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Revista de Psicologia da UNESP

versão On-line ISSN 1984-9044

Rev. Psicol. UNESP vol.17 no.2 Assis jul./dez. 2018

 

ARTIGOS

 

O apoio como estratégia para o fortalecimento do SUS

 

 

Paula Carvalho Lauer

Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho"

 

 


RESUMO

Este artigo é parte de uma pesquisa de mestrado e foi elaborado com base na experiência de trabalho da autora como apoiadora no SUS, trabalhando como psicóloga no Núcleo de Apoio à Saúde da Família. Refletimos aqui acerca do papel do apoio para a efetivação das Redes de Atenção à Saúde e para o fortalecimento do SUS, considerando a Atenção Primária como centro ordenador dessas redes. Discute-se o apoio matricial como metodologia de trabalho do NASF e como ferramenta para a transformação do modelo de gestão e de cuidado no SUS. Muitos desafios estão postos nesse trabalho de apoio, entre eles, o de formar trabalhadoras/es NASF, a fim de agregar, ao apoio ofertado pelas equipes na lógica das especialidades, um apoio mais generalista que tenha como ferramenta a problematização dos processos de trabalho das equipes da AP, visando ao fortalecimento da Promoção de Saúde, favorecendo o protagonismo dos sujeitos, impactando na qualidade da saúde da coletividade.

Palavras chaves: redes de atenção à saúde; atenção primária; promoção de saúde, apoio matricial;


ABSTRACT

This article is part of a master's research and was elaborated from the author's work experience as a supporter at SUS, working as a psychologist at the Family Health Support Center. We reflect here about the role of support for the esta blishment of Health Care Networks and the strengthening of SUS, considering Primary Attention as the ordering center of these networks. We discuss matrix support as NASF's work methodology and as a tool for transforming the management and care model in the SUS. Many challenges are posed in this support work, among them the professional qualification of NASF workers, in order to add to the support offered by the teams in the logic of the specialties, a more generalist support that has as a tool the problemat ization of the work processes of the PA teams, aiming at strengthening Health Promotion, favoring the protagonism of the subjects, impacting the health quality of the community.

Keywords: health care networks; primary attention; health promotion, matrix s upport;


 

 

Introdução

Em 2015, atuando como psicóloga integrante da equipe do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS II), em um município do interior paulista de cerca de 100 mil habitantes, fui convidada para compor também a equipe do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF I). Montada a equipe, organizamos nosso processo de trabalho contemplando uma reunião de equipe semanal e nos dividimos em duplas, para iniciarmos os encontros mensais com as doze equipes de Saúde da Família, com o objetivo de apoiar a Atenção Básica (AB) e de ampliar sua capacidade resolutiva.

Assim, fomos desenvolvendo ações de apoio matricial, tanto via CAPS - com encomendas específicas e pontuais das equipes de AB, culminado quase sempre em uma discussão de caso e na elaboração conjunta de um projeto terapêutico singular - quanto via NASF, cujo foco central das discussões é o processo de trabalho das equipes, o que nele se produz e como isso impacta na qualidade de vida, tanto das/os trabalhadoras/es, quanto da população daquele determinado território.

A necessidade de compreender melhor os modos de fazer apoio, o desejo de identificar potências e desafios desse fazer/apoio e de contribuir para o aprimoramento de sua prática, como uma importante ferramenta para o fortalecimento do SUS, começavam a inquietar a equipe NASF. Esse é o cenário que me convidou a retornar à academia, a fim de refletir acerca de minha prática profissional, do papel do apoio para a efetivação das Redes de Atenção à Saúde (RAS), compreendendo a AB como centro ordenador dessas redes.

Assim, o presente artigo é parte de minha dissertação de mestrado e visa aproximar um horizonte de discussões, reflexões e conhecimentos acerca da prática do "apoio", como estratégia que se propõe a ampliar a capacidade das equipes de AB de desenvolver ações mais resolutivas e de produzir um cuidado de saúde mais integral e territorializado, com foco na promoção de saúde.

Nesse sentido, (re)apropriar-me do saber/fazer produzido coletivamente no trabalho, sistematizar esse saber/fazer de forma a poder compartilhá-lo mais amplamente, registrar experiências de práticas contra-hegemônicas produzidas dentro do SUS, evidenciando a capacidade de gestão das/os trabalhadoras/es, torna-se fundamental diante do atual cenário político de estrangulamento, tanto das políticas públicas sociais, como das/os próprias/os trabalhadoras/es pela cooptação dos direitos trabalhistas.

Barros e Passos (2015) apostam justamente nessa relação saber-fazer para a construção de um caminho metodológico, no qual o ponto de apoio é a experiência entendida como um saber-fazer, isto é, um saber que vem, que emerge do fazer. Tal primado da experiência direciona o trabalho da pesquisa do saber-fazer ao fazer-saber, do saber na experiência à experiência do saber.

Assim como na prática cotidiana de produzir saúde é pertinente atentarmos para a indissociabilidade entre os modos de fazer gestão e os modos de produzir cuidado, para fazer a escolha metodológica deste trabalho de escrita, me parece pertinente a adoção de um método que não dissocie a construção de conhecimento, da construção do fazer cotidiano, eis o que ensaio neste texto cartográfico.

