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Revista de Psicologia da UNESP

On-line version ISSN 1984-9044

Rev. Psicol. UNESP vol.18 no.2 Assis July/Dec. 2019

 

ARTIGOS

 

Os paradoxos da binaridade e a transexualidade como abertura a novas performatividades

 

 

Roberto de Oliveira Preu; Carolina Franco Brito

Universidade Federal Fluminense (UFF)

 

 


RESUMO

Nosso objetivo, neste trabalho, é o de enfrentar uma dificuldade epistemológica decorrente do tratamento binário que é dado como pressuposto para classificação da sexualidade. Sublinhamos, de um lado, os paralogismos que esse tipo de classificação engendra, buscando propor, por outro lado, modos diversos para o tratamento desse problema. Nossa aposta é que a experiência traz à cena novos modos de performar, ou seja, de produzir os corpos, que não se submetem às categorias tradicionais. Nosso esforço, portanto, será o de tentar compreender a questão transexual, no que Judith Butler caracteriza como atos corporais subversivos, no limiar de uma performatividade corporal e linguística que se dê no sentido de implodir as categorias identitárias.

Palavras-chave: transexualidade; binarismo; performatividade; linguagem; sexualidade.


ABSTRACT

Our primary objective was to face a binary perspective for sexuality classification, as an epistemic problem. We first underlined the paralogisms that this type of classification engenders. Furthermore, we aimed to propose different approaches to deal with this problem. This work identified that experience brings new ways of performing to the scene; which produces bodies that are not subject to traditional categories. Therefore, we tried to comprehend the transsexual question, in what Judith Butler characterizes as “subversive corporal acts”; in the sense of imploding the identity categories on the edges of a corporal and linguistic performativity.

Keywords: transsexuality; binarism; performativity; language; sexuality.


 

 

Introdução

O presente trabalho pretende tratar da transexualidade e o problema da binaridade em seus aspectos éticos e epistemológicos. Essa problemática é resultado de um longo percurso, cuja origem podemos localizar no cruzamento entre os princípios dicotômicos que marcaram a fundação das ciências humanas, mais evidentemente a distinção entre natureza e cultura, e os movimentos sociais que engendraram novas possibilidades de se compreender a sexualidade e o desejo como construções históricas e não naturais. Segundo Joan Scott (1995),

O termo gênero parece ter feito sua aparição inicial entre as feministas americanas, que queriam enfatizar o caráter fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo. A palavra indicava uma rejeição do determinismo biológico implícito no uso de termos como sexo ou diferença sexual.

Nesse sentido, pode-se compreender que a emergência da temática do gênero visa produzir um deslocamento no que tange ao tratamento dado à sexualidade, transpondo o problema, que era tomado como objeto de uma ciência natural, para o campo das construções sociais, ou das ciências que surgiram no século XIX definidas como ciências humanas. Brevemente, podemos localizar o surgimento dessa dicotomia na ciência pela famosa distinção de W. Dilthey entre ciências explicativas e ciências compreensivas. Segundo Franco (2012), as ciências explicativas seriam voltadas às forças físicas, naturais, ao mundo dos efeitos, enquanto as compreensivas buscariam apreender e interpretar o sentido do humano com base na história. Buscamos produzir uma breve análise a respeito de como as ciências médicas e psi produziram, ao longo da história, uma noção de binaridade e mostrar possíveis caminhos de problematização dessas questões, na contemporaneidade. O objetivo, neste trabalho, é mostrar alguns tropeços, alguns contratempos enfrentados na tentativa de transposição da temática biológica para a questão humana ou, mais especificamente, da passagem do problema do sexo para o problema do gênero. A hipótese aqui é a de que esses embaraços não ocorrem em razão da impropriedade dessa tentativa, mas porque, apesar dela, a abordagem do gênero ainda é marcada pela diferença pretensamente natural do sexo: a binaridade. Seguindo a sugestão de Judith Butler (1990), pretende-se postular a possibilidade de se pensar a experiência da transexualidade como uma denúncia da fragilidade dessa suposta natureza, por meio de uma performance que marca a complexidade da história no corpo.

