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Revista de Psicologia da UNESP

On-line version ISSN 1984-9044

Rev. Psicol. UNESP vol.19 no.1 Assis Jan./June 2020

http://dx.doi.org/10.5935/1984-9044.20200005 

ARTIGOS

 

Metacartografias do sentir: narrativa de veredas para modos outros de conhecer

 

Metacartographs of feeling: path narrative for other ways of knowing

 

 

Fernanda Sant'Anna Ventura

Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (UNESP)

 

 


RESUMO

Metacartografias do sentir é um sucinto relato acerca da experiência de apresentação de pesquisa em um evento acadêmico. É também uma tentativa de deixar passar, pela ciência, afeto e desejo. Ancorado pelo referencial filosófico de Gilles Deleuze e de Félix Guattari, este texto carrega um olhar sobre o método cartográfico e sobre como ele produz uma clínica implicada na ética do encontro e da promoção de potência. Narra a construção de uma explanação teórica, mas também a novidade que salta do encontro imbuído de entrega. Na tênue linha entre caos e cosmos, a metacartografia do sentir é uma vereda para criar com o outro.

Palavras-chave: cartografia, encontro, diferença, transversalidade, criação.


ABSTRACT

Metacartography of feeling is a succinct report about an experience of research presentation at an academic event. It is also an attempt to let affect and desire pass by Science. Anchored by the philosophy of Gilles Deleuze and Félix Guattari, the following text looks at the cartographic method and how it produces a clinic implicated in the ethic of encounter and in the potency promotion. It narrates the construction of a theoretical explanation, but also the novelty that jumps from the imbued encounter of surrender. In the thin line between chaos and cosmos, the metacartography of feeling is a path to create with the other.

Key words: cartography, encounter, difference, transversality, creation.


 

 

*

É bem provável que, numa conversação posta à égide da abertura e do encontro, emerjam fissuras de novidade. Apesar de breve estudo apresentado acerca da cartografia, pode-se dizer que naquela tarde compartilhada saltou do horizonte de realidades algo da ordem do inesperado, algo que manifestou vozes do caos.

Trilhando caminhos, trocando impressões e sugerindo rotas díspares das habituais, um grupo de estudantes de Psicologia da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp - Assis cursou a disciplina "O paradigma ético-estético-político", no primeiro semestre de 2019. Como resultado final e presente significativo da disciplina, realizaram um evento de trocas de estudos e experimentações, intitulado "Conversações em Esquizoanálise: o cuidado de si em tempos de crise", que ocorreu nos dias 13, 14 e 15 de junho de 2019. Somando-se aos outros momentos do evento, que incluíam palestras, debates e oficinas trazidas por convidados, houve as "Conversações orais", compostas pelos próprios alunos, que tiveram a chance de experenciar a exposição de pesquisas acerca de diversos recortes feitos sobre a Filosofia da Diferença e a Esquizoanálise.

Tendo em vista que os trabalhos então expostos - ofertados à escuta ativa - enveredaram-se por tessituras acerca da constituição da cartografia, propôs-se, ao fim do encontro, uma metacartografia de todas as outras apresentadas, de modo a gerar irrupções, sínteses e diálogos sobre o percurso subjetivo traçado em cada um pelo emaranhado de cartografias levadas.

No começo foram distribuídos papéis e canetas coloridas para que cada um escrevesse, ao longo das conversações, frases e palavras que lhe capturaram a atenção e que seriam utilizadas ao fim das conversações, a fim de criar uma meta-cartografia conjunta. Para iniciar a experiência, foi explanada breve introdução sobre os sinais e nuances que tracejam o método cartográfico com base nas Pista 1: "A cartografia como método de pesquisa-intervenção", de Eduardo Passos e Regina Benevides de Barros, e Pista 7: "Cartografar é habitar um território existencial", de Johnny Alvarez e Eduardo Passos, da obra Pistas do método da cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade, organizada por Eduardo Passos, Liliana da Escóssia e Virgínia Kastrup.

