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Revista de Psicologia da UNESP

versão On-line ISSN 1984-9044

Rev. Psicol. UNESP vol.17 no.2 Assis jul./dez. 2018

 

ARTIGOS

 

Trabalho como estratégia de reabilitação social: desafios e potencialidades de uma oficina de trabalho

 

 

Amanda Oliveira Martins; Ellen Cristina Ricci; Bruno Ferrari Emerich; Rosana Onocko Campos

Universidade Estadual de Campinas

 

 


RESUMO

Ao longo da História, a relação entre loucura e trabalho sofreu diversas mudanças. O trabalho já foi utilizado como ocupação, tratamento e, finalmente, como estratégia da Reabilitação Psicossocial. Este estudo consiste em um relato de experiência e tem como principais objetivos discutir os desafios e contradições encontrados no campo do trabalho articulado à saúde mental, bem como as possibilidades de ampliação de cidadania e construção de um novo sujeito a partir da atividade laboral. Discute-se sobre a prática numa oficina de geração de renda e as possíveis estratégias para que o trabalho assuma a função de produtor de autonomia e cidadania.

Palavras-chave: saúde mental; trabalho; cidadania; reabilitação psicossocial.


ABSTRACT

Throughout history, the relationship between madness and work has undergone several changes. The work has already been used as occupation, treatment and, finally, as a Psychosocial Rehabilitation strategy. This study consists of an experience report and ai ms to discuss the challenges and contradictions found in the field of work articulated to mental health, as well as the possibilities of expanding citizenship and building a new subject from work activity. It discusses the practice in an income generation workshop and the possible strategies for the work to assume the role of produc er of autonomy and citizenship.

Keywords: mental health ; work; citizenship; psychosocial rehabilitation.


 

 

Introdução

Este trabalho consiste em um relato de experiência sobre um serviço de geração de renda que compõe a rede de atenção psicossocial do município de Campinas, a partir do olhar de uma terapeuta ocupacional em formação na Residência Multiprofissional de Saúde Mental da UNICAMP. Objetiva-se discutir os desafios e contradições encontrados no campo do trabalho articulado à saúde mental, bem como as possibilidades de ampliação de cidadania e construção de um novo sujeito a partir da atividade laboral.

A inclusão social das pessoas com transtorno mental na sociedade, de forma que suas singularidades possam se expressar, é um dos desafios da reforma psiquiátrica brasileira. Em relação ao trabalho, os desafios estão relacionados ao modelo de produção capitalista, que classifica as pessoas de acordo com um padrão de normalidade baseado na noção de produtividade e exclui do mercado de trabalho os sujeitos considerados inaptos ou improdutivos.

De acordo com Foucault (1970), durante o período da Revolução Francesa, o nascimento do modelo de produção capitalista levou à expulsão de muitas pessoas pobres e doentes do mundo do trabalho. Assim, em resposta às exigências da sociedade capitalista, criaram-se estabelecimentos para internar quem era considerado inapto ao trabalho. Não eram apenas as pessoas consideradas loucas que eram colocadas nesses lugares, mas também desempregados, idosos e doentes. Os sujeitos considerados loucos permaneceram confinados e excluídos em tais estabelecimentos até a criação dos primeiros hospitais psiquiátricos. Existe portanto, uma relação histórica entre o desenvolvimento do capitalismo e a exclusão social da loucura (Rodrigues; Marinho; Amorim, 2010).

Ao longo da História a relação entre loucura e trabalho sofreu diversas mudanças. Cada período histórico se utilizou do trabalho de determinada maneira. Inicialmente, o trabalho teve função disciplinadora, através da manutenção da ordem social e econômica. No período da Idade Média, quando o ócio e a improdutividade eram condenados, surgem instituições que visavam impedir o risco de desordem social, que poderia ameaçar a sociedade produtiva da época, através da imposição do trabalho (Santiago e Yasui, 2011).

Com a fundação da Psiquiatria, o trabalho foi promovido à prática curativa através do Tratamento Moral, proposto por Pinel. A disciplina e a ordem do trabalho mecânico foram utilizadas como medida de cuidado psiquiátrico sistemático imposto às pessoas consideradas loucas. O trabalho foi promovido da categoria de ocupação para prática curativa prescrita pelo psiquiatra. A atividade laboral pertencia ao conjunto de ações terapêuticas do paciente no manicômio e tinha como objetivo a transformação da personalidade e dos comportamentos dos loucos, seguindo ainda os preceitos de Pinel. Assim, a capacidade de trabalhar era considerada indicativo de adequação social e a incapacidade, inadequação. Santiago e Yasui (2011) destacam que mesmo quando utilizado como ação curativa, o trabalho ainda está centrado em princípios de ocupação do tempo.