No que diz respeito ao assunto principal que pretendemos tratar, a binaridade, podemos dizer que os problemas centrais, que revelam o embaraço da distinção sexo/gênero, emergem na própria definição de transexualidade: caracteriza-se essa vivência como um sentimento de não pertença ao sexo anatômico. A transexualidade, assim, se apresenta como uma não linearidade entre o sexo e o gênero. O primeiro seria um dado da natureza, ou seja, se basearia nos “indicadores biológicos (...), como cromossomos sexuais, gônadas, hormônios sexuais e genitália interna e externa não ambígua” (DSM-V, 2014, p. 451). Por esses indicadores, as pessoas são divididas entre corpos-homens e corpos-mulheres logo ao nascer ou, às vezes, até mesmo antes, ainda durante a gestação. Com a definição do sexo do sujeito, são esperados certos comportamentos: mulheres seriam naturalmente femininas e homens masculinos, ou seja, é pressuposta uma linearidade entre o sexo e o gênero, de modo que este último, mesmo que possa ser entendido como uma construção que se dá na cultura, precisaria corresponder aos órgãos sexuais de cada um. Contudo, algumas vivências que desafiam essa correspondência naturalizada entre sexo e gênero começaram a ganhar notoriedade: as pessoas transexuais, pela sua própria experiência, explicitam que essa relação de linearidade mantida entre esses dois constructos não é necessária. O que se observa nas leituras tradicionais acerca dessa vivência é que, ainda que se rompa com a correspondência naturalizada entre sexo e gênero, que se daria na experiência das pessoas cisgênero, os termos que qualificam a discussão permanecem inalterados. Masculino e feminino são sempre os parâmetros que definem tanto os corpos orgânicos sexuais, quanto os corpos culturais marcados pelo gênero.

Essa ordenação simbólica binária, que estabelece a distinção dos sexos e a distinção entre gêneros, está de tal maneira arraigada no inconsciente de nossa sociedade, de nosso tempo, que mesmo lá, onde se pretende dar um tratamento científico a esse problema, verifica-se ser quase impensável uma possibilidade de escapar desses termos. Um exemplo é a atual versão do Manual Diagnóstico e Estatísticos de Transtornos Mentais (DSM-V). Ainda que se admita a possibilidade de identificação do indivíduo com algo que não necessariamente seja homem ou mulher, isso não se verifica no restante da categoria diagnóstica. Em praticamente todo o decorrer da categoria de Disforia de Gênero, as descrições e dados são baseados no binarismo homem e mulher. Não se esclarece, em nenhum momento, o que se poderia definir como “uma categoria diferente de masculino ou feminino” (DSM-V, 2014, p. 451).

Nosso objetivo, neste trabalho, é justamente o de debater essa dificuldade sublinhando, de um lado, os paralogismos que ela engendra, e buscando propor, por outro lado, modos diversos para o tratamento do problema sexo/gênero. Nossa aposta é que a experiência traz à cena novos modos de performar, ou seja, de produzir os corpos, que não se submetem às categorias tradicionais. Nosso esforço será, então, o de tentar compreender a questão transexual, no que Judith Butler (2014) caracteriza como atos corporais subversivos, no limiar de uma performatividade corporal e linguística que se dê no sentido de implodir as categorias identitárias. Trata-se de desmontar, desse modo, as fronteiras identitárias que, do ponto de vista epistemológico, constrangem o entendimento dessa problemática e que, do ponto de vista ético-político, permanecem produzindo patologização e exclusão.

Para tanto, nosso percurso se dará no sentido de ilustrarmos, de início, os paralogismos que estão envolvidos no fato de se tomar a binaridade do masculino e feminino para tratar das questões que envolvem sexo e gênero; em um segundo momento, abordaremos as questões que envolvem o problema geral das classificações; em seguida, faremos uma leitura crítica do problema epistemológico1 que concerne à produção da verdade, em termos de constatação e de performatividade. Por fim, retornaremos a análise da sexualidade trans, para nos questionarmos o que significa pensar o corpo na esteira de um saber performativo.

 

Paralogismos da binaridade: a heterossexualidade compulsória

Neste tópico, nosso objetivo é tratar de alguns embaraços concernentes às tentativas de abordagem do tema da homossexualidade e da heterossexualidade por meio do tratamento binário. Não cabe aqui fazer uma extensa apresentação dos meandros que essa temática adquire nos autores expostos. Nosso objetivo é apenas ilustrar nosso ponto, considerando as tentativas de abordagem desse tema, feitas na história. Para efeito de ilustração, apresentaremos a tentativa de Freud, nos primeiros momentos de sua elaboração psicanalítica, e a de Harry Benjamin, na década de 1960, quando o problema da transexualidade ganha relevância nas ciências médicas.

