SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.19 número especialPassos de uma residente pela reforma psiquiátrica brasileira: reflexões e proposições a partir da práticaEntre o cuidado e o controle: reflexões sobre o cuidado em Saúde Mental índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Revista de Psicologia da UNESP

versão On-line ISSN 1984-9044

Rev. Psicol. UNESP vol.19 no.spe Assis dez. 2020

http://dx.doi.org/10.5935/1984-9044.20200019 

ATENÇÃO PSICOSSOCIAL ESPECIALIZADA: OS CAPS EM SUAS DIFERENTES MODALIDADES

 

A intersetorialidade na saúde mental infantojuvenil: articulações entre um CAPSI e Unidades de Acolhimento

 

Intersectoriality in child and youth mental health: articulations between a Psychosocial Care Center (CAPS) and Home Units

 

 

Ana Paula MachadoI; Éllen Cristina RicciII

ITerapeuta Ocupacional (USP), Especialista em Saúde Mental e Coletiva (UNICAMP)
IITerapeuta Ocupacional (USP), Especialista em Saúde Mental, Mestre e Doutora em Saúde Coletiva (UNICAMP), Profa. Adjunta Curso de Terapia Ocupacional (UFPel)

 

 


RESUMO

O presente relato de experiência tem como tema principal a discussão da intersetorialidade como diretriz orientadora do cuidado em saúde mental na infância e adolescência. Objetiva-se refletir sobre os desafios para sua efetivação e as potencialidades do cuidado em rede com base na atuação de uma terapeuta ocupacional, residente em saúde mental e coletiva na Unicamp, em um Centro de Atenção Psicossocial Infanto-juvenil (CAPSI) na cidade de Campinas, entre os anos de 2015 e 2016. Para a discussão da temática, optouse por dar visibilidade às ações de apoio matricial pactuadas entre as equipes do CAPSI e parte das Unidades de Acolhimento (UA) que compõem a rede da assistência social da cidade. Entendeuse que o cuidado ofertado em rede intersetorial produziu respostas mais eficientes às diferentes demandas de crianças e adolescentes em sofrimento psíquico.

Palavras-chave: saúde mental; centro de atenção psicossocial (CAPS); crianças abrigadas; apoio matricial.


ABSTRACT

This experience report has as main theme the crosssectoral discussion as prime directive in the mental health care during childhood and adolescence. It aims to reflect on the challenges in effecting that, as well as the mental health care's potentials based in the work experience of an Occupational Therapist's, who was resident in Mental and Public Health at the University of Campinas (Unicamp), in a Center of Psychosocial Attention for Children and Youth (CAPSI) in Campinas city, between the years 2015 and 2016. It was decided to emphasize the actions of matrix support agreed between the CAPSI teams and some of shelters for minors that compose the city's social security network to discuss the topic. It was considered that the mental care offered in a crosssectoral network produced more efficient results to different demands of children and adolescents in psychic suffering.

Key words: mental health; Center of Psychosocial Attention (CAPS); sheltered children; matrix support.


 

 

Introdução

O presente relato de experiência tem como tema principal a discussão da intersetorialidade como diretriz orientadora do cuidado na saúde mental infantojuvenil no contexto da Reforma Psiquiátrica Brasileira. Nessa perspectiva, o cuidado em saúde mental passou a se caracterizar por um compromisso radical com os sujeitos, no exercício da cidadania e no cuidado em liberdade. A superação do paradigma asilar colocou em cena a criação e a sustentabilidade de uma rede de serviços substitutivos distribuídos nos diferentes níveis de atenção do Sistema Único de Saúde (SUS) que compõem a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) - instituída pela portaria Nº 3.088 de 23/12/2011. Conforme Delgado (2015), trata-se de "serviços comunitários fincados no território, intersetoriais, sustentados na ética da inclusão social e autonomia do usuário" (p. 312).

Em um resgate histórico sobre o tema, nota-se que a atenção às crianças e adolescentes em sofrimento psíquico permaneceu, por muito tempo, sem uma agenda robusta nos debates, sendo por vezes negligenciada nas propostas e documentos oficiais do campo.

Ainda na atualidade, a efetivação do cuidado em saúde mental infantojuvenil permanece como um dos principais desafios para a consolidação da Reforma Psiquiátrica (Couto, 2001; Couto et al., 2008). Essa problemática pode ser compreendida pela constatação de três elementos, conforme descrito a seguir.

