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Revista de Psicologia da UNESP

versión On-line ISSN 1984-9044

Rev. Psicol. UNESP vol.18 no.2 Assis jul./dic. 2019

 

ARTIGOS

 

Caracterização da clientela infantil e adolescente de um serviço-escola de Psicologia paranaense

 

 

Maíra Bonafé Sei; Beatriz Skitnevsky; Felipe Montes Trevisan; Isabella Tsujiguchi

Universidade Estadual de Londrina (UEL)

 

 


RESUMO

Objetivou-se levantar as características do público infantojuvenil que buscou atendimento na Clínica Psicológica da Universidade Estadual de Londrina, entre os anos de 2015 e 2017. Trata-se de uma pesquisa documental empreendida nas entrevistas de triagem de crianças e adolescentes. Foram consultadas 160 fichas de triagem e os resultados apontaram para: predominância de crianças e adolescentes do gênero masculino (55%); maior frequência de queixas para tratamento no que se refere às dificuldades escolares (37,75%) e aos comportamentos externalizantes (16,24%); alto índice de medicalização para tratamento de TDAH (50,62%) entre os sujeitos que utilizam medicações; dificuldade no acolhimento e na vinculação dos usuários ao serviço; altas taxas de desistência do serviço e o não retorno ao atendimentos após a entrevista de triagem. Nota-se que esses resultados corroboram pesquisas de mesmo caráter, reiterando a importância dessas investigações para aprimoramento do atendimento realizado.

Palavras-chave: serviço-escola de Psicologia, caracterização de clientela, atendimento psicológico, saúde mental.


ABSTRACT

This essay aimed to survey the characteristics of children and adolescents who sought care at the Psychological Clinic of the State University of Londrina, between the years 2015 and 2017. This is a documentary research undertaken in the screening interviews of children and adolescents. 160 screening forms were consulted and the data revealed important features: predominance of male children and adolescents (55%); higher frequency of complaints for treatment regarding school difficulties (37.75%) and externalizing behaviors (16.24%); high rate of medicalization for the treatment of ADHD (50.62%) among subjects who use medications; difficulty in welcoming and linking users to the service; high rates of service withdrawal and non-return to care after the screening interview. This work corroborate to future researches in the field to improve the care provided.

Keywords: university's psychology clinic, network, clientele characterization, psychological care, mental health


 

 

Introdução

Os serviços-escola de Psicologia são serviços de saúde mental, vinculados ao contexto universitário, que permitem o desenvolvimento de atividades de ensino, pesquisa e extensão. Por essa razão, podem se constituir como “laboratórios de excelência” (Herzberg & Chammas, 2009, p. 107). Contudo, para iniciar qualquer reflexão a respeito dos serviços-escola de Psicologia, é necessário ressaltar as especificidades desse serviço, quais sejam: a gratuidade ou o baixo custo dos serviços disponíveis à comunidade interna e externa à universidade e o fato de os psicoterapeutas serem, em sua maioria, estudantes de Psicologia ainda em formação, cujas práticas são supervisionadas por docentes. Isso posto, tais dispositivos realizam um importante papel social, uma vez que atendem a uma grande parcela da sociedade que não possui renda compatível com os valores cobrados por serviços privados de Psicologia. Além disso, os atendimentos realizados contribuem para a formação de futuros profissionais, uma vez que é possibilitada a aplicação dos conhecimentos teóricos adquiridos durante a graduação, a fim de criar e aprimorar as noções técnicas de Psicologia da comunidade acadêmica. Essas especificidades compõem um objetivo multifacetado e complexo, que visa atender da forma mais eficaz à comunidade que procura esses serviços, ao passo que também exerce a função de capacitar os estudantes de forma ética, técnica e conceitual (Romaro & Capitão, 2003).