Podemos caracterizar como o problema da binaridade aparece como questão para abordagem científica, pelas seguintes e breves considerações: no período compreendido entre a Antiguidade à Renascença, vigorava o modelo do sexo único, ou seja, concebia-se a existência de apenas um sexo, em uma perspectiva isomórfica. Segundo Ayouch (2014, p. 62):

Na época antiga, homens e mulheres eram separados mais quanto à divisão de tarefas e à atribuição específica de poder e de caracteres conseguintes do que quanto ao aparelho genital. Considerava-se que as atividades fora de casa, dos homens, os tornavam ativos, enquanto as mulheres, que permaneciam em casa, eram passivas. Os corpos se distinguiam por consequência da adaptação a estes papéis sociais e políticos, e não por uma especificidade ontológica prévia a estes papéis.

Os corpos seriam constituídos pelos mesmos órgãos, inclusive os reprodutores, com a única diferença de suas disposições: o que hoje entendemos por órgãos sexuais femininos, na época eram compreendidos como uma imperfeição dos órgãos masculinos, visto que eram internos e invertidos. A ciência daquela época estabeleceu a equivalência entre eles. Segundo a descrição de Costa (1995, p. 6), ao falar das mulheres, “tudo nela era para dentro: seus ovários eram testículos internos; a vagina, um pênis interior; o útero era o escroto; a vulva, o prepúcio”. Sendo assim, a noção de sexo era constituída com base em um único referente: os órgãos reprodutores masculinos.

Algumas mudanças importantes começaram a ocorrer nesse âmbito a partir do século XVII. A ideia da existência de apenas um sexo - do homem como o único representante e exemplar perfeito das características dos seres humanos - foi abandonada. Cria-se um segundo sexo, o feminino. As mulheres ganharam, dessa forma, uma identidade sexual que lhes é própria. Eis o momento de substituição de uma perspectiva isomórfica, por outra: o dimorfismo.

Nesse período tínhamos um cenário em que prevaleciam “os ideais igualitários da revolução democrático-burguesa” (Costa, 1995, p. 6). Esses ideais afirmavam que todos os seres humanos seriam naturalmente iguais, o que lhes conferiria os mesmos direitos jurídicos e políticos. Tratava-se da busca de uma justificativa racional que pudesse dar um lugar legítimo à ordem social que servia aos interesses da burguesia. Apesar terem servido para a ascensão da burguesia em um dado momento, esses ideais começaram a trazer problemas aos homens brancos e metropolitanos que não tinham interesse em dividir espaços políticos e sociais com as mulheres, os negros e os povos colonizados. Nunes (2000, p. 37) aponta que:

O problema, então, era como justificar a dominação da mulher pelo homem, sua exclusão da esfera pública e as diferenças sociais, se todos deveriam ter os mesmos direitos. O século XVIII trouxe então novas “luzes” sobre o problema; o dilema foi resolvido pela ancoragem da diferença social e cultural dos sexos em uma biologia da incomensurabilidade, a partir da qual homens e mulheres são tratados como radicalmente diferentes. A consequência lógica desse percurso foi que, a partir da ideia de uma diferença biológica “natural”, passou-se a justificar e propor inserções sociais diferentes para os dois sexos.

 

Freud: Os invertidos como objeção ao primado da pulsão sexual

Uma vez estabelecida e naturalizada essa diferença entre os sexos, masculino e feminino ganham o estatuto de funções biológicas bem definidas. Toda a história evolutiva das espécies estaria ancorada nos instintos sexuais, que seriam as motivações biológicas da atração do masculino pelo feminino, o que garantiria, em última instância, a reprodução das espécies. É sobre essa base funcionalista que Freud, por exemplo, inscreve suas teses sobre a sexualidade. A ideia de pulsão sexual, fundamento para o desenvolvimento da vida psíquica, reproduz o pensamento corrente de seu tempo, que é o de pensar o jogo sexual, a atração entre os sexos, como uma questão de necessidade. Citando Freud (2006, p.128), “o fato da existência de necessidades sexuais no homem e no animal expressa-se na biologia pelo pressuposto de uma 'pulsão sexual'”. Independente das diferenças que caracterizam as especificidades das “pulsões” no homem em relação aos “instintos” nos animais, analogicamente, Freud segue as bases que orientam as explicações científicas de seu tempo, aderindo sem muita resistência ao mito da heterossexualidade natural. Segundo ele: “a teoria popular sobre a pulsão sexual tem seu mais belo equivalente na fábula poética da divisão do ser humano em duas metades - homem e mulher - que aspiram a unir-se de novo no amor” (Freud, 2006, pp.128-129). O problema acontece quando essa lógica parece ser rompida:

Por isso, causa grande surpresa tomar conhecimento de que há homens cujo objeto sexual não é a mulher, mas o homem, e mulheres para quem não o homem, e sim a mulher, representam o objeto sexual. Diz-se dessas pessoas que são “de sexo contrário”, ou melhor, “invertidas”, e chama-se o fato de inversão (Freud, 2006, p.129).

Partindo da análise da sexualidade dos invertidos, Freud conclui dois pontos: existe aqui uma disposição bissexual, apesar de afirmar não ter conhecimento sobre o que ela consiste; e, nesses casos, há ainda perturbações na pulsão sexual, o que se caracteriza pelo fato de que a função reprodutora, característica da heterossexualidade naturalizada, sai de cena.

Ainda que Freud parta da noção de uma bissexualidade primária, para dar conta de tratar da homossexualidade, é fácil notar como o mito da heterossexualidade compulsória jamais é abandonado. Freud inicia sua análise criticando a concepção primária de que o “invertido sucumbiria como a mulher ao encanto proveniente dos atributos masculinos do corpo e da alma” (Freud, 2006, p. 136). Ou seja, ele contesta a ideia de que um homem invertido seria como uma mulher que busca um homem. Ele sublinha os casos de homens invertidos que, preservando o caráter da virilidade, buscam em outros homens traços de feminilidade que ele descreve como sendo: “a timidez, o recato e a necessidade de ensinamentos e assistência” (Freud, 2006, p.137). Vê-se que, ao criticar a ideia simplista de que um invertido deseja ser uma mulher, Freud redescobre, na descrição que faz dos invertidos que preservam sua virilidade, a lógica mesma da heterossexualidade, ou seja, de homem que se atrai pela feminilidade. Para Freud, depreende-se, da bissexualidade originária, tendências, masculinas ou femininas, que se tornam mais ou menos predominantes. Independentemente do sexo de nascimento ser masculino ou feminino, são essas tendências que organizarão a vida libidinal e a escolha do objeto. Sempre que predominar uma tendência masculina, o objeto desejado terá características femininas e vice-versa. Não importando se tais características estejam encarnadas em corpos biologicamente masculinos ou femininos, o que explica o fato da inversão. Nas palavras de Butler (2014, pp. 95-96):

[...] para Freud, a bissexualidade é a coincidência de dois desejos heterossexuais no interior de um só psiquismo. Com efeito, a predisposição masculina nunca se orienta para o pai como objeto de amor sexual, e tampouco se orienta para a mãe a predisposição feminina [...]. Ao repudiar a mãe como objeto de amor sexual, a menina repudia necessariamente sua masculinidade e “fixa” paradoxalmente sua feminilidade como uma consequência. Assim, não há homossexualidade na tese de bissexualidade primária de Freud, e só os opostos se atraem.

Resumindo: a tese da bissexualidade, a que Freud recorre para explicar o que escapa à tese funcional da sexualidade reprodutiva, nada mais é do que a consideração de que há, em todo psiquismo, duas sexualidades heterossexuais. Ou seja, a recurso utilizado para dar conta da homossexualidade a exclui como possibilidade. Mesmo que Freud chegue a evocar um polimorfismo, quando fala da sexualidade infantil identificada a uma perversidade originária, nesses primeiros estudos sobre a sexualidade, ele só é capaz, no final das contas, de prever um destino genital e heterossexual para a sexualidade. Apesar de considerar o problema de uma subjetivação homossexual, o que contemporaneamente poderíamos considerar como uma abertura para uma discussão de gênero, em Freud, essa temática é abordada segundo a lógica binária do sexo, tanto do ponto de vista de sua origem, quanto do ponto de vista do seu destino. O que deixa o problema da homossexualidade imerso em um paradoxo: só é possível explicá-lo pela via do seu oposto, a heterossexualidade.