Primeiramente, observa-se que há uma defasagem no número de serviços direcionados a esse segmento social. Em segundo lugar, nota-se que os serviços existentes estão distribuídos de forma pouco equânime no território nacional (Couto e Delgado, 2015). Em terceiro lugar, entende-se que "o principal problema brasileiro parece estar situado na presença desarticulada de serviços" (Couto et al., 2008, p. 396), ou seja, grande parte das instituições opera de forma isolada. Nesse sentido, destaca-se a necessidade, bem como a potência, de práticas baseadas na intersetorialidade para o cuidado a crianças e adolescentes.

Partindo dessa perspectiva, a experiência relatada neste estudo está situada na interface entre a saúde mental e a proteção social de crianças e adolescentes, isso é, em prática intersetorial de cuidado. Foram consideradas as realidades de crianças e adolescentes em acompanhamento no CAPSI e vivendo em Unidades de Acolhimento. As UAs são equipamentos do Sistema Único da Assistência Social que visam a proteção social e exercem a função de moradia provisória para sujeitos com vínculos familiares rompidos ou enfraquecidos. Nesse contexto, vale mencionar que o acolhimento institucional desse segmento social envolve diferentes tipos de violação de direitos e exige, fundamentalmente, a articulação entre serviços, como uma estratégia mais integral de atenção às suas necessidades.

Diante desse cenário, o presente estudo buscou dar visibilidade e refletir sobre os efeitos da criação de um dispositivo de conversação/articulação entre um CAPSI e parte das UAs da cidade de Campinas, com base na metodologia do apoio matricial (Campos, 1999). Essa experiência será discutida a partir da atuação de uma residente terapeuta ocupacional em um CAPSI, entre os anos de 2015/2016, com vinculação ao Programa de Residência Multiprofissional em Saúde Mental e Saúde Coletiva da UNICAMP.

 

Caminhos teóricos e metodológicos da experiência

Partese da compreensão de que a intersetorialidade é condição fundamental para o trabalho com crianças e adolescentes. Essa condição é especialmente importante quando tratamos de sujeitos que vivenciam a experiência do sofrimento psíquico e/ou de abrigamento. Entendese que quanto mais complexa a situação apresentada, maior será a necessidade de envolvimento de diferentes saberes, serviços e setores, ampliando as possibilidades de intervenção nos casos (Oliveira e Mendonça, 2016).

Considerando-se a população em foco neste relato, é preciso sublinhar que há muitos atravessamentos que podem produzir ou agravar os estados de sofrimento. É nesse sentido que a composição de diferentes setores de atenção representa uma postura técnica e eticamente orientada. Como pontuam Lauridissen-Ribeiro e Tanaka (2010, p. 136):

A construção de uma política intersetorial permite compartilhar responsabilidades e saberes, evitando-se medicalizar questões que não são exclusivas do campo de saúde e possibilitando um olhar ampliado sobre os problemas complexos como violência, crises socioeconômicas, desestruturação familiar e suas relações com os problemas de saúde mental.

À luz dessas considerações teóricas e de um diagnóstico situacional das necessidades de cuidados das crianças e adolescentes, em acolhimento institucional, acompanhadas no referido CAPSI, instaurouse a criação de um dispositivo de conversação entre as equipes do CAPSI e parte das UAs de Campinas. Foram organizadas reuniões sistemáticas com frequência quinzenal durante o ano de 2016, baseadas na metodologia do apoio matricial. Essa estratégia visou oferecer apoio especializado por meio de auxílio técnico e ações de formação continuada entre os serviços (Campos, 1999).

Orientada pelo modelo de matriciamento, parte da equipe do CAPSI organizou encontros/fóruns sobre temas relevantes à infância e juventude, sobretudo a partir do referencial psicanalítico, tanto para apoio às equipes de UA quanto para a comunidade em geral. Outros grupos que prestam assistência a esse segmento social foram convidados a participar do debate e a compartilhar seus saberes.

Cabe contextualizar que o território referenciado a esse CAPSI de Campinas tem como característica a concentração de UAs e casas de passagem. Entre elas, existem serviços destinados às crianças e adolescentes destituídos (que não têm mais filiação com a família) ou com a perda de guarda temporária.

