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Revista de Psicologia da UNESP

On-line version ISSN 1984-9044

Rev. Psicol. UNESP vol.18 no.2 Assis July/Dec. 2019

 

ARTIGOS

 

Relato de experiência em Aprimoramento Profissional: mudanças na saúde mental de Assis rumo ao Paradigma Psicossocial

 

 

Bárbara Vukomanovic Molck; Liamar Aparecida dos Santos

Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP)

 

 


RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo relatar uma experiência de reorganização da rede de saúde mental em um município da região Oeste do Estado de São Paulo, a partir de um processo de fechamento de um ambulatório de Saúde Mental vivenciado por psicólogas do Programa de Aprimoramento Profissional. Para tanto apresenta-se, inicialmente, um breve histórico reforma Psiquiátrica Brasileira e da Saúde Mental em Assis, algumas considerações sobre as políticas públicas de Saúde constituídas no SUS, mais especificamente no campo da Atenção Básica e Atenção Psicossocial e sobre os modos de produção de Saúde Mental. Em seguida, relata-se a experiência vivenciada pelas autoras evidenciando as tensões entre os modos de produção da saúde mental no processo de reorganização da rede de assistência em Saúde Mental.

Palavras-chave: aprimoramento; saúde mental; modos de produção de saúde mental.


ABSTRACT

This work aims to report a reorganization experience of mental health network in a municipality in the western region of the State of São Paulo; Psychologists from the Professional Improvement Program participated in a mental health clinic closure. We display a brief history of Brazilian Psychiatric and Mental Health reform in Assis, and assumptions about public health policies constituted in SUS, more specifically in the field of Primary Care and Psychosocial Care and about the modes of production of Mental health. Then, we report our experience highlighting the tensions between the modes of production of mental health in the process of reorganizing the mental health care network.

Keywords: professional improvement, mental health, mental health production modes.


 

 

Introdução

Este trabalho tem o objetivo de, com base na experiência do Aprimoramento em Saúde Mental e Saúde Pública, relatar um processo de mudança na Saúde Mental da cidade de Assis - município localizado no oeste do Estado de São Paulo, com uma população estimada de 95.144 habitantes (IBGE, 2010). Tal mudança foi concomitante à experiência do próprio Aprimoramento, que se refere à reorganização da rede e dos fluxos de Saúde Mental, em decorrência do fechamento do Ambulatório de Saúde Mental, vinculado e funcionando juntamente com o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) do município. Esse fato gerou e tem gerado diferentes tensões e a necessidade, por parte dos gestores e trabalhadores, de repensar as formas de cuidado, que antes eram orientadas predominantemente pela oferta de consultas médicas e prescrição de psicotrópicos.

No primeiro momento, apresentamos o programa de Aprimoramento, suas diretrizes e seus objetivos, fazendo o percurso da Reforma Psiquiátrica até a atual política de Saúde Mental prevista pelo SUS. Apresentamos brevemente os modos antagônicos de produção na Saúde Mental: Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medicalizador (PPHM) e o Paradigma Psicossocial (PPS); contextualizamos historicamente a Saúde Mental de Assis e a mudança em andamento, de acordo com o relato do aprimoramento. Concluímos com uma análise dos modos de Produção na Saúde Mental de Assis, de acordo com nossas experiências.

 

Sobre o Aprimoramento

A Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo contava, desde a década de 1970, com o Programa de Aprimoramento Profissional (PAP) para capacitação e formação de quadros para a saúde pública, destinado a profissionais recém-formados de diversas áreas. As instituições credenciadas pelo PAP ofereciam cerca de 300 diferentes programas, abrangendo diversas e diferentes áreas: enfermagem, análises clínicas, psicologia, biologia, serviço social, nutrição, sociologia, terapia ocupacional, biomedicina, química, fonoaudiologia, farmácia, bioquímica, medicina veterinária, odontologia, fisioterapia, biblioteconomia, educação física, entre outros. Os aprimorandos recebiam uma bolsa-auxílio, cuja administração era feita pela Fundação de Desenvolvimento Administrativo (FUNDAP). A duração dos programas variava de um a dois anos, com carga horária semanal de 40 horas de atividades, 20% delas consistindo em trabalho teórico em aulas − seminários e revisões bibliográficas - e as demais em treinamento em serviço.

Desde o ano de 2000, implantou-se o Programa de Aprimoramento em Saúde Mental e Saúde Pública, objeto deste relato, que desenvolveu suas atividades em diferentes municípios da região. Com o objetivo de aperfeiçoar e inserir o novo profissional nos serviços públicos de saúde mental, esse programa vinha construindo estratégias para possibilitar uma qualificação profissional por intermédio de seminários, aulas teóricas, pesquisas de campo, participação em supervisões, bem como em reuniões e eventos relevantes da Regional de Saúde. Todas essas atividades visavam capacitar os aprimorandos, para uma atuação qualificada e diferenciada na área da Saúde, a fim de promover o aperfeiçoamento do desempenho profissional nas diversas áreas que integram, apoiam ou gerenciam a prestação de serviços de saúde; estimular o desenvolvimento de uma visão crítica e abrangente do Sistema Único de Saúde (SUS), orientando sua ação para a melhoria das condições de saúde da população, e aprimorar o processo de formação, considerando as diretrizes e princípios dos SUS, de modo a desenvolver uma compreensão ampla e integrada das diferentes ações e processos de trabalho da instituição participante do PAP.