 

Benjamin: A transexualidade, o problema do sexo, gênero e orientação sexual

Foi na década de 1960 que os assuntos acerca da transexualidade começam a ganhar maior destaque nas ciências médicas. O Dr. Harry Benjamin, segundo Arán (2006), se ocupou dessa área, teorizando e descrevendo o fenômeno transexual. Foi ele quem individualizou a síndrome sob os moldes modernos com os quais lidamos hoje: “nomeou-a, ajudou a projetar o tratamento e mergulhou intensamente em seu estudo e manejo” (Person, 1999, p. 361). O termo transexual já existia antes de Benjamin, porém foi ele quem criou uma definição mais moderna sobre essa vivência.

Benjamin publicou, em 1966, o livro The Transsexual Phenomenon, no qual discorre sobre a escala de orientação sexual que criou e cujo nome, na tradução para o português, é Escala Harry Benjamin de orientação sexual, desorientação e indecisão de sexo e gênero (Homens). Ele se inspirou nos moldes das classificações que eram feitas por Krafft-Ebing, Hirschfeld e Ellis, durante o século XIX (Arán, 2006). Entendia que a transexualidade somente aconteceria com membros do sexo masculino, visto que nas mulheres ela se desenvolveria de maneira distinta e com menor frequência. Nessa obra, segundo Saadeh (2004), Benjamin, ao mesmo tempo que estabelece diferenças entre a transexualidade e a travestilidade, exclui a homossexualidade da escala. No entanto, a questão da vida sexual desses sujeitos aparece ainda associada de modo confuso com a homossexualidade. Melhor dizendo, a homossexualidade e a heterossexualidade permanecem como parâmetros de orientação sexual e fontes das contradições que observamos nessa classificação.

Benjamin apresenta sua classificação segundo uma ordem de seis critérios, a partir dos quais ele extrai seis tipos. Os critérios são: sentimento quanto ao gênero; hábitos de se vestir e vida social; objetos de escolha e vida sexual; operação de conversão; hormonioterapia/estrogenoterapia; e psicoterapia. Os tipos que se definem por esses critérios são: pseudotravesti; travesti fetichista; travesti verdadeiro; transexual não cirúrgico; transexual moderada intensidade; transexual alta intensidade. A classificação completa se apresenta ilustrada nas tabelas 1, 2 e 3. Para efeito do que pretendemos abordar, consideramos os três primeiros critérios.

A questão que nos intriga, em relação a essa tabela, é: o que significa heterossexualidade e homossexualidade nessa escala? Tomemos em consideração o primeiro caso, designado “pseudo travesti”. Segundo a escala de Benjamin, esse tipo caracteriza-se por ter uma identificação de gênero masculina e uma orientação heterossexual. Nesse caso, imaginamos se tratar de um homem cisgênero, com uma orientação heterossexual que se diferencia somente por um desejo ocasional de se “vestir de mulher”. Também no caso do travesti fetichista, parece que se trata de um homem cisgênero, com orientação heterossexual que, além do desejo, eventualmente passa ao ato de se “vestir como mulher”. A questão começa a ganhar contornos paradoxais já no caso do “travesti verdadeiro”. Afirma-se que se trata de um gênero masculino, mas “sem convicção”. Veste-se do gênero oposto, nesse caso feminino, com frequência, podendo até ser aceito como uma mulher. Quanto à orientação, é heterossexual quando se veste de homem e homossexual quando se veste de mulher. O que significa dizer “homossexual quando se veste de mulher”? Está se considerando que o gênero é sempre masculino, ou que a ausência de convicção pode fazê-lo variar? De duas uma: ou se supõe que o gênero é sempre o mesmo, independente do modo como se está vestido e, neste caso, quando “vestido de mulher” e desejando um homem, supõe-se uma estranha relação heterossexual que “na verdade” é homossexual, porque ambos os parceiros, no fundo, se identificam com o gênero masculino; ou, segunda possibilidade, supõe-se que a roupa faz variar o gênero e, nesse caso, a homossexualidade ligada ao “vestir-se de mulher” significa que o objeto de desejo é o mesmo de quando “vestido de homem”, isto é, mulheres. A homossexualidade se referiria ao fato de que se pressupõe uma relação entre duas mulheres. Resumindo, é impossível decidir, segundo a classificação, se varia o gênero ou o objeto de desejo pela caracterização homossexual-heterossexual.

