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Revista de Psicologia da UNESP

On-line version ISSN 1984-9044

Rev. Psicol. UNESP vol.18 no.1 Assis Jan./June 2019

 

ARTIGOS

 

A gente quer comida, diversão e arte: em defesa dos Centros de Convivência em tempos de crise

 

 

Victória Junqueira Barros; Bruno Ferrari Emerich; Rosana Onocko Campos; Ellen Ricci

Universidade Estadual de Campinas

 

 


RESUMO

Em tempos de crise política, econômica e dos direitos sociais, o presente relato de experiência, se propõe a discutir a relevância dos Centros de Convivência (CECOs) na consolidação da rede substitutiva de saúde mental. Dentre os serviços preconizados pelo SUS, são eles os que possuem menor visibilidade e, consequentemente, ocupam pouco interesse/investimento nas políticas públicas. Compreendemos que estes serviços atuam no protagonismo da interface entre arte/cultura/lazer/educação/trabalho e operam a partir do resgate da dimensão comunitária e desejante de cada sujeito. Nesta perspectiva, partimos da análise das políticas públicas e do olhar da psicanálise para discutir aspectos clínicos-institucionais presentes nos CECOs. Neste estudo, são utilizadas cenas da experiência de uma das autoras em um CECO do Município de Campinas.

Palavras chaves: centros de convivência; saúde mental; clínica; instituição.


ABSTRACT

In times of political, economic and social rights crisis, this experience report discuss the relevance of the Community Centers (CECOs) in the consolidation of the substitutive mental health system. Among the services advocated by the SUS, they are the ones with the lowest visibility and, consequently, have little interest /investmen t of public policies. We understand that these services act in the front line of the interface between art/culture/leisure/education /work . They operate based on the rescue of the communitarian dimension and desire of each subject. From this perspective, we start with the analysis of public policies and the psychoanalytic approach to discuss clinical - institutional aspects present in CECOs. In this study, scenes from the experience of one of the authors in a CECO of the Municipality of Campinas are used.

Keywords: community centers; mental health ; clinic ; institution.


 

 

Introdução

O presente relato de experiência se propõe a refletir e dar visibilidade a função dos Centros de Convivência (CECOs) na consolidação da rede substitutiva de saúde mental. O debate foi realizado a partir da narrativa de uma das autoras NN [eliminado para efeitos da revisão por pares] que atuou, no ano de 2016, como residente de psicologia na Residência Multiprofissional de Saúde Mental e Saúde Coletiva da Unicamp, junto ao Centro de Convivência Tear das Artes1, localizado no município de Campinas/SP.

Diante do contexto de crise econômica, política e da garantia dos direitos sociais, dentre eles a saúde, testemunhamos em 2016 o aumento da população SUS dependente e, paralelo a isto, a aprovação da emenda constitucional (PEC 55) que congelou, em termos reais, os gastos primários do governo federal por, no mínimo, 10 anos (Rugitsky, 2016). Assim, o subfinanciamento do SUS, que já estava presente em suas origens, tem previsão de se agravar.

O impacto destas mudanças sobre os CECOs foi particularmente danoso. Dentre os serviços da rede preconizados pelo SUS, são eles os que possuem menor visibilidade e, consequentemente, ocupam pouco interesse/investimento nas políticas públicas. Sobre esta questão, o último relatório elaborado pelo Ministério da Saúde sobre a saúde mental no SUS, gestão de 2011 à 2015, aponta que:

[...] no âmbito das políticas ministeriais, não há, atualmente, portaria específica, ou mecanismo legal para repasses financeiros que viabilizem sua implantação e custeio. Esta pauta não assumiu caráter prioritário entre as ações desenvolvidas pela Atenção Básica após publicação da portaria 3.088 em 2011. Assim, sugere‐se que este dispositivo, por sua relevância, amplamente reconhecida e pleiteada, principalmente no âmbito da saúde mental, deve ser considerada nos planejamentos e estratégias a serem delineados para a RAPS (Ministério da Saúde, 2016, p. 42).

