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Revista de Psicologia da UNESP

On-line version ISSN 1984-9044

Rev. Psicol. UNESP vol.19 no.1 Assis Jan./June 2020

http://dx.doi.org/10.5935/1984-9044.20200001 

ARTIGOS

 

Articulações entre sustentabilidade afetiva e noções comuns: primeiros traçados

 

Links between affective sustainability and common notions: first sketches

 

 

Sonia Regina Vargas Mansano

Universidade Estadual de Londrina (UEL)

 

 


RESUMO

O capitalismo avançado apresenta como seu horizonte uma existência esvaziada de sentido e dedicada a fomentar exclusivamente seus valores de acúmulo, posse e acesso. Sua condição de possibilidade está em produzir corpos tristes e integrados a um sistema de produção altamente excludente. Parte de suas intervenções acaba sendo dirigida maciçamente ao entristecer da vida humana e à destruição daquilo que poderia fortalecê-la de maneira radical: a natureza. Diante desse quadro, em larga medida festejado por uma parcela da população que simplesmente aceita adaptar-se a esses preceitos em nome da segurança e do sucesso, cabe à Psicologia criar ferramentas conceituais por meio das quais as relações possam ser compreendidas e, principalmente, experimentadas no cotidiano das relações sociais. Assim, o presente artigo busca fazer uma aproximação entre a sustentabilidade afetiva e as noções comuns, a fim de compreender o difícil momento que atravessamos, atentando para suas potências de reversão, conexão e alegria.

Palavras-chave: sustentabilidade afetiva; noções comuns; alegria.


ABSTRACT

This article exposes some nuances of a research process carried out at the interface between art and clinic. Research that was cultivated between dance and madness and which has the effects of subjectivation and performativity processes. In this text, which is part of a public speech held at the Faculty of Sciences and Letters of UNESP - Assis, some movements of this path are explicit, as a way to experience creative potentialities, from the immersion in a research field moved by vital affects. With the apprehension of some of these affections, a self-care perspective can be glimpsed in an elaboration that exposes certain research practices as a possibility of producing life.

Key words: affective sustainability. common notions. joy.


 

 

Palavras iniciais

Há alguns anos, venho delineando a noção de sustentabilidade afetiva como uma ferramenta conceitual que coopera para compreender a potência dos afetos bem como a dificuldade marcante de nosso tempo histórico para acolher e experimentar os encontros em seus desdobramentos afetivos (Mansano, 2016; Mansano & Carvalho, 2016; Mansano, 2018). No decorrer dessas pesquisas, foi possível perceber o quanto vivemos em um momento rude e atravessado por paixões tristes que retroalimentam um sintoma marcadamente relacional: o crescente distanciamento afetivo de si, do outro e da natureza. Tal diagnóstico é fortalecido pela conjuntura política atual, que coloca em evidência o acirramento de opiniões e práticas conservadoras, bem como a mínima abertura para o contato com a diferença, as trocas e as mudanças de posição. Cada um desses aspectos pode diminuir a potência de ação e colocar em curso manifestações de tristeza.

Apesar de sufocante e pesado, concomitantemente é notável a emergência de práticas relacionais, protagonizadas por sujeitos anônimos e grupos informais que, por meio do carinho, zelo, atenção, enfrentamentos e trocas, ensaiam brechas para contatos afetivos e aproximações diversas. Isso ocorre à revelia de estarmos imersos na impessoalidade capitalística desagregadora que caracteriza as cidades e as relações da atualidade (Rolnik, 2018). É o que se pode notar, por exemplo, nas conversas entre amigos, nas relações de amizade e nas composições sociais fortuitas que ocorrem ao acaso e cujo objetivo, se é que essa palavra pode ser aqui utilizada, é simplesmente estar junto para se sentir acolhido, acarinhado e potente.

Na obra A vida das Plantas, do filósofo francês Emanuele Coccia (2018), tais composições ficam ainda mais evidenciadas, já que o autor descreve como esse processo ocorre na natureza. Segundo ele, os seres vivos "partilham um mesmo sopro" (p. 55), sendo o sopro sua condição de coexistência. Em suas palavras:

O sopro é, já, uma primeira forma de canibalismo: alimentamo-nos diariamente da excreção gasosa dos vegetais, só podemos viver da vida dos outros. Inversamente, todo ser vivo é em primeiro lugar o que torna possível a vida dos outros, produz vida transitiva capaz de circular por toda parte, de ser respirada por outrem [...] (Coccia, 2018, p. 50).