Tudo fica ainda mais complexo, se considerarmos o quinto tipo: a transexualidade moderada intensidade. Aqui, a identificação de gênero é feminina (presa a um corpo masculino), no entanto, cogita-se a possibilidade de uma orientação “homossexual passiva”. Parece que, aqui, o autor da classificação abandona de vez o primado atribuído ao gênero. Ao cogitar uma homossexualidade passiva, somos levados a supor que o autor desloca o foco do gênero para a condição corporal, ou seja, ao fato de que o sujeito se vê preso a um corpo masculino. Não é mais de gênero, ou de objeto de desejo que se parte, mas do sexo. A relação pressuposta parece ser aquela entre um homem ativo e um outro corpo do sexo masculino identificado com o gênero feminino. Trata-se, mais uma vez, de uma estranha relação homossexual, já que as identificações de gênero não são as mesmas, mas opostas, ou seja, hétero referentes.

No caso do último tipo, de uma transexualidade alta intensidade, parece que o autor quer nos fazer retomar a consideração acerca do primado do gênero. Nesse caso, o gênero é feminino e a orientação é heterossexual, se jovem, mas podendo, pelo avançar da idade, tornar-se bissexual ou lésbica. Quando jovem, deseja uma relação com um homem, ou seja, heterossexual, visto que, nesse caso, seriam pessoas de gênero diferentes, masculino e feminino. E, mais tarde, Benjamin postula a possibilidade de uma mudança no desejo e o aparecimento de uma relação lésbica, imaginando que seriam duas pessoas do gênero feminino se relacionando.

Considerando os quatro parâmetros principais utilizados por Benjamin (sexo, gênero, orientação sexual e vestimenta), podemos notar, de saída, que em nenhum momento ele escapa ao binarismo, que pressupõe uma natureza masculina e outra feminina. O fato de o autor modificar, ao longo da tabela, o parâmetro utilizado para identificar o sujeito cria construtos confusos e paradoxos, como os expressos anteriormente. Isso acontece porque temos o hábito de considerar o sexo como fundamento da concepção binária que utilizamos para compreender toda a cadeia de acontecimentos. Contudo, e se consideramos essa relação na sua forma inversa? Será que não é a partir do fato de que usualmente nos “vestimos como homens ou mulheres” e de que estabelecemos essas formas como padrões fixos de comportamento, que buscamos a justificativa natural dessas diferenças? A moda, os hábitos de vestir que adquirimos no decorrer da história não seriam construções, ou performatividades, que produzem formas discursivas que a seguir são naturalizadas para se impor como constatações? Esse jogo entre performatividade e constatação, que evoca o binarismo do sexo como pressuposto fundamental de toda classificação sobre sexualidade e que, por conseguinte, conduz a todo tipo de equivocação e paradoxo, é o que se impõe também como elemento fundamental para que possamos sugerir um pensamento que escape dessa lógica binária. É isso que pretendemos explorar a seguir.

 

Performatividade, constatação e o problema geral das classificações: crítica epistemológica da produção da verdade

No terceiro capítulo do livro Problemas de Gênero: Feminismo e subversão da identidade, Judith Butler (2014) sugere que a suposta identidade de gênero nada mais é do que o efeito de uma realização performativa da sexualidade que, por sua vez, pode também estar sujeita ao que a autora define como novas inscrições corporais e subversões performativas. No percurso que fizemos até aqui, analisamos os embaraços suscitados pela naturalização do binarismo, pensado na perspectiva de que masculino e feminino são objetos de uma constatação, tanto no que remete ao sexo, quanto ao gênero, ao desejo e mesmo ao modo de se vestir. Gostaríamos agora de problematizar essa categoria epistemológica da constatação e analisarmos como sua inscrição só pode se dar como parte de uma performatividade mais geral.