Os CECOs centram suas ações em territórios marcados pela marginalidade, comunidades nas quais impera a privação de direitos sociais e onde nos deparamos com formas distintas de sofrimento. A fim de responder a estas demandas e contribuir para a consolidação da rede substitutiva de saúde mental, estes serviços atuam no protagonismo da interface entre arte/cultura/lazer/educação/trabalho e operam a partir do resgate da dimensão comunitária e desejante de cada sujeito. Aqui as linhas tecidas entre saúde, cultura e educação visam a construção de autonomia e cidadania (Ferigato, 2013).

Em tempos de crise, de sucateamento do SUS e da ameaça de desmonte, avaliamos a necessidade de defender estes espaços comunitários.

 

Os CECOs na reforma psiquiátrica

Como se sabe, desde 2001, a partir da promulgação da lei 10.216 (Diário Oficial da União, 06 Abr 2001), o cuidado em saúde mental assumiu o compromisso radical com a vida, com a desinstitucionalização e a desconstrução do modelo e das práticas manicomiais, promovendo ações que visam à construção de autonomia, cidadania, a luta contra o estigma e a produção de saúde. Em termos práticos, isso implica no fechamento dos manicômios e no estabelecimento de uma rede substitutiva eficaz (Morais, 2016).

Compreendemos a Reforma Psiquiátrica para além das transformações do modelo assistencial. Trata-se de mudanças éticas, políticas e culturais, da desconstrução do modelo centrado na doença e a construção de um novo olhar sobre o sujeito (Amarante, 2003).

Nesta empreitada, os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) são centrais, no entanto, para que se conquiste a real Reforma, é necessária a articulação de diferentes dispositivos e a construção de pontes entre os campos da saúde, educação e trabalho. Sem estes elementos, corremos o risco de fomentar práticas clínico-institucionais de "segregações humanizadas". Dispositivos que podem se tornar novamente a conhecida "cara da saúde mental" que nos olhava, e nos olha, pela janela dos hospitais psiquiátricos.

Orientados pelos princípios da desinstitucionalização e da reforma psiquiátrica, os CECOs começaram a ser implementados no final da década de 80. Estes serviços despontam enquanto polo de resistência e estão ancorados, por princípio, na intersetorialidade: saúde pública, saúde sanitária, cultura, meio ambiente, trabalho, educação.

O centro de convivência nasceu com a vocação de funcionar numa potência de desterritorialização de cada território ao qual está ligado, ou seja, seu caráter intersetorial insere a cultura na saúde, a saúde nas áreas verdes, a ecologia nos esportes e, atravessando tudo isso, as ideias de inclusão, convivência e criação. Um projeto que visava desde o início, a conexão de pessoas não pelas suas patologias, mas pela experimentação da arte, do trabalho e do lazer (Galetti, 2015, p. 20).

Diferente de outros dispositivos da rede, os CECOs operam na radicalidade do acesso, estão abertos para todos, sem realizar qualquer forma de "recorte clínico". Aqui, a questão da alteridade passa a ocupar de forma maciça a instituição. Convivência entre adultos, crianças, idosos, os que sofrem com a falta de contato com a realidade compartilhada, aqueles que padecem da solidão, há quem sinta saudade da família, dos filhos que saíram de casa, quem frequenta só pra ler, para usar o Wi-Fi, para escutar música, tem quem só fica sentado ali, vivendo uma forma de solidão acompanhada. Na suspensão das insígnias clínicas da saúde, o "psicótico", "neurótico", a "depressiva", o "crônico", o "hiperativo", tem a abertura e a possibilidade para conviver.

Nestes espaços existe a presença marcante dos usuários dos CAPS. No entanto, todos os frequentadores são convidados a se reunir em torno de uma mesma atividade ou interesse. Fundamentalmente, o público alvo são pessoas com diferentes limitações e vulnerabilidades, cujo ponto de união não é a patologia, mas o desejo e a curiosidade.