A partir dos anos 70, a Reforma Psiquiátrica Brasileira se constitui tendo como base a reforma italiana. Criticava-se o modelo hospitalocêntrico e propunha-se uma mudança de olhar o sujeito em sofrimento psíquico, retomando sua subjetividade. Nesse contexto, o trabalho abandona o caráter curativo e passa a compor os projetos terapêuticos singulares como instrumento de ampliação da autonomia e resgate de cidadania.

A reforma é baseada na Reabilitação Psicossocial, que se configura como um processo gradual e complexo de "reconstrução, um exercício pleno de cidadania e, também, de plena contratualidade nos três grandes cenários: habitat, rede social e trabalho com valor social" (Saraceno, 1996, p. 16). Saraceno fala sobre esses três cenários, pois, segundo o autor, é neles que acontecem cenas, histórias e o desenrolar dos efeitos de todos os elementos, que seriam dinheiro, afetos, poderes, símbolos, etc. Assim, a reabilitação psicossocial caracteriza-se como uma prática clínica diretamente conectada com as variáveis reais da vida da pessoa, sendo o trabalho uma destas. Ainda de acordo com Saraceno, a reinvenção das relações de produção e as cooperativas/oficinas de trabalho eram a chave de todo esse processo.

Diversos autores argumentam sobre a importância do trabalho para produção de valores e trocas com o mundo. Conforme afirma Rotelli,

(...) o trabalho pode ser o ocultamento das necessidades ou pode ser o processo através do qual se amplia o leque das necessidades. Pode ser o modo através do qual uma pessoa troca com o mundo e pode ser, ao invés disso, o modo pelo qual uma pessoa pode permitir-se não trocar mais nada com ninguém. Pode ser as duas coisas, mas, se advém de um processo de formação e se a inserção no trabalho, mais do que ser uma adaptação a um mundo circunscrito, se transforma em um processo de formação, então o discurso se modifica e aí acontecem coisas muito interessantes que estão relacionadas com a progressividade (2000, p. 182).

A prática em uma oficina de geração de renda

O campo de prática que serviu de base para a reflexão deste trabalho é um serviço de saúde voltado para geração de trabalho e renda no município de Campinas. Atualmente, o serviço conta com três oficinas, sendo uma de culinária e duas de artesanato, cada uma possui cerca de 18 usuários inseridos. A equipe é composta por técnicos de nível superior, que são os coordenadores das oficinas, e nível médio, que são os monitores das atividades. Os coordenadores das oficinas são profissionais da saúde mental que além de serem responsáveis pelas questões administrativas da oficina, são referências para os usuários em seu cuidado em saúde. O serviço atende usuários da saúde mental que chegam encaminhados dos serviços que compõe a rede de saúde do SUS de Campinas.

Os usuários produzem e comercializam produtos artesanais e toda a renda das vendas é revertida em bolsa oficina para todos que estão inseridos. O pagamento é feito por hora trabalhada e cada pessoa tem uma carga horária diferente, de acordo com seus desejos e possibilidades. Alguns tem o trabalho da oficina como principal atividade do cotidiano, outros conciliam o trabalho com outras atividades do Centro de Atenção Psicossocial, do Centro de Convivência, ou outras. A carga horária mínima é de dois períodos por semana e a máxima chega a dez períodos, ou seja, todos os dias, o dia inteiro. As oficinas funcionam de segunda à sexta-feira, das 8h às 16h, porém há alguns eventos aos finais de semana. O controle das horas trabalhadas é feito pelo livro ponto, o qual é assinado sempre que o usuário comparece à oficina.

A divisão de funções da oficina leva em conta as habilidades de cada usuário, deste modo, nem todos desempenham todas as funções. Há uma avaliação do desempenho e habilidade dos usuários pelos coordenadores e monitores das oficinas para delegar as atividades que serão exercidas por cada pessoa. Os produtos produzidos são vendidos no próprio serviço, que possui uma loja, e eventos diversos, como feiras de artesanato, congressos, etc.

Durante minha inserção como residente, optei por acompanhar apenas uma das oficinas para que fosse possível acompanhar com maior proximidade o seu cotidiano e os usuários nela inseridos.

 

Discussão

Entretenimento, tratamento ou reabilitação?

