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Revista de Psicologia da UNESP

versão On-line ISSN 1984-9044

Rev. Psicol. UNESP vol.19 no.spe Assis dez. 2020

http://dx.doi.org/10.5935/1984-9044.20200015 

ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE E SAÚDE MENTAL

 

"Mas na minha época": encontros entre gerações em um centro de convivência - relato de experiência

 

"But in my season": meetings between generations in a living center - experience report

 

 

Mariana Dias Andrade; Bruno Ferrari Emerich

Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)

 

 


RESUMO

A partir do movimento da Reforma Psiquiátrica, tem-se a criação de serviços substitutivos na rede de saúde visando à reestruturação do cuidado, visto que anteriormente os indivíduos eram vistos apenas como corpos sintomáticos que deveriam ser isolados. Nesse paradigma, o que unia as pessoas no manicômio era a exclusão, enquanto atualmente, nos Centros de Convivência (CECO), o que une as pessoas é justamente a convivência, a inclusão social concreta dos indivíduos. O CECO surge como um dispositivo fruto do processo de Desinstitucionalização e tem como características principais a intersetorialidade e a territorialidade, portanto, o objetivo é discutir com base em um relato de experiência, a potência do encontro entre diferentes gerações no CECO ,considerando que o contato intergeracional abre o leque de oportunidades no que tange à experiência de novos modos de subjetivação para os sujeitos envolvidos.

Palavras-chave: terapia ocupacional; gerações; transmissão cultural; saúde mental.


ABSTRACT

From the Psychiatric Reform movement, there is the creation of substitute services in the health network, aiming at the restructuring of care, in which individuals were previously seen only as symptomatic bodies that should be isolated. In this paradigm, what united people in the asylum was exclusion, whereas today, in the Coexistence Centers (CECO), what unites people is precisely the coexistence, the concrete social inclusion of individuals. The CECO emerges as a device resulting from the Deinstitutionalization process and its main characteristics are intersectorality and territoriality, so the objective is to discuss, based on an experience report, the power of the encounter between different generations in the CECO considering that intergenerational contact it opens the range of opportunities with regard to the experience of new modes of subjectification for the subjects involved.

Key words: occupational therapy; generations; cultural transmission; mental health.


 

 

Introdução

A Reforma Psiquiátrica junto ao processo de Desinstitucionalização no Brasil culminou na redução dos leitos psiquiátricos em manicômios bem como, após 12 anos de tramitação no Congresso Nacional, a aprovação da Lei Paulo Delgado (Lei Federal 10.216). Tal lei redireciona a assistência em saúde mental, privilegiando o oferecimento de tratamento em serviços de base comunitária (Brasil, 2005).

No Brasil, os manicômios trancafiavam pessoas de diferentes gêneros e idades, a quantidade de pessoas excedia a quantidade de leitos e o contato das diferenças subjetivas e de idade se dava de maneira natural, sem qualquer distinção: todos juntos, com suas janelas abertas e com a liberdade enclausurada.

Contrapondo esse modelo de cuidado, a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), dentro do Sistema Único de Saúde (SUS), estabelece pontos de atenção para o atendimento de pessoas com sofrimento e/ou transtornos mentais, incluindo os efeitos nocivos do abuso do álcool e outras drogas. Dentre os serviços substitutivos previstos pela RAPS, o Centro de Convivência (CECO) está na Atenção Básica, dentro da divisão hierárquica do SUS. Tal equipamento localiza-se no território e aspira à inclusão dos excluídos, através da convivência e seus desdobramentos.

Para Ferigato (2016), a experimentação de diferentes serviços de saúde está em experimentação desde a constituição de 1988 e a criação do SUS. Cotidianamente há busca para exercer os princípios básicos da política, como a universalidade, equidade, integralidade, descentralização e participação social. Ainda para a autora, o dispositivo CECO é um dos serviços que sintetizam o desejo de resistência às questões sociais e de saúde, onde os coletivos estão inseridos num contexto de frágeis laços sociais.