Tendo em vista este diferencial, são serviços que tem se potencializado enquanto ferramenta para o tratamento em saúde mental, e também da própria saúde coletiva e da rede de serviços que compõem o SUS e as Políticas Públicas Intersetoriais. Suas ações podem incorporar diferentes níveis de atenção, e não apenas as categorias de promoção e prevenção em saúde.

Problematizando essa concepção de inclusão, entendemos que os CECOs podem fazer mais do que "incluir pessoas excluídas". Os CECOs tem fabricado novos modos de sociabilidade, ou formas de sociabilidade alternativa, da qual todos nós estamos excluídos, na medida em que todos nós somos privados pelo projeto neoliberal de sociedade de viver um modo de convivência que valorize a ação coletiva (Ferigato, 2013, p. 110).

A heterogeneidade também deveria estar presente na composição da equipe de trabalho. Dentre os diversos equipamentos preconizados pelo SUS, talvez o CECO seja aquele no qual as bordas entre campo e núcleo (Campos, 2000) sejam mais permeáveis.

Nos CECOs os profissionais são convocados a todo o momento para tarefa de reinventar seu núcleo de saber. A riqueza destes dispositivos está na possibilidade de ter oficinas coordenadas por músicos, artistas plásticos, capoeiristas, professores de dança, por profissionais com distintos saberes. Nesta troca, o que se produz pode ir muito além de uma "somatória de saberes", uma construção que enriquece a experiência de usuários e profissionais (Galetti, 2015).

Infelizmente, observamos que a realidade destes equipamentos no município de Campinas é a escassez de recursos humanos, equipes compostas quase que exclusivamente por profissionais do campo da saúde, com pouca participação de outros núcleos; o desinvestimento político que se agrava ao longo dos anos; serviços que permanecem sem gestão; sem condições para sustentar suas oficinas, para realizar ações no território; ou seja, sem condições para sustentar práticas coerentes com a proposta ético-política que lhes deu origem.

A intersetorialidade também é constitutiva destes equipamentos. Tratam-se de práticas que são voltadas à tarefa de conectividade da rede e que, portanto, invertem a lógica hegemônica que tende a resumir a rede ao somatório de serviços (Lopes, 2015).

Rede para além da soma. Diante da ameaça e do desinvestimento do setor público, não é raro que esta dimensão fique em segundo plano. Em tempos de sucateamento do SUS, a potência da intersetorialidade, fundante dos CECOs, pode transformar-se em ponto de fragilidade. Seu caráter progressista depende da articulação de distintas secretarias, da pactuação entre gestores, do compromisso dos envolvidos em sustentar práticas pautadas na lógica comunitária. Sendo filho de muitos pais, estes dispositivos são facilmente negligenciados e desinvestidos pela gestão pública e pelos próprios profissionais da rede de saúde mental e da cultura.

Em discussão promovida pelo CRP (Lopes, 2015), a invisibilidade dos CECOs e da clínica que ali se opera foram pontos centrais dos debates. Que investimentos em prevenção de saúde contribuem para menores taxas de adoecimento e, consequentemente, redução gastos públicos, isso se sabe. No entanto, existe pouco conhecimento em relação aos impactos que os CECOs podem ter nesta equação. Ocorre que a clínica construída nestes serviços não se circunscreve apenas ao campo da saúde, mas parte da reinvenção de paradigmas de saúde, cultura e trabalho.

 

A clínica nos CECOs: uma tarefa social

Afinal, de qual clínica estamos falando? Aqui partimos do olhar da psicanálise para recordar a importância do laço comunitário, cujos elementos encontram-se ancorados nas instituições e organizações sociais.

Segundo a leitura psicanalítica, a fundação da organização social reside nas instituições. Freud (1987) refere que o que se coloca no centro do social é fundamentalmente a problemática da alteridade, do convívio entre diferentes que partilham as perdas e ganhos da entrada do princípio da realidade no princípio do prazer. O autor descreve a arte, como uma atividade capaz de conciliar de forma particular tais princípios.