Algumas considerações acerca do conceito de saúde, seus modos de produção e modelos de cuidado

Na área da Saúde, a partir do movimento da Reforma Sanitária, na década de 70, a transição do conceito de saúde como 'ausência de doença', proposto pelo saber cientificista da medicina e pelo modelo curativista, encontra seus limites na ampliação desse conceito proposta pelo 'modelo de promoção de saúde', compreendendo saúde como capacidade de enfrentar os adoecimentos, procurar ajuda, compreender o que está se passando e seguir os movimentos da vida, quando os sujeitos têm autonomia para pensar, sentir, tomar decisões e assumir as consequências que delas resultam.

No Brasil, a VIII Conferência Nacional de Saúde definiu saúde como direito de todos e dever do Estado, cuja responsabilidade é a provisão de um sistema de atenção à saúde universal e equânime, tendo como diretrizes a descentralização, a integralidade da atenção e a participação e o controle social. A Lei Orgânica da Saúde (Lei 8080), do ano de 1990, definiu:

Artigo 3º. A saúde tem como fatores determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços sociais; os níveis de saúde da população expressam a organização social e econômica do país. (Brasil, 1990).

Reafirmando esse novo modelo de produzir saúde, a Portaria GM/MS nº 648/2006 que atribui características ao processo de trabalho da Estratégia de Saúde da Família, destaca como pontos centrais do trabalho na Atenção Básica de Saúde:

IV - prática do cuidado familiar ampliado, efetivada por meio do conhecimento da estrutura e da funcionalidade das famílias que visa propor intervenções que influenciem os processos de saúde-doença dos indivíduos, das famílias e da própria comunidade;

V - trabalho interdisciplinar e em equipe, integrando áreas técnicas e profissionais de diferentes formações;

VI - promoção e desenvolvimento de ações intersetoriais, buscando parcerias e integrando projetos sociais e setores afins, voltados para a promoção da saúde, de acordo com prioridades e sob a coordenação da gestão municipal;

VII - valorização dos diversos saberes e práticas na perspectiva de uma abordagem integral e resolutiva, possibilitando a criação de vínculos de confiança com ética, compromisso e respeito;

VIII - promoção e estímulo à participação da comunidade no controle social, no planejamento, na execução e na avaliação das ações. (Brasil, 2007, p. 13)

Nesse mesmo sentido, a partir do movimento da Reforma Psiquiátrica, fortemente difundido no Brasil dos anos 70, a Saúde Mental também vive momentos de transição paradigmática, do "Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medicalizador" (PPHM) para o "Paradigma Psicossocial" (PPS). A congruência do PPMH com o modo capitalista de produção é fortemente questionada nessa época, encontrando como contraponto a congruência do PPS com os modos de produção cooperados.

O PPS assume ética e tecnicamente a indissociabilidade entre a saúde psíquica e a subjetividade; propomos falar de saudesubjetividade singularizada. [...] (Costa-Rosa, 2013, p. 49-50)

Para esse autor, a mudança mais radical do PPS decorre da própria concepção de saúde psíquica a ser produzida com a inclusão do sujeito do sofrimento como o principal agente do processo de produção de saúde.

Nesse cenário, configura-se a Atenção Psicossocial como uma proposta epistêmica dentro do paradigma emergente. Ainda para Costa-Rosa:

A ética da Atenção Psicossocial, [...] tem se encaminhado para uma modalidade do processo de produção de Atenção no qual o sujeito - simultaneamente considerado como um indivíduo com inconsciente e como potencialidade efetiva de produção de sentido novo para as diferentes injunções sociais e subjetivas que emergem em seu cotidiano - é considerado como potencialidade para chegar a situar-se no lugar do 'trabalhador' principal do processo da produção dessa Atenção (LACAN, 1982). No plano de análise macroestrutural desse protagonismo há uma articulação direta com a diretriz da participação popular no planejamento, gestão e controle dos processos de produção da Atenção à saúde; e das decisões do quê deve ser produzido e como. O Paradigma Psicossocial toma a diretriz da participação popular como o cerne das proposições e das experiências da Reforma Sanitária, e como herança preciosa para a Atenção Psicossocial e sua ética. (2013, p. 299-300).

A mudança do modelo de atenção à Saúde Mental dentro do SUS é direcionada para a ampliação e qualificação do cuidado nos serviços comunitários, com base no território. Trata-se de uma mudança na concepção e na forma de como deve se dar o cuidado: o mais próximo da rede familiar, social e cultural do sujeito, para que seja possível a retomada de sua história de vida e de seu processo de adoecimento. Além disso, a autonomia do sujeito no cuidado de si e seu protagonismo no processo de construção do cuidado tornam-se pontos centrais na reorganização das práticas pela ótica da Atenção Psicossocial.

Nesse sentido, a ética da Atenção Psicossocial pode nortear não apenas a produção do cuidado das pessoas em sofrimento psíquico, mas de toda a comunidade, pois parte do olhar ampliado sobre os sujeitos e não sobre a doença.

Se a proposta é ampliar a clínica, deixando de focar apenas na doença e sua sintomatologia, para olhar para a pessoa, a família, a comunidade, considerando os determinantes sociais do processo saúde-doença e suas especificidades em cada território, então, um dos maiores desafios para a consolidação do SUS refere-se à articulação das Redes de Atenção à Saúde e destas com a rede intersetorial, para o desenvolvimento de ações de forma integrada e complementar, capazes de produzir um cuidado integral, no qual a/o usuária/o seja protagonista. Esse diálogo permanente entre trabalhadoras/es e gestoras/es dos diversos serviços públicos e comunidade em geral fortalece laços e parcerias e potencializa ações de forma permanente, o que é indispensável para o acompanhamento dos casos complexos em que o adoecimento é apenas um sinal de que muitos outros direitos possam estar sendo violados, muitas das vezes, pelo próprio Estado.