Em novembro de 2018, por força do decreto nº 63.798, o programa foi extinto e os recursos que custeavam as bolsas foram transferidos para um Programa de Especialização latu sensu da Secretaria de Estado da Saúde. Com o decreto, encerrou-se um importante capítulo da história do SUS, que desde os anos de 1980 contribuiu de modo significativo para a formação de centenas de profissionais. O presente relato de experiência deu-se em uma das últimas turmas do programa. A seguir, apresentamos algumas de características de sua existência.

O programa, no ano de 2017, contou com cinco aprimorandos da psicologia em quatro instituições diferentes: CAPS II (Município 1), CAPS I (Município 2), ESF (Município 1) e Departamento Regional de Saúde. Eram realizadas reuniões de supervisão semanais, nas quais se dividiam as experiências e indagações sobre as atuações das aprimorandos nos diferentes campos.

O presente trabalho é uma narrativa sobre a experiência no município 1, que teve como cenário o CAPS II. O aprimoramento teve como proposta o apoio aos trabalhadores e usuários em ações que estavam sendo desenvolvidas, além de outras que se desenvolverem durante o programa.

A proposta do PAP propiciou um percurso profissional na construção de olhares críticos e abrangentes tanto sobre o SUS quanto sobre a Atenção Psicossocial, seja em suas proposições no cenário brasileiro seja na experiência singular, dentro de instituição em um município. As ações desenvolvidas, as supervisões e aulas, possibilitaram-nos percorrer um caminho tão desafiador quanto enriquecedor, pela complexidade dos temas que atravessavam nossa prática e que pudemos discutir e contribuir, na perspectiva da construção de um sistema de saúde público e universal. É uma parte dessa vivência que se pretende compartilhar.

 

O SUS e a Reforma Psiquiátrica

O Sistema Único de Saúde brasileiro, o SUS, foi criado concomitante ao processo de redemocratização do país, após uma ditadura militar que durou 21 anos. Nesse contexto, surge um movimento de transformação das condições de saúde da população, que ficou conhecido como "Reforma Sanitária".

O SUS nasceu na contramão de outras reformas setoriais nas décadas de 1980 e 1990, que tinham como característica um Estado fortemente centralizador e trabalhadores e provedores privados e filantrópicos. Sua proposta de atenção universal - baseada no conceito da saúde como direito da cidadania e dever de Estado - foi ao encontro da dinâmica das reformas mundiais. (Araujo, 2009; Gerschman, 2006). O processo de instituição do SUS partiu de movimentos sociais, especialmente nas periferias de grandes cidades como São Paulo (Sader, 1995). As reivindicações sociais que nortearam o movimento foram reunidas na 8ª Conferência de Saúde (1986) e, posteriormente, inscritas na Constituição de 1988. Os princípios e diretrizes do SUS são: a universalidade, a equidade, a integralidade, a descentralização, a participação da população e a organização da rede de serviços de modo regionalizado e hierarquizado (Brasil, 2000)

No interior desse processo amplo, temos a saúde mental trilhando os mesmos caminhos com a reforma psiquiátrica. Animado por uma nova geração de trabalhadores, que ingressaram nas instituições psiquiátricas naquele período, o caminho da reforma foi sendo construído por quem estava nas instituições, vivenciando o cotidiano de violência, angustiado pelas contradições e questões que a prática impunha. Inspirados pelo clima político e cultural, tornaram-se atores implicados nesse processo, ampliando a sua influência, ocupando espaços e, principalmente, inventando novas instituições (Amarante, 1998; Yasui, 2010).

Em um constante movimento dialético entre teoria e ação, foram sendo criadas novas práticas institucionais, especialmente os Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS) e os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), que acabaram por influenciar e inspirar, por um lado, as mudanças na estrutura normativa das ações de saúde mental - como as portarias e normativas emanadas do Ministério da Saúde - e, por outro, um movimento crítico das bases conceituais da Saúde Mental, de onde emergiram novas proposições paradigmáticas que passaram a orientar essas transformações. Em 2001, após quase doze anos tramitando no Senado Federal, e no ano em que a Organização Mundial de Saúde escolheu como o ano da Saúde Mental, foi finalmente assinada a lei nº 10.216, que dispõe sobre a “proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental”, a chamada Lei da Reforma Psiquiátrica.

Hoje, após mais de 30 anos de seu início, a Reforma Psiquiátrica se configura como uma complexa e diversificada política de saúde, contemplando diferentes dimensões: promoção e prevenção (apoio aos serviços e ações na atenção básica em saúde); cuidado ao sofrimento psíquico (CAPS em suas diferentes modalidades); reabilitação (Programa de Volta para Casa); inserção social (projetos de geração de trabalho e renda) (Yasui, Luzio & Amarante, 2018). Os dispositivos de Saúde Mental são organizados em uma Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), criada pela Portaria 3088 de 2011, tendo a Atenção básica como ordenadora e porta de entrada, com finalidade de criação, ampliação e articulação de pontos de atenção à saúde para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). (Brasil, 2011)

 

Dispositivos de saúde na RAPS

Entre os equipamentos substitutivos ao modelo manicomial que fazem parte da RAPS, podemos citar os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), os Centros de Convivência (Cecos), as Enfermarias de Saúde Mental em hospitais gerais e as oficinas de geração de renda. As Unidades Básicas de Saúde cumprem também uma importante função na composição dessa rede comunitária de assistência em saúde.