É importante esclarecer que a orientação para acolhimento institucional deve priorizar o caráter excepcional e provisório. O principal objetivo do abrigamento é proteger a criança ou adolescente, porém, não menos importante, se coloca como foco do trabalho o retorno ao convívio familiar, com o devido apoio dispensado às famílias. Entretanto, em âmbito nacional, parte da literatura aponta um número reduzido de casos exitosos com retorno familiar em condições adequadas.

Em uma pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicada (IPEA), com o título "Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes" (Silva, 2004), foram avaliados 589 abrigos brasileiros, onde viviam 19.373 crianças e adolescentes. Nesse estudo, os dados apontam a dificuldade de reinserção na família e barreiras para adoção das crianças abrigadas. Assim, evidencia-se o predomínio do regime do tipo "permanência continuada". Posto que o critério de exceção se torna regra, os abrigos passam a ocupar, em caráter quase definitivo, a dimensão do habitar. Essa realidade convoca a rede de assistência ampliada a rever suas intervenções e a atuar de modo conjunto para superação dessa situação.

Com esse desafio do cuidado singular, que por definição deve considerar as diferentes subjetividades, empreendeuse o dispositivo de conversação. Nesse espaço híbrido, construído a cada encontro, foram organizadas as pautas de trabalho do grupo. O objetivo geral de todos os atores envolvidos era conhecer de modo mais aprofundado o que cada serviço fazia, fortalecer parcerias intersetoriais e construir melhores respostas para o sofrimento psíquico e outras necessidades das crianças e adolescentes. Uma das estratégias utilizadas como disparador desse processo foi um momento de formação conjunta, apoiada na leitura de textos sobre saúde mental infantojuvenil. Essa experiência suscitou aprendizados e desafios, conforme discutido a seguir.

 

Discussão e resultados: o cuidado articulado em rede intersetorial

Os registros das discussões nas rodas de conversação possibilitaram a visualização de temas recorrentes entre os serviços. Entre eles, destacaram-se: o lugar da loucura para os CAPSI e para as UAs; as regras e limites dentro dessas instituições; a inserção e permanência escolar; o uso de substâncias psicoativas; transgressão e medicalização na infância. Esses temas, discutidos à luz de alguns casos, proporcionaram melhor esclarecimento das diferentes abordagens/perspectivas teóricas e práticas utilizadas em cada instituição e como elas poderiam se articular e aprender umas com as outras.

Para além das temáticas citadas, mostrouse fundamental a discussão da noção de crise e de manifestações de agressividade. Entendeuse que ambas as situações suscitam dúvidas para alguns trabalhadores das UAs no que refere às possibilidades de manejo e acolhimento dentro da instituição. Nesse sentido, a equipe do CAPSI buscou compartilhar com as equipes da assistência social que algumas manifestações de agressividade em crianças e adolescentes podiam ser entendidas como um pedido de ajuda, na impossibilidade de fazê-lo de outra forma (Winnicott, 1958). Essa discussão mostrouse importante para ampliação da leitura desse fenômeno para além de um viés simplesmente disciplinar, de correção de comportamentos indesejados.

Em relação às situações de crises, em especial com crianças e adolescentes psicóticos, buscou-se elucidar, a partir do referencial psicanalítico, as estratégias de cuidado em momentos de maior desorganização, no qual pode haver o predomínio do agir em detrimento da palavra. Sustentouse como premissa ética supor a existência de um sujeito, tendo como ferramenta de trabalho a escuta, a palavra e uma relação de confiança mútua dada pela transferência (Ribeiro, 2002).

As trocas de saberes sobre a noção de "crise" possibilitaram também que as equipes das UAs refletissem, inclusive, sobre os fatores ambientais que poderiam contribuir para a desorganização das crianças e adolescentes em acolhimento. Nesse sentido, notouse, como efeito do trabalho, o reposicionamento das equipes das UAs, que puderam rever suas práticas, inclusive problematizando o lugar das regras e do controle exercido nas instituições.

