sociais e as verdades instauradas que as acompanham. Ou seja, para que a invisibilidade lésbica deixe de existir e essa forma de vivenciar a sexualidade seja considerada como legítima diante da sociedade, há um longo processo de desconstrução pela frente, no qual novos discursos de igualdade devem ser incorporados, abalando o heterossexismo e o sexismo, ordens sociais de dominação.

 

Referências

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