A incorporação da intersetorialidade nas políticas públicas trouxe a articulação de saberes técnicos, já que os especialistas em determinada área passaram a integrar agendas coletivas e compartilhar objetivos comuns. Nesta perspectiva, a intersetorialidade pode trazer ganhos para a população, para a organização logística das ações definidas, bem como para a organização das políticas públicas centradas em determinados territórios. Ao mesmo tempo, abrem-se novos problemas e desafios relacionados à superação da fragmentação e à articulação das políticas públicas, sobretudo se considerarmos a cultura clientelista e localista que ainda vigora na administração pública. (Nascimento, 2010, p. 96)

Além disso, outro desafio que se coloca para a efetivação das políticas públicas sociais é a construção de uma participação popular e um controle social efetivos, capazes de construir e organizar práticas centradas nos territórios e nas famílias. No SUS, o controle social está garantido por lei e, mais do que isso, compõe seus princípios e diretrizes, mas na prática, os espaços formais estabelecidos, como os Conselhos Municipais, entre outros, estão longe de cumprir a missão de efetivar a participação popular.

Nesse sentido, além de fortalecer os espaços de controle social garantidos por lei, faz-se necessária a criação de estratégias micropolíticas, no cotidiano dos serviços, para fomentar a participação da população, pois, em uma sociedade capitalista, onde a competitividade e o individualismo são estimulados, não se pode esperar que a população desejasse sair de suas casas para ajudar a construir coletivamente as políticas públicas. Sobre o modo capitalista de produção e suas implicações no modelo de cuidado e de produção de saúde, falaremos mais demoradamente no capítulo seguinte.

Algumas considerações acerca da Política Nacional de Promoção de Saúde e da Política Nacional de Humanização como estratégias de fortalecimento da Atenção Básica

O SUS, historicamente, investe importantes esforços na construção de um modelo de atenção à saúde que priorize ações de melhoria da qualidade de vida dos sujeitos e dos coletivos. Nesse sentido, em 2005, o Ministério da Saúde (MS) definiu a Agenda de Compromisso pela Saúde que agrega os três eixos: O Pacto em Defesa do SUS, O Pacto em Defesa da Vida e o Pacto de Gestão. E, em 2006, o MS publicou a Portaria GM/MS 648, instituindo a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) e a Portaria GM/MS 687, instituindo a Política Nacional de Promoção de Saúde (PNPS).

O Pacto pela Vida prioriza a melhoria do acesso e da qualidade dos serviços SUS, com a ênfase no fortalecimento e qualificação estratégica da Saúde da Família, na promoção, informação e educação em saúde, destacando a promoção de atividade física, de hábitos saudáveis de alimentação e vida, além do controle do tabagismo e do uso abusivo de bebida alcoólica. Por sua vez, a PNPS reitera o compromisso com a ampliação e qualificação das ações de promoção da saúde nos serviços e na gestão do SUS, tendo como objetivo a promoção da qualidade de vida, a redução das vulnerabilidades e riscos relacionados aos determinantes sociais da saúde, como as condições de trabalho, habitação, ambiente, educação, esporte, lazer, cultura, acesso a bens e serviços.

O fortalecimento da promoção de saúde, além de favorecer o protagonismo dos sujeitos, centrando o cuidado na pessoa e não na doença, impactando na qualidade de vida da população, é também estratégico para a articulação das redes de atenção, uma vez que implica na reorganização dos processos de trabalho das equipes em articulação permanente com o território.

Entende-se que a promoção da saúde apresenta-se como um mecanismo de fortalecimento e implantação de uma política transversal, integrada e intersetorial, que faça dialogar as diversas áreas do setor sanitário, os outros setores do governo, o setor privado e não governamental e a sociedade, compondo redes de compromisso e corresponsabilidade quanto à qualidade de vida da população em que todos sejam partícipes na proteção e no cuidado com a vida. Vê-se, portanto, que a promoção da saúde realiza-se na articulação sujeito/coletivo, público/privado, Estado/sociedade, clínica/política, setor sanitário/outros setores, visando romper com a excessiva fragmentação na abordagem do processo saúde-adoecimento e reduzir a vulnerabilidade, os riscos e os danos que nele se produzem. (Brasil, 2006a, p. 18)

Nesse sentido, é na AB que a população tem acesso às ações de promoção de saúde e é também ela que vai fazer a coordenação do cuidado em articulação com os demais pontos das redes intra e intersetoriais. Para a PNAB:

A Atenção Básica caracteriza-se por um conjunto de ações de saúde, no âmbito individual e coletivo, que abrangem a promoção e a proteção da saúde, a prevenção de agravos, o diagnóstico, o tratamento, a reabilitação e a manutenção da saúde. É desenvolvida por meio do exercício de práticas gerenciais e sanitárias democráticas e participativas, sob forma de trabalho em equipe, dirigidas a populações de territórios bem delimitados, pelas quais assume a responsabilidade sanitária, considerando a dinamicidade existente no território em que vivem essas populações. Utiliza tecnologias de elevada complexidade e baixa densidade, que devem resolver os problemas de saúde de maior frequência e relevância em seu território. É o contato preferencial dos usuários com os sistemas de saúde. Orienta-se pelos princípios da universalidade, da acessibilidade e da coordenação do cuidado, do vínculo e continuidade, da integralidade, da responsabilização, da humanização, da equidade e da participação social. A Atenção Básica considera o sujeito em sua singularidade, na complexidade, na integralidade e na inserção sócio-cultural e busca a promoção de sua saúde, a prevenção e tratamento de doenças e a redução de danos ou de sofrimentos que possam comprometer suas possibilidades de viver de modo saudável. A Atenção Básica tem a Saúde da Família como estratégia prioritária para sua organização de acordo com os preceitos do Sistema Único de Saúde. (Brasil, 2006b. p. 10)