A conciliação da qual usufrui o artista nos dá algumas pistas do que pode ser conquistado e produzido em um CECO. Mais do que arte, pensemos no impulso criativo, no ato de criar, o qual pode estar presente na confecção de uma peça de artesanato, em uma conversa ou uma oficina de trabalho.

Já Winnicott (1975), aborda a discussão do conceito de saúde enlaçando-a ao viver criativo "É através da apercepção criativa, mais do que qualquer outra coisa, que o indivíduo sente que a vida é digna de ser vivida" (p. 95).

Para este autor, as bases para o viver criativo se encontram nas experiências primitivas de vida, na garantia das provisões ambientais, nas experiências de continuidade e contingência. A privação destas condições implica no empobrecimento do brincar e consequentemente do que o autor denominou de capacidade de experiência no campo cultural (Winnicott, 1989).

As experiências comunitárias e culturais são a essência dos CECOs. Cabe a eles sustentar práticas que olhem o sujeito em sua complexidade, produções nas quais a criatividade e o desejo encontrem meios de expressão e aproximem produção de vida material da produção desejante.

Quando se deseja, através da arte ou do trabalho produzir territórios existenciais (inserir ou reinserir os "usuários", torná-los cidadãos...) creio que está se falando (ou, do meu ponto de vista, dever-se-ia falar) não de adaptação à ordem estabelecida, mas de fazer com que o trabalho e a arte se reconectem com o primado da criação, ou com o desejo [...] (Rauter, 2000, p. 7).

Sempre existirá o risco de que nossas práticas sejam capturadas pela lógica hegemônica da produtividade e alienação do trabalho, que a "reabilitação psicossocial" viva a perversão de ser reduzida à adaptação social. Assim, o que se ambiciona nos espaços de convivência é o antagonismo da sujeição, a possibilidade de construir práticas voltadas à experimentação e a construção conjunta de um coletivo possível.

Conforme foi exposto, a vida social acontecerá na trama de diferentes instituições: família, religião, estado, escola, grupos distintos. Nesta cena os serviços de saúde, os quais abarcam os CECOs, podem ser compreendidos enquanto representantes da preocupação social em prover cuidados que faltaram para determinados sujeitos.

Compreende os CECOs enquanto provocadores e produtores de encontros, provocar aqui no sentido de despertar núcleos desejantes (Lopes, 2015). Falar de Centros de Convivência é, portanto, falar em defesa do desejo, da produção de vida, da potência criativa em suas mais variadas formas de expressão: cultura, arte, trabalho, leitura de livro, conversa de fim de tarde, um minuto para o café. Ferigato (2013), desenvolve a concepção de que os CECOs operam na clínica do acontecimento:

[...] uma clínica que opera mais no tempo intensivo do que no tempo cronológico, numa clínica que se baseia mais na produção de sentido do que na produção de cura ou de normatividade, num modo de cuidado que se propõe a produzir novos territórios existenciais em constante transformação para sujeitos e coletividades a partir do encontro entre pessoas, entre pessoas e objetos, pessoas e materialidades, entre territórios, saberes, entre diferenças (Ferigato, 2013, p. 242)

Portanto, a defesa dos CECOs é por princípio uma defesa em nome do resgate da dimensão comunitária e de uma clínica que compreende o sujeito a partir de sua da potência criativa, reconhecendo sua capacidade para construir novos territórios existenciais. Trabalhar no resgate destes laços é apostar nas pequenas revoluções, investir no ser que é constituído de comunidade e que, portanto, representa uma esperança de transformação social.

 

Adoecimento e saúde institucional: cenas de um CECO

A fim de ilustrar as construções clínico-institucionais presentes nos CECOs, utilizaremos cenas provenientes da experiência de uma das autoras.