Para iniciar uma cartografia das cartografias, a pesquisadora-apresentadora começou cartografando suas próprias impressões e pensamentos ao ter contato com a leitura referenciada, isto é, trazendo à tona as sensações subjacentes à relação que estabeleceu com as palavras escritas pelos autores da obra escolhida como cenário da pesquisa. Essa coletânea de recortes de afetos trocados entre leitora e texto estão discorridos a seguir.

 

Um olhar sobre as pistas do método

A cartografia se constitui por uma pesquisa-intervenção sem receitas ou molduras prévias. O percurso é evidenciado por pistas encontradas pelo caminho, fisgadas por olhares curiosos. O cartografar implica direcionar o pensamento ao real e a pesquisa à ação. Esse amálgama entre teoria e prática circundam um plano de produção pertencente à dimensão da experiência. Os saberes, assim, são colhidos maduros, quando muito nutriram encontros e fissuras de agentes.

A abordagem institucional supera a já antiquada noção de que se pode imantar o conhecimento com vestes neutras e imparciais, pois todo fazer-saber cria e é criado por forças inconscientes que atravessam e infiltram o processo criativo com valores, desejos, tensões, fantasias, compromissos, conflitos, paixões... Não há, dessa maneira, um conceito inócuo, pois um conceito por si intervém diretamente na realidade.

Segundo Simondon, a individuação se equilibra dentro de uma "metaestabilidade", na qual resoluções parciais decorrem de incompatibilidades em relação a si mesmas, daí o devir constantemente mutável. No plano comum da imanência, comportam-se pela individuação as realidades da vida psíquica coletiva; portanto. os grupos, tribos e instituições se constituem nesse jogo elástico da individuação: as forças sociais esticam, entram em torção, até rasgar, para o surgimento de outros devires (Simondon citado por Passos, Barros, 2015).

Apesar da contribuição estruturante dos institucionalistas como Simondon, além de Lourau e Lewin, a fiação do cartografar ainda se dicotomizava, na desgastada dualidade entre transferência e contratransferência. Com Deleuze e Guattari, esse paradigma clássico da psicanálise foi rompido perpendicularmente por flechas propagadas com novos contágios de pensamentos possíveis, revelados pela filosofia da diferença. Travessia, corte, deslocamento, encruzilhada, transbordo. A fissura que seria então proposta dissolveria de vez os papéis de analista - analisado, conhecedor - conhecido, sujeito - objeto (Passos, Barros, 2015).

O plano implicacional, segundo esses pensadores, provoca e é provocado por uma clínica política e diferenciadora. Uma clínica das possibilidades e entradas outras, que Guattari traz como uma transversalidade que multiplica o quantum comunicacional, isto é, de mediação hiperconectiva entre agentes, grupos e instituições.

A intervenção clínica deve ser entendida como uma operação de transversalização que se realiza na zona de vizinhança ou de indefinição entre dois processos - os processos de subjetivação que se passam na relação analista-analisando e aqueles que se passam na relação ente a clínica e o não clínico: a clínica e a política, a clínica e a arte, a clínica e a filosofia, etc [...] (Passos, Barros, 2015, p.27).

A cartografia seria, portanto, o contato, observação e afetação com tal transversalidade multidimensional: deixar-se sensível às redes. A operação transversal alarga fronteiras, dando vasão e espaço para dizeres e devires minoritários, de mulheres, crianças, população negra, LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros), pobre, subterrânea, entre outras. Devires dos que gritam e que exalam, por sua luta, esperanças e rumores de liberdade.

O desarranjo da normatização pela diferenciação possibilita brechas, escapes, fugas. A clínica da diferença e a cartografia, desse modo, são trazidas como vias de alargamento do que é posto, enredando configurações prontas e imprimindo no mapa um vetor de caotização. "Guattari chamou estes movimentos de caosmose: desarranjos e novos arranjos de produção da realidade" (Passos, Barros, 2015, p.30).

Em Mil Platôs (1980), Deleuze e Guattari desenvolveram a noção de território como um locus dos sentidos e modos de expressão. Essa espacialidade desenha relevos dos afetos: planícies de silêncios extensos; colinas de gargalhada e rodopio; depressões e montanhas de deslizes de toques e desejos; planaltos de porvir e talvez muitos horizontes de completude ou encerramento. A cartografia tateia esses territórios oblíquos e elípticos na singularidade relíquia de cada sensação e experiência vivida pelos seres, por isso a partilha desses territórios é inerente ao cartógrafo.