Antes disso, em 2003, a Política Nacional de Humanização (PNH) foi lançada como uma estratégia para pôr em prática os princípios do SUS no cotidiano dos serviços de saúde, produzindo mudanças nos modos de gerir e de cuidar. Para tanto, estabelece, como princípios, a transversalidade; a indissociabilidade entre atenção e gestão; o protagonismo, a corresponsabilidade e a autonomia dos sujeitos e coletivos.

Transversal porque pretende estar presente em todos os programas e políticas do SUS, na tentativa de favorecer a comunicação entre pessoas e entre serviços, de forma a horizontalizar as relações. Para tanto, concebe a gestão democrática e participativa indispensáveis para a produção de um cuidado centrado na pessoa, que inclua as singularidades, que favoreça o protagonismo e a autonomia dos sujeitos e dos coletivos na produção de saúde para si e para o território.

Cogestão expressa tanto a inclusão de novos sujeitos nos processos de análise e decisão quanto a ampliação das tarefas da gestão - que se transforma também em espaço de realização de análise dos contextos, da política em geral e da saúde em particular, em lugar de formulação e de pactuação de tarefas e de aprendizado coletivo. (Brasil, 2013, p. 8)

A ideia é que a cogestão, a partir da construção de espaços democráticos de discussão acerca dos processos de trabalho, da inclusão dos diferentes saberes dos diversos atores que atuam para a produção de saúde, não só produza um cuidado mais integral e territorializado, como também favoreça a corresponsabilização desses distintos atores, trabalhadoras/es que constroem seus processos de trabalho coletivamente em parceria com usuárias/os e comunidade, pela promoção de saúde.

Nesse sentido, constituem as diretrizes da PNH: o acolhimento; a gestão participativa e cogestão; a ambiência; a clínica ampliada e compartilhada; a valorização da/o trabalhadora/or; e a defesa dos direitos das/os usuárias/os.

Para a PNH (Brasil, 2013b, p. 7), "[...] acolher é reconhecer o que o outro traz como legítima e singular necessidade de saúde. O acolhimento deve comparecer e sustentar a relação entre equipes/serviços e usuários/populações." O acolhimento é construído coletivamente, uma aposta na construção de vínculos e de uma rede socioafetiva como elementos indispensáveis para a produção de saúde. Outro conceito importante, vinculado à ideia de acolhimento, é o da ambiência, como possibilidade de criação de espaços confortáveis, que acolham a diversidade e garantam privacidade, provocando mudanças no processo de trabalho, pela composição de lugares de encontro entre as pessoas.

A PNH apresenta a Clínica Ampliada como uma ferramenta teórica e prática, um saber/fazer saúde que considera a singularidade dos sujeitos em articulação com diversos determinantes do processo saúde/doença, buscando superar a lógica do cuidado fragmentado. Para isso, aponta para a importância de uma escuta qualificada que considere as relações que os sujeitos estabelecem entre seus modos de vida e suas condições de saúde.

Vínculos e afetos também são ferramentas importantes para a construção dessa clínica que é também compartilhada, porque busca promover a autonomia dos indivíduos e dos coletivos para a produção de saúde para si e para a comunidade. Essa construção conjunta do cuidado pode ser sistematizada pelo Projeto Terapêutico Singular (PTS), que reúne condutas terapêuticas negociadas pela equipe interdisciplinar e pela/o usuária/o e/ou familiares, articuladas no território, não só no âmbito da saúde, mas da rede intersetorial, de acordo com a singularidade de cada caso.

Como vemos, a construção da Clínica Ampliada se faz de modo compartilhado e, para tanto, demanda a existência de espaços coletivos e democráticos nos cotidianos dos serviços, entre eles, ganham especial importância as reuniões de equipe. A PNH aposta na capacidade de toda/o trabalhadora/or de refletir e construir seus processos de trabalho e, nesse sentido, considera importante dar visibilidade à experiência dessas/es trabalhadoras/es e garantir sua participação nos processos de gestão. O mesmo vale para as/os usuárias/os que devem ter seus direitos respeitados pelas equipes, devendo ser incluídos nas decisões não apenas sobre o que diz respeito à sua saúde, mas também à saúde coletiva.

Fomentar a participação e o controle social e construir coletivamente um cuidado que estimule a autonomia e o protagonismo das pessoas, por meio de práticas de gestão democráticas, faz-se essencial para a efetivação das redes sociais, não apenas das RAS. Isso porque a articulação das redes de políticas públicas com as redes tecidas nos territórios pelas pessoas que os habitam pode estar a serviço de uma política de controle do Estado sobre a população. Segundo Saidón (2008), o termo redes:

Em muitos casos, vem a ser uma estratégia escolhida para gerir as políticas para as populações em risco e para os setores mais vulneráveis da sociedade, possibilitando outro instrumento para o arsenal das práticas de controle e de disciplinamento. Também tentou-se estabelecer, como um meio alternativo para enfrentar esses riscos, uma política que mantivesse vigentes os princípios de cidadania, liberdade e justiça. (p.167)

Se concebermos as redes como vinculações afetivas entre pessoas e entre pessoas e serviços, podemos pensar o controle social e a participação popular como possibilidades de construção de políticas públicas emancipatórias.