A população que busca os serviços-escola de Psicologia pode chegar até esses espaços por meio de demanda espontânea ou por encaminhamentos via rede de saúde mental e assistência social, ou pelas redes territoriais e afetivas de cuidados (CRAS, CREAS, UBS, CAPS, escolas, creches e centros comunitários, diversas organizações ou indivíduos que se preocupam com o cuidar). Dessa forma, não raras vezes, os serviços-escola possuem uma extensa lista de espera para início dos tratamentos psicoterápicos, fator este que dificulta os processos clínicos, principalmente se consideradas as altas taxas de abandono de psicoterapia individual existentes nesses serviços (Cunha & Benetti, 2009).

Considerando esses fatores, faz-se pertinente a caracterização da clientela que busca os serviços-escola de Psicologia e das queixas apresentadas por essa população. Para Wielewicki (2011), a importância de estudos dessa natureza está na contribuição da caracterização da clientela para a organização no atendimento prestado à população, assim como para o fornecimento de subsídios para otimização do processo de ensino e formação dos futuros profissionais.

Romaro e Capitão (2003) realizaram uma pesquisa com o objetivo de conhecer a população e de compreender as relações estabelecidas nos tratamentos, visando uma perspectiva geral dos serviços oferecidos em clínicas universitárias para, assim, fomentar discussões, no sentido de aprimorá-las. Em 2009, Cunha e Benetti realizaram uma pesquisa de caracterização de clientela de um serviço-escola de Psicologia na cidade de Porto Alegre (RS), com foco na população infantil que procurou o local. Também no Rio Grande do Sul, foi realizado um estudo empírico acerca da clientela infantil (até doze anos de idade) que buscou o atendimento psicoterapêutico em três instituições diferentes (Konrat, 2012). Borsa, Segabinazi, Stenert, Yates & Bandeira (2013) realizaram um estudo sobre a população, entre 6 e 18 anos, que solicitou atendimento psicoterapêutico em um serviço-escola de Psicologia, coletando os dados a partir de uma ficha de triagem e o Child Behavior Checklist (CBCL 6/18 anos). Outra pesquisa da mesma natureza foi realizada em uma universidade privada do Rio Grande do Sul, com a clientela infantil e adolescente (Vivian, Timm & Souza, 2013). Porto, Valente e Rosa (2014), na cidade de Assis (SP), fizeram um estudo com objetivo de descrição da clientela que buscou o serviço-escola de Psicologia de uma universidade pública em todas as faixas etárias. Mais recentemente, outra pesquisa com o mesmo objetivo foi realizada por Gonçalves (2018), que traçou o perfil da clientela, de todas as faixas etárias, que se inscreveu em um serviço-escola de Psicologia no interior do Estado de São Paulo.

No que tange à pesquisa de clientela infantil e adolescente dos serviços-escola de Psicologia, alguns dados se repetem na maioria das pesquisas dessa natureza, principalmente quanto à prevalência de meninos que buscam a psicoterapia, comparada ao número de meninas (Romaro & Capitão, 2003; Cunha & Benetti, 2009; Konrat, 2012; Borsa et al., 2013; Vivian et al., 2013; Porto et al., 2014; Gonçalves, 2018). Em relação à queixa inicial, para tratamento psicoterapêutico, do público infantojuvenil, tem-se grande índice de queixas relacionadas ao desempenho escolar, comportamentos agressivos e problemas no relacionamento familiar, variando em ordem de predominância em cada pesquisa (Romaro & Capitão, 2003; Cunha & Benetti, 2009; Konrat, 2012; Vivian et al., 2015; Gonçalves, 2018).

Ao discutir a caracterização de clientela, especificamente do público infantil e adolescente, as escolas apresentam-se como local que mais encaminha crianças e adolescentes para atendimento psicoterapêutico (Cunha & Benetti, 2009). Dessa forma, torna-se relevante considerar, buscar compreender e dialogar com os responsáveis pelo encaminhamento dessa população, bem como se faz necessário, ao psicoterapeuta, estar atento às situações em que outras estratégias precisem ser traçadas para a promoção de saúde e bem-estar da criança ou adolescente e, se necessário, conhecer e realizar outros encaminhamentos (Vivian et al., 2013).

