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Revista de Psicologia da UNESP

versão On-line ISSN 1984-9044

Rev. Psicol. UNESP vol.19 no.spe Assis dez. 2020

http://dx.doi.org/10.5935/1984-9044.20200021 

ATENÇÃO PSICOSSOCIAL ESPECIALIZADA: OS CAPS EM SUAS DIFERENTES MODALIDADES

 

Saúde mental da população negra: relato de uma relação terapêutica entre sujeitos marcados pelo racismo

 

Mental health of the black population: report of a therapeutic relationship between people marked by racism

 

 

Gabriella da Cruz Santos; Éllen Cristina Ricci

Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)

 

 


RESUMO

Este trabalho tem a proposta de relatar um processo terapêutico ocupacional, destacando o potencial da representatividade racial nas relações de atenção em saúde mental. Procuramos discutir os seguintes aspectos do tema: a construção do racismo no Brasil; a importância da formação profissional para atender a essa demanda; o reconhecimento e empoderamento dos negros; a compreensão da terapia ocupacional sobre o indivíduo, seu adoecimento e atividades humanas; e estratégias de intervenção voltadas para as especificidades da saúde mental da população negra. A partir dessa experiência, foi possível ao usuário participar ativamente de suas escolhas e projetos de vida, significando e transpondo para sua vida cotidiana experiências vividas no cenário terapêutico, permitindo a experimentação de novas formas de ser, fazer e estar no social.

Palavras-chave: racismo; saúde mental; terapia ocupacional; identidade racial.


ABSTRACT

This work has the proposal to report an occupational therapeutic process, highlighting the potential of racial representativeness in mental health care relationships. We sought to discuss the construction of racism in Brazil; the importance of professional training to care for this demand; the recognition and empowerment of black people; the understanding of occupational therapy about the individual, his illness and human activities; and intervention strategies aimed at the specificities of the mental health of the black population. From this experience, it was possible for the user to actively participate in his life choices and projects, meaning and transposing into his daily life, experiences lived in the therapeutic setting, allowing the experimentation of new ways of being, doing and being in the social.

Key words: racism; mental health; occupational therapy; racial identity.


 

 

Introdução

Durante o primeiro ano de prática do Programa de Residência Multiprofissional, inserida num Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) tipo III em Campinas - SP, um usuário me elegeu como sua terapeuta. E foi a partir desse encontro que me deparei com a necessidade de (re)pensar a minha atuação. Neste trabalho falo dele, mas falo de mim também que, enquanto terapeuta ocupacional residente, depareime com questões que igualmente me atravessavam.

É importante destacar que existe uma peculiaridade em ser negro no Brasil. Vivemos em um país em que, apesar de sua maioria ser constituída por pessoas negras e/ou miscigenadas, não se reconhece a existência do racismo. Ou, quando é feito, é um racismo sem racistas, sempre questionando a necessidade de se discutir a respeito.

O Conselho Federal de Psicologia (CFP, 2017) afirma que o racismo é uma estratégia de dominação que estrutura a sociedade pautada na suposição de que existem raças superiores e inferiores. Nessa escala hierárquica, ao grupo racial negro (preto e pardo) historicamente têm sido atribuídos os lugares mais desqualificados e, ao grupo racial branco, o topo, logo, o lugar ideal.

O Brasil foi a última nação das Américas a abolir a escravização1. Além de buscar dominar e controlar o corpo do escravizado, a elite utilizava estratégias psicológicas discriminatórias e preconceituosas para a manutenção do negro como inferior.

Para resistir a esse processo e buscar a liberdade, os negros arquitetaram fugas, revoltas em larga escala, suicídios, assassinatos, criação de quilombos... Desde sempre foram os negros que atuaram na luta pela liberdade, ao contrário do que foi transmitido historicamente, como sendo um presente por parte do grupo dominante.

Quando o cenário político já indicava que a abolição aconteceria, a elite nacional (incluindo o governo) teve medo de que o povo negro dominasse as terras brasileiras. Na tentativa de aplacar tal medo, a elite lançou mão principalmente de duas estratégias articuladas para continuar a rebaixar os negros: a importação e a adaptação de teorias racialistas elaboradas na Europa e a imigração maciça de brancos europeus. Com essas estratégias, o racismo no Brasil se estabeleceu (CFP, 2017).