Pensar 'em rede' significa abandonar um paradigma de perceber a clientela como um alvo único da intervenção, e o profissional o único recurso possível. Significa repensar a relação que se estabelece entre as pessoas, as famílias, os adolescentes e os profissionais que com estas pessoas trabalham. Não mais uma relação desigual de reconhecimento de competências, mas um crédito na capacidade reflexiva e gerenciadora das pessoas de criarem e gerirem seus projetos de vida. Participar da construção de rede social é, antes de tudo, acreditar na rede de solidariedade entre pessoas e no potencial que elas possuem para compartilhar os problemas e as soluções em comum. (Costa & Brandão, 2015, p.37)

Nesse sentido, a construção das redes pode ser encarada como um convite à construção democrática, ao combate à apatia, movimentos indispensáveis para o fortalecimento do SUS em tempos de desmanche das políticas públicas sociais pelo Estado.

A reformulação da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), pela Portaria GM/MS 2.436/2017, evidencia esse atual movimento político de estreitamento dos direitos sociais e, em especial, de desmanche do SUS.

A falta de prioridade dada à Estratégia de Saúde da Família, a ausência de um compromisso, previsto na PNAB de 2007, com a cobertura de 100% da população e a retirada da determinação de quantidade de agente comunitária/o de saúde (ACS) por Equipe de Saúde da Família, são alguns exemplos desse movimento.

Do mesmo modo, com relação aos NASF, a nova PNAB retira o termo "apoio" de sua nomenclatura, passando a denominá-los Núcleos Ampliados de Saúde da Família (NASF-AB), propondo "[...] que essas equipes multiprofissionais passem a complementar não só equipes de Saúde da Família, mas também equipes de AB tradicionais" (BRASIL, 2017a), simplificando seu processo de trabalho:

Constitui uma equipe multiprofissional e interdisciplinar composta por categorias de profissionais da saúde, complementar às equipes que atuam na Atenção Básica. É formada por diferentes ocupações (profissões e especialidades) da área da saúde, atuando de maneira integrada para dar suporte (clínico, sanitário e pedagógico) aos profissionais das equipes de Saúde da Família (eSF) e de Atenção Básica (eAB). (Brasil, 2017b, p.68)

Além disso, inclui como tarefa do NASF-AB realizar atendimentos individuais à população, não mais como uma exceção à regra, conforme propunha a extinta PNAB. Nesse sentido, fica claro que essas mudanças não servem ao fortalecimento do SUS e da AB como campo para a promoção de saúde e a melhoria da qualidade de vida da população, ao contrário, favorecem a lógica de cuidado individualista e especialista.

Diante disso, uma possibilidade de resistência, nesse momento político, é o reconhecimento pelas/os trabalhadoras/es de sua autonomia para gerirem seus próprios processos de trabalho, bem como o reconhecimento do apoio como ferramenta potente para potencializar as equipes e as/os usuárias/os, para fortalecer a Atenção Básica, para defender o SUS.

A função apoio, proposta à luz da PNH, é, sobretudo, um método/dispositivo de intervenção nos processos de produção de saúde. O apoio se faz possível na problematização e experimentação dos modos de enfrentar os complexos problemas existentes no SUS, onde ainda predominam relações verticalizadas que dificultam composições democráticas e de inclusão nas instituições. Apoiar, no sentido do termo, é colocar, lado a lado, os sujeitos, potencializando-os para o trabalho de análise e intervenção nos processos de produção de saúde, tarefa esta que se estrutura em um campo de forças em contínua tensão. Como afirmam Pasche e Passos, a PNH pretende contribuir para que usuários e trabalhadores, investidos da função de gestores, sejam capazes de experimentar novas possibilidades de manejar as tensões e alegrias do trabalho em saúde, produzindo novas formas de gerir e cuidar, transformando a si próprios neste contexto. (Salgado; Pena; Caldeira, 2014, p. 911)

Algumas considerações acerca do apoio como estratégia para a mudança do modelo de gestão e de cuidado

A função apoio aparece no contexto do Sistema Único de Saúde, segundo Moura e Luzio,

[...] como um dos aparatos importantes para a construção de novos arranjos jurídico-legais, gerenciais e organizacionais, teóricos e técnico-assistenciais, visando contribuir com a expansão do SUS. Em alguns momentos de sua recente história, esta função aparece como fruto criativo do trabalho comprometido de atores do SUS, como no caso do Apoio Paidéia, sistematizado por Campos, e do apoio institucional, concebido pela Política Nacional de Humanização (PNH). Em outros momentos, ela aparece como função incorporada nas propostas oficiais do Ministério da Saúde (MS), tal como é o caso do apoio matricial e apoio à gestão, estabelecidos nas diretrizes do NASF e nas diretrizes orientadoras do Apoio Institucional Integrado. (Moura; Luzio, 2014. p. 958)

Desse modo, o apoio é apresentado pelo Ministério da Saúde como uma estratégia para a efetivação dos princípios e diretrizes do SUS, já garantidos pela Lei Orgânica da Saúde, desde 1990, ou seja, o apoio surge justamente para tornar a equipe de Atenção Básica capaz de responder àquilo que a própria política de saúde já propõe.