Outrossim, chama-se atenção para a importância de fortalecer redes de diálogo com as instituições envolvidas no encaminhamento de crianças e adolescentes para o atendimento psicoterapêutico, visto que essas instituições são, em sua maioria, as escolas e as Unidades Básicas de Saúde (Prebianchi & Cury, 2005). Tal interação é necessária, pois a saúde é vista como um processo complexo, não restrito apenas ao parâmetro do modelo médico de saúde/doença, em que o psicólogo atua simplesmente no psicodiagnóstico e na psicoterapia, de modo a atuar em uma dinâmica a-histórica e individualizante dos casos (Prebianchi & Cury, 2005). A partir dessa compreensão, é sugerida a via do diálogo entre os profissionais de todos os serviços envolvidos na construção de uma queixa sobre uma criança ou adolescente:

A Clínica Psicológica tem ficado restrita a uma função reabilitadora (e, portanto, curativa) determinada tanto pelos seus modelos de intervenção, quanto pelo questionável desempenho dos cuidados do nível primário (Centros de Saúde), do seu papel fundamental no sistema de saúde em geral: funcionarem como filtro entre a população e os cuidados de saúde especializados. Acredita-se que mais do que responder indiscriminadamente à demanda originada no nível primário de atenção, o compartilhamento dos saberes sobre saúde mental infantil entre os profissionais da Clínica e as equipes de cuidados primários poderia gerar práticas mais eficientes e serviços mais eficazes, em ambos os níveis. (Prebianchi & Cury, 2005, p. 256)

Tendo em vista tais aspectos, objetivou-se caracterizar a clientela de crianças e adolescentes de um serviço-escola de Psicologia de uma universidade pública paranaense, partindo de uma análise documental retrospectiva. Pretendeu-se delinear os aspectos sociodemográficos da clientela bem como o percurso dos pacientes no serviço em questão, considerando as queixas iniciais, o motivo do encerramento do caso e a quantidade de sessões de psicoterapia realizadas.

 

Método

Trata-se de uma pesquisa documental, de caráter retrospectivo, que visou levantar dados e caracterizar a população que procurou atendimento psicológico em um serviço-escola de Psicologia de uma universidade pública paranaense, tendo realizado, ao menos, a entrevista de triagem no serviço em questão.

Amostra

A amostra foi composta por prontuários relativos a crianças e adolescentes entre 0 a 17 anos, de ambos os sexos, cujos responsáveis participaram, ao menos, de entrevistas de triagem realizadas em um serviço-escola de Psicologia de uma universidade pública paranaense. Foram consultados um total de 160 prontuários, compostos por Fichas de Triagens, grade com informações sobre o tipo de atendimento realizado (entrevista de triagem, entrevista com os pais, sessão de psicoterapia) e dados de encerramento de caso. Neste sentido, nas situações nas quais as crianças ou adolescentes tivessem iniciado os atendimentos, foram consultados os dados das pessoas cuja psicoterapia já tivesse sido encerrada no momento da coleta de dados.

Procedimentos

Foram analisados os dados de todos os prontuários, compostos pela Ficha de Triagem, grade com informações sobre os atendimentos realizados e dados de encerramento do caso, referentes a crianças e adolescentes, ou seja, ao população entre 0 e 17 anos e 11 meses. Fez-se um recorte temporal referente aos prontuários, cujas entrevistas de Triagem tivessem sido realizadas no período de janeiro de 2015 a julho de 2017 e, no caso de a psicoterapia ter sido iniciada, foram selecionados os prontuários dos pacientes cujos processos psicoterapêuticos já tivessem sido encerrados. Os dados concernentes a gênero, idade, escolaridade, cidade, renda familiar e tipo de encaminhamento (busca espontânea ou encaminhamento de profissional) foram analisados, e as informações relativas às queixas foram categorizadas, tendo em vista a proposta de classificação de Wielewicki (2011) e Romaro e Capitão (2003).