A criação dos serviços substitutivos foi de suma importância para a reestruturação da assistência psiquiátrica, descentralizando o cuidado dos manicômios e criando a rede extra hospitalar. Se, antes do processo da Reforma Psiquiátrica no Brasil, o que unia as pessoas para a permanência nos manicômios era a exclusão, hoje nos CECOs o que une as pessoas é a convivência, a inclusão social concreta dos sujeitos, o estreitamento dos laços, pelo simples e complexo fato de serem diferentes, pela abertura ou não da janela da mente e pela aposta de que cada sujeito é protagonista de sua própria história e experiência.

 

Experiências como forma de mudança

Em consonância com o que diz Bondía (2002) sobre a experiência como algo que nos toca, nos afeta e nos imprime marcas, a discussão caminhará para um dos locais onde a experiência pode acontecer: no encontro! Tendo em vista as quatro questões que podem ser obstáculos para que a experiência aconteça - o excesso de informação, a não resiliência de opiniões, a velocidade do cotidiano e o trabalho como sinônimo de experiência - de fato a experiência no mundo contemporâneo está cada vez mais rara, tanto por esses obstáculos como pela falta de encontros.

Tendo Spinoza (1677) como norteador do conceito, entende-se por "encontro" o contato que autoriza a experimentação. Então, os encontros propiciam a possibilidade de entender a diferença entre os sujeitos/coletivos como algo comum, que ressalta a singularidade de cada experiência em questão. As palavras "experiência" e "encontro" perpassam o escrito do início ao final, fixadas na penumbra da vida que se passa no CECO.

A possibilidade de vivenciar o cotidiano de um dispositivo substitutivo se deu através do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde Mental da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), no ano de 2019, na cidade de Campinas/SP, enquanto Residente Terapeuta Ocupacional do segundo ano; a permanência de 10 meses possibilitou à pós graduanda conhecer o território e posteriormente desenvolver ações no dispositivo.

Portanto, baseada nessas questões, o objetivo do presente relato de experiência é discutir a potência do encontro entre diferentes gerações que o CECO possibilita em oficinas, a partir do relato de experiência, como Terapeuta Ocupacional em constante formação.

 

Centro de Convivência

O CECO é um equipamento inter-setorial inserido no território com o objetivo de promover espaços de convívio e participação social para todas as pessoas desse território, integrando sujeitos que vivenciaram diferentes formas de exclusão (Ferigato, 2013). O dispositivo conta com estratégias de ações diferentes das dos demais equipamentos substitutivos, com foco no encontro e na convivência por meio de oficinas e ações comunitárias, alinhadas aos pilares da Atenção Básica: promoção e prevenção de saúde (Aleixo e Lima, 2017).

O Ministério da Saúde divulgou, na IV Conferência Nacional de Saúde Mental, que o país contava com no mínimo 51 CECOs, sendo 19 deles localizados no estado de São Paulo. Após levantamento realizado pelo I Encontro Estadual e Centros de Convivência, realizado na cidade de Campinas em 2011, havia 37 dispositivos concentrados em seis cidades do estado de São Paulo (Ferigato, 2016). Contudo, nos cadernos temáticos do Conselho Federal de Psicologia, esse número muda: no Estado de São Paulo, são 34 Centros concentrados em quatro municípios apenas: 21 na Capital, 11 em Campinas, 1 em Embu das Artes e 1 em Mogi das Cruzes (CFP, 2015). A situação fica mais dramática quando se constata que, no último relatório de gestão do ministério, tampouco o dispositivo é citado (Brasil, 2015).

Por isso, ainda há a necessidade do engajamento nas discussões voltadas para as políticas públicas de saúde:

[...] ainda não há uma regulamentação ministerial específica para os Cecos. Trata-se de uma situação que os fragiliza, pois coloca esses serviços à margem dos investimentos direcionados às políticas públicas. Há o reconhecimento de sua existência e sua expressão nas práticas de cuidado, mas não se conta ainda com o comprometimento para tornar os Cecos em serviços regulamentados com investimentos próprios, compondo o cenário com outros serviços da RAPS e fortalecendo as frentes alternativas ao modo asilar (Aleixo, 2017. p,3).

A cidade de Campinas - SP, no ano de 2019, contava com sete dispositivos, distribuídos em quatro dos cinco distritos de saúde do município, sem limitação no acesso às pessoas que frequentam os CECOs. Elas chegam encaminhadas dos CAPS ou Centros de Saúde, que entendem que o equipamento é mais um braço no cuidado, bem como encaminhados de Escolas, Núcleos Assistenciais etc. ou chegam de maneira espontânea. A presença da comunidade é de grande importância para a apropriação do território e dos espaços públicos.