Para fins deste artigo, com o objetivo de fornecer subsídios para a reflexão sobre as mudanças na saúde mental no município, concentraremos nossa atenção no Centro e Atenção Psicossocial (CAPS) e na Atenção Básica.

O primeiro CAPS do Brasil foi inaugurado 1987, na cidade de São Paulo, conhecido como Centro de Atenção Psicossocial Professor Luiz da Rocha Cerqueira. A criação do CAPS foi fruto da reforma psiquiátrica e da Luta Antimanicomial e são instituições que possuem caráter aberto e comunitário, dotados de equipes multiprofissionais e transdisciplinares.

Os CAPS são instituições destinadas a acolher os pacientes com transtornos mentais, estimular sua integração social e familiar, apoiá-los em suas iniciativas de busca da autonomia, oferecer-lhes atendimento médico e psicológico. Sua característica principal é buscar integrá-los a um ambiente social e cultural concreto, designado como seu 'território', o espaço da cidade onde se desenvolve a vida quotidiana de usuários e familiares. Os CAPS constituem a principal estratégia do processo de reforma psiquiátrica. (Brasil, 2004: 9).

Os usuários atendidos nos CAPS são aqueles que apresentam intenso sofrimento psíquico, que lhes impossibilita viver e realizar seus projetos de vida. São preferencialmente pessoas com transtornos mentais severos e/ou persistentes, ou seja, pessoas com grave comprometimento psíquico, incluindo os transtornos relacionados às substâncias psicoativas (álcool e outras drogas), e também crianças e adolescentes com transtornos mentais.

Além do CAPS, a Atenção Básica é um importante dispositivo de saúde mental no interior da RAPS.

Atenção Básica caracteriza-se como a porta de entrada preferencial do SUS, formando um conjunto de ações de Saúde, no âmbito individual e coletivo, que abrange a promoção e a proteção da saúde, a prevenção de agravos, o diagnóstico, o tratamento, a reabilitação, a redução de danos e a manutenção da saúde com o objetivo de desenvolver uma atenção integral que impacte na situação de saúde e autonomia das pessoas e nos determinantes e condicionantes de saúde das coletividades. Desenvolve-se com o mais alto grau de descentralização e capilaridade, próxima da vida das pessoas. Deve ser o contato preferencial dos usuários e centro de comunicação da Rede de Atenção à Saúde. Orienta-se pelos princípios da universalidade, da acessibilidade, do vínculo, da continuidade do cuidado, da integralidade da atenção, da responsabilização, da humanização, da equidade e da participação social. A Atenção Básica considera o sujeito em sua singularidade e inserção sociocultural, buscando produzir a atenção integral (Brasil, 2013, pag19).

A Política Nacional de Atenção Básica tem na Saúde da Família (ESF) sua estratégia prioritária para expansão e consolidação da Atenção Básica. Já a demarcação de uma proposta para a Saúde Mental na Atenção Primária ganhou ênfase com o Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF).

O NASF é uma equipe composta por profissionais de diferentes áreas de conhecimento, que devem atuar de maneira integrada e apoiando os profissionais das Equipes Saúde da Família, das Equipes de Atenção Básica para populações específicas, compartilhando as práticas e saberes em saúde nos territórios sob responsabilidade destas equipes (Brasil, 2012).

Os seus princípios fundamentais são: noção de território, intersetorialidade, reabilitação psicossocial, multiprofissionalidade, interdisciplinaridade, desinstitucionalização, promoção da cidadania e construção da autonomia. (Brasil, 2013).

Tanto a atenção básica, com a ESF e NASF, quanto o CAPS são dispositivos que devem funcionar em rede e de forma integrada. Porém, é preciso pensar o processo de adoecimento como multideterminado, no qual incidem fatores sociais e econômicos que, por esses e outros motivos, exigem tanto um olhar quanto ações integradas, sendo que isso ainda não é prática comum nas equipes de saúde. Ainda predominam práticas e compreensões de saúde orientandas pelo eixo doença-cura, com um olhar predominantemente biológico, levando a ações estratificadas e fragmentadas em especialismos. No campo da Saúde Mental, a prática hegemônica é centrada na sintomatologia e, como consequência, predominante medicamentosa (Yasui & Costa-Rosa, 2008).

O apresentado anteriormente aponta para a necessidade de uma aproximação da Saúde Mental e da Atenção Básica, por uma outra perspectiva. Mesmo em outros países, vários sistemas de saúde de cobertura universal apontam dificuldades para a conciliação entre ambas, como a falta de capacitação dos profissionais e a medicalização crescente e inapropriada dos problemas sociais (Campos, 2000).

 

Modos antagônicos de produção na Saúde Mental - Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medicalizador

Acompanhando as teorizações de Costa-Rosa (2013), podemos afirmar que as instituições de Saúde Mental predominantes em nosso contexto são organizadas de forma análoga ao Modo de divisão social do trabalho socialmente dominante, qualificado como Modo Capitalista de Produção1(MCP). Ao entrar em sinergia com esse Modo de Produção, entendido em sentido amplo, as instituições de Saúde Mental assumem uma forma por ele determinada, com características ou traços fundamentais que podem ser identificados, descritos e organizados teoricamente: a hegemonia do saber da psiquiatria biomédica, a centralidade do equipamento hospitalar e a tendência a responder à demanda de forma medicalizada.