Para uma pessoa ser inserida em uma das oficinas de trabalho do serviço, é necessário que ela seja encaminhada ou acompanhada por algum serviço de saúde. Em um primeiro momento, é realizado um cadastro, onde se colhe os dados gerais da pessoa, o histórico profissional e o histórico clínico, solicitando diagnóstico, como e quando o quadro se desenvolveu e o local de tratamento.

O que pude observar durante minha prática é que muitas pessoas que chegam ao serviço são encaminhadas por profissionais da saúde para que possam incluir uma nova atividade no cotidiano com objetivo de reduzir a ociosidade e poucos encaminhamentos tem uma demanda clara de trabalho. Também ouvi diversos relatos de usuários que consideram o trabalho como uma ocupação, tanto no sentido de distração da mente como uma maneira de preencher o cotidiano e diminuir o tempo ocioso. O entendimento do trabalho como mera ocupação resgata, de certo modo, o preceito de que se ocupa a mente para ficar bem e afastar maus pensamentos. Também retoma a ideia de que a atividade de trabalho por si só é capaz de produzir algum valor e sentido para o sujeito.

Saraceno (1996) nos alerta para a possibilidade de uma estratégia de reabilitação psicossocial se tornar um entretenimento. Quando uma atividade assume a função de entreter para manter um sujeito dentro de uma instituição, em vez de produzir saúde, se reproduz enfermidade. É preciso romper com esse entretenimento, que nada mais é um adestramento, e assumir os grandes cenários da vida da pessoa. Além disso, o autor defende que uma etapa para (re)construção da contratualidade pode passar por uma atividade, como o artesanato, mas passar por, não terminar em.

Deste modo, através da atividade realizada na oficina de trabalho se constrói um pedaço que é apenas um fragmento do exercício da cidadania. Isso porque, não é o estar na oficina ou a montagem de uma peça artesanal que produz cidadania e contratualidade, mas sim as diversas dimensões daquele trabalho, como o que ele significa para o sujeito, que forma ele se configura, que sentidos e valores ele produz.

Além do significado do trabalho enquanto ocupação, também há o entendimento do trabalho como tratamento. De acordo com Silva e Lussi (2010), no Brasil é ainda ambíguo o caráter atribuído ao trabalho, seja pelos serviços de saúde mental, seja pelos usuários. O trabalho ora é concebido como instrumento terapêutico, ora como forma de conquistar e exercer cidadania.

Pude vivenciar este fato na prática, pois muitos usuários que chegam encaminhados de outros serviços de saúde compreendem que a oficina compõe o tratamento. Além da utilização histórica do trabalho como terapia, o fato de o grupo de pessoas que compõe as oficinas ser composto somente por usuários de serviços de saúde mental, pode reforçar essa concepção. Ademais, as oficinas nasceram no interior de um serviço de saúde mental, onde os usuários muitas vezes chegam por encaminhamento, há evolução em prontuários e, no momento do cadastro, os profissionais colhem a história clínica dos usuários. Alguns usuários trazem essa relação do trabalho como tratamento de maneira mais explícita ao utilizarem o termo terapia como equivalente ao trabalho, ou comparam a atividade da oficina de trabalho com a atividade de uma oficina terapêutica que já tenham participado, do CAPS, por exemplo.

Enquanto o usuário do serviço compreende o trabalho da oficina enquanto tratamento, ele ainda está dentro de uma instituição de saúde no lugar de doente, incapaz de se inserir numa atividade produtiva. Quando ele supera esse entendimento e compreende que naquele espaço ele está inserido em um trabalho real, o usuário deixa aquele lugar de sujeito passivo e começa a ocupar uma posição ativa, de um sujeito que é capaz de produzir valores, estar em relação com outras pessoas e ser reconhecido por o que ele produz. Isso abre a possibilidade de produção de uma nova subjetividade e um novo lugar social, que será abordada mais profundamente no próximo tópico dessa discussão.

Nessa perspectiva, o trabalho precisa superar o entretenimento e o terapêutico para ser reconhecido como uma estratégia de reabilitação psicossocial. Reabilitação não compreendida como um percurso individual da inabilidade à habilidade, mas como um processo não linear de potencialização das possibilidades de trocas sociais, de afetos, e de recursos, e de tessitura de redes múltiplas de negociação (Saraceno, 1996). Trata-se de reconhecer e fortalecer a contratualidade real dos sujeitos e, dessa forma, inventar percursos que viabilizem os múltiplos projetos de vida das pessoas.