 

Teorias racialistas e racismo

Com a abolição da escravização, ao menos no papel, os negros deixaram de ser objetos. Porém, paralelamente ao movimento abolicionista, surgiam novas correntes e produções teóricas que tinham como objetivo legitimar as diferenças e desigualdades sociais pela naturalização da ideia de diferenças biológicas (David, 2018).

A partir do século XIX, a cor da pele foi considerada como um critério fundamental e divisor de águas entre as chamadas raças branca, negra e amarela. Ao critério cor, outros critérios foram acrescentados, como a forma do nariz, dos lábios, do queixo, formato do crânio, o ângulo facial etc., para aperfeiçoar a classificação (Munanga, 2004).

Com os progressos realizados na própria ciência biológica (genética humana, biologia molecular, bioquímica), os estudiosos desse campo de conhecimento chegaram à conclusão de que, biológica e cientificamente, as raças não existem, e que se trata apenas de um conceito para explicar a diversidade humana e para dividila (Munanga, 2004).

A principal questão não é a classificação dos grupos humanos em função das características físicas, e nem a ineficácia do uso do conceito raça. A questão é que os naturalistas dos séculos XVIII e XIX, desde o início, atribuíram a isso uma hierarquização entre as chamadas raças, colocando uma relação intrínseca entre o biológico e as qualidades psicológicas, morais, intelectuais e culturais (Munanga, 2004).

Essa hierarquia que o racismo constitui coloca-se como irreversível entre superiores e inferiores. Pessoas brancas, pelo simples fato de serem brancas, são automaticamente vistas como tendo algo a mais, um diferencial. No caso do grupo racial negro, tal hierarquização existe desde a escravização, quando se preferiam os pardos aos pretos. Está enraizado no Brasil que é "menos pior" ser pardo do que preto (CFP, 2017).

 

Branqueamento e mito da democracia racial

Nas últimas décadas do escravismo, houve uma tentativa de diminuir o número de negros no país e de tornálos mais brancos. A estratégia foi instituir políticas imigratórias que incentivaram a vinda, principalmente, de alemães e italianos, e lhes concediam terras públicas, facilitando, assim, a concessão de propriedades para estrangeiros (algo regulamentado por lei). Além disso, tal população imigrante assumiu os postos de trabalho mais valorizados da época: a indústria fabril e a agricultura cafeeira (CFP, 2017).

O resultado foi jogar aquela imensa população negra liberta num processo de competição desigual com a mão de obra imigrante e branca. Sem nenhuma política pública reparadora, após a abolição, os negros foram incluídos de forma excludente no processo produtivo. Restaram-lhes os afazeres presentes nas regiões rurais economicamente decadentes, as atividades urbanas desqualificadas e as tarefas propiciadoras de risco de morte ou a própria morte (CFP, 2017).

A elite nacional buscou continuar a dominar psiquicamente o negro. Era preciso que o negro se embranquecesse no corpo e na mente. Esse processo era muito mais do que a necessidade de se criar biologicamente intermediários entre pretos e brancos - os pardos; significava mudanças comportamentais e culturais por parte dos negros, a fim de adotar normas, atitudes e valores associados ao universo branco com o intuito de ser reconhecido como tendo uma identidade racial positiva (CFP, 2017).

Especialmente a partir da década de 1930, o discurso ideológico do embranquecimento foi rearranjado pelo da "democracia racial", cujo principal mentor intelectual foi Gilberto Freyre. Desde então, investese na imagem oficial de um país que tem a sua miscigenação herdada pelos portugueses; que supostamente tem uma tolerância racial por, supostamente, ter tido um modelo escravocrata mais brando, ocultando, dessa forma, a violência que foi o processo de escravização no Brasil (CFP, 2017).

A ideia de democracia racial contribuiu (e contribui) para a produção de representações sobre uma suposta convivência harmoniosa entre brancas (os) e negras (os), ambos desfrutando de iguais oportunidades de existência. Contudo, essas representações são ideológicas e estão a serviço da manutenção de uma lógica social excludente que impossibilita o tratamento adequado de problemas sociais oriundos das relações raciais no Brasil (Domingos, 2005; Munanga, 2008) (CFP, 2017, p. 43-44).