Aspectos éticos

Trata-se de uma pesquisa realizada por meio da consulta a documentos elaborados com a finalidade de extensão. Nesse sentido, não demanda a submissão e aprovação da pesquisa por parte de um Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, vinculado ao CONEP, tendo em vista a Resolução CNS 510/2016, de 07 de abril de 2016. Aponta-se que essa resolução indica que os estudos que façam uso de “banco de dados, cujas informações são agregadas, sem possibilidade de identificação individual” (Conselho Nacional de Saúde, 2016, p. 2) não devem ser registrados e analisados pelo sistema CEP/CONEP.

 

Resultados e discussão

Os resultados e discussão foram delineados, então, com base na análise dos prontuários de casos iniciados entre os anos de 2015, 2016 e 2017, e finalizados até o início da coleta de dados desta investigação. Os dados serão apresentados de acordo com as variáveis levantadas e analisadas por meio do método de ocorrência de frequência.

Foram contabilizados 70 casos iniciados e encerrados no ano de 2015 (43,75%), 68 em 2016 (42,5%) e 22 casos até o mês de julho de 2017 (13,75%). A baixa quantidade de casos iniciados e encerrados em 2017 corresponde ao fato de que, no serviço-escola de Psicologia em questão, as triagens serem feitas massivamente no segundo semestre do ano. Outrossim, as coletas de dados foram realizadas em documentos produzidos até o meio do ano, período em que a maioria dos casos em atendimento ainda não havia sido encerrada.

Considerou-se como dados sociodemográficos relevantes para esta pesquisa: gênero, idade, escolaridade, cidade e região da cidade em que a pessoa reside e renda familiar. A respeito do gênero das crianças e adolescentes que procuraram pela psicoterapia individual, registrou-se a seguinte distribuição: 45% (72) do gênero feminino e 55% (88) do gênero masculino. A Tabela 1 descreve a relação entre gênero e idade das crianças e adolescentes.

Dados referentes à maior concentração de crianças entre seis e 10 anos assemelham-se a outros estudos. Romaro e Capitão (2003) registraram a frequência de 22,4% da população inscrita na pesquisa (com crianças, adolescentes e adultos) na faixa etária de cinco a nove anos. Cunha e Benatti (2009) verificaram que 56,4% da população infantil estava entre seis e nove anos. Vivian et al. (2013) observaram que 45,9% das crianças e adolescentes inscritos na pesquisa encontravam-se com idade entre cinco a nove anos. Mais recentemente, Gonçalves registrou a média da população infantil e adolescente entre 7,05 anos de idade e 7,55 anos. Gonçalves (2018), corroborando os dados encontrados no presente estudo, aponta para a prevalência de meninos no público infantil, variando de 58,33% e 66,13 entre 2012 e 2015, assim como encontra predominância de meninas no público adolescente (entre 53,33% e 63,64%, nos anos de 2013 a 2016).

Os níveis de escolaridade desse público, apresentado em frequência (Tabela 2), são mais expressivos no que se refere às seguintes categorias: Ensino Fundamental 1 Incompleto e Completo (48,12%); Ensino Fundamental 2 Incompleto e Completo (33,12%) e Ensino Infantil (7,5%). Houve casos de pessoas que contavam com o Ensino Médio Completo (3,75%), com Ensino Superior Incompleto (0,62%) ou na Educação Especial (0,62%). Observou-se também grande incidência de casos nos quais não se informa o grau de escolaridade da criança ou adolescente (6,25%). Sobre isso, considera-se que as entrevistas de triagem não são realizadas de maneira padronizada pelos estudantes e estagiários, apesar de a ficha a ser preenchida possuir um campo específico para indicação do grau de escolaridade. Entre esses casos, tem-se que 72,5% frequentam escolas públicas, 11,25% cursam escolas particulares e 0,62% não frequentam escola, com ausência dessa informação em 15,62% dos casos. Borsa et al. (2013) também encontraram uma maior quantidade de pessoas que frequentam o Ensino Fundamental entre o público infantil (91,5%). Vivian et al. (2013) apontaram que 71,5% das crianças e adolescentes possuíam como grau de escolaridade o Ensino Fundamental Incompleto.

