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Revista de Psicologia da UNESP

versão On-line ISSN 1984-9044

Rev. Psicol. UNESP vol.19 no.1 Assis jan./jun. 2020

http://dx.doi.org/10.5935/1984-9044.20200008 

RELATO DE EXPERIÊNCIA

 

Platôs 'em clausura': as relações do corpo de homens internados em uma comunidade terapêutica

 

Cloistered plateaus: body relations of men in a therapeutic community

 

 

Homero Pereira de Oliveira Júnior

Universidade Federal de Goiás (UFG)

 

 


RESUMO

O presente artigo apresenta um relato de experiência profissional em uma comunidade terapêutica. Faz uma apresentação da CT em relação ao espaço físico e número de homens internados, de modo a discutir brevemente a análise feita dos relatos e compartilhamentos dos "adictos" internados, suas relações com a clausura da internação e as zonas de intensidade que constituem outras formas de clausura. Traz uma questão colocada por Suely Rolnik, em relação ao regimento de uma política de cafetinagem e expropriação do desejo, a partir da reafirmação de discursos que manicomializam os corpos e as relações dos corpos.

Palavras-chave: esquizoanálise; corpo; comunidade terapêutica; drogas


ABSTRACT

This article presents a report of professional experience in a Therapeutic Community - TC. The TC is presented focusing on the physical space and the number of hospitalized men to briefly discuss the analysis made with reports and sharing of the "addicts" interned, their relationship with the confinement enclosure and the intensity zones that constitute other forms of enclosure. A question is raised by Suely Rolnik regarding the regimentation of a policy of pimping and expropriation of desire, from the reaffirmation of discourses that madden the bodies and the relations of bodies.

Key words: schizoanalysis; body; therapeutic community; drugs


 

 

A apresentação: o trabalho de um psicólogo em uma comunidade terapêutica

O presente artigo consiste em um relato de experiência profissional, referente a um trabalho de vínculo informal que realizamos em uma Comunidade Terapêutica (CT), localizada no Estado de Minas Gerais. Essa experimentação, embora tenha durado pouco do ponto de vista cronológico, foi disparadora de muitos processos de análise e reflexão pessoal e profissional. Pensamos, desde o início, na possibilidade de ocupar a instituição e tecer estratégias de resistência, investigação e experimentação.

A referida Comunidade Terapêutica oferece tratamento para "dependentes químicos", os ditos "adictos", e recebe pessoas em estados variados de adoecimento mental, em regime de internação voluntária, embora nessa seara a voluntariedade seja algo que necessite de ampla discussão e problematização.

Quando iniciamos o trabalho, havia 40 homens internados e, com o passar do tempo, esse número diminuiu para 34. Contudo, tivemos informações de que essa CT já chegou a atender mais de 60 homens. Muitos dos internos estavam ali há mais de 1 ano, alguns há mais de 2 ou 3 anos. Em sua maioria, eles mantinham raros contatos com suas famílias. Havia, na ocasião, 3 internos cumprindo pena, além de outros que já haviam passado pelo sistema penal. Um desses internos, que cumpre pena na CT, é analfabeto e perdeu totalmente o contato com seus familiares; alguns deles já morreram e outros também estão em situação de vulnerabilidade social.

O espaço físico da CT é arborizado. Conta com uma horta, que é cuidada por alguns dos internos, campinho de futebol, mesa de sinuca, uma piscina, refeitório e quartos compartilhados. Segundo relatos dos homens ali internados, a estrutura física dessa CT é boa, em comparação com outras instituições dessa natureza. Contudo, observamos que o conforto de suas instalações muitas vezes era usado para silenciar a opinião de alguns usuários, sobretudo quando essa se referia a algum conteúdo de desconforto ou queixa sobre o tratamento.

Nessa CT, os próprios internos realizam as tarefas domésticas, consideradas como "terapêuticas", que muitas vezes são chamadas de "laborterapia": Eles realizam a limpeza de seus quartos, dos banheiros e da área comum, além do preparo dos alimentos para as refeições em horários pré-determinados pela instituição. Não há mecanismos explícitos que denotem uma obrigatoriedade da realização de tais atividades e tarefas, entretanto, percebemos estratégias discursivas que influenciavam esses corpos à adequação das regras gerais.

O acompanhamento médico psiquiátrico é feito por meio de atendimentos realizados em intervalos de dois em dois meses, aproximadamente. Grande parte dos internos faz uso diário de drogas farmacológicas utilizadas para "estimular ou acalmar", agindo sobre comportamentos e condutas de desânimo ou irritação. Quando começamos a escutar esses homens, eles em geral se apresentavam nos contando o número do seu diagnóstico psiquiátrico, o CID (Código Internacional de Doenças), e, entre eles, esses códigos fomentavam gírias e comparações.