Pela ideia de compartilhamento do sopro entre viventes, o autor mostra o quanto o contato com aquilo que nos cerca acontece de maneira radical, vital e incontornável, ainda que estejamos presos nas redomas, supostamente protetoras desse tempo histórico, que funcionam para distanciar, individualizar e isolar. Digo supostamente protetora, pois, sob o ponto de vista do autor, esse distanciamento simplesmente não existe e a insistência em manter a separação entre homem e natureza deixa entrever uma dimensão defensiva diante da vida. Mais adiante, Coccia (2018) assinala que o sopro não é apenas o ar em movimento: "é clarão, desvelamento, meio de revelação" (p. 55). Ora, o que esse clarão deixa entrever? Precisamente a dimensão radical da natureza em que cada um de seus elementos se conecta das mais variadas maneiras com os demais, sem fronteiras, sem juízos e sem barreiras tão defensivamente acentuadas.

A dimensão relacional radical será, portanto, o ponto de partida para esse novo momento da pesquisa sobre sustentabilidade afetiva e servirá para desenhar os primeiros traçados de aproximação com o conceito das noções comuns, afirmado por Espinosa (1677/2017). Assim, o presente artigo tem por objetivo avançar na construção do conceito de sustentabilidade afetiva trazendo para o debate outro ângulo: aquele dos encontros e de sua potência de construir noções comuns.

Para tanto, ele foi dividido em duas partes: primeiro, retomaremos alguns pressupostos básicos da noção de sustentabilidade afetiva e seus desdobramentos nas relações sociais. Em seguida, serão abordados aspectos da ideia espinosana de noções comuns, atentando para sua dimensão política e coletiva. Nas considerações finais, traçaremos aproximações entre os dois conceitos, atentando para sua potência micropolítica de gerar e proliferar encontros de alegria nesse momento histórico que, como já dito, configura-se tão rude.

 

A sustentabilidade afetiva e seus desdobramentos

De saída, ao abordar a noção de sustentabilidade afetiva, deparamo-nos com a necessidade de traçar um breve diagnóstico de nosso tempo histórico, percorrendo algumas de suas linhas macro e micropolíticas. Por linha macropolítica, entendemos as dimensões relacionais que acontecem em escala mais ampla, envolvendo a luta pela garantia de uma vida qualificada para a população, seja pela via dos direitos seja pela da governamentalidade dos espaços urbanos (Rolnik, 2018).

Nessa esfera, encontramo-nos, mais recentemente, em meio a um ataque sistemático dirigido a conquistas políticas empreendidas no decorrer de anos de lutas que foram protagonizadas pelos mais diferentes agentes sociais e institucionais. O que vemos, então, é a destruição sistemática de direitos que tem como alvo os programas sociais e as políticas públicas de acolhimento aos mais carentes e aos que se encontram em situação de maior vulnerabilidade; desqualificações dirigidas à educação em seus mais diferentes níveis (desde o familiar, passando pelos ensinos fundamental e médio, chegando às Universidades, tanto em seus cursos de graduação quanto de pós-graduação); a precarização e privatização da saúde nas diversas regiões de nosso país; o aumento sistemático dos índices de desemprego; a proliferação de práticas de violência urbana e rural; os ataques às etnias e pessoas economicamente excluídas (Lazzarato, 2017; Rolnik, 2015; Sassen, 2016).

Trata-se de uma lista que só faz crescer em sua dimensão necropolítica, a qual, conforme des-creve Mbembe (2018, p. 18), foi amplamente ancorada em práticas racistas, buscando "regular a distribuição da morte e tornar possíveis as funções assassinas do Estado". Instala-se, desse modo, contra o vivo, uma brutalidade em suas mais variadas formas, que tem configurado, a cada dia, uma notável insustentabilidade social, ambiental e afetiva. Seus desdobramentos são preocupantes: individualismo crescente, narcisismo acentuado, naturalização da violência e desigualdade social de acesso a condições básicas de existência.

Mas o diagnóstico aqui desenhado também se propõe a abarcar a esfera micropolítica (Rolnik, 2018). Nesse campo, os desdobramentos da destruição governamental ocorrem na sobreposição e disseminação das chamadas paixões tristes (Espinosa, 1677/2017). Essas paixões podem ser compreendidas como aquilo que "diminui ou refreia a potência de pensar. Portanto, à medida que a mente se entristece, sua potência é diminuída ou refreada" (p. 139). Os afetos tristes, manifestos na esfera micropolítica, dão visibilidade cada vez maior a componentes subjetivos embrutecidos e fascistas os mais diversos, que circulam em diferentes planos: em nosso próprio corpo, nas pessoas queridas e mais próximas, nos vizinhos e colegas de trabalho, bem como nos desconhecidos com os quais simplesmente entramos em contato na vida cotidiana. As tristezas podem ser vistas, por exemplo, em pequenas vinganças e atos raivosos que despotencializam os corpos e as relações, entristecendo-nos.