As ações, como oficinas, são desenvolvidas partindo do preceito de que a arte e a cultura são ferramentas de expressão e comunicação, podendo, assim, contribuir como instrumentos em novos encontros que culminam na formação de laços sociais pelos quais a diferença é sustentada.

Este artigo descreve a estadia da residente em um CECO localizado na cidade de Campinas/SP, na região Leste do município, durante 10 meses. O perfil dos usuários era heterogêneo. Até 12 anos tem-se 102 usuários, de 13 a 24 anos são em média 50 usuários, 151 usuários de 25 a 59 anos e, em maior número, estão os idosos, totalizando 128 usuários de 60 anos ou mais. A divisão por gênero se dá de maneira igualitária. O território conta com esse equipamento há 12 anos, passando por períodos de laços estreitos com a comunidade e outros dispositivos de diversos setores.

 

Terapia ocupacional: atividade em oficinas

De acordo com Lima, (2003) as ações dos terapeutas ocupacionais não se voltam estritamente para as pessoas cujas vidas estão marcadas por processos de exclusão ou por patologias, mas certamente esta marca deixou um traço distintivo na categoria profissional. Assim, ao produzir caminhos de enfrentamento para desfazer ou minimizar as desvantagens e abrir espaços de sociabilidade, de expressão da diversidade e de enriquecimento das vidas de sujeitos e grupos que historicamente vivenciaram processos de ruptura social, o terapeuta ocupacional atua no movimento de luta por cidadania, na construção de um cotidiano estruturado e na defesa dos direitos, a partir da sustentação do cotidiano que outrora fora experienciado de outra forma.

Aqui vale salientar que a Terapia Ocupacional utiliza a atividade como instrumento, e começou a ser discutida em meados anos 80, desvencilhando-se das terminologias americanas que até então foram de extrema importância para a expansão da profissão no Brasil. De acordo com Salles e Matsukur (2016), o conceito de atividade se fortalece no Brasil como eixo norteador da profissão, sendo elemento central que oferece suporte teórico e prático.

Para Constantinidis e Cunha (2016), a clínica da Terapia Ocupacional se afasta do conceito de atividade como apenas ocupação do ócio quando supera o modelo biomédico. Além disso, as atividades se constituem como uma importante ferramenta de transformação, tanto na perspectiva do sujeito quanto na das instituições (Lima et al, 2004, p.77).

Nesse bojo, as oficinas se constituem como dispositivo que possibilita espaço de intermediação de vários saberes. Constantinidis e Cunha (2016),sintetizam então o uso das atividades em oficinas para os terapeutas ocupacionais, que historicamente têm a atividade como instrumento de seu trabalho:

A atividade terapêutica, que tinha seu uso sendo uma atribuição da terapia ocupacional, perde espaço para as atividades realizadas nas oficinas terapêuticas. Nestes espaços transitam profissionais de diferentes formações [...], o que constitui como um dispositivo de assistência que ultrapassa as especialidades profissionais (Constantinidis e Cunha, 2016, p.43-44).

As atividades como recursos são usadas nos CECOs em oficinas que consideram esse local quase sempre experimental, que não se embasam em concepção teórica rígida, ou formas pré-estabelecidas de funcionamento. Trata-se de um dispositivo construído essencialmente no cotidiano, pelos usuários e técnicos. Um grande escopo de práticas pode englobar esse conceito de oficina, desde que se desenhem em um campo entendido como clínico, no qual os instrumentos e técnicas da oficina sirvam para facilitar interação social e propiciar a expressão criativa dos sujeitos (Galletti, 2004).

Portanto, as oficinas se configuram, dentro dos CECOs, como espaço central para a promoção de saúde e o cuidado dos sujeitos, com transtorno mental ou não, além de possibilitar novos encontros através do fazer de atividades. Para os profissionais do núcleo da Terapia Ocupacional, as oficinas se configuram como espaço confortável uma vez que as atividades humanas são discutidas e vivenciadas intensamente. Além dessa característica,, as oficinas nos CECOs produzem uma clínica que se direciona para a produção de processos de experimentação e processos de encontros e desencontros com os diferentes sujeitos.