O serviço-escola de Psicologia referente a este estudo está localizado na cidade de Londrina-PR. Constatou-se que, entre os casos pesquisados, 80% são da cidade de Londrina-PR, 18,12% de outras cidades próximas da região Norte do Paraná, sendo elas: Cambé-PR (15%), Rolândia-PR (1,87), Primeiro de Maio-PR (0,62%) e Lupionópolis-PR (0,62%). Em três casos, não foi informada a cidade de origem, representando 1,87%. Entre os residentes da cidade de Londrina-PR, a distribuição da população, quanto à região na qual estão domiciliadas, deu-se da seguinte forma: Região Norte (33,59%), Região Oeste (24,21%), Região Leste (18,75%), Região Sul (11,72%), Centro (7,81), Zona Rural (0,78%) e não informado (3,12%). Com isso, observa-se a importância desse serviço que atende pessoas de outras cidades, lembrando que Londrina dispõe de cursos de graduação em Psicologia em outras seis diferentes Instituições de Ensino Superior, que usualmente oferecem atendimentos psicológicos à população, não se configurando a instituição pesquisadacomo o único serviço-escola de Psicologia à disposição da clientela.

A renda familiar foi informada na ficha de triagem pelas seguintes categorias: até dois salários mínimos (S.M.), com 29,37% do público, de dois a cinco salários mínimos, totalizando 47,25% dos casos, e mais que cinco salários mínimos, em um total de 11,87% da população inserida nesta pesquisa. Nota-se, contudo, que a informação não estava indicada em 12,50% dos casos. Percebe-se que famílias dos estratos inferior e médio são aquelas que mais demandam atendimento psicológico no serviço, sendo pertinente apontar para a importância de uma sinalização mais detalhada acerca da renda, possivelmente com indicação da renda bruta do grupo familiar.

Considerando os aspectos relacionados ao processo saúde-doença, foram identificados os resultados referentes à utilização de medicamentos pela população analisada neste estudo. Os dados obtidos apontam para o uso de medicação em 38 dos casos, representando 23,75% da amostra estudada. Foram delimitadas as seguintes classes de fármacos: Cloridrato de Metilfenidato/Dimesilato de Lisdexanfetamina (TDAH); Antidepressivos; Antipsicóticos; Ansiolíticos; Estabilizadores de humor; Endócrinos; Antihipertensivo; Gastrointestinais; Antiepiléticos e outros. Os medicamentos consumidos em maior frequência foram: Cloridrato de Metilfenidato/Dimesilato de Lisdexanfetamina (TDAH) (52,63%); outros (31,57%) e antidepressivos (13,15%). Observa-se que aqueles destinados a problemáticas de ordem neurológica e psiquiátrica (Cloridrato de Metilfenidato/Dimesilato de Lisdexanfetamina usado para o TDAH), Antidepressivos, Antipsicóticos, Ansiolíticos e Estabilizadores de humor) representaram 81,57% entre todos os fármacos utilizados.

A utilização de medicamentos pelos usuários de serviços-escola de Psicologia, entre a faixa etária de um a 18 anos, foi também indicada por Borsa et al. (2013), que verificaram que 57,6% do público investigado realizava algum tratamento medicamentoso no momento do encaminhamento ao serviço. Vivian et al. (2013) registraram que 19,8% das crianças e adolescentes faziam tratamento medicamentoso. Gonçalves (2018) encontrou que 7,74% da população infantil e adolescente declarou fazer uso de fármacos. As pesquisas de caracterização da população infanto-juvenil dos serviços-escola de Psicologia usualmente não detalham quais foram os medicamentos utilizados, sem haver uma padronização dos resultados quanto a essa informação.