Ao longo de 2016, NN [eliminado para efeitos da revisão por pares] atuou junto a equipe do CECO Tear das Artes, gerenciado pela Prefeitura Municipal de Campinas. Neste ano, os serviços de saúde passaram por um importante processo de sucateamento e precarização.

A residência compõe o espaço como prática de campo desde 2014. Até 2011 havia uma parceria de co-gestão deste espaço em prefeitura municipal de campinas com o SSCF. Entre 2012 e 2013 este CECO foi gerenciado pelo Serviço de Saúde Cândido Ferreira, através de convênio firmado com a prefeitura, no entanto, no ano de 2014 este passou a integrar o aparato dos equipamentos de saúde da prefeitura, exclusivamente. Na transição a equipe foi substituída quase que integralmente por funcionários concursados da Secretaria Municipal de Saúde de Campinas e tanto profissionais, quanto usuários, indicam que esta mudança provocou um esvaziamento no serviço e desencadeou uma piora clínica de muitos usuários.

Em fevereiro de 2016,NN [eliminado para efeitos da revisão por pares] foi recebida por uma equipe de nove profissionais responsáveis por realizar as atividades no CECO e em uma Casa de Cultura localizada no mesmo território.

Logo nos primeiros meses, entre fevereiro e abril, esta equipe foi reduzida de nove para cinco profissionais. O distrito de saúde informou que duas vagas não eram passíveis de reposição e que as vagas da coordenadora, do psicólogo e da enfermeira poderiam ser repostas, no entanto, não havia previsão.

Esta nova evasão trouxe à tona antigas tensões institucionais originadas na transição Cândido-Prefeitura e o serviço foi convocado novamente a se reorganizar. Algumas consequências da redução foram o encerramento de oficinas, a impossibilidade de sustentar a participação em reuniões de rede, de realizar atividades no território, entre outras.

Enriquez (1989) nos fala sobre a importância de realizar um trabalho de morte nas instituições. Ações que possibilitam a quebra de identidades defensivas e de elementos que se cristalizaram enquanto resistências institucionais. A morte se apresenta então sob face da desestruturação-reestruturação, da auto-organização, da angústia que só quando compartilhada pode vislumbrar formas de superação. Neste sentido, a ameaça de morte também pode prover meios para o serviço seguir "vivendo".

A "crise" pela qual passou o CECO desencadeou diferentes formas de sofrimento e tensão. Contudo, também foi responsável pela produção de movimentos instituintes de potência criativa.

As ações de "vida institucional" operaram na contramão de funcionamentos mortíferos. Exemplos disso foram melhor aproveitamento das reuniões de equipe, um espaço que era antes ocupado por longas discussões sobre "escala" de trabalho passou a ser primordialmente um espaço de discussão de casos e processos de trabalho; além disso, presenciamos o resgate das assembleias gerais, dispositivo que opera em prol do protagonismo dos usuários no serviço.

No mês de setembro a equipe do CAPS AD Sudoeste, que permanecia sem sede há mais de um ano e meio, passou a utilizar uma sala do CECO. Esta "hospedagem" foi articulada pela prefeitura e pactuada junto aos profissionais de ambas equipes. Esta mudança teve consequências para ambas as equipes, dentre elas, podemos citar a confusão de identidades dos serviços para os usuários, persecutoriedade entre os profissionais que participaram pouco destas decisões, restrições para o uso do espaço no CECO, que já era limitado.

Vale ressaltar que, no Diário Oficial do dia 13 de Maio de 2016 (www.campinas.sp.gov.br), este CECO foi oficializado como equipamento da Prefeitura Municipal de Campinas, uma conquista que institui e legitima o serviço. Contudo, em contradição a esta legitimidade, temos um CECO que seguiu por mais de um ano sem coordenador, cuja equipe passou por três remanejamentos, sem planejamento prévio para reposição dos mesmos e cujo espaço é utilizado também pela equipe do CAPS AD.