Ferigato (2016) sintetiza plenamente a atuação do terapeuta ocupacional em um dispositivo onde a convivência é o foco:

Tradicionalmente, as populações atendidas pelo terapeuta ocupacional, como as pessoas com deficiências, em sofrimento psíquico ou em situação de vulnerabilidade social, idosos, entre outras, são exemplos de condições nas quais as convivências de forma potencializadora para os processos e projetos de vida estão cerceadas, e podem ser experimentadas junto às múltiplas formas de exclusão (econômica, social, cultural, ocupacional, etc...). Em casos como estes, a convivência pode ser também atravessada por esses mesmos processos de exclusão, assujeitamentos e estigmas. E é especialmente nesses contextos que procuraremos abordar a interface entre os processos de convívio e a terapia ocupacional (Ferigato, p. 851. 2016).

O trabalho da Terapia Ocupacional no CECO em questão foi pautado na atividade como recurso que pode ser usado por diversas categorias profissionais, ancorado no modelo de atenção psicossocial e interdisciplinar. Entretanto, bem como as atividades, as oficinas são realizadas com base no desejo dos usuários e/ou dos coletivos do território. Assim, as experiências que os sujeitos vivenciam dentro das oficinas podem ser reproduzidas no cotidiano, tanto singular como no coletivo.

 

Ger(ações)

Em meio à sociedade marcada por massivo estímulo tecnológico, intenso fluxo de informações e grandes transformações econômicas e socioculturais, questiona-se como se estabelecem as relações e os encontros entre as pessoas de diferentes gerações.

Borges e Magalhães (2011), ao citar Mannheim (1982), ressaltam que as gerações não são definidas especificamente pela faixa etária e destacam o caráter subjetivo da constituição da experiência de pessoas de diferentes idades. Corresponde a um fenômeno cuja natureza é cultural:

A geração reúne pessoas que, nascidas numa mesma época, viveram os mesmos acontecimentos históricos e partilham de uma mesma experiência histórica. Essa experiência comum dá origem a uma consciência que permanece presente ao longo do curso de suas vidas, influenciando a forma como os indivíduos - e coletivos - percebem e experimentam novos acontecimentos (Borges e Magalhães, 2011. p. 172).

Contudo, como bem aponta Sarmento (2005), é importante incorporar ao conceito de geração os atravessamentos a que a sociedade está sujeita. A desigualdade social, raça, gênero, poder de troca material e tantas outras condições sociais são questões de grande importância no que tange à definição de um conceito que é transversal a diferentes áreas de conhecimento.

[...] jovens que hoje têm vinte anos podem experimentar de forma diferente acontecimentos atuais, dependendo da classe social a que pertençam, do fato de se tratar de um homem ou de uma mulher, de um branco, um negro, um indígena, etc.; ou seja, a experiência geracional depende também de particularidades encontradas em cada universo cultural mais específico que atravessa as gerações (Borges e Magalhães, 2011. p. 172).

Portanto, ao se falar de geração é necessário, além da faixa etária, pensar no momento histórico, social, político e econômico em que se vive, a fim de incorporar as particularidades que estão presentes em diferentes sociedades.

O distanciamento desses fatores pode culminar no que não se espera quando se pensa em geração: o legado da cultura através das experiências individuais e coletivas, visto que o processo de transmissão cultural que se faz de uma geração a outra é justamente a transmissão de uma realidade, de um mundo de hábitos e de significados. E essa transmissão se dá pelas relações com diferentes significados (Borges e Magalhães 2011).

Nas diferentes gerações, em diferentes momentos históricos e em diferentes sociedades, observa-se uma dialética de reconstrução permanente, de modo que as relações entre elas sejam constantemente refeitas e assim se estabeleçam novos comportamentos intergeracionais (Poltronieri; Costa; Costa, J. e Soares, 2015). Ao encontro com essa dialética, a sociedade atual experimenta um intenso distanciamento entre as gerações, segmentando não apenas as faixas etárias, mas as experiências. O contato entre as diferentes gerações e a manutenção da transmissão de cultura está se esvaindo, uma vez que as trocas de saberes estão cada vez mais se distanciando.