Chama-se atenção para o alto índice de crianças e adolescentes utilizando Cloridrato de Metilfenidato. Em um estudo que buscou refletir sobre o TDAH e o neurocentrismo, apontou-se para um consumo exacerbado da substância (cloridrato de metilfenidato) na atualidade, indicando uma tendência de medicalização da infância, contribuindo para um cenário em que a descrição dos transtornos se configura como uma referência na construção do laço social (Kyrillos-Neto & Santos, 2013).

A respeito do percurso realizado por cada usuário do serviço-escola investigado, têm-se dados referentes à chegada do usuário ao serviço (Busca Espontânea ou Encaminhamento Institucional), quantidade de sessões realizadas, motivo do encerramento dos casos e queixas apresentadas pelas crianças e adolescentes. Notou-se que 44,37% de casos chegaram a esse serviço por busca espontânea, 40% chegaram por meio de encaminhamentos institucionais (escolas, serviços de saúde, Ministério Público ou serviços da assistência social). Por outro lado, essa informação estava ausente em 15,62% dos casos.

Verificou-se que 31,25% dos casos não realizaram o primeiro atendimento após a sessão de triagem. Para os casos em que a psicoterapia foi iniciada, os dados foram agrupados em ciclos de 4 atendimentos, haja vista que, no serviço-escola investigado, faz-se, no 4º atendimento, um pagamento simbólico por meio de materiais para o serviço-escola em questão. A maior frequência de quantidade de atendimentos realizados refere-se à faixa de 17º a 20º sessões.

A psicoterapia ofertada no serviço-escola em questão não tem uma delimitação de número máximo de sessões, havendo, contudo, a indicação de se limitar o atendimento psicológico para o período de um ano, prorrogável por mais um ano, oportunizando a entrada de novos pacientes. Tem-se, assim, um montante menor de pessoas que chegaram a realizar mais do que 40 atendimentos (3,75%).

 

Tabela 3

 

O encerramento da atenção psicoterapêutica aos envolvidos nesta pesquisa se deu pelos seguintes motivos: alta (18,12%), desistência (50,62%), encaminhamento (17,5%) ou faltas (6,25%), sendo que em 7,5% dos casos essa informação não foi indicada. Sobre esse índice de desistências, tem-se Campezatto e Nunes (2007) que discutem as razões de evasão dos tratamentos psicológicos em serviços-escola de Psicologia e sinalizam que o tempo discorrido para o agendamento da primeira entrevista, bem como o tempo para o início da psicoterapia favorecem a evasão. Cunha e Benetti (2009) indicam, igualmente, que 57,5% das pessoas inscritas para psicoterapia não iniciaram o atendimento, com a razão do não início dos tratamentos variando entre desistência (36,5%) e falta de perfil para tratamento nessa categoria (63,5%). Gonçalves (2018) apresentou dados concernentes à longa espera por atendimento, de maneira que, em 2012, 50% dos casos inscritos não foram atendidos. Entretanto, em sua pesquisa isso não se apresenta como regra, pois, em 2015, 82,76% dos casos inscritos iniciaram tratamento no mesmo ano.

Vivian et al. (2013) apontaram a desistência também como maior motivo de encerramento, ocorrendo em 48,1% dos casos. Deakin e Nunes (2009) verificaram o abandono precoce do atendimento em 61,29% dos casos atendidos, sendo que consideram abandono precoce os tratamentos psicoterapêuticos que se encerraram por desistência antes do 12º encontro terapêutico. Este estudo levanta como hipótese para o abandono do tratamento as questões referentes às abordagens aplicadas nos atendimentos, ao preparo dos estudantes e às características sociodemográficas da clientela infantil (Deakin & Nunes, 2009).