Em uma tentativa de conceituar as características citadas, o autor mobiliza a noção de paradigma, retirada principalmente das obras de Kuhn (2000) e Santos (1987), que designa um conjunto articulado de postulados científicos mais ou menos aceitos em uma determinada época histórica. Esses postulados, além disso, também servem como balizadores da prática concreta. No caso das instituições de Saúde Mental, o autor propõe, então, o conceito de Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medicalizador (PPHM). Assim, aquelas características passam a se identificar com traços que estruturam o modo atualmente predominante de organizar o trabalho nas instituições de saúde mental. (Costa-Rosa, 2013)

Segundo Yasui e Costa-Rosa (2008), o PPHM é entendido como uma agregação dos diferentes vetores das pulsações da Demanda Social, tanto em termos de ação instituinte (a ação que cria o novo, geralmente relacionada com o polo dominado da totalidade social), quanto da resistência do instituído (a reação que busca manter o já-dado, geralmente relacionada com o polo dominante da totalidade social), no campo da Saúde Mental.

O termo medicalizador, nessa teorização, é utilizado com o duplo sentido do radical medic: aquilo que é centrado no discurso e na ação médica e a prática orientada para a utilização da medicação como resposta preferencial e a priori às demandas do sofrimento ou crise psíquica.

Como afirmado, o MCP está em sintonia e determina em grande medida o PPHM e seus diferentes dispositivos-Estabelecimentos: o Manicômio/hospital psiquiátrico, a hegemonia do Discurso Médico em suas diferentes modalidades de produção de laço social - em especial o Discurso do Mestre e o Discurso da Universidade, situações nas quais o sujeito do sofrimento é posto na posição passiva do paciente ou na de objeto de estudo-exploração científica -, o arsenal de suprimentos medicamentosos, que chegam às vezes a redesenhar a organização asilar tradicional, criando o chamado manicômio químico (Costa-Rosa, 2013).

No que se refere à produção de serviços, no PPHM existe sempre um intermediário que é o dono dos meios de produção, isto é, o dono dos vários dispositivos-Estabelecimentos listados anteriormente. Isso mantém o imaginário de que a Saúde Mental é uma mercadoria, portanto, algo que deve ser paga para que seja consumida. Assim, há os donos que mandam e se beneficiam dessas instituições, os que produzem-obedecem e os que consomem - sendo que às vezes esses dois últimos grupos se confundem. Esse intermediador, que se coloca entre os meios de trabalho e a força de trabalho, gera uma série de consequências, como, por exemplo, a exclusão dos sujeitos do sofrimento, trabalhadores e da população em geral da concepção, planejamento e organização dos trabalhos realizados, que devem ser apenas executados ou consumidos.

Desse modo, o PPHM trata de reproduzir as relações sociais hegemônicas, sobretudo aquelas de dominação-subordinação. O discurso médico, um dos traços fundamentais desse paradigma, reproduz as formas de subjetividade que são dominantes nas relações sociais - que podemos chamar de subjetividade capitalística - e que mantém o sujeito alienado quanto aos fundamentos do sofrimento sintomático de que se queixa e também quanto ao seu posicionamento em relação a eles.

 

Modos antagônicos de produção na Saúde Mental - Paradigma Psicossocial (PPS)

Entendendo que um paradigma não pode existir por muito tempo sem oposição, ou seja, sem que outro o critique e reclame substituí-lo, Costa-Rosa (2013) identifica uma série de tendências práticas e teóricas que antagonizam em grande medida com o PPHM. Trata-se do Paradigma Psicossocial (PPS), que se desenha pelo surgimento histórico de uma série de questionamentos ao modo hegemônico de organização institucional da Saúde Mental. O autor cita principalmente a Reforma Sanitária e a Reforma Psiquiátrica, que foram transformações nas políticas de saúde, nas práticas das instituições, nas referências teóricas, técnicas e éticas. O auge das transformações é marcado pela VIII Conferência Nacional de Saúde, em 1986, e depois pela Constituição de 1988, com destaque para a garantia da participação popular nas decisões da política de Saúde.

A partir dessas práticas e também de seus desdobramentos - como a criação de dispositivos revolucionários de Saúde Mental, os CAPS e o NAPS da cidade de Santos - começou a ser elaborado o termo psicossocial que, segundo Costa-Rosa (2013), designa o campo de uma práxis, mais do que a simples sobreposição do campo psíquico e social propriamente ditos. Entretanto, parte-se também do reconhecimento de que são essas duas dimensões, mais do que a dimensão estritamente biológica, as mais determinantes quando lidamos com o campo da Saúde Mental.