Ao adentrar no perfil da sociedade brasileira, constata-se que, de fato, há um crescente e acelerado envelhecimento populacional. Se o evento for pensado apenas pela ótica quantitativa, os números interferem em diversos setores federais, como previdência, saúde, assistencial etc., entretanto, adicionando os fatores culturais e determinantes sociais a esse bojo, tem-se uma questão de difícil discussão.

Além do fato de a população idosa não ter poder de troca nos moldes da sociedade capitalista, socialmente o idoso é desvalorizado por sua estereotipada perda de funcionalidade.

No meio da linha, a população jovem adulta sofre incentivo ao consumo, construído pela ótica capitalista que estimula o consumo e a exibição do "prestígio" de ser jovem. A juventude nas sociedades contemporâneas se tornou um slogan de alta qualidade de vida.

Na outra ponta, a infância, que passou por mudanças no que se refere a questões sociais e ideológicas e, como categoria estrutural de uma sociedade, apresenta maior complexidade em termos de geração.

Para Sarmento, (2005), a infância passa, por consequência, por um processo contínuo de mudança, não apenas pela entrada e saída dos seus atores concretos, mas por efeito das ações internas e externas que constroem a sociedade:

Ao falarmos de crianças, não estamos verdadeiramente apenas a considerar as gerações mais novas, mas a considerar a sociedade na sua multiplicidade, aí onde as crianças nascem, se constituem como sujeitos e se afirmam como actores sociais, na sua diversidade e na sua alteridade diante dos adultos (Sarmento, 2005, p. 16).

Em relação ao dispositivo CECO local - físico e subjetivo - onde se dá a transmissão e manutenção da cultura, bem como a criação de relações e vínculos pessoais, é de extrema importância pautar e observar os encontros intergeracionais. Através desse contato entre gerações, o leque de oportunidades no que tange à experiência que toca e provoca mudanças pode acontecer de fato.

Os jovens podem retificar a imagem distorcida que têm dos idosos, modificar relacionamento com avós e avôs, agir de forma mais realista e menos sonhadora, desenvolver a solidariedade e a cooperatividade, lidar melhor com regras e limites, compreender a importância dos idosos se voltarem para o passado, pois esta é a sustentação para mudanças futuras. Os idosos se sentirão úteis, menos solitários, aumentarão a autoestima que pode estar diminuída pelas constantes perdas e pelo descrédito que ainda paira sobre eles, poderão lidar com um outro tipo de autoridade, descobrirão muito do seu potencial e estabelecerão uma relação de mais confiança com os mais jovens. Ambos, jovens e idosos, poderão descobrir que é possível ter um vínculo de afeto com um membro de outra geração que não seja seu parente ou muito próximo. (Silveira, 2000, p. 10).

Adentrando o núcleo da Terapia Ocupacional e suas práticas, há possibilidade de contribuição para alcançar o equilíbrio dos encontros entre as gerações. O essencial se localiza na disponibilidade da escuta das necessidades e desejos.

Para Galheigo (2009), o contar e o escutar histórias precisa de espaço continente, de ambiente acolhedor e de intermediário facilitador. Por outro lado, podemos dizer que seu acontecimento possibilita o acionamento e construção de redes de sociabilidade e suporte, além de espaços de negociação - e transmissão - cultural.

 

Senta que lá vem história

Nas oficinas, a recordação familiar sempre esteve presente, principalmente a lembrança dos encontros com minha avó materna e por isso resolvi escrever, porque a cada encontro em sua casa entre as crianças, adultos, idosos, loucos e normais, vejo um pouco dos encontros que ela proporcionou. A diferença sempre esteve presente, bem como os choros acolhidos, os abraços apertados, as alegrias compartilhadas e as discussões apaziguadas.

Lembrome de quando eu era criança e ficava embaixo da máquina de costura fingindo que era meu carro; ou quando eu me sentava só para brincar com os tecidos e a senhora dizia: "isso não é brincadeira, coisas feitas com as mãos são valiosas". Hoje entendo que não se trata da lógica monetária, mas sim da lógica de valores e sentimentos traduzidos em um produto.