A classificação das queixas apresentadas pela clientela infantil e adolescente foi baseada nas categorias propostas pelos estudos de caracterização realizados por Wielewicki (2011) e Romaro e Capitão (2003), cujas propostas de classificação foram complementadas entre si. Contabilizou-se um total de 22 categorias, entre as quais, as mais apresentadas pela população foram: Dificuldades escolares (33,75%), Comportamento Agressivo (15,62%), Imaturidade/Atraso no desenvolvimento (11,25%), Ansiedade/Agitação/Irritação (10,65%) e Medo/Depressão/Problemas de pensamento (10,65%).

Foram realizadas alterações nas categorias: “dificuldade de controle de impulsos”, acrescentando “dificuldade de controle de impulsos e manejo de emoções” e “distúrbio na identidade sexual”, que passou a se denominar “questões acerca da identidade de gênero”. Ansiedade foi citada em duas categorias: ansiedade/irritação e ansiedade/agitação/irritação, de modo que se diferenciam, haja vista que a primeira se refere a uma queixa acerca de sentimentos ansiosos e/ou de insegurança que correspondem a uma postura ensimesmada do sujeito, ou seja, internalizantes, e a segunda corresponde a sentimentos de ansiedade e/ou agitação e irritação que dizem de manifestações externalizantes do sujeito em seu contexto.

Foi considerada mais de uma categoria nos casos em que se apresentaram duas ou mais queixas para tratamento psicológico (Tabela 4).

Autores identificaram, também, as queixas escolares como principal razão para busca de psicoterapia (Romaro & Capitão, 2003; Cunha & Benetti, 2009). Utilizando-se da denominação problemas de aprendizagem, que incluem problemas de natureza neurológica ou não, estudos mais recentes encontraram predominância dessa queixa em mais de 40% dos casos (Borsa et al., 2013; Vivian et al., 2013). No estudo realizado por Porto et al. (2014), as dificuldades escolares foram as queixas mais frequentes entre as crianças (16%) e as segundas mais frequentes entre os adolescentes (11%), ficando atrás das queixas concernentes aos relacionamentos familiares, que representaram 11,53%.

Para Campezatto e Nunes (2007), os altos índices de encaminhamentos realizados por escolas para tratamento psicológico relacionam-se ao fato de os professores serem intermediários na identificação dos problemas das crianças. Com isso, tendem a selecionar problemas diretamente relacionados à escola, enquanto outros problemas passam despercebidos, o que se apresenta como consequência de uma falta de habilidade dos pais, em identificar as demandas infantis, principalmente em famílias nas quais existe menor nível de escolaridade e menor renda, refletindo também os dados obtidos nesta pesquisa sobre renda familiar.

Brzozowski e Caponi (2013) compreendem que as demandas para tratamento em saúde mental dizem de desvios que existem a partir de uma prerrogativa de uma norma social a ser seguida. Os desvios, portanto, são inerentes à ideia de ordem e, pela lógica médica, devem ser normalizados, tornando-se alvo de correções a serem realizadas por tratamentos médicos e, na maioria das vezes, medicamentosos. Esses problemas comportamentais relacionam-se diretamente com o contexto social e histórico em que o indivíduo está inserido. Assim, tendem a refletir desvios relacionados à quebra de normas e de regras impostas nos grupos sociais de que participam, como a falta de atenção e agitação em sala de aula (Brzozowski & Caponi, 2013).

Seguindo essa linha de raciocínio, os autores defendem que o modelo médico tende a se responsabilizar por questões que antes eram de responsabilidade das instituições. A dificuldade de aprendizagem deixa de ser uma responsabilidade educacional e passa a ser uma responsabilidade biologizada da criança, e seu tratamento é feito por vias medicamentosas (Brzozowski & Caponi, 2013).

 

Considerações finais

Os resultados obtidos nesta pesquisa corroboram dados apontados por pesquisas da mesma natureza no que se refere a uma predominância do gênero masculino na procura por atendimento psicoterapêutico infantil e adolescente (Romaro & Capitão, 2003; Santos, 2006), que totalizaram 55% dos casos. Outro dado similar diz respeito ao fato de as queixas escolares ocuparem um lugar de destaque entre as problemáticas mais indicadas como demanda para atendimento psicológico individual (Cunha & Benetti, 2009, Santos, 2006).