[...] dentro do escopo de apoiar a inserção da Estratégia de Saúde da Família na rede de serviços e ampliar a abrangência, a resolutividade, a territorialização, a regionalização, bem como a ampliação das ações da APS no Brasil, o Ministério da Saúde criou os Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF), mediante a Portaria GM nº 154, de 24 de janeiro de 2008. (Brasil, 2010. p. 7)

Por sua vez, a implantação do Sistema Único de Saúde segue em processo de consolidação, pois ao propor a produção de saúde de modo cooperado, constituído pelas relações democráticas entre os diversos atores (usuárias/os, trabalhadoras/es e gestoras/es) que o constroem cotidianamente, constitui-se também como um sistema que supõe uma subversão do modo capitalista de produção, o que o torna mais complexo e sua implantação mais processual.

Observamos que, com o objetivo de funcionar como um sistema universal, integral e equânime, o SUS vem se desenvolvendo na contramão dos interesses privatistas no campo da saúde e, se por um lado, é defendido por muitos, por outro, também, é alvo de críticas e de descrédito, como se as dificuldades encontradas não pudessem ser enfrentadas de modo a tornar possível a sua efetiva implantação. Como reflexo do desencantamento para com o SUS, se reproduz, a cada dia, a naturalização de práticas distantes do que entendemos como defesa da vida. (Salgado, Pena; Caldeira, 2014, p. 2)

Segundo Marx, no modo capitalista de produção, há uma separação entre a força de trabalho e os meios de produção, uma vez que a/o trabalhadora/or não tem mais a posse dos meios, apenas da força. Desse modo, entre a/o trabalhadora/or e o trabalho temos proprietárias/os do capital que, além de possuírem os meios de produção, determinam seus modos e seus fins. Nesse sentido, essa separação não transforma apenas as relações de produção material, mas implica também numa alteração dos modos de produção subjetiva, uma vez que, no processo de produção da vida material, o homem produz também a si mesmo. Para Marx e Engels (1984)

O modo pelo qual os homens produzem seus meios de vida depende, antes de tudo, da natureza dos meios de vida já encontrados e que têm de reproduzir. Não se deve considerar tal modo de produção de um único ponto de vista, a saber: a reprodução da existência física dos indivíduos. Trata-se, muito mais, de uma determinada forma de atividade dos indivíduos, determinada forma de manifestar sua vida, determinado modo de vida dos mesmos. Tal como os indivíduos manifestam sua vida, assim são eles. O que eles são coincide, portanto, com a sua produção, tanto com o que produzem, como o modo como produzem. O que os indivíduos são, portanto, depende das condições materiais de sua produção (p. 27-28).

Ora, se a/o trabalhadora/or foi expropriada/o dos meios de produção e de seus saberes, consequentemente, também excluída/o da participação na definição dos modos e fins dessa produção, ou seja, do como e do para que fazer, temos, como produto, uma/um trabalhadora/or(a) alienada/o do seu processo de produção, que executa tarefas, das quais não compreende a razão de ser.

Além das divisões entre quem planeja e quem executa, entre quem trabalha e quem se apropria dos resultados do trabalho, temos uma produção que visa a troca e não o consumo.[...]. Sendo essa a meta da produção, seu objeto-causa, o que dita suas características e finalidades, está muito longe de ser o conjunto das necessidades e aspirações da coletividade. (Costa-Rosa, 2013. p. 37)

Os impactos dessa alienação da/o trabalhadora/or na construção dos modos de produzir saúde e de efetivar o SUS são, no mínimo, contraproducentes. Se o SUS, enquanto sistema público de saúde, pressupõe a participação popular, o controle social, a cogestão e a corresponsabilização de todas/os, executar tarefas desarticuladas desse objetivo maior de consolidar o SUS como direito, tende não só a produzir um cuidado fragmentado, centrado na doença e não na pessoa, mas também a desresponsabilizar usuárias/os, trabalhadoras/es e gestoras/es pela construção de práticas de promoção de saúde coletiva. Certamente que, como Costa-Rosa nos alerta, não só os modos de produção excluem os processos de subjetivação produzindo essa lógica fragmentária:

Só para que não se pense que incorremos em simplificações grosseiras, vale a pena lembrar que cada um desses diferentes aspectos da exclusão da subjetivação tem uma história própria que - além de suas transformações diretamente relacionadas ao Modo de Produção - começa de modo explícito com a separação cartesiana corpo-mente, [...]. (Costa-Rosa, 2013. p. 37)

A Política Nacional de Humanização traz uma questão que pode contribuir com essa nossa reflexão, ou seja, o enfrentamento de relações de poder.

A PNH estimula a comunicação entre gestores, trabalhadores e usuários para construir processos coletivos de enfrentamento de relações de poder, trabalho e afeto que muitas vezes produzem atitudes e práticas desumanizadoras que inibem a autonomia e a corresponsabilidade dos profissionais de saúde em seu trabalho e dos usuários no cuidado de si. (Brasil, 2013b, p.3)

A PNH aposta na construção de modos organizativos para as práticas do SUS, que disponham fundamentalmente em sua base a indissociabilidade entre clínica e gestão, o que significa "[...] inclusão de trabalhadores, usuários e gestores na produção e gestão do cuidado e dos processos de trabalho" (BRASIL, 2013b, p. 4). O reconhecimento das dimensões que envolvem cada sujeito, de modo particular ou coletivo, em cada demanda, proposição, decisão, organização e exercício de papéis sociais, aponta para a ineficácia de se construírem práticas de cuidado e de gestão verticalizadas, não dialogais, que sufocam o saber de umas/uns em detrimento do saber de outras/os, para manutenção de relações de poder autoritárias, individualistas e alienadas.