Na complexidade deste momento histórico, todavia, experimentam-se simultaneamente breves suspensões micropolíticas das sensações de impunidade, impotência e medo, ligeiras reversões de poderes autoritários e preciosas articulações potencializadoras que dão passagem a práticas de aliança, acolhimento e alegria. Para Espinosa, a alegria leva a uma "perfeição maior" (1677/2017, p. 107), pois conecta e potencializa seus participantes para uma construção comum.

Ao traçar diagnósticos acerca desses afetos vividos, constata-se que a macro e a micropolítica, longe de serem dimensões separadas na vida, estão entrelaçadas e produzem efeitos os mais diversos sobre os corpos e sobre o planeta, tornando difícil uma análise segmentada e definitiva. Nesse momento, é Espinosa (1677/1983) quem comparece para auxiliar na elaboração desse traçado quando coloca a seguinte questão: Como fazer para ser afetado por um máximo de encontros alegres? Questão esta que buscamos aqui desdobrar em outras: Como criar um corpo capaz de atravessar a violência necropolítica desse tempo histórico, mantendo uma serenidade para com o vivo? Como acreditar nos encontros e manter o corpo aberto aos afetos díspares, sem sucumbir ao assombro anestesiante? E como atuar para produzir em si e nos outros afecções ativas?

Ao elaborar a noção de sustentabilidade afetiva, buscávamos oferecer pistas para caminhar na direção de sustentar a multiplicidade dos afetos vividos sem sucumbir à sua negação. Recorrendo a um olhar espinosano (Espinosa, 1677/1983), constatamos que a condição radical dos encontros entre os seres vivos das diferentes espécies testemunha o quanto é falsa a separação entre o humano e a natureza. O que temos, então, são corpos vivos em relação. Dos encontros advêm os mais diversificados afetos que compõem a vida e a coloca em movimento. Na heterogeneidade de afetações entre os viventes, o que se vê é a dimensão mutante e criadora das espécies, com suas possibilidades de composição e também de decomposição, ambas necessárias para produção de novas existências. Diante dessa diversidade afetiva, cabe a difícil tarefa de acionar a potência sensível dos corpos para acolher aquilo que lhe chega, afeta e transmuda, uma vez que isso ocorre sem consulta prévia (Mansano, 2018).

Quando mais defendidos dos encontros e distantes dos afetos, menor a abertura e potência para acolher o mundo em suas dimensões mutante e díspar. A noção de sustentabilidade afetiva, portanto, coloca em evidência o quanto é precioso sentir a variação provocada pelos afetos e sustentar a teia multifacetada dos encontros. Encontros e afetos, assim, podem servir como um gatilho para favorecer a invenção de outras maneiras de viver e de se relacionar: consigo, com o outro e com a natureza. Falamos em sustentar os afetos, não para conservar uma vida equilibrada e estável. Mas para acessar a diversidade de sensações e conexões que podem vir a ser geradas naqueles encontros suficientemente fortes para incomodar, tirar dos eixos e acionar a produção de desejos. Falamos de uma vida em fluxo, aberta aos riscos inerentes às experimentações dos afetos e à produção de novos sentidos. Como isso seria possível? Foi diante dessa questão que a ideia espinosana de noções comuns, também estudada por Deleuze (1997, 2009, 2017), tornou-se relevante para esse empreendimento introdutório de aproximação.

 

Noções comuns: preparando um terreno

Uma questão ética atravessa a obra de Espinosa, sendo retomada por Deleuze: O que fazer para ser afetado por um máximo de alegrias? Nas palavras de Deleuze (1968/2017, p. 290), isso pode ocorrer quando nos esforçamos "para nos unir ao que convém com a nossa natureza, para compor nossa conexão com conexões que combinem com a nossa, para juntar nossos gestos e nosso pensamento à imagem de coisas que concordem conosco". Essa consideração serve como um disparador para abordar as noções comuns no contexto anteriormente diagnosticado. Como estamos amplamente mergulhados em relações marcadas pelas paixões tristes, Deleuze, inspirado em Espinosa, é categórico quando diz:

A esse respeito, a Natureza não nos favorece. Mas temos que contar com o esforço da razão, esforço empírico e muito lento que encontra na cidade as condições que o tornam possível: a razão, no princípio da sua gênese, ou sob seu primeiro aspecto, é o esforço para organizar os encontros de tal maneira que sejamos afetados por um máximo de paixões alegres [...] (Deleuze, 1968/2017, p. 306).