Além disso, a CT contava naquele momento com dois monitores, que eram internos, também em tratamento, e escolhidos pelos coordenadores. Segundo os coordenadores da CT, para um interno se tornar monitor é necessário considerar fatores como tempo de casa, adaptabilidade às regras de funcionamento geral, além do estabelecimento de uma relação de confiança com os coordenadores da CT.

Os coordenadores são "adictos" que já passaram por outras CTs, onde foram também internos "que se reabilitaram". O dono dessa CT foi coordenador em outras CTs e é bastante conhecido na região como um exemplo de abstinência e superação, o qual está, segundo ele, há 20 anos sem fazer uso de drogas (álcool e demais drogas). Eles dirigem a instituição se baseando nos princípios da abstinência conforme preconizados por grupos de Narcóticos Anônimos (NA), com forte referência personalista em figuras que são exceção à regra - como o dono dessa CT que é um raro exemplo de "sucesso da abstinência".

O NA dirige o trabalho realizado com os "dependentes" a partir de doze passos. Nesse sentido, na CT os internos são vistos como "adictos" em recuperação e são considerados pessoas psicologicamente "dependentes", "viciados", que apresentam comportamentos compulsivos e problemas em suas relações interpessoais.

 

As zonas de intensidade (platôs) e as estratégias de intervenção

Dispomo-nos, neste texto, a desenvolver narrativas cartográficas com o trabalho realizado nessa instituição, no sentido de construir um plano de imanência (Deleuze; Guattari, 1992) para compor nosso campo de análise e intervenções. Não tivemos, com isso, a pretensão de generalizar aquilo que experimentamos na CT, mas, sim, de ressaltar e refletir sobre o caráter singular e multiplicitário dos encontros disparados nesse local.

Durante nosso trabalho, foi possível tecer uma análise dessa instituição, apreender a sua dinâmica de funcionamento, sua produção~cafetinagem~talha de subjetividade e subjetivação, sua articulação política de provisão e manutenção dos corpos, através de pilares como a nutrição e a medicalização, além de sentir zonas de intensidade que permeavam suas dimensões. Como afirmavam Deleuze e Guattari, para nós: "Tratase sempre de liberar a vida lá onde ela é prisioneira, ou de tentar fazê-la num combate incerto" (1992, p. 222).

No início desse trabalho, perguntamos aos internos como eles entendiam o trabalho do psicólogo e qual seria o nosso papel ali. As respostas que tivemos nos mostraram que aqueles homens até então haviam sido acompanhados por psicólogos orientados por uma compreensão reduzida à moral, que privilegiavam aspectos comportamentais.

Além disso, foi possível compreender que o funcionamento da CT estava bastante associado a práticas de afirmação de culpas, receios, desconfianças e patologias em níveis individuais, enquanto, coletivamente, a dimensão moral da adicção era o que mais se realçava. No cotidiano, isso aparecia quando os coordenadores, alguns internos e seus familiares, nos alertavam para "ter cuidado, pois adictos estão sempre manipulando. Adictos são doentes que precisam manipular os outros e a si mesmo".

Assim, optamos por realizar atendimentos individuais para além desse discurso pré-concebido e do arranjo de grupalidade/grupalismo baseado nos princípios do NA. Com essa estratégia, buscamos acolher a particularidade e dar passagem para acontecimentos inusitados. Além disso, desenvolvemos outras práticas e encontros como oficinas, jogo de futebol e outras atividades, quando disputamos, nos divertimos e trocamos experiências de forma solidária e cooperativa.

Nessa CT havia ainda práticas ritualísticas com uso do chá da Ayahuasca, das quais alguns internos participavam. Por meio de conversas com esses internos, foi possível perceber que não havia um momento posterior de discussão e elaboração da experiência vivida nessas práticas. Algo que nos fez pensar em sugerir a formação de um espaço de cuidado para tal que, contudo, não tivemos tempo de desenvolver.

 

A política de enclausuramento do desejo

A principal questão que se colocou nesse processo foi de que forma poderíamos construir, com aquelas pessoas, narrativas que reverberassem em suas vidas, problematizando o estabelecimento, como afirma Rolnik (2018), de relações cafetinísticas que buscam colonizar o inconsciente a partir de linguagens e expressões manicomializadas, patologizadas, estigmatizadas.

Em outras palavras, sensíveis ao que escutamos, sentimos e tecemos nesses encontros, procuramos aliar e potencializar forças dissidentes que atravessavam aqueles corpos instalados em um espaço e temporalidade sofisticadamente controlados. Muitas vezes nos perguntamos sobre quais eram os arranjos, ou melhor, os platôs que compunham os agenciamentos daqueles corpos que habitavam aquele cenário enclausurado e enclausurador.