O mito da democracia racial, que se estabeleceu como uma imposição política, impôs a proibição social de se falar em racismo. O mais difícil nesse embate é que, ao se tentar falar ou agir contra essa ideia - a de "não" falar em racismo -, tem-se sempre a contraposição de que se está tentando importar um problema que no Brasil não existe (Hasenbalg, 1996).

Ainda que a pessoa negra conheça a discriminação desde seus primeiros anos de vida, o outro nunca a declara ou a reconhece. O contexto a sua volta, muitas vezes, reproduz experiências de rebaixamento, enfraquecimento da auto-estima e desencorajamento. Diante dessa condição, é impossível negar que a longa exposição a essas situações não causa efeitos múltiplos de dor, angústia, insegurança, autocensura, rigidez, alienação, negação da própria natureza e outros, deixando marcas profundas na psique (Instituto Amma Psique e Negritude, 2008).

A omissão - tanto das instituições públicas em atender essas especificidades quanto dos profissionais de saúde - caracteriza o racismo institucional. Trata-se de uma prática extremamente grave, podendo ser considerada como a principal responsável pelas violações de direitos dos grupos raciais subalternizados (CFP, 2017).

 

Terapia Ocupacional e relações etnicorraciais

O raciocínio clínico da Terapia Ocupacional parte da ideia de que sua população alvo encontra-se marginalizada (definitivamente ou temporariamente), seja por fatores de ordem física e/ou psicológica e/ou social, cujo adoecimento resultou de fenômenos individuais, sociais, existenciais, aos quais são atribuídos diversos significados e, portanto, não estão desconectados de sua realidade (Benetton, 1994 e Barros, 2004).

De um modo geral, as intervenções terapêuticas ocupacionais, especialmente no campo da saúde mental, não exigem grandes e sofisticados equipamentos, mas uma tecnologia que deve se direcionar a compreender as necessidades do sujeito, a relevância do vínculo e da contratualidade; a dimensão da ocupação humana; o restabelecimento da autoestima e autoconhecimento, assim como da convivência e reapropriação do espaço e da disponibilidade para vivenciar novos desafios (Ballarin e De Carvalho, 2007).

Para a Terapia Ocupacional fundamentada nas abordagens da psicodinâmica, a atividade é um elo facilitador das relações entre os indivíduos/grupo/ terapeuta e favorece a elaboração de conteúdos externos e internos em direção ao processo de transformações pessoais (Costa, Almeida e Assis, 2015). Ao atuar junto à população negra, o terapeuta ocupacional busca intervir em aspectos que vão favorecer a constituição e a sustentação de uma identidade, resgatando a história do indivíduo, recriando-a em suas potencialidades, ressignificando eventos negativos e apostando em possibilidades mais potentes (Farias, Leite Junior e Costa, 2018).

Quando um indivíduo negro procura um profissional também negro, acredita-se que o faz por identificação, julgando que o profissional saberá ouvir e acolher melhor a sua queixa do que um profissional branco, além de sentir-se reconhecido e legitimado em seu discurso. O terapeuta negro pode representar a esse paciente um modelo de sucesso a ser seguido; pode fazer intervenções direcionadas ao fortalecimento e resistência daquele paciente com relação ao racismo e, com isso, causar impactos e mudanças na vida do paciente que procura a clínica com essa demanda de ordem identitária e de constituição de subjetividade (Geledés, 2017).

Coloca-se, então, como desafio aos terapeutas ocupacionais (e outros profissionais da saúde mental, negros e não negros) repensarem sua práticas; que reflitam se estão corroborando com o racismo institucional e estrutural ou se estão produzindo ações antirracistas e emancipatórias, que possibilitem aos sujeitos negros se conscientizarem, se empoderarem e florescerem (Farias et al., 2018).

Diante do exposto, neste trabalho pretendemos apresentar reflexões sobre o racismo nos contextos de vida de pessoas negras como produtor de adoecimento psíquico, a partir de um caso clínico; e abordar, também, reflexões a partir da relação terapêutica ocupacional estabelecida, atravessada pela minha experiência pessoal enquanto sujeito que também carrega marcas do racismo.