Anos depois, vivenciando a Terapia Ocupacional enquanto profissão em um CECO, desenvolvi uma oficina denominada: Oficina de Fios. Essa oficina acontecia em dois dias diferentes, uma no período da manhã e outra no período da tarde. Essa estratégia foi tomada para abarcar as diferentes pessoas que queriam ir, mas dispunham de apenas um período. Os encontros tinham duração de, em média, duas horas.

Participavam oito usuários do CECO, e a idade variava de oito a 76 anos. Quando convidei as crianças para participar escutei: "isso é coisa de velha, tia". Também escutei de uma mulher de 33 anos: "estamos recuperando o senso de vô". Mito esse que foi sendo quebrado a cada encontro. As crianças expressavam opiniões variadas sobre esses encontros: alguns achavam que seria legal continuar o grupo só com crianças, entretanto conseguiam refletir sobre os ensinamentos que os mais velhos ofereciam; outras acham que a presença de adultos e idosos é mais um motivo para a inspiração e criatividade. Nesse sentido, N. de 8 anos, afirmou: "Eu gosto do grupo tia, é legal bastante gente... dá mais inspiração!"

A interação energética dos adolescentes acontecia tanto com as crianças quanto com os idosos. Ensinavam os idosos a mexer no celular, ensinavam às crianças as técnicas já aprendidas, falavam besteira e tiravam muitas dúvidas. Namoro, puberdade, política, escola, conflitos com os pais foram temas frequentemente nos encontros. A potência do encontro entre as gerações se deu naquelas duas horas carregadas do cotidiano de cada um.

Na oficina há quatro mulheres entre 29 e 58 anos, que, com diferentes realidades e saberes, conseguem abordar com as crianças e adolescentes as dificuldades da vida adulta, bem como as escolhas profissionais, relações afetivas, diversão e risco. Por parte desse público há um cuidado maior com todos os participantes. Muitas vezes a fala toma conta dos encontros e as experiências são colocadas na mesa sem nenhum medo de julgamento. "Ele me pediu em namoro e eu disse não", contou N., de 13 anos; "O que eu faço com a minha filha de três ano que só fala não?", perguntou C., de 39 anos.

Uma senhora de 72 anos, no processo de produção de um tapete de crochê, desmanchou o trabalho pela quarta vez devido aos pequenos erros e/ou à não regularidade dos pontos. Até que uma criança de 10 anos, ao perceber que a sua produção também estava ficando torta, decidiu continuar e dar outra função ao tapete: "agora vai ser uma toalhinha de melancia". A criança, com maior flexibilidade, conseguiu ensinar para todos nós da oficina sobre ser resiliente, sobre se adaptar e ser criativa diante das adversidades que acontecem no processo. Após essa escolha, a senhora decidiu não desmanchar mais seu tapete e está vendo vídeo na internet, concluindo: "eu vou sair moderna só de escutar a molecada". Ela, com sua sabedoria, também nos ensinou que no processo de aprendizagem precisamos nos dedicar e, se enxergarmos algum erro, é preciso desmanchar, isto é, corrigilo.

A outra idosa de 76 anos surpreende as crianças: "olha a Dona H. tá dando 10 a 0 em você", e, com seu jeito comunicativo, engraçado e gentil faz com que os pequenos não se importem com sua paralisia facial advinda de um episódio de violência. Por apresentar diagnóstico de demência, a idosa é acompanhada de uma cuidadora que participa também de todas as atividades. Alguns sintomas da demência, como a falta de memória bem como a confusão mental, são entendidos pelos participantes da oficina, e a energia das crianças com o tom de voz elevado faz com que a senhora participe dos assuntos. A lembrança de algumas atividades é exaltada pelas crianças, e os pontos de bordado são ensinados por ela em alguns encontros e ensinados para ela em outros. O celular é utilizado como ferramenta para registrar momentos significativos e algumas etapas da atividade e, assim, quando acontece algum esquecimento, a cuidadora mostra a imagem e todo o grupo contribui com detalhes.