Notouse que a generalização de condutas evidenciadas por rotinas rígidas, pouca privacidade e impossibilidade da entrada de objetos pessoais nas UAs, revelouse pouco porosa às necessidades subjetivas das crianças e adolescentes, contribuindo para intensificação de seu sofrimento psíquico. Esse modo de operar tende a ser uma característica comum em instituições de cuidados intensivos e tem influência direta nos modos em que os sujeitos podem ser e estar nos espaços (Couto et al., 2008). Winnicott (1945) também fez importantes contribuições nesse debate ao considerar a importância do ambiente como condição da experiência do devir e do continuar sendo (Winnicott, 1945).

Como efeito das ações de apoio matricial, foi possível o alinhamento de Projetos Terapêuticos Singulares (PTS) de algumas crianças e adolescentes, fazendo jus à sua definição: "conjunto de propostas de condutas terapêuticas articuladas, para um sujeito individual ou coletivo, resultado da discussão coletiva de uma equipe interdisciplinar" (Brasil, 2007, p. 40).

Com o aprofundamento das discussões dos PTS notouse, por exemplo, que havia conflitos entre as ofertas simultâneas de tratamentos, por vezes desarticulados, devido a problemas na comunicação entre os diferentes serviços, principalmente com a rede particular e instituições filantrópicas a que cada UA tinha acesso. Nesse sentido, houve tentativas de agregar os cuidados, a fim de evitar procedimentos desnecessários, iatrogênicos, e a comum hipermedicalização de crianças e adolescentes. Cabe destacar que a discussão do uso da medicação foi pauta importante para esclarecer que essa não é a primeira opção de cuidado e deve ser prescrita e administrada com responsabilidade técnica, preferencialmente quando outras possibilidades foram esgotadas.

Com o avanço das discussões dos casos e a partir da escuta das crianças e adolescentes em acolhimento institucional, observouse que alguns desses sujeitos tinham suas rotinas muito restritas ao tratamento. Com vistas à integralidade do cuidado e ao exercício de cidadania, foi sugerida a inclusão desses sujeitos em atividades significativas pela via dos desejos verbalizados. Essa estratégia buscou favorecer diferentes fatores que podem produzir saúde e ampliar as possibilidades de participação social. Nesse aspecto, foram realizadas articulações de rede para inserção das crianças e adolescentes em equipamentos da cultura, lazer, esporte e educação ampliada.

Outro setor fundamental para a articulação do cuidado na referida experiência foi a composição com os diferentes serviços que compõem o Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Por meio deles, foi possível conhecer e se aproximar de diferentes programas sociais que auxiliam tanto os adolescentes em acolhimento quanto suas famílias a acessarem projetos de capacitação profissional e de geração de renda. Constatouse que o apoio dispensado às famílias por meio de acesso aos direitos pode contribuir para o retorno ao convívio familiar em condições adequadas.

Em linhas gerais, as equipes do CAPSI e das UAs consideraram que o processo de conversação produziu mudanças importantes na relação entre os dispositivos envolvidos e no cuidado ofertado. Entre os resultados apontados pelos profissionais que participaram dos encontros foram destacados: maior entrosamento e comunicação entre as equipes da assistência social e do CAPSI; o acolhimento ao cuidador das UAS; e a qualificação na assistência com vistas à integralidade do cuidado.

Os participantes do grupo de trabalho enfatizaram a efetividade do apoio matricial enquanto estratégia privilegiada de gestão e articulação de saberes e serviços. Entendeuse que o apoio técnico compartilhado entre as equipes teve efeitos importantes na garantia de direitos e na clínica. Com as mais variadas composições no campo, e com base inclusive no ECA, as ações desempenhadas pelas equipes visaram romper com ciclos de marginalização, criminalização e desqualificação.

Em relação aos desafios para o avanço das práticas intersetoriais e colaborativas durante o processo de conversação, as equipes nomearam os seguintes impasses: o conflito sobre o papel do CAPSI na rede de cuidados e a compreensão da linguagem técnica da saúde nas discussões. A literatura sobre saúde mental infantojuvenil também aponta impasses/discordâncias semelhantes aos citados na experiência narrada, principalmente entre as equipes de saúde, no que se refere às atribuições e aos critérios de inserção de casos com indicação de tratamento no CAPSI (Delfine e Reis, 2012). Referente aos entraves na comunicação devido ao uso de linguagem especializada, entendeuse que eram necessárias a democratização do saber e a circulação da palavra.