 

O caso de André

André é um homem negro, com 40 anos de idade na época em que o conheci. Divorciado, sem filhos. Nascido em uma cidade do interior de São Paulo, é filho mais novo do casal Maria e José, e tinha uma irmã cinco anos mais velha, chamada Ângela.

Ângela e André tinham uma boa relação. Ela era uma moça alegre, comunicativa, e desejava ser jornalista. Conseguiu ingressar e concluir o curso em uma universidade pública estadual, mas faleceu pouco depois (em 2003); foi encontrada morta num lago. André soube, tempos depois, que sua irmã viveu situações de extremo sofrimento durante a faculdade. Foi abusada sexualmente por um rapaz branco e rico (destaques feitos por André), engravidou e foi obrigada a fazer um aborto. Tais eventos fundamentam a crença de André de que a morte de sua irmã foi suicídio (e não afogamento acidental). Isso lhe custou sentimento de culpa e desconfiança, a partir de então.

Após o falecimento de Ângela, André mudouse para Campinas a convite de um tio para tentar reconstruir sua vida. Passou a trabalhar como garçom em uma empresa terceirizada dentro da Unicamp e, apesar de gostar do trabalho, experimentava cotidianamente situações de discriminação racial. Aos poucos foi desenvolvendo sintomas de pânico (vontade de vomitar, tontura, falta de ar), impactando seu desempenho no trabalho. Por causa de uma piora, foi afastado e posteriormente demitido.

Em 2015, foi encaminhado ao CAPS pelo Centro de Saúde de sua referência, em decorrência de tristeza profunda, pensamento e desejo de morte, e sintomas acentuados de pânico. Já possuía hipóteses diagnósticas de transtorno de personalidade e episódio depressivo grave. Desde o início teve dificuldades de se vincular.

 

Processo Terapêutico Ocupacional

Fazia tempo que ele não aparecia no CAPS. Estava cabisbaixo, evitava olhar nos olhos. A aba do boné que estava usando ajudava a esconder seu rosto, e a blusa marrom de mangas compridas camuflava o tom escuro da sua pele. Seu corpo era bastante esguio e sua postura cifótica, como se quisesse encolher-se para dentro de si mesmo. André andava com passos lentos e tão arrastados que parecia fazer um grande esforço para carregar seu corpo. Sempre em silêncio.

Estávamos em duas profissionais no reacolhimento. Como eu era a única desconhecida para ele, me apresentei. Disse meu nome, minha formação e o vínculo que eu tinha com o CAPS, visto que, naquele momento, era como residente em saúde mental pela Unicamp. Ao mencionar esse último aspecto, André, num ímpeto, levantou o olhar e o direcionou a mim. Direcionou, também, várias perguntas sobre meu vínculo com a nomeada universidade, uma vez que ele também estava inserido nela de alguma forma. Além disso, comentou que eu parecia sua irmã.

De uma figura apática e silenciosa, André se transformou numa pessoa curiosa, interessada, e sofrida. Aos poucos, foi conseguindo dizer que se sentia angustiado, desanimado e com pensamentos recorrentes de morte. Enquanto descrevia tais sentimentos e sensações, gesticulava com as mãos sugerindo que algo o apertava na região do peito, de tal forma que ele tentava arrancar, porém, não era tão palpável assim. Sua expressão facial era de dor. Os olhos estavam marejados.

Foi assim nosso primeiro encontro.

Os dados sobre a história de vida de André foram obtidos após muitos encontros e escuta atenta. Ele apresentava grande dificuldade em relatar aspectos anteriores ao seu adoecimento psíquico. Nossa vinculação foi permeada de dúvidas e testes por parte dele.

Procurei saber se era uma desconfortável para ele eu parecer com sua irmã, uma vez que me colocava à disposição para ser sua terapeuta. Ele negou, ainda que em vários momentos ao longo do processo eu percebia que ele me colocava nesse lugar fraterno. Desde o início também ponderei minha situação temporária no serviço (um ano). Isso precisou ser retomado algumas vezes e se mostrou extremamente importante.

André chegava aos atendimentos sempre com a mesma postura de quando o conheci. Iniciava a conversa dizendo "não estou bem. A semana foi ruim. Não fiz nada. Não conversei com ninguém. Ainda penso em morrer.".