Historicamente, a construção da infância como categoria social acompanhou a histórica diferenciação de gêneros, havendo uma predominância dos poderes sociais dos homens em detrimento das mulheres. Apesar da transformação social decorrente do acesso aos direitos das mulheres e, principalmente, o direito aos estudos, no caso das crianças, ainda existe uma herança cultural que projeta a educação dos meninos para uma atuação no mundo, na sociedade, enquanto para as meninas indicam-se padrões comportamentais mais reclusos, voltados à manutenção das dinâmicas familiares (Boarini & Borges, 1998).

Essa diferença cultural na educação de meninos e meninas se reflete na demanda por serviços de saúde mental nessa etapa da vida. Essa situação reflete a constatação de que as meninas apresentam comportamentos mais internalizados que acabam por não impactar as dinâmicas dos ambientes familiares e escolares, e que os meninos apresentam comportamentos externalizantes, como comportamentos agressivos, ansiedade e agitação, os quais geram maiores conflitos com o ambiente (Santos, 2006). Dessa forma, tem-se um crescente índice dos diagnósticos de crianças com TDAH e, consequentemente, uma disseminação no consumo de fármacos para tratar esse desvio. Nesta pesquisa, entre os sujeitos que utilizam medicamentos, 52,63% utilizam Cloridrato de Metilfenidato/Dimesilato de Lisdexanfetamina, medicamentos cujo princípio ativo visa ao tratamento de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade.

Outro dado obtido refere-se às indicações quanto à não vinculação do público alvo (crianças e adolescentes) ao serviço-escola, uma vez que, em 31,25% dos casos envolvidos nesta pesquisa, não foi realizada a primeira sessão de psicoterapia após a entrevista de triagem e, em 50,62% dos casos, o motivo de encerramento do tratamento se deu pela desistência dos usuários. Sobre o tema, tem-se o acolhimento em saúde mental, trabalho que visa identificar as necessidades singulares do sujeito e, diante delas, oferecer um leque de estratégias e mecanismos em conformidade com as demandas dos sujeitos (Pinho, Hernandez, & Kantorski, 2009). Sobre o acolhimento e acessibilidade, entende-se que

tornar um serviço acessível é também torná-lo sensível às demandas das pessoas, assim como acolher o outro representa um diferencial em termos de capitalização dos esforços coletivos, em torno de um projeto único, pautado na negociação e no poder contratual (Pinho et al., 2009, p. 613).

As reflexões acerca da eficácia do acolhimento oferecido por esse serviço também se relacionam com os aspectos demográficos da população adscrita nesta pesquisa. Observa-se que muitos usuários que chegam ao serviço residem em regiões da cidade distantes daquela na qual o serviço-escola de Psicologia está localizado. Propõe-se, portanto, um melhor diálogo entre as redes de cuidado em saúde do município, para implementação e aprimoramento das redes comunitárias de cuidado, com assistência do usuário em seu próprio território.

Quanto aos limites deste estudo, semelhante ao trabalho de Romaro e Capitão (2003), não se fez uma diferenciação das queixas com base no gênero. Aponta-se, ademais, para a ausência de informações das pessoas entrevistadas nas fichas de triagens, com muitos dados não preenchidos pelos responsáveis pelos atendimentos. Tendo em vista se tratar de um serviço destinado ao ensino, pesquisa e extensão, considera-se necessário um trabalho de sensibilização dos discentes e docentes quanto à importância de cada informação solicitada. Além disso, esta pesquisa refere-se aos dados apenas de um dos serviços-escola de Londrina, sendo relevante o estabelecimento de parcerias para o levantamento de dados que ilustrem mais amplamente a realidade da cidade.

 

Referências

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Recebido em: 29/12/2018
Aprovado em: 20/12/2019

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