Incluir os trabalhadores na gestão é fundamental para que eles, no dia a dia, reinventem seus processos de trabalho e sejam agentes ativos das mudanças no serviço de saúde. Incluir usuários e suas redes sociofamiliares nos processos de cuidado é um poderoso recurso para a ampliação da corresponsabilização no cuidado de si. (Brasil, 2013b, p.5).

Temos visto que, cada vez mais, a tecnologia da Atenção Básica tem se tornado uma tecnologia de atenção muito complexa, porque justamente está proposta a organização dos serviços em rede, a articulação do cuidado a partir do modo como as pessoas se organizam e se relacionam com o lugar onde elas moram, onde elas existem, lugar que elas constroem e, ao mesmo tempo, também as constrói. Eis a complexidade da Atenção Básica: conhecer seu território e suas especificidades para, a partir daí, construir um cuidado de saúde ao mesmo tempo coletivo e singular.

Dar conta dessa complexidade só com a formação acadêmica (ou não acadêmica), apenas com o que as/os trabalhadoras/es trazem da sua formação, como conhecimento específico, é, no mínimo, insuficiente. A/O profissional de saúde precisa dar conta de compreender muitas questões que são construídas historicamente, muitas questões da relação do sujeito com a cultura, com a produção de saúde/doença naquele território. Então, o apoio vem no sentido de ampliar a capacidade da equipe de Atenção Básica, contemplando as questões de saúde que têm se tornado cada vez mais complexas.

O apoio matricial inscreve-se, nesse sentido, nas estratégias de implementação de novos arranjos que produzam outra cultura e outras linhas de subjetivação, que não aquelas centradas principalmente no corporativismo e na alienação do trabalhador do resultado de seu trabalho. (Oliveira, 2011, p.41)

Nesse sentido, um aspecto importante acerca do apoio, no contexto NASF, é o fato de ele estar proposto como uma tecnologia de gestão, com a finalidade de reorganizar os processos de trabalho, a partir do trabalho compartilhado entre equipes de ESF/UBS e equipes de apoio matricial. Um apoio capaz de possibilitar a construção de uma prática nova, pelo repensar coletivo sobre uma prática já posta, instituída, programada e reproduzida no cotidiano dos serviços.

Com a composição de uma rede matricial de apoio às equipes de referência seria possível disparar uma série de mudanças na atenção em saúde, na direção da responsabilização, da ampliação da clínica e da interdisciplinaridade: - evitar a fragmentação da atenção, a medicalização e outros danos e iatrogenias provocados pelo 'consumo' excessivo de tratamentos, procedimentos e exames; - proporcionar coeficientes terapêuticos de acordo com as vulnerabilidades e potencialidades de cada usuário, promovendo com isso maior equidade e ampliando o acesso às demandas de maior gravidade; - construir dispositivos de atenção em resposta às diferentes necessidades dos usuários e estimular a articulação entre os profissionais na elaboração de ofertas para cada situação singular; - romper com a produção de excessivos encaminhamentos às especialidades e produzir corresponsabilização, de modo que o encaminhamento preserve o vínculo e possa ser feito com outra lógica: a do diálogo entre os serviços e os profissionais. (Campos; Figueiredo; Pereira Jr; Castro, 2014, p. 989).

Uma especificidade do trabalho de apoio realizado pelo NASF é o fato de toda ação de cuidado ter de ser também uma ação pedagógica para a equipe apoiada. Nesse caso, a/o apoiadora/or compõe com a equipe, enquanto técnica/o especialista em algum saber, a fim de compartilhar esse conhecimento específico, de forma a ampliar o saber da equipe e potencializar sua capacidade de ação. Nesse sentido, o apoio possibilita à equipe a construção de um modo de fazer saúde que seja singular, tanto para ela, como equipe, na sua capacidade de produzir o cuidado com aquilo que ela tem de recurso, como um cuidado de saúde que seja singular em relação à demanda específica do território e de cada usuária/o.

O apoio matricial tem uma dimensão de suporte técnico-pedagógico, ou seja, pressupõe apoio educativo para a equipe de referência e ações realizadas conjuntamente com ela. A partir de discussões clínicas conjuntas ou mesmo intervenções concretas junto com as equipes (consultas, visitas domiciliares, grupos), os apoiadores matriciais podem contribuir para o aumento da capacidade resolutiva das equipes, qualificando-as para uma atenção ampliada que contemple a complexidade da vida dos sujeitos. (Campos; Figueiredo; Pereira Jr; Castro, 2014, p. 989).

Conforme suas diretrizes, a metodologia de trabalho do NASF é o apoio matricial, aquele no qual uma equipe de especialistas compartilha seus núcleos específicos de saberes com as demais equipes de Atenção Básica, contribuindo para a ampliação da capacidade de cuidado destas.

Esse é o fundamento do arranjo apoio matricial: os profissionais das áreas especializadas, que não participam cotidianamente da equipe de referência, oferecem suporte técnico especializado a essas equipes. Seria uma oferta de um núcleo especializado ao campo interdisciplinar da equipe de referência. (Campos; Figueiredo; Pereira Jr; Castro, 2014, p. 989).