A noção foucaultiana de biopolítica e o paradigma ético-estético-político que orientam a Filosofia da Diferença contribuíram para que pudéssemos refletir e construir nossas intervenções. Desse ponto de vista, tentamos refletir sobre o funcionamento da CT, considerando as relações de poder estabelecidas entre os diferentes integrantes dessa instituição (Foucault, 2015; Deleuze; Guattari, 1992).

Vale ressaltar que há um valor/custo cobrado como mensalidade, para que essas pessoas possam receber o tratamento em regime de internação na CT, correspondente a R$ 1200,00 (mil e duzentos reais), com algumas vagas sociais direcionadas geralmente a pessoas em situação de rua, encaminhadas por serviços públicos da cidade, diante do consentimento da pessoa internada.

Nessa Comunidade Terapêutica percebemos uma sólida cultura de entendimento sobre o que venha a ser a "dependência química", concebida por meio do discurso da "adicção" que, segundo eles, é um problema imutável e incontornável, uma doença atrelada, sobretudo, ao caráter daqueles homens. Essa cultura, fortemente arraigada a um cunho moral, sentimos nos corpos que encontramos; e houve um momento, inclusive, que captamos uma certa distinção que faziam desde a nossa presença em relação às outras que circulavam naquele espaço. Reconhecemos que, como psicólogo, psicoterapeuta, exercíamos ali também um saber-poder diferente dos demais. Falar sobre esses homens internados, que em sua maioria desenvolveram ao longo de suas vidas uma relação problemática com determinadas drogas, o que certamente reflete os efeitos de outras relações problemáticas, é um ato desafiador. A experiência de trabalhar com esses corpos nos instigou e levou-nos a interrogar sobre o que pode o corpo adicto. A partir dessa indagação, foi possível nos abrir para esses encontros de forma a acessar narrativas em que muitos desses homens puderam nos contar que sofreram violência sexual na infância e adolescência, além de outros traumas e feridas vivenciadas na vida adulta.

Esse tipo de acolhimento nos fez compreender que, onde não há construção de uma relação de confiança e vínculo, a manipulação se torna uma estratégia que norteia as condutas e os valores que nutrem e referenciam as relações. Acostumar-se a esse tipo de vínculo débil, fraco, sem consistência, medonho, é o que pode compor um tipo de relação com o mundo que se configura e se agencia em torno de uma reducionista compreensão de si.

O que colocamos à luz para discussão, nesse sentido, é a escassez de uma política de desejo e o império de uma política macro e micro, em nível regional-nacional-continental, em que se preconizam diferentes formas de clausura. Nesse sentido, destacamos as palavras de Rolnik (2018):

Essa política do desejo é própria de uma subjetividade reduzida à sua experiência como sujeito, na qual começa e termina seu horizonte. Por estar bloqueada em sua experiência fora-do-sujeito, ela se torna surda aos efeitos das forças que agitam um mundo em sua condição de vivente, ignorando aquilo que o saber-do-corpo lhe indica. O gérmen de mundo que a habita é por ela vivido como um corpo e tal ponto estranho e impossível de absorver que se torna aterrorizador, razão pela qual deverá ser calado a qualquer custo o mais rapidamente possível. Esse tipo de subjetividade vive o universo exclusivamente como um objeto que lhe é exterior e o decifra apenas da perspectiva de sua experiência como sujeito. A imagem de si que resulta dessa redução é a de um indivíduo - um todo indivisível, como o próprio termo indica. É a imagem de uma suposta unidade cristalizada separada das demais supostas unidades que constituiriam um mundo, o qual é indissociavelmente concebido aqui como uma suposta totalidade, organizada segundo uma repartição estável de elementos fixos, cada um em seu suposto lugar, igualmente fixo [...] (p. 66).

Assim, é sobre essa política de desejo que se volta à produção de um inconsciente colonial capitalístico/cafetinístico, engendrado na máquina abstrata Comunidade Terapêutica, que buscamos refletir, problematizar e intervir sobre nossa experiência. Pensar a CT e seus atravessamentos nessa "nova" e velhíssima política manicomial de drogas é algo fundamental e urgente, especialmente neste momento em que algumas formas de clausura vêm sendo incentivadas e até mesmo valorizadas no Brasil..

 

Referências

Deleuze, G., Guattari, F. (1992). O que é a filosofia? São Paulo: Editora 34.         [ Links ]

Foucault, M. (2015). A história da sexualidade I: a vontade de saber. São Paulo: Graal.         [ Links ]

Rolnik, S. (2018). Esferas da insurreição - Notas para uma vida não cafetinada. São Paulo: N - 1 Edições.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 06/03/2020
Aprovado em: 18/05/2020

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