Trabalho como produção de cidadania

Durante o ano em que estive no serviço, observei que muitos profissionais encaminham os usuários para uma oficina de trabalho com o objetivo específico da geração de renda. Assim, algumas pessoas chegam no serviço interessadas apenas no valor que ganharão como bolsa mensal e, quando descobrem que o valor é razoavelmente baixo, desistem de serem inseridos. No geral, percebi que um critério importante para o encaminhamento pelos profissionais de outros serviços é a necessidade de uma renda complementar para usuários em situação de vulnerabilidade. Não entendo que seja um critério equivocado, mas o objetivo de inclusão numa oficina de trabalho vai muito além de ganhar dinheiro.

O conceito de Reabilitação Psicossocial exposto por Saraceno (1999) está vinculado à ideia de cidadania, não como restituição de direitos formais, mas como reconhecimento do usuário como sujeito de razão e de vontade, respeitando suas diferenças e promovendo sua participação nos contextos da vida social. De acordo com o autor, esse processo de construção abrange diversos elementos, como afetivo, relacional, material, habitacional e produtivo. É também um processo ético, pois é contra o estigma e a exclusão social.

Desta forma, além do trabalho ser entendido como um meio de geração de renda, também pode ser considerado um meio de auto realização, a partir da produção de sentidos e valores subjetivos de troca. Além disso, a atividade laboral produz uma transformação do papel social dos usuários, que passa de doente para trabalhador. Trata-se de pensar a inclusão social do usuário da saúde mental pelo mundo do trabalho, com um ideal maior, que é sua emancipação.

Na prática da oficina de trabalho, foi possível notar que os usuários assumem mais as funções de produção, ficando a maior parte do tempo - ou todo tempo - dentro do serviço de saúde, ou seja, dentro da instituição. Isso se dava tanto pela falta de desejo de alguns usuários em realizar ações externas como pela dificuldade dos que tinham interesse em acessar e circular pelo território. Assim, ficava a cargo dos profissionais assumir tarefas como compra de materiais nas lojas da cidade, vendas em locais mais afastados ou em horários distintos do funcionamento da oficina.

Saraceno considera a reabilitação psicossocial como um processo que implica na abertura de espaços de negociação para os usuários, sua família e a comunidade circundante. O autor introduz o conceito de contratualidade, ou seja, a capacidade de engendrar contatos sociais, o que permitiria ao usuário subverter o processo de reclusão que é resultado dos efeitos da doença mental e da "exclusão social", condição caracterizada pela precariedade de existência material e subjetiva (Taleikis, 2009).

A participação no mercado de trocas, de produção e de consumo de bens coletivos pode ser um ponto de partida para a inclusão social. De acordo com Ghirardi (2004), ao se considerar o trabalho como ponto de partida de um processo que pretende viabilizar um resgate de subjetividades, supõe-se que é no trabalho que se estabelecem redes de negociação e de trocas, que possibilitam que as relações com a diferença ganhem maior complexidade.

Ainda segundo a autora, estar incluído em nossa sociedade pode ser também traduzido pelo potencial de produção e consumo que cada sujeito demonstra. Ser um sujeito social significa também estar em condição de participar da rede de produção/consumo da sociedade. É a possibilidade de produzir valores de troca reconhecidos socialmente e ter condições para ampliar ou ter garantido o seu poder de realizar contratos sociais. Dentro dessa perspectiva, é importante ressaltar que um recurso importante para os programas de reabilitação é a comunidade. A possibilidade de circulação em outros lugares da cidade, em cenários reais da vida, permite a desidentificação com a doença e uma maior valorização dos oficineiros em relação aos seus aspectos saudáveis. Também permite que o autor das peças artesanais seja identificado e tenha seu trabalho valorizado.

Outra questão que gerou muitas reflexões é o desafio da composição de mercado e cidadania. Nas produções teóricas, também há trabalhos que discutem o grande dilema que consiste na incapacidade de a cidadania ser posta acima das relações de mercado. Hirdes (2009) discute que este dilema advém de as relações de mercado situarem-se como fim, e não como meio, estabelecendo uma ordem de inversão de valores humanos e éticos. Demo (apud Hirdes, 2009) argumenta que cidadania e economia não podem ser visualizadas de maneira separada, ambas são colunas mestras do desenvolvimento, a cidadania remetendo ao fim, enquanto a produção é meio.

Trabalho autogestionário

A oficina afirma que tem seu trabalho baseado nos princípios da economia solidária. A economia solidária pode ser entendida, de acordo com Singer (2003 apud Andrade et al., 2013), como o conjunto de atividades econômicas - produção, comercialização, consumo, poupança e crédito - organizadas sob a forma de autogestão, isto é, pela propriedade coletiva do capital e pela participação democrática dos membros em todas as decisões.