No PPS o sujeito do sofrimento não é objeto de pesquisa e nem de passiva intervenção. Ao contrário, ele deve ser tomado pela sua posição de sujeito dividido, em atitude de objeção ao contexto em que necessariamente está referenciado. A ética do PPS exige que o trabalhador opere sempre como intercessor, visando permitir ao sujeito posicionar-se como protagonista do processo de produção de saúde. Nesse processo, o sujeito pode produzir o saber inconsciente capaz de mudar simbolicamente a sua posição em relação ao impasse sintomático. Portanto, ao contrário do PPHM, onde temos os sujeitos do sofrimento excluídos ou colocados em posições objetificadas, no PPS temos o sujeito em posição ativa e protagonista de todo o processo de produção de saúde. Por sua lógica institucional, por suas técnicas e por sua ética, exclui-se dos dispositivos institucionais do PPS o manicômio e o próprio Hospital Psiquiátrico, substituídos pelos CAPS, por pequenas enfermarias psiquiátricas em hospitais gerais e por diferentes táticas territoriais, nas instituições do setor Saúde e de outros setores, com destaque para o matriciamento na ESF (Costa-Rosa, 2013).

O PPS assume ética e tecnicamente a indissociabilidade entre Saúde psíquica e subjetividade. Ao passo que a medicalização, como resposta a priori e praticamente exclusiva aos diferentes impasses do sofrimento psíquico, remete a uma concepção puramente biológica dos impasses e crises em Saúde Mental, que exclui a subjetividade. Segundo Costa-Rosa (2013), é uma meta do PPS virar pelo avesso o discurso médico e redefinir a posição e a função dos psicofármacos como coadjuvantes entre seus meios de ação nos impasses subjetivos e no sofrimento psíquico na sociedade contemporânea. É por isso que é possível afirmar que a luta antimanicomial precisa incluir com urgência o manicômio químico como um de seus alvos essenciais.

A partir dos paradigmas apresentados, faz-se necessário relacioná-los com as mudanças ocorridas nas políticas de Saúde Mental da cidade de Assis. Antecipamos que, antes de tais mudanças, tanto o Ambulatório de Saúde Mental quanto o CAPS tinham um funcionamento médico centrado e, portanto, mais próximo daquilo que foi conceituado como PPHM. O fechamento do ambulatório e a reorganização dos serviços, na contramão desse paradigma ainda hegemônico, visam a uma aproximação com o Paradigma Psicossocial. A seguir, mencionamos os percursos da Saúde Mental em Assis e relatamos as experiências no Programa de Aprimoramento no CAPS.

 

Saúde Mental no município

No final da década de 1960, a população do município não contava com nenhum tipo de atendimento em Saúde Mental. A concepção de doença/cuidado, vigente à época, era a de que somente o hospital psiquiátrico seria a instituição legítima para o tratamento da doença mental. No cenário nacional, estava em curso o processo de criação de uma ampla rede de hospitais psiquiátricos particulares e conveniados com o poder público, que deveriam absorver boa parte da população que estava sendo atendida nos hospitais públicos.

Em 1970, o então prefeito do município doou um terreno a uma instituição filantrópica para a construção do que deveria ser um hospital psiquiátrico com mais de 200 leitos. Tratava-se de um projeto que, coordenado pela instituição, captou recursos públicos e doações diversas do setor privado (financeiras, em material de construção etc.). Contudo, nos anos de 1970, já ocorriam graves denúncias de favorecimento governamental aos empresários da denominada indústria da loucura, o que levou a uma interrupção na construção do hospital, que ficou vários anos como um prédio inacabado. (Luzio & Machado, 2008, p.77)

Somente na década de 1980 o projeto foi retomado, mas com outras características. No início da década, já se priorizava, no Estado de São Paulo, a criação de uma rede de atenção em saúde mental extra-hospitalar, com a criação de equipes mínimas de Saúde Mental nos Centros de Saúde e de Ambulatórios de Saúde Mental. (Ferraz & Moraes, 1985; Yasui, 1999)

No município, após muitas negociações envolvendo a Universidade, prefeitura, instituição filantrópica, decidiu-se pela retomada das obras para a construção de um equipamento extra-hospitalar. Assim, em setembro de 1984 foi inaugurado o Ambulatório de Saúde Mental (ASM), com o nome de Hospital Psiquiátrico Ambulatorial. A escolha do nome revelava uma solução de compromisso entre os dois projetos bem distintos de assistência nessa área, defendidos pelos grupos envolvidos no projeto2. Suas atividades centravam-se na consulta psiquiátrica e na psicoterapia individual. Em 1988, a instituição doa parte do prédio3 para a prefeitura, que assume o Ambulatório de Saúde Mental (Luzio & Machado, 2008).

Em 1997, a equipe do Ambulatório e a gestão de saúde da prefeitura, dão início ao que se chamou de Programa de Atenção Intensiva (PAI), para atender pessoas com dificuldades de contato pessoal e inserção social, por meio de uma abordagem multiprofissional, buscando aproximar a prática do Ambulatório ao que se preconizava como Política de Saúde Mental. Tratava-se de um ensaio para a criação de um Centro de Atenção Psicossocial. O espaço físico tornou-se Centro Integrado de Atenção Psicossocial (CIAPS) que abrigava, além do ASM e do PAI, o Programa de Reabilitação Infantil. Após uma reforma do prédio, a Secretaria Municipal de Saúde, em 2003, transformou o PAI em um CAPS, que foi credenciado pelo Ministério da Saúde, de acordo com os princípios e diretrizes da Política Nacional de Saúde Mental, em especial com a Lei 10.216 de 06/04/2001 e a Portaria 336/2002.