A separação entre performativo e constatativo nos remete a um problema levantado, no âmbito da filosofia da linguagem, por John Langshaw Austin (1990), na sua obra Quando dizer é fazer. A filosofia de Austin se constrói na esteira de um pensamento positivista que, analisando criticamente a ciência, coloca como questão fundamental a seguinte: que linguagem pode servir ao conhecimento? Tradicionalmente, o discurso da ciência deveria se ater, exclusivamente, à forma linguística de uma declaração que tenha, tão somente, o papel de descrever um estado de coisas. Para os filósofos positivistas, anteriores a Austin, a declaração somente possui sentido quando se é possível verificá-la em termos de verdadeiro ou falso. Contudo, Austin afirma que existem enunciados que não podem ser reduzidos ao verdadeiro ou falso, ou seja, são de outra ordem e, não obstante, não carecem de sentido. Desse modo, para defini-los, dividiu os enunciados em dois tipos: constatativos, enunciados que podem ser verificados em termos de verdadeiro ou falso, e performativos. Para darmos exemplos, seriam enunciados do tipo constatativos “dois mais dois é igual a quatro”, “o carro é vermelho”, “o dia está ensolarado” etc. Já os performativos seriam aqueles do tipo “eu prometo vir aqui amanhã”; ou, “feche a porta”. No primeiro tipo, o que se diz busca corresponder a uma realidade que precede o dito; já, no segundo tipo, não se constata nada na realidade. É a realidade que passa a corresponder ao que é dito em função do que se diz. Quando estamos diante de uma promessa, por exemplo, o fato de se cumpri-la, ou não, não apaga o compromisso estabelecido ao proferir essas palavras. A mesma coisa se observa no caso da ordem, pois não interessa se ela foi cumprida ou não: uma vez proferidas as palavras, o comando foi dado, ou seja, ganhou uma realidade. Podemos caracterizar então os enunciados performativos como aqueles que produzem uma realidade em oposição a outros que constatam uma realidade. Com a descoberta dos performativos, Austin inaugura um terreno epistemológico que dá abertura para uma transformação na questão tradicional que pautava a pesquisa dos filósofos da linguagem que o precederam. Ao invés de se questionar “que linguagem pode servir ao conhecimento verdadeiro?”, passamos, com a dimensão performativa da linguagem, a nos questionar: “que verdade pode a linguagem em geral produzir?”.

Austin tentou estabelecer um critério de distinção entre os enunciados que podem ser classificados como constatativos e performativos. Em um primeiro momento, pareciam se diferenciar pela presença ou ausência do sujeito de enunciação no interior do enunciado que é proferido. No caso dos performativos, a presença do sujeito estaria caracterizada pelo aparecimento do pronome “eu”, como em “eu prometo x”. A partir disso, Austin tenta estabelecer a forma gramatical geral dos enunciados performativos: o enunciado performativo é aquele que pode ser reduzido à forma geral dos proferimentos que se dão na primeira pessoa do singular do presente do indicativo na voz ativa (Austin, 1990). Desse modo, somos levados a admitir que há performativos explícitos, ou seja, aqueles que já se enunciam na forma gramatical que Austin determinou, e aqueles implícitos, que podem, em última instância, ser transpostos a essa forma, por exemplo: “feche a porta” pode ser transposto em “eu ordeno que feche a porta”. O problema é que essa possibilidade de transposição pode ser verificada também nos constatativos: o enunciado “a parede é branca” pode ser convertido em “eu afirmo que a parede é branca”. O que verificamos é que, no fim das contas, não há diferença entre eles, ou seja, mesmo os enunciados que poderiam ser considerados verdadeiros ou falsos estão marcados pela presença do ato performativo. O que Austin descobre na verdade não é a existência de dois tipos de enunciados, mas a dupla dimensão que constitui o sentido de verdade de todos os enunciados. Ele percebe que, para que a linguagem faça sentido, não basta que o conteúdo do que é dito concorde com o mundo, é preciso que atue também uma expressividade. Isso é o que ele chama de força ilocucionária que imprime, nas sentenças proferidas, um sentido.

Para ilustramos o que significa essa dimensão da expressividade é interessante nos basearmos em uma discussão recente que se insere no debate feminista: situações de bropropriating. Em uma matéria para Time, Bennett (2015) define esses casos ao dizer que se trata de situações em que homens se apropriam de ideias e discursos de mulheres e levam todo o crédito, enquanto se omite a real origem da autoria. Isso nos coloca diante da noção de força ilocucionária, pois fica claro que, em uma sociedade machista, essa força e expressividade masculina é ressaltada em relação à feminina, ou seja, possui maior valor. O que fica evidente nesses casos, pois ambos os discursos possuem o mesmo conteúdo, diferindo apenas quem o expressa. Um outro exemplo podemos extrair da obra Pele Negra, Máscaras Brancas de Frantz Fanon (2008). Ali há um capítulo sobre a linguagem em que o autor faz referência à diferença na expressividade do colonizado e do colonizador. Ele aponta que o colonizado que vai para a metrópole assume um novo modo de se expressar, próximo daquele do branco colonizador (Fanon, 2008). É como se o modo de expressão europeu fosse essencial para imprimir um valor de verdade às sentenças que pronuncia.