À luz dessas questões foram sugeridas novas estratégias de apoio técnico e compartilhamento do saber, bem como o esclarecimento da responsabilidade e mandato clínico do CAPSI. Cabe esclarecer que esses equipamentos se constituem como a principal estratégia de cuidado vigente na política brasileira atual e são regidos pelos princípios do acolhimento universal, construção permanente de redes, desenvolvimento de ações intersetoriais e encaminhamento implicado (Brasil, 2005). A função dos CAPSI é, basicamente, oferecer tratamento às crianças e adolescentes com sofrimento psíquico intenso, notadamente os casos de autismo e psicose, em que apresentam maiores incidências de prejuízos no desenvolvimento e socialização nos diferentes aspectos da vida (Couto et al., 2008).

As práticas de reabilitação psicossocial ofertadas pelo CAPSI visam promover o exercício da cidadania, ampliação da contratualidade, a inclusão social, o convívio com a diferença, o direito à educação, ao lazer, à circulação no território. Nessa perspectiva, os CAPSij se colocam como mais um loco dentre os dispositivos que se propõem a cuidar de crianças e adolescentes, considerando que a atenção em saúde responde a apenas uma parte da complexidade da infância e adolescência (Couto et al., 2008) - questão amplamente discutida entre as equipes do dispositivo de conversação.

Em analogia com a experiência narrada, a literatura de saúde mental infantojuvenil, no que tange ao princípio da intersetorialidade, também nos adverte da necessidade de esclarecimento da função de cada setor para avanço da rede ampliada de cuidados (Couto e Delgado, 2010; Amorim e Dimenstein, 2009). De modo resumido, definese a clínica como atribuição da saúde mental e a proteção como função da assistência social (Couto e Delgado, 2010). Defendese que a dimensão da clínica é "o que especifica, orienta e valida a ação da saúde mental na prática intersetorial" (Couto e Delgado, 2010, p. 275).

Os autores defendem, como estratégia para articulação intersetorial, a construção de um "problema comum", representado por um caso com demandas complexas, que necessitam de uma atuação conjunta de diversos setores para sua resolutividade. Os autores enfatizam que "respostas calcadas em tradições setoriais ou estritamente especializadas não têm se mostrado satisfatórias" (Couto e Delgado, 2010, p. 272).

Na experiência narrada, reiteramos que o princípio da intersetorialidade se coloca como condição fundamental para a construção de uma rede de cuidados potente, para maximizar o uso de recursos materiais e humanos disponíveis, além de produzir respostas mais eficientes frente ao sofrimento psíquico e à fragmentação do cuidado (Couto et al., 2008).

 

Considerações Finais

A efetivação do cuidado em saúde mental infantojuvenil é um desafio urgente para consolidação da Reforma Psiquiátrica no Brasil. Entendese que o cuidado de crianças e adolescentes em sofrimento psíquico depende, fundamentalmente, da articulação de uma rede de atenção ampliada, representada pela interlocução dos serviços de saúde, educação, assistência social e justiça, a depender das necessidades dos casos, com vistas à integralidade do cuidado.

A construção de uma política intersetorial possibilita a produção de respostas mais eficientes diante das necessidades próprias da infância e juventude, em especial nas demandas que abarcam o sofrimento psíquico e a violação de direitos. O trabalho em parceria entre as equipes, tanto da saúde quanto de outros setores, permite compartilhar saberes, responsabilidades e maximiza o uso de diferentes recursos institucionais.

Na experiência narrada, buscou-se sustentar o cuidado singular de crianças e adolescentes em sofrimento psíquico que vivenciam a situação de acolhimento institucional, em especial quando essas condições dificultam ou impedem a sustentação de vínculos afetivos, o exercício de cidadania e/ou a condução de projetos de vida. Entendese que o acompanhamento desses casos deve privilegiar a construção de um saber sobre si no mundo, incitar a palavra, a responsabilização, sustentar as redes de relações e de espaços de continência e pertencimento.

Neste artigo buscou-se abrir um diálogo sobre as potências do cuidado em saúde mental infantojuvenil articulado em rede intersetorial. Defendese o apoio e investimento em ações que sustentem relações de trabalho colaborativas e corroborem para o desenvolvimento da intersetorialidade como diretriz orientadora e estratégia privilegiada de atenção.