Se partirmos da constatação dos autores, já nascemos separados de nossa potência tanto de compreender os afetos quanto de agir sobre eles. Assim, para Deleuze, (1968/2017) três exercícios são valiosos para promover uma aproximação da alegria: 1. Considerar que existem corpos diferentes; 2. Compreender que esses corpos se relacionam e, entre eles, podem existir coisas em comum; 3. Inventar diferentes possibilidades de entrar em relação. Tais compreensões não estão dadas, não são inerentes ao vivo. Elas precisam ser construídas em meio a um exercício lento de aprendizagem sobre os encontros e os afetos. Trata-se de uma aprendizagem que é inalienável, ou seja, ninguém pode fazê-la por mim ou pelo outro: ela demanda um esforço para detectar as alegrias e tristezas que atravessam os corpos a cada novo encontro.

As noções comuns implicam, assim, a construção de ideias adequadas sobre os encontros (Espinosa, 1677/1983). A ideia adequada alude à capacidade de compreender quando o encontro aumenta ou diminui a potência de um corpo. Daí a relevância de fazer o mapa, sempre provisório e mutante, dos afetos. É que as alegrias e as tristezas são muito locais, provisórias e, na maior parte do tempo, aparecem misturadas (Deleuze, 1997).

Compreender as composições e decomposições geradas dos encontros, entretanto, é apenas um passo na direção das noções comuns. Passo importante, mas ainda insuficiente. Deleuze fala, então, de um "salto" (1968/2017, p. 317) a ser efetuado, que implica entrar em ação para selecionar os encontros que convêm ao corpo, potencializando-o. Um salto para sair das paixões (ou ideias inadequadas) e compreender "em que me convém o corpo que me afeta e em que o meu lhe convém" (p. 318). Isso envolve, novamente, um lento exercício de aprendizagem sobre si e sobre os encontros, associando o que há de comum ao meu corpo e ao corpo do outro que entram em um "devir-ativo" (p. 322). Pelas noções comuns, conseguimos meios para "conquistar nossa potência de agir e para enfim experimentarmos afecções ativas das quais seremos causa" (p. 306).

Disso emerge a segunda questão espinosana retomada por Deleuze: "Que fazer para produzir em si afecções ativas?" (Deleuze, 1968/2017, p. 306). E Deleuze mesmo responde: "[cabe] fazer com que as paixões ocupem apenas a menor parte de nós mesmos, e com que nosso poder de ser afetado seja preenchido por um máximo de afecções ativas" (p. 319). Como? Pelo reconhecimento, por vezes, difícil na contemporaneidade, de que os corpos são diferentes, estão em relação, que as relações produzem efeitos/afetos e que os encontros, vividos de modo intensivo, podem ser grandes aliados para criar e sustentar mundos outros (Deleuze, 1968/2017).

Como, então, são construídas as noções comuns? Elas emergem nos encontros suficientemente potentes para reconhecer a si e ao outro como partes que se compõem e que, com isso, aumentam a potência de ação de ambos, colocando em curso alegrias compartilhadas. Tal reconhecimento, entretanto, não envolve um simples contato ou uma simples identificação. Entendemos que as noções comuns demandam um esforço dos partícipes para enfrentar algumas questões: Quais encontros são convenientes ao meu corpo e ao corpo do outro? Quais efeitos de alegrias eles produzem? Onde buscar encontros que potencializem? Com quem se aliar? Qual a duração dessa aliança? Tais questões tendem a passar despercebidas para aquelas existências sufocadas pelas exigências identitárias de um capitalismo entristecedor, focadas em agendas, metas a cumprir e contas a zerar. A construção das noções comuns demanda, outrossim, uma dedicação mais lenta ao encontro por meio do qual é possível sustentar o disparo de afetos díspares que, quando suficientemente fortes, geram incômodos e assombros. Os encontros, vividos em sua dimensão intensiva, podem assim colocar em curso processos de aprendizagem que não permitem paradas ou sossego. Trata-se, como diz Deleuze (2009, p. 51), de "um trabalho de vida".