Na busca pela sustentação dos CECOs o que se coloca é também a função da coordenação. Sua tarefa de dar sustentabilidade para a equipe, de garantir o espaço/tempo para que determinados dispositivos se mantenham, de mediar relações entre serviço e o distrito de saúde, entre a própria equipe profissional. Como nos alerta Winnicott (1975), a espontaneidade, a expressão da criatividade carece de cuidado, do estabelecimento de um ambiente para sua fluidez.

Assim, podemos pensar na gestão como permanente produtora de processo de institucionalização. Trabalhando sempre numa tensa transversal, entre o instituído e o instituinte, entre a ordem que sustenta a operatória de outros processos produtivos, e a desordem dos processos criativos e de mudança. Entre as dores das quebras e rupturas e as alegres dores do parir. Talvez a metáfora do parto nos devolva a dimensão geratriz: dores de parto ninguém esquece, contudo, ninguém passa a vida sofrendo por elas. Pois ao final, o que importa é que essas dores anunciam o teimoso e persistente recriar da vida (Onocko-Campos, 2003, p. 14).

É evidente que este CECO não viveu um processo de precarização isolado do contexto macro político-econômico do SUS. No entanto, a não reconhecimento desta clínica atrelado as características intersetoriais do serviço favoreceram a invisibilidade e a repetição de um histórico de desinvestimentos e de gestões e transições institucionais pouco cuidadas para profissionais e usuários.

 

Considerações Finais

Partindo da Reforma Psiquiátrica, da luta pela desinstitucionalização, pela promoção de saúde e cidadania, compreendemos que os serviços de saúde, especificamente os CECOs, operam a partir da clínica do sujeito. Um serviço que está orientado pelos valores da autonomia, cidadania, solidariedade, pela noção de inclusão social, respeito à diferença, e defesa intransigente dos Direitos Humanos. Dispositivos que são produtores e produzidos por encontros, catalisadores de desejo, seja por um artesanato, esporte ou um grupo de música.

Para os muitos que viveram e vivem privações importantes, sejam elas sociais, orgânicas, afetivas, estes serviços apostam na construção de novos territórios existenciais. Trata-se, portanto, de um fazer clínico que só existe enlaçado à um compromisso ético, político, uma tarefa social.

Em tempos de crise, a demora na consolidação da rede substitutiva de saúde mental tem sido acompanhada pelo crescimento de setores conservadores na sociedade brasileira. Propostas reacionárias e excludentes que ameaçam constantemente os avanços da reforma, e mais, em nome do "cuidado" caminham em direção ao retrocesso.

Neste cenário, defendemos o investimento de políticas públicas nos CECOs como uma forma de lutar pela produção de saúde, de sujeitos que possam constituir sentidos de existência verdadeiros através do acesso à arte, cultura, educação, trabalho.

A aproximação entre produção de bens social e a produção desejante não é utópica, mas sua construção depende do investimento do setor público em dispositivos com o compromisso ético político de sustentar a construção de autonomia e cidadania de seus usuários entrelaçada a construção de territórios coletivos de cooperação social.

Desejamos que a crise na saúde possa também energizar, que sejamos resilientes. Ao final deste trabalho sustentamos a defesa da dimensão comunitária, do encontro com o outro, pela conquista de vidas dignas de serem vividas.

 

Referências

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Recebido em: 14/11/2018
Aprovado em: 06/12/2019

 

 

1 O Centro de Convivência e Cooperação Tear das Artes está localizado no Distrito Sanitário Sudoeste de Campinas/SP. Sua gestão é compartilhada entre as secretarias municipais de Saúde e Cultura. É referência para uma população estimada em 280 mil pessoas, nas quais grande encontra-se em situação de vulnerabilidade e risco social. Além do Centro de Convivência, a rede de saúde deste Distrito conta com dois CAPS III, doze Centros de Saúde e um Hospital Geral (Marques, Ricci, Trapé, Onocko-Campos, Emerich, 2016).

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