Cabe ressaltar que os registros e análises feitas sobre a experiência do apoio matricial partiram do ponto de vista de profissionais do CAPSI, a partir de um recorte metodológico possível para a execução deste trabalho. Considera-se que diferentes pontos de vistas poderiam gerar entendimentos novos ou complementares sobre as situações.

 

Referências

Brasil. (2007). Clínica Ampliada, Equipe de Referência e Projeto Terapêutico Singular. Brasília: Ministério da Saúde.         [ Links ]

Brasil. (2014). Atenção psicossocial a crianças e adolescentes no SUS : tecendo redes para garantir direitos. Brasília: Ministério da Saúde.         [ Links ]

Brasil. (2011). Rede de Atenção Psicossocial. Portaria Nº 3.088, 23 de dezembro de 2011. Brasília: Ministério da Saúde.         [ Links ]

Brasil. (1990). Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei 8.069/1990. Brasília: Ministério da Saúde.         [ Links ]

Brasil. (2005). Caminhos para uma política de saúde mental infantojuvenil. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas, Secretaria de Atenção à Saúde. Brasília: Ministério da Saúde.         [ Links ]

Campos, G. W. S. (1999). Equipes de referência e apoio especializado matricial: uma proposta de reorganização do trabalho em saúde. Ciênc Saúde Coletiva, 4,393-404.         [ Links ]

Couto, M. C. V. & Delgado, P. G. G. (2015). Crianças e adolescentes na agenda política da saúde mental brasileira: inclusão tardia, desafios atuais. Psic. Clin., 27(1),17-40.         [ Links ]

Couto, M. C. V; Duarte, C. S.; Delgado, P. G.G. (2008) A saúde mental infantil na Saúde Pública brasileira: situação atual e desafios. Brazilian Journal of Psychiatry, 30(4),384-389.         [ Links ]

Couto, M. C. V. & Delgado, P. G. G. (2010). Intersetorialidade: uma exigência da clínica com crianças na atenção psicossocial. In Lauridsen-Ribeiro E. & Tanaka, O. Y. (Orgs.). Atenção em saúde mental para crianças e adolescentes no SUS. São Paulo: Hucitec, 432p.         [ Links ]

Couto, M. C. V. & Delgado, P. G. G. (2016). Presença viva da saúde mental no território: construção da rede pública ampliada de atenção para crianças e adolescentes. In Lauridsen-Ribeiro, E. & Lykouropoulos, C. B. (Orgs.). O CAPSi e o desafio da gestão em Rede. São Paulo: Hucitec, 261p.         [ Links ]

Delfini, P. S. S. & Reis, A. O. A. (2012). Articulação entre serviços públicos de saúde nos cuidados voltados à saúde mental infantojuvenil. Cad. Saúde Pública, 28(2),357-366.         [ Links ]

Delgado, P. G. G. (2015). O desafio da produção de conhecimento sobre a reforma psiquiátrica brasileira. Ciênc. Saúde Coletiva, 20(2),312.         [ Links ]

Lauridsen-Ribeiro, E. L. & Tanaka, O. Y. (2010). Atenção em Saúde Mental para crianças e adolescentes no SUS. São Paulo: Hucitec, 279p.         [ Links ]

Oliveira, M. F. A. P. & Mendonça, J. (2016). O CAPSi e a Rede Ampliada: intersetorialidade. In Lauridsen-Ribeiro, E. & Lykouropoulos, C. B. (Orgs.). O CAPSi e o desafio da gestão em Rede. São Paulo: Hucitec, 261p.         [ Links ]

Ribeiro, T. da C. C. (2002). Acompanhar é uma barra: considerações teóricas e clínicas sobre o acompanhamento psicoterapêutico. Psicologia: Ciência e Profissão, 22(2),78-87.         [ Links ]

Silva, E. R. A. (2004). O direito à convivência familiar e comunitária: os abrigos para crianças e adolescentes no Brasil. Brasília: Ipea/Conanda.         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1945). Desenvolvimento emocional primitivo. Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas. Rio de Janeiro: Imago, 2000, 218-232p.         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1958). A tendência antisocial. Da Pediatria à Psicanálise: obras escolhidas. Rio de Janeiro: Imago, 2000, 406-416.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 08/08/2020
Aprovado em: 15/12/2020

Creative Commons License