Tomo como exemplo um recente encontro que tive com pescadores e pescadoras do sul de nosso país, no qual foi possível aprender que as redes de pesca, seu principal instrumento de trabalho, são diferentes entre si no que se refere ao tamanho, textura e intervalo do traçado das linhas. Assim, cada tipo de pesca requer uma rede específica. Sem o cuidado zeloso na escolha, preparação e uso das redes, espécies podem ser mortas e até mesmo exterminadas, dependendo da região. Os pescadores e pescadoras, atentos que são à natureza, ensinam que a trama e a textura de uma rede decretam a conquista ou o extermínio daquilo que se almeja. Trazendo essa experiência para pensar as noções comuns, construídas nas redes de encontros, deparamo-nos com uma situação similar. Isso quer dizer que produzir e sustentar noções comuns implica tomar em consideração a intensidade, a sensibilidade, as afetações díspares e a duração dos encontros: uma atenção cuidadosa e mutante, como se estivéssemos à espreita para identificar e selecionar as alegrias e as possibilidades de potencialização da vida comum. Nota-se, aqui, uma espécie de inversão do que está posto em nosso tempo histórico: não são os afetos tristes que comandam e se sobrepõem à existência, mas a abertura sensível do corpo para perceber e avaliar os encontros que de fato conectam as alegrias do estar junto.

 

Considerações finais: traçando aproximações conceituais

O contexto necropolítico ora instalado dissemina paixões tristes, cujo efeito mais danoso é o de serem tomadas como algo natural a ser simplesmente reproduzido nas relações cotidianas. Essas paixões, por vezes utilizadas como estratégia governamental na esfera macropolítica, mantêm populações despotencializadas, desgastadas politicamente, apartadas de sua potência, individualizadas e adoecidas. Assim, o desafio colocado pelos conceitos de sustentabilidade afetiva e noções comuns está em chamar a atenção para o quanto é precioso acolher e sustentar os afetos díspares para, a partir dessa experimentação, viver o máximo de alegrias comuns que se distanciam das tristezas.

Nesse sentido, os dois conceitos apresentados cooperam para avançar na possibilidade de experimentação do corpo em sua potência para afetar e ser afetado. Com a sustentabilidade afetiva ficou premente a importância de reconhecer e apoiar a condição relacional dos corpos vivos, acompanhando seus desdobramentos em nível coletivo. A vida implica corpos em relação com outros corpos que têm em comum a potência do sopro, para resgatar as ideias de Coccia (2019). Conforme considerado por Deleuze (2009), cada um dos corpos tem sua potência necessariamente preenchida pelos encontros. Resta saber, então, de quais afetos eles estão preenchidos e qual a proporção de alegrias e de tristezas que os compõem a cada momento. Esse conhecimento já dá testemunho de que não estamos mais sujeitados ao acaso dos encontros, mas somos capazes de sustentar a diferença e, por meio delas, formar noções comuns que potencializem os seus agentes construtores.

Outro ponto a ser aqui destacado está em sustentar o fato de que as relações cotidianas implicam a presença de afetações díspares nem sempre passíveis de programação, controle e seleção. Diante da heterogeneidade afetiva, por vezes assustadora, para corpos mais defendidos, corre-se o risco de permanecer nas paixões tristes em nome de uma suposta proteção. O trajeto conceitual aqui percorrido evidencia que é possível dar sustentação ao corpo vivo para que ele possa experimentar ao máximo esse leque heterogêneo de afetos, acolhendo os riscos aí implicados. Os riscos, nesse caso, são oportunidades para dar os "saltos" descritos anteriormente com Deleuze (1968/2017, p. 317) e criar outros modos de existência. Processos de criação potencializam-se, portanto, quando há disponibilidade para transitar por diferentes situações e ampliar o leque de experimentação dos afetos, bem como colocarse em redes intensas de encontros e em teias de alegria. As redes possibilitam uma aprendizagem coletiva e prática sobre aquilo que funciona e não funciona, compõe e não compõe, potencializa e destrói. Em tempos de medo disseminado (e cabe lembrar que o medo é considerado uma paixão triste), essa abertura torna-se mais rara e difícil, implicando um difícil exercício de coragem e ousadia.

É nesse sentido que os autores que nos acompanharam até aqui destacam a impossibilidade de produzir noções comuns quando estamos mergulhados em tristeza. Pode-se dizer, então, que nossa "saída" está na lenta, inalienável e trabalhosa aprendizagem sobre os encontros, que evoca tanto afetos de alegria quanto afetos de tristeza. O conceito de noções comuns se aproxima da sustentabilidade afetiva ao evidenciar que é somente nos encontros de alegria que algo pode ser feito para sair das paixões tristes, sendo o compartilhamento da alegria o ponto de partida para qualquer ação. Quem terá corpo para acolher esse desafio em dias sombrios como os nossos.

 

Referências

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Recebido em: 06/03/2020
Aprovado em: 18/05/2020

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