Interessante apontar que a história da assistência em Saúde Mental no município reflete as concepções sobre a loucura e de seu tratamento, evidenciando os paradoxos e contradições das propostas do SUS e da Atenção Psicossocial no país. Assim, no mesmo espaço físico, com o fantasma de um Hospital Psiquiátrico de Assis, que nunca chegou a ser concluído e ativado, funcionavam o CAPS, o Ambulatório de Saúde Mental (a equipe dividia-se entre esses dois serviços) e o Programa de Reabilitação Infantil.

 

Atuação no Centro de Atenção Psicossocial - CAPS II

De acordo com documento da Secretaria Municipal de Saúde, o ambulatório de Saúde Mental tinha como objetivo o atendimento a pessoas com sofrimento psíquico que não necessitam de cuidados intensivos, que ocorria da seguinte forma: Pronto Atendimento (triagem); Avaliação Psiquiátrica (primeira consulta, agendamento após avaliação e encaminhamento dos psicólogos das Unidades Básicas de Saúde); acompanhamento psiquiátrico (consultas agendadas e intercorrências) para a cidade e municípios da microrregião; avaliação psicológica; atendimento psicológico aos usuários de substâncias psicoativas; atendimento da assistente social e atendimento da enfermagem. Já o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), de acordo com o mesmo documento, desenvolvia e desenvolve ações intensivas com usuários com sofrimento psíquico grave, buscando atender a Portaria 336/2001, por intermédio da reinserção social dos usuários pelo acesso ao trabalho, lazer, exercício dos direitos civis e fortalecimento dos laços familiares e comunitários.

O ASM e o CAPS localizavam-se em um bairro distante do centro da cidade, e os usuários atendidos pela psiquiatria permaneciam indeterminadamente submetidos à terapêutica psicofarmacológica, principalmente no atendimento do ASM (Ferraza, 2010). As internações de seus usuários ocorriam em instituições localizadas em municípios de outras regiões (Luzio & Machado, 2009).

Apesar do uso prevalente da medicação como terapêutica principal, os usuários do CAPS encontravam outras modalidades de cuidado, produzidas tanto pela equipe quanto por outros profissionais e estagiários que atuavam naquele serviço. O CAPS foi (e ainda é) campo de estágio para alunos de psicologia e de enfermagem de duas Universidades (uma pública e outra privada), que ofertavam diferentes oficinas terapêuticas, atendimentos em grupos, acolhimento, dentre outras ações. Além disso, conta com uma Associação de Usuários e Familiares, que promoviam, e promovem, diferentes ações culturais e de geração de trabalho e renda.

Em 2007, com a troca da gestão municipal, tem início a experiência no PAP que aqui relatamos. Ao longo desse ano, foram acontecendo mudanças importantes, tanto no espaço físico, quanto na equipe e no modo de organização de trabalho, conforme narramos a seguir.

No início do ano, havia na equipe do Ambulatório de Saúde Mental (ASM) um clínico geral, com especialidade em psiquiatria, e uma psicóloga, que atendiam casos relacionados a álcool e outras drogas (AD), além de uma psiquiatra. O CAPS contava com uma equipe de um psiquiatra e três psicólogas. Os outros funcionários eram distribuídos pelos dois serviços (já que ocupavam o mesmo espaço físico), sendo eles: uma enfermeira, uma técnica em enfermagem, uma auxiliar de enfermagem, dois profissionais do setor administrativo, uma assistente de serviços gerais, uma faxineira terceirizada e um motorista que dividia sua carga horária com outras atividades da Secretaria Municipal de Saúde. Além dos estagiários das duas universidades e uma aprimoranda.

As atividades no CAPS funcionam sobrepostas com as atividades do ambulatório, estando as duas equipes transitando por ambos os serviços. Havia uma coordenadora de Saúde Mental do município que era a mesma do próprio CIAPS (ASM, CAPS e Programa de Reabilitação).

Com a mudança da gestão municipal, houve a escolha de uma nova coordenadora que estimulou a equipe a debater propostas para mudanças na política municipal de Saúde Mental.

Um dos problemas levantados, que por anos se arrastava, era o modo de cuidado do ASM. Nele ocorriam predominantemente consultas psiquiátricas e o retorno, geralmente, entre seis meses e um ano. Praticamente todos os pacientes eram medicados (99%), em sua maioria com benzodiazepínicos e antidepressivos. Apesar do retorno com a consulta médica estar prevista para um longo prazo, mensalmente os usuários voltavam para o serviço apenas para buscar suas receitas na recepção. Dessa maneira, o cuidado era centrado, quase que exclusivamente, em um olhar medicamentoso, e a ação de cuidado mais frequente era a entrega de receitas. O que incomodava a equipe era a possibilidade de haver muitos usuários necessitando de uma atenção mais próxima para reavaliação e que só recorriam ao serviço em um momento de crise. Fato que criou um inchaço do serviço e dificuldade para um olhar atento e cuidadoso sobre a medicalização do município. (Ferraza, Luzio & Rocha, 2010). Acrescenta-se a essa realidade o desejo dos profissionais de aproximar, tanto a sua atuação quanto a organização do processo de trabalho, ao que aqui apresentamos como o Paradigma Psicossocial (PPS), orientador da Política de Saúde Mental e da Rede de Atenção Psicossocial.