Nessa partilha de afetações existe uma política da narratividade, na qual as oralidades locais e diferentes compõem integralmente a ética imbricada na fala e na escuta. Para tanto, é necessário ao cartógrafo sintonizar o próprio corpo aos ritmos, tensões e melodias emanadas pelo território no qual se pretende adentrar. A expressividade do ritmo produz efeitos, hábitos e condutas, observáveis e compartilhadas, e funda um estilo particular do grupo em questão. A compreensão da formação expressiva e da produção constante do território torna os "personagens rítmicos" e as "paisagens melódicas", o foco da pesquisa-intervenção em cartografia. Assim, permitir-se impregnar pelas texturas, tonalidades e sabores, acompanhando os processos criativos, leva o cartógrafo a habitar o território.

A cartografia se configura pelo aprendizado das forças imanentes do campo. Para tanto, é imprescindível o cultivo e o refinamento de uma convivência conjunta. A pesquisa não é sobre o território, mas com o território existencial. Para ser recebido por e para receber o conjunto expressivo, componente do coletivo pesquisado, o cartógrafo deve dedicar corpo aberto e presença atenta e ativa, dispondo-se à experiência e estando receptivo à possiblidade de pertencer e criar com as pessoas que cruzam a caminhada. Ele se contagia pelo universo simbólico e sensorial que acompanha.

"Estar ao lado sem medo de perder tempo, se permitindo encontrar o que não se procurava ou mesmo ser encontrado pelo acontecimento" (Johnny Alvarez, Eduardo Passos, 2015). O encontro com o inesperado, o que salta do comum, exige uma dedicação de espreita, de vigília. Com paciência e temperança, lapidase o olhar para sutis peculiaridades de contornos diversos e inusitados. Não se procura algo específico, mas sim o encontro com a novidade que inebria e que muitas vezes se oculta em recônditos feitos e efeitos. Do mesmo modo que o predador aguarda na relva o instante propício para o acontecimento da caça, o cartógrafo zela pela possibilidade do acontecimento do afeto, cultivando a experiência com curiosidade.

O 'saber com', diferentemente, aprende com os eventos à medida que os acompanha e reconhece neles suas singularidades. Compreende de modo encarnado que, mais importante que o evento em geral, é a singularidade deste ou daquele evento. Ao invés de controlá-los, os aprendizes-cartógrafos agenciam-se a eles, incluindo-se em sua paisagem, acompanhando os seus ritmos. Nesse sentido, os aprendizes-cartógrafos estão interessados em agir de acordo com esses diversos eventos, atentos às suas diferenças. O pesquisador se coloca numa posição de atenção ao acontecimento. Ao invés de ir a campo atento ao que se propôs procurar, guiado por toda uma estrutura de perguntas e questões prévias, o aprendiz-cartógrafo se lança no campo numa atenção de espreita [...] (Johnny Alvarez, Eduardo Passos, 2015).

Portanto, são pistas da cartografia: pôr-se ao lado, construindo conhecimentos coletivamente; abertura e receptividade aos sinais coloridos que se insinuam por afetos; cuidado e nutrição das relações com a fertilidade do encontro; criação de intimidade e confiança; acolhimento da diferença; contágio pela experiência; habitação de territórios existenciais. "Habitar um território existencial, diferente da aplicação da teoria ou da execução de um planejamento metodológico prescritivo, é acolher e ser acolhido na diferença que se expressa entre os termos da relação" (Johnny Alvarez, Eduardo Passos, 2015).

 

Metacartografia do sentir

Após todas as conversações e a apresentação sobre o referencial cartográfico, a pesquisadora-apresentadora recolheu todos os cartões antes entregues. Esses cartões carregavam em si palavras e frases que percorreram as experiências de cada uma e de cada um dos presentes. Para cartografar a tarde que já se recolhia, entregando-se à noite, uma música de tato africano se fez estopim. A voz moçambicana conduziu os corpos a outra frequência. Um papel pardo e grande foi estendido no chão e um programa foi proposto: colar os cartões com dizeres no papel pardo construindo em grupo a metacartografia do sentir.