O celular, como ferramenta da tecnologia, é tema recorrente dos encontros. Bem, essa é apenas uma parcela do fluxo de informações e estímulos que estamos recebendo. Em um dos encontros na Oficina, as pessoas mais velhas começaram a falar sobre como a tecnologia ajudou no cinema. "Antes a gente espera o plim plim para ir ao banheiro, agora dá para pausar o filme e voltar quando quiser", lembrou L., de 72 anos. Uma mulher que frequenta a oficina na companhia de seu filho quis explicar como funcionavam os estabelecimentos que alugavam filmes, as antigas Locadoras. "Nós íamos num lugar como se fosse um mercado, mas só tinha fitas de filme, lá escolhíamos alguns para assistir no final de semana e depois voltava para devolver e pagar", informou A, 39 anos. Os adolescentes questionaram como era feito se não gostasse do filme, e outra mulher relatou que, para ela, a ida aos estabelecimentos e a procura por filmes a partir de imagens já era algo muito legal. "Era um processo, ir e escolher o filme. Havia mais de uma arte naquele lugar, porque ficávamos apaixonadas pela imagem da capa e depois pelo filme, eu sempre pedia pra um amigo guardar os pôsteres dos atores, minha adolescência foi colando-os em meu quarto", lembrou C., de 39 anos.

Essa oficina e os encontros descritos foram permeados pela arte manual. A atividade nesse caso é utilizada como recurso, como algo que possibilita os encontros e as trocas de saberes, uma vez que sem o desejo inicial de aprender ou de conviver nenhuma pessoa estaria lá. Em todos os momentos a relação entre os sujeitos se deu maneira horizontal: sempre há algo para aprender e ensinar!

Algumas cenas foram apresentadas, contudo, vale salientar que são fotografias de um processo intenso como Residente imersa em um dispositivo que está há anos desenvolvendo ações para e com a comunidade.

 

Conclu (indo)1

 

A noção de Spinoza de encontros propõe que um corpo2 é essencialmente relacional, significa que um corpo nunca estará completamente formado, uma vez que ele é permanentemente afetado pelas experiências, ou seja, os encontros possibilitam constante transformação, já que, para o filósofo, um bom encontro é caracterizado pela composição e pelo aumento da potência de um corpo, e um mau encontro, pela decomposição ou pela diminuição da potência de agir ou da força de existir de um corpo relacional. Dessa forma, os encontros proporcionados pelos serviços substitutivos advindos do processo da Reforma Psiquiátrica e Desinstitucionalização no Brasil abarcam a potência do encontro, a potência da convivência.

Dadas as circunstâncias dos encontros entre as gerações na sociedade atual - em que os corpos estão sendo coisificados pela lógica do capitalismo e cada vez mais tomando distância entre si - apostar nos encontros entre as diferentes gerações em um equipamento híbrido como o CECO é de suma importância, uma vez que as produções do serviço são coletivas e mediadas por profissionais que entendem que a diferença produz experiências que podem reverberar no cotidiano singular de cada um.

Além desse fato, apostar nos encontros entre as distintas gerações é uma ação de manutenção da cultura, visto que a transmissão cultural se dá a partir dos encontros e do compartilhamento das dimensões históricas, vivências pessoais, experiências e valores, reconhecendo a potencialidade de cada etapa da vida humana em determinado contexto sócio-político. A Terapia Ocupacional, como categoria, contribui nesse processo em virtude de sua trajetória histórica. As discussões sobre o cotidiano e sobre as atividades nele inscritas possibilitam arcabouço técnico para nortear as ações em um CECO.

A relação de aprendizado e de convívio entre os participantes não deve seguir o padrão socialmente construído, de que crianças aprendem com os mais velhos e idosos são mestres do saber. Contudo, a relação de horizontalidade não fere a imagem construída de que o idoso é o ancião que detém todo o saber, mas também se caracteriza como sujeito que, com a maior gama de experiências, pode compartilhá-las, além, é claro, de incorporá-las.

Viva a diferença! Viva o convívio dos diferentes! Em tempos de retrocesso e repressão, viver a diferença é um ato POLÍTICO acima de tudo .

 

Referências

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Recebido em: 21/08/2020
Aprovado em: 15/12/2020

 

 

1 INDO porque é esse o sentido da vida. Indo em busca de novas experiências, novos aprendizados e novos encontros. Tentando, a partir destes, construir uma profissional forte que em tempo de massivos retrocessos precisa resistir.
2 Para o teórico, o corpo é definido por um sistema relacional aberto, capaz de afetar e ser afetado (Fabião,0. 2008).

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