A partir dessas considerações, propõe-se uma importante mudança, pensada em reunião e posteriormente aprovada pelo conselho de saúde do município: o fechamento do ASM, uma vez que seu modo de cuidado contradizia o Paradigma Psicossocial e, de outro lado, à época, não era um equipamento previsto portaria da RAPS4.

Com o fechamento do ASM, a equipe do CAPS dividiu-se em três outras equipes. Como o espaço físico ocupado pelo CIAPS estava totalmente inapropriado para o funcionamento da instituição, o planejamento apontava para a ocupação de três espaços físicos diferentes: uma equipe de Saúde Mental Infantil em um CAPS I; uma equipe de Saúde Mental de álcool e outras drogas em um CAPS AD; e a equipe de transtornos mentais em um CAPS II. Todas as equipes, com os funcionários antigos realocados e novos contratados. Durante o período aqui relatado, houve a inauguração do CAPS I no município e a mudança do CAPS II para um novo prédio junto com a equipe que iria compor o futuro CAPS AD (que ainda não foi inaugurado).

A primeira ação para o viabilizar o fechamento do ASM e a mudança no fluxo da Saúde Mental foi a constituição dos Grupos de Acolhimento. Eles eram compostos pelos profissionais do CAPS com todos os usuários do ASM no momento que iam retirar suas receitas. Nos grupos, os usuários eram avaliados e os que estavam estáveis eram encaminhados para o seu território na atenção básica. Os casos mais graves e não estáveis continuavam no serviço, para então serem incluídos no CAPS.

Esses diversos encaminhamentos mudaram o fluxo da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) do município. A Saúde Mental voltou a fazer parte do cotidiano da Atenção Básica (AB) com os usuários em seus territórios, para terem um atendimento multidisciplinar e integral. Para isso, foi preciso fortalecer a Atenção Básica (Unidades Básicas de Saúde - UBS, e Estratégia Saúde da Família - ESF), além do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF), que desempenhou um papel fundamental. Desde muito tempo, as equipes da Atenção Básica, ao receberem os chamados “casos da saúde mental”, ou seja, pessoas com alguma demanda de atenção e cuidado psíquico, tinham por rotina encaminhá-los para o ASM. Com a mudança na rotina, foram necessárias diversas reuniões da gestão com as equipes, de reuniões da Saúde Mental do município como um todo e, principalmente, de reuniões com os médicos das UBS e ESF que eram os mais resistentes em assumir os aludidos “casos da saúde mental”. Essa resistência, mais clara nos médicos, mas presente também em outros profissionais, evidencia o quanto o ideário da atenção integral e multiprofissional encontra barreiras no cotidiano dos serviços de saúde que ainda operam por um modo de produzir saúde fragmentado e dividido por especialidades. Ou seja, vislumbra-se aqui como o Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medicalizador opera no cotidiano e encarna-se nas práticas, especialmente nos modos como o processo de trabalho se organiza e, nele, como a atenção e o cuidado vão sendo modelados, no caso, pela conduta que prevalece em ressaltar a especialidade e a medicalização no cuidado ao sofrimento psíquico.

Com o ambulatório fechado, ficou definido que o fluxo de Saúde Mental teria o cuidado em rede e no território como prioritários. Desse modo, se estabeleceu que o CAPS seria o serviço para o atendimento a pessoas em sofrimento psíquico severo e/ou persistente, incluindo os transtornos relacionados às substâncias psicoativas. Esse lugar já estava definido nas portarias que o regulamentam. Mas, mais do que portarias, era importante ir além das ações ambulatoriais medicamentosas, ou seja, mudar o processo de trabalho, indo ao encontro do proposto pelo Paradigma Psicossocial. Essa mudança trouxe inúmeras questões para os profissionais do CAPS que estavam acostumados a trabalhar na perspectiva ambulatorial.

A equipe então se deparou com a necessidade de apostar em ações coletivas, que priorizassem os vínculos e não somente atendimentos e consultas individuais. Assim, foram pensadas novas oficinas, como de capoeira, teatro e música, e reelaboradas as antigas, como a horta, jornal, esporte e de expressão. Foram criados novos grupos, como os de acolhimento e de usuários AD. Modificou-se a percepção sobre a ambiência, momento em que os profissionais ficam mais atentos ao que se passa no cotidiano. As reuniões tiveram a participação de toda a equipe e, como consequência, houve um maior compartilhamento das decisões. As visitas domiciliares, especialmente para os usuários que se ausentam do tratamento, foram incrementadas. Por fim, mas não menos importante, estimulou-se ainda mais as ações nos espaços além da instituição, como participação na associação de usuários e familiares, nos projetos por ela desenvolvidos, e no Coletivo pró-Luta Antimanicomial: 'Coletivo 18', que é formado por estudantes, profissionais de outras áreas, professores, artistas, enfim, todos aqueles interessados no tema da luta antimanicomial

De outro lado, pudemos perceber que outras ações, também importantes para aproximar o processo de trabalho e o cotidiano do CAPS à ética do Paradigma Psicossocial (PPS), encontravam muitas dificuldades de serem implementadas. Listamos algumas delas que foram enunciadas, mas que não avançaram: a criação de PTS (Projeto Terapêutico Singular); uma maior aproximação com as famílias dos usuários, estimulando a sua participação no cuidado; repensar e rever a medicalização dos usuários; propor outras formas de lidar com as crises para além da resposta medicamentosa, evitando internações desnecessárias; a desinstitucionalização dos usuários que se tornaram crônicos do CAPS; e uma maior aproximação com a atenção básica e outros serviços.