Segundo o mesmo autor, é a partir da década de 80 que ocorre o desenvolvimento da economia solidária no Brasil. Houve crescimento do trabalho informal como geração de renda, de sobrevivência material e de manutenção de espaços de trabalho, mesmo em condições precárias. Isso devido aos níveis de desemprego nas últimas décadas do século XX. Nesse contexto, a economia solidária surge como estratégia alternativa ao desemprego e à precarização do trabalho, como uma nova maneira de organizar o trabalho através da autogestão e da solidariedade (Andrade et al., 2013). Na articulação da saúde mental com a economia solidária, o trabalho é um meio de interlocução entre essas duas políticas públicas.

No serviço acompanhado, há dois espaços deliberativos com os usuários e profissionais. As reuniões de oficina, que acontecem no interior de cada oficina com diferentes frequências, e a assembleia, que ocorre uma vez por mês com todos os usuários e profissionais do serviço. Muitas questões são discutidas apenas nas reuniões de equipe e os usuários não tem possibilidade de participação, como a seleção de feiras que as oficinas irão participar, a escala de quem ficará responsável pelas vendas, etc.

A autogestão difere da heterogestão, onde apenas pessoas com posições superiores decidem, orientam e definem os rumos dos processos da produção. Na autogestão, as decisões se dão no coletivo, discutindo-se em grupo quais são as ações prioritárias. Quando se organizam os processos de trabalho sob essa ótica, o conjunto de práticas desenvolvidas estimulam a autonomia do grupo, que é responsável pelas decisões dos processos de gestão que ultrapassam a noção de gerência e abrangem aspectos políticos, técnicos, psicossociais, etc (Andrade et al., 2013).

Quando se propõe uma autogestão numa oficina de geração de renda vinculada à saúde mental, é uma possibilidade de superar as limitações individuais de cada usuário e debater as questões relevantes para o grupo. Assim, as limitações de cada pessoa, os ritmos de produção, a qualidade dos produtos, são aspectos debatidos nas reuniões com a participação de todos. De forma geral, essa experiência convoca os usuários para uma situação até então inusitada, onde eles assumem um novo papel social central e não mais marginal, e isso abre espaço para uma transformação da relação que eles podem estabelecer consigo e com os outros. É necessário articular uma maneira mais democrática de organizar o trabalho através da autogestão e da solidariedade. Quando se organizam os processos de trabalho sob essa ótica, o conjunto de práticas desenvolvidas estimulam a autonomia do grupo, que irá decidir os rumos do processo de produção.

Muitas vezes, a noção de autonomia está associada à ideia de capacidade individual dos sujeitos em vitoriosamente participar do jogo social, sendo assim vinculada à ideia de que a autonomia busca o melhoramento das habilidades pessoais danificadas. Entretanto, na proposta da reabilitação voltada à cidadania, à autonomia está associada à participação dos sujeitos de maneira equivalente, modificando as regras do jogo, de maneira que todos participem (Saraceno, 1999).

 

Considerações Finais

O trabalho caracteriza-se como uma importante estratégia para a Reabilitação Psicossocial, no sentido de poder se configurar como um produtor de vida, autonomia e cidadania dos usuários da saúde mental. É um relevante recurso para vencermos a lógica de exclusão da loucura e possibilitar a inclusão social.

Entretanto, para que o trabalho assuma esse caráter, deve-se superar as concepções de trabalho enquanto ocupação e tratamento. Para tanto, é preciso que os profissionais estejam sempre atentos e tenham uma reflexão crítica sobre sua prática, para que a atividade de trabalho não se caracterize como um entretenimento ou como uma atividade terapêutica. Só superando tais concepções que o trabalho poderá ser um construtor da cidadania e emancipação social dos sujeitos.

Assim, as oficinas de geração de trabalho e renda, além de fornecer uma fonte de renda, propiciam um ambiente para troca de experiências e vivências, permitindo que os sujeitos inseridos passem por um processo de autoafirmação, construção de redes sociais e transformação de seu papel social, antes vistos como doentes e incapazes, mas agora considerados trabalhadores e produtores de valor.

O processo de mudança provocado pelo trabalho no contexto de constituição de uma iniciativa de inclusão social pelo trabalho é instigante e desafiador, mas também traz possibilidades que podem causar impacto positivo na saúde e na vida dos sujeitos. É possível afirmar que o trabalho é um meio de inclusão na sociedade e que proporciona o direito de produzir, de reproduzir e de prospectar a vida; assim, promove autonomia, cidadania, emancipação e produção de outros modos de subjetivação.

 

Referências

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Recebido em: 18/09/2018
Aprovado em: 04/02/2019

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