Nessa direção, o NASF desenvolve um trabalho compartilhado e colaborativo em pelo menos duas dimensões: clínico-assistencial e técnico-pedagógica. A primeira produz ou incide sobre a ação clínica direta com as/os usuárias/os; e a segunda produz ação de apoio educativo com e para as equipes. De acordo com a dimensão clínico-assistencial, existe a possibilidade de a equipe NASF fazer o atendimento direto à população, mas, necessariamente, esse suporte clínico-assistencial teria que se transformar, teria que se desdobrar, num suporte técnico-pedagógico.

A principal aposta no apoio matricial está na troca de saberes entre equipes e entre profissionais em torno da busca de ofertas de ações/serviços que tenham potência para modificar positivamente os problemas de saúde (no seu amplo sentido) de sujeitos, com o uso, o mais racional possível, de toda ordem de recursos disponíveis. (Oliveira, 2011, p.40)

A partir dessa compreensão, indagamos: seria o apoio matricial uma metodologia de trabalho NASF, capaz de impulsionar as equipes de AB a assumirem seu papel de cogestores do SUS e inverterem, pelo seu cotidiano de trabalho, essa lógica hegemônica de cuidado, baseada na doença e centrada no saber médico?

Se, por um lado, o apoio matricial tem se mostrado potente para aproximar as equipes de apoio das equipes apoiadas, para estreitar os vínculos entre as/os trabalhadoras/es, bem como ampliar as ofertas de cuidado da Atenção Básica, por outro, parece que não é suficiente para efetivar a mudança de modelo de cuidado. Nesse sentido, o apoio institucional é convidado a compor as metodologias de trabalho NASF, de forma indissociada do apoio matricial.

Podemos, assim, destacar a importância da presença de compreensões e práticas de apoio institucional, entendido como "[...] uma função gerencial para a cogestão, usada nas relações entre serviços, e entre gestores e trabalhadores" (Campos, Figueiredo, Pereira Jr & Castro, 2014, p. 984), articuladas às práticas de apoio matricial previstas para o trabalho do NASF, entendidas como "[...] um modo de funcionamento para o trabalho em rede, valorizando uma concepção ampliada do processo saúde-doença, a interdisciplinaridade, o diálogo e a interação entre profissionais que trabalham em equipes ou em redes e sistemas de saúde" (Campos, Figueiredo, Pereira Jr & Castro, 2014, p. 984).

Do mesmo modo que a PNH chama a atenção para a indissociabilidade entre clínica e gestão, o exercício do apoio pelas equipes NASF precisa atentar para o seu processo de trabalho, articulando as ações de apoio matricial às de apoio institucional. Isso porque as demandas de apoio que chegam da Atenção Básica são, quase sempre, pedidos de respostas rápidas e práticas, a partir de uma intervenção de um saber especializado. Portanto, se o NASF não incluir a dimensão institucional, utilizando as ações compartilhadas para ajudar as equipes a repensarem seus processos de trabalho, inevitavelmente, correrá o risco de se transformar em um ambulatório de especialidades ambulante.

Apoio institucional é pensado como uma função gerencial que busca a reformulação do modo tradicional de se fazer coordenação, planejamento, supervisão e avaliação em saúde. Assume como objetivo a mudança nas organizações, misturando e articulando conceitos e tecnologias advindas da análise institucional e da gestão. Opera o apoio disparando processos e propiciando suporte ao movimento de mudança deflagrado por coletivos, buscando fortalecê-los no próprio exercício da produção de novos sujeitos em processos de mudança. Considera que o objeto de trabalho do apoiador é o processo de trabalho de coletivos que se organizam para produzir saúde. Desse modo, a função apoio é chave para a instauração de processos de mudança em grupos e organizações. O apoio institucional adota como diretriz a democracia institucional e a autonomia dos sujeitos. Por isso, o trabalho do apoiador envolve sempre a constituição/inserção do apoiador em movimentos coletivos, ajudando na análise da instituição, buscando novos modos de operar e produzir das organizações. Opera em 'uma região limítrofe entre a clínica e a política, entre o cuidado e a gestão - lá onde estes domínios se interferem mutuamente' trabalhando no sentido da transversalidade das práticas e dos saberes no interior das organizações (Brasil, 2008). (Oliveira, 2011, p. 34)

Nesse sentido, é possível notar a necessidade de investir na formação de trabalhadoras/es NASF, a fim de que sejam capazes de expandir o apoio especializado para um apoio generalista que tenha como horizonte o fortalecimento da Atenção Básica, a partir da ampliação da promoção de saúde.

O exercício do apoio sempre irá pressupor a instalação de algum grau de cogestão, de democracia institucional. Trata-se de articular os objetivos institucionais aos saberes e interesses dos trabalhadores e usuários. O termo apoio indica uma pressão de fora, implica trazer algo externo ao grupo: sustentar e, ao mesmo tempo, empurrar o outro. (Campos; Figueiredo; Pereira Jr; Castro, 2014, p. 991)

Então, operar na ponta como apoio, apostando no olhar para as pequenas revoluções cotidianas, transformando esse trabalho diário em material para discussão de processos de trabalho, aponta para a autonomia das/os trabalhadoras/es para fazer a gestão do seu cotidiano de trabalho, como uma estratégia de resistência, de possibilidade de manutenção do SUS, por meio de intervenções micropolíticas, nesses tempos em que, no âmbito macropolítco, o cenário é de desmanche das políticas sociais.

 

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Recebido em: 03/07/2018
Aprovado em: 04/02/2019

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