As mudanças na Rede de Atenção Psicossocial concretizadas no fechamento do ASM e no rearranjo do fluxo na Saúde Mental tiveram a intenção de se aproximar do PPS. Porém, as mudanças vão além da transição geográfica e do próprio serviço. Percebemos em nosso percurso que, apesar de todos os esforços, das mudanças ocorridas, do empenho dos profissionais, a medicalização segue firme como resposta prioritária aos diferentes impasses do sofrimento psíquico. Ou seja, as ações médico-hegemônicas, medicalizadoras, psiquiatrizadoras e de relações de poder entre equipe e usuários resistem e emergem em diversos momentos no interior desse processo de mudança.

A meta do PPS é operar no sentido de transformar o discurso médico e redefinir a posição e a função dos medicamentos psiquiátricos como coadjuvantes, entre seus meios de ação nos impasses subjetivos e no sofrimento psíquico dos usuários, em ações na comunidade/território, visando ao vínculo e ao protagonismo dos sujeitos. São mudanças éticas, técnicas, teóricas e políticas que precisam ocorrer no olhar da equipe, na redefinição da Saúde Mental como um dispositivo singular que trabalha em rede, como práxis. Só assim o trabalhador pode operar como intercessor, visando permitir ao sujeito posicionar-se como protagonista do processo de produção de saúde e, então, diminuir a cisão entre os meios de trabalho e a força de trabalho no PPS.

O PPS é uma ética que orienta e transcende as instituições estabelecidas, tomando-as como dispositivos referenciados na ação sobre a demanda social do território, distanciando-se de um sistema organizado e hierarquizado por níveis de complexidade da Atenção. Quando operado e concretizado, o princípio da integralidade na produção da atenção e cuidado, através, por exemplo, do matriciamento - já existente no município, com os Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF) - e, consequentemente, do fortalecimento da atenção básica, poderá dar outro sentido aos CAPS e sua atual parcela de ações ambulatoriais e hegemônicas. Não se trata apenas de organizar os novos dispositivos institucionais em algum sistema de referência e contrarreferência. O sujeito do sofrimento será sempre compreendido como aquele que está no território e, mesmo quando necessitar de ações específicas do CAPS, não deixará de estar inserido na ESF nem de participar das ações simultaneamente realizadas por ela na comunidade. Por isso, o trabalho é sempre em rede, não fragmentado, e a Atenção Básica deverá ser sempre a referência maior da RAPS.

 

Considerações finais

O fechamento dos manicômios e a diminuição dos leitos em hospitais psiquiátricos e ambulatórios, não mais previstos pela política do SUS, não garantem a mudança da lógica manicomial, como já citado, na medicalização excessiva presenciada nesses estabelecimentos. A mudança do paradigma ocorre na rotina do trabalho, na práxis, nos vínculos e nas relações estabelecidas entre trabalhadores, gestores e usuários.

Tanto a experiência aqui relatada como a mudança da RAS no município ocorreram no ano de 2017 e, portanto, são recentes. Os próximos anos serão importantes para construir um CAPS que acolha e integre os usuários na comunidade e em suas famílias e apoiá-los para sua autonomia, integrando-os em um ambiente social e cultural concreto, nomeado de território, espaço da cidade em que se desenvolve a vida quotidiana da população no geral. Espaço em que o estigma da loucura também caia por terra e todos saibam lidar com as diferenças e singularidades. Dito de outra forma, rumo ao Paradigma Psicossocial.

 

Referências

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Recebido em: 10/03/2019
Aprovado em: 20/12/2019

 

 

1 Modo de Produção, como um conjunto de formas de produzir bens materiais diversos, é o modo de ser de um processo produtivo. Além disso, é o conceito teórico, que remete principalmente a Karl Marx, que abrange a totalidade social, ou seja, o conjunto e as relações entre as formações sociais, jurídico-políticas, ideológicas, culturais e subjetivas. No MCP, temos como traço fundamental a separação entre os proprietários dos meios de produção - os instrumentos e objetos do trabalho - e da força de trabalho - a capacidade de produzir própria dos trabalhadores. Nesse contexto, o operário é expropriado do saber sobre o próprio trabalho, além de não ter mais como viver a não ser trabalhando para o Capital e nas condições impostas por ele. (Costa-Rosa, 2013).
2 Como consequência, durante muitos anos o local do ambulatório era nomeado como “Hospital Psiquiátrico”. Mesmo as placas indicativas de trânsito da cidade denominavam o ambulatório como Hospital Psiquiátrico.
3 O edifício foi repartido em outras doações: uma parte ficou para uma associação para pessoas com necessidades especiais, outra parte transformou-se em uma escola e uma outra parte inacabada ficou com a instituição filantrópica.
4 Vale destacar que este cenário da política mudou substancialmente a partir do final do ano de 2018 e início do ano de 2019. Em um claro retrocesso ao que vinha sendo conduzido, o Ministério da Saúde alterou a composição da RAPS incluindo o Ambulatório de Saúde Mental e a internação em Hospital Psiquiátrico, tentando reintroduzir a lógica do Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medicalizador (PPHM). O que evidencia processos de mudanças atravessados de modo permanente pelo embate entre esses modos distintos de cuidar.

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