 

Considerações finais

Para encaminharmos a conclusão do nosso artigo, cabe nos colocar uma questão acerca dessa dimensão da expressividade. Temos de um lado homens e mulheres e, de outro, brancos e negros. Dentro desses binarismos, apenas um representante de cada lado se apresenta como sujeito do discurso: o homem e o branco. As mulheres e os negros, dentro desse discurso, ocupam o lugar de objeto. A questão que se coloca, portanto, é: como é possível transformar a relação binária entre sujeito e objeto, a partir da transformação das expressividades que performam o discurso? Em outras palavras, como outras formas de expressividade, que são silenciadas, tomadas, em geral, como objeto de um discurso hegemônico, podem ser consideradas como um ato subjetivo legítimo de enunciar aquilo que concerne ao modo como elas se experimentam? Da mesma forma que a mulher e o negro solicitam ser protagonistas dos discursos que dizem de suas próprias experiências, o mesmo ocorre no caso da transexualidade.

Não nos interessa falar aqui sobre a experiência transexual, isto é, do modo como ela é, de fato, experienciada pelas pessoas trans. Visamos, contudo, sublinhar a transexualidade como uma vivência que põe em análise as categorias tradicionais da sexualidade, uma vez que se coloca para além das fronteiras identitárias entre homens e mulheres. Através dela podemos colocar em questão a diferença epistemológica entre sujeito e objeto, entre aquele que fala e aquele que é falado. Como vimos anteriormente, Freud e Benjamin se atrapalham na sua tarefa de classificar, respectivamente, a homossexualidade e a transexualidade, segundo os conceitos tradicionais de homem e mulher, não apenas porque as categorias que eles lançam mão estão equivocadas. Eles se equivocam porque o suposto objeto do qual eles pretendem dar conta põe em xeque a posição mesma a partir da qual eles pretendem engendrar qualquer classificação.

Mais do que a diferença entre duas identidades distintas, a binaridade entre masculino e feminino define um campo de atividade e passividade, de quem é o agente do discurso e quem é seu paciente, de quem é sujeito determinante e quem é objeto determinado. Ao borrar a fronteira entre masculino e feminino, a transexualidade nos permite pensar em novas formas de performatividade e subjetividade. É assim que Preciado (2014) propõe a reinvenção dos processos de subjetivação diante da sexualidade, trazendo à cena a noção de contrassexualidade. Segundo o autor, “a contrassexualidade não é a criação de uma nova natureza, pelo contrário, é mais o fim da Natureza como ordem que legitima a sujeição de certos corpos a outros” (Preciado, 2014, p. 21). É, portanto, uma crítica de como o binarismo heterocentrado, cujas performatividades normativas foram inscritas como verdades biológicas, se enraíza nos corpos e nas práticas sexuais. Ele propõe a substituição de uma epistemologia que naturaliza os corpos, por uma perspectiva em que “os corpos se reconhecem a si mesmos não como homens ou mulheres, e sim como corpos falantes, e reconhecem os outros corpos como falantes” (Preciado, 2014, p. 21). Mais que isso, “reconhecem em si mesmos a possibilidade de aceder a todas as práticas significantes, assim como a todas as posições de enunciação, enquanto sujeitos, que a história determinou como masculinas, femininas ou perversas” (Preciado, 2014, p. 21). Trata-se de formas diferentes de expressividades que, ao tomar a legitimidade sobre a enunciação de suas próprias experiências, constituem um novo horizonte epistemológico, ético e político, em que novas formas de produção de corpo ganham o direito de se inscrever.

 

Referências

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Recebido em: 14/11/2018
Aprovado em: 20/12/2019

 

 

1 Por crítica epistemológica de produção da verdade entendemos a análise das condições de possibilidade para que um enunciado, uma teoria, ganhe um estatuto de verdade. Segundo Foucault (2002), há duas formas de se considerar esse problema: uma, internalista, diz respeito a como as ciências particulares se autocorrigem nos seu processo de construção na história; uma outra, externalista, corresponde a como a história e as práticas sociais que a engendram produzem formas jurídicas que definem o que pode ou não ser tratado em termos científicos. Partimos da segunda perspectiva, para explorar o fato de que talvez estejamos vivendo um momento de virada histórica que nos exige uma mudança de perspectiva acerca do que podemos considerar em relação ao tema da sexualidade.

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