Dentre as palavras e frases, pôde-se encontrar: desejo; desenho de paisagens psicossociais; pintura das sensações; palhaço; arte; potência; dispositivo; política; nômade; inspiração; criatividade; cultivo; acompanhante terapêutico; realidade esquizo; contágio; transversalidade; caosmose; afeto; instituição; cuidado; clínica da diferença; paixão; tensão.

Entrando no jogo proposto, aqueles que antes eram somente observadores das conversações puderam espalhar-se no papel-tela com o que os tangeu à captura; aquilo que os capturou durante as apresentações poderia agora encontrar olhares, estabelecer diálogos e conexões com frases e palavras construídas pelas sensações e experimentações dos outros seres envolvidos.

O mapa se tornou um território existencial compartilhado, em que se produziu uma narrativa coletiva das conversações. Além das combinações das palavras, outros signos eram desvelados pelas direções e contornos que a disposição dos papéis traçava no mapa: os cartões foram colados paralelamente, em fileiras e colunas, cruzados em perpendiculares, um acima de outro, desenhos foram feitos no mapa, e assim muitas formas de aplicar os cartões-criaturas foram desenvolvidas.

Estando os presentes, nessa experiência, potencialmente deslocados da cena normatizada pelas formas de fazer e ser propostas pela academia, tendo margeado e permeado outros devires possíveis de construção de conhecimento, um colega interveio com uma fissura espontânea, propondo uma performance final sobre a metacartografia traçada: dispor os corpos em campo numa caminhada sobre a criação.

O grupo aderiu à ideia e, em ritmo e fluxo singulares, cada um dos então cartógrafos das conversações desfilou seus sentires sobre o emergente solo semeado por palavras. Dessa caminhada, que poderia ser entendida como uma intervenção de expressão corporal na metacartografia, resultou uma transversalidade que atravessou a experiência que, em si, já era transversal.

Na Cena 1, emergiu um movimento curto e sucinto: tirar óculos, tênis e meias. O corpo abre os braços e anda feito o Cristo Redentor. Na Cena 2, suavemente uma mão puxa o corpo ao centro e o conduz. Contorce-se em nível baixo, como uma serpente impetuosa. Na Cena 3, irrompe um movimento solitário e inundante, o corpo vaga a réstia do que tudo fora, um corpo nada em rumo. Na Cena 4, vem de longe uma mulher trazendo consigo todas as forças, feitiços e mitos de suas raízes mais pujantes. Feras e faunas se espraiam no território. Na Cena 5, brota uma velocidade, o corpo rodopia e rasga o papel. Na Cena 6, o corpo lança um olhar, fareja à espreita de algo e passa com patas. Já na Cena 7, o corpo espera a sua vez, saltita leve e se põe à disposição da brincadeira. Desliza, alonga e solta, porém quase não toca. Passagem nômade. Na Cena 8, o corpo rastreia a gravidade. Atenciosamente, mergulha como se antes fora espelho d´alma. E, finalmente, na Cena 9, o corpo se entrega inteiro à beira do gosto do chão. Faz escambo de filosofia pelo olhar.

(Cenas 1 a 9, da esquerda para direita). Assim, nessa etapa do processo cartográfico, cada corpo migrou o caminho compondo cenas intensas e ecoantes aqui registradas. A partir dessa experimentação, se conclui que a cartografia evoca a diversidade da troca e do agora e, portanto, ela é também uma alternativa às monoculturas de afeto. A metacartografia, por fim, se desvelou como uma floresta de sentir à beira da lua que por ali já se estreitava.

 

 

Referências

Deleuze, G., Guattari, F. (1980). Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34.

Escóssia, L. D., Kastrup, V., Passos, E. (Orgs.). (2015). Pistas do método da cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina.

Passos, E., Barros, R. B. (2015). A cartografia como método de pesquisa-intervenção. In: Escóssia, L. D., Kastrup, V., Passos, E. (Orgs). Pistas do método da cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. (pp. 17-31). Porto Alegre: Sulina.

 

 

Recebido em: 06/03/2020
Aprovado em: 18/05/2020

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