Ele me dizia que se sentia esquisito diante de outras pessoas; olhava ao redor e sentia-se muito diferente, deslocado, "como se não fizesse parte desse mundo", nas palavras dele. Com frequência relatava sobre sua irmã (e sua morte), dificuldades interpessoais (situações no trabalho), e a morte como solução para o sofrimento. Esses temas ocuparam um lugar privilegiado na minha escuta.

Com certa frequência, também, direcionava falas de admiração sobre o lugar e os papéis que eu ocupava - "você é muito inteligente!", "as pessoas devem te respeitar muito!", "você tem irmão? Com certeza ele deve te amar".

Em poucos atendimentos André aceitava fazer atividades. Quando proposto, hesitava e/ou pouco se implicava. Dizia que ao longo da semana não tinha com quem conversar, portanto, nos atendimentos, era o que gostaria de fazer. Apesar disso, aos poucos, passou a trazer algumas atividades que tinha feito em casa. Dentre essas atividades estavam filmes, cartas e músicas. Os filmes sempre retratavam histórias de relação de confiança entre duas pessoas, assim como as letras das músicas. As cartas foram o recurso encontrado para externalizar os sentimentos desorganizados e sem sentido, segundo ele. E trazia nos atendimentos para que eu o ajudasse "a encontrar tais sentidos", dizia.

A partir de então, foi possível observar uma mudança sutil, porém importante, na postura de André e na maneira como ia trazendo os assuntos. A uma certa altura, foi possível abordar a forma como ele se colocava diante dessas dores, principalmente quando trazia a história de vida da irmã (para se comparar) e seu desfecho trágico (considerando esta também ser uma solução para si). Um tanto desse processo foi pautado na reflexão e nomeação das coisas que vivenciava, sentia e como reagia.

Em alguns atendimentos ele destacava medo, angústia e raiva, mas não conseguia relacionar esses sentimentos a algo específico. A forma de lidar com esse desconhecido era com agressões verbais (com os pais, principalmente), ou isolamento. Diante de algumas hipóteses colocadas sobre a vivência do racismo, André discordava e/ou mudava de assunto. Tal reação também era observada ao tentarmos pensar sobre os sentimentos negativos frente a tais vivências. Aos poucos, essas questões lhe pareciam ter sentido, sendo possível falarmos delas.

André foi relacionando seu sofrimento e adoecimento com as inúmeras situações de discriminação racial vivenciadas no trabalho (e ao longo da vida). Foi conseguindo apreender que muitas coisas eram algo maior, estrutural da sociedade, e não individual. Passou a descrever com detalhes e analisar de forma crítica cenas em que se sentiu ignorado, julgado, ridicularizado sem um motivo aparente.

Conseguimos discutir e refletir sobre as construções sociais racistas acerca do negro no Brasil. Colocavame no mesmo lugar que ele, enquanto sujeito negro que também vivenciava a violência do racismo, independente do lugar social que eu ocupava.

No final do ano, André conseguiu retornar ao trabalho, em um novo emprego, como garçom num restaurante italiano reconhecido internacionalmente. Dizia com entusiasmo como foi o processo seletivo, destacando sentir-se "seguro e competente"; percebia investimento nele, por parte da empresa. Estava vivenciando coisas novas, conhecendo lugares diferentes e se identificando com algumas pessoas.

Próximo à finalização dos atendimentos, André, diferente de antes, ia relatando sobre sua semana trazendo muitas novidades. Referia melhora dos sintomas ansiosos e também dos pensamentos de morte, embora sentimento de tristeza ainda fosse recorrente. Eu pontuava que mudanças significativas em sua vida estavam acontecendo e que alguns receios eram pertinentes, mas que ele estava conseguindo lidar com tudo isso de maneira saudável.

Em vários momentos André demonstrou preocupação com o encerramento do meu estágio, desejando que não acontecesse. Referia um incômodo de, após a minha saída, ter que contar sobre sua vida para diferentes pessoas que, segundo ele, "não vão entender o que eu falo". Tratava-se de um receio em continuar o tratamento com um profissional que não considerasse o racismo como causador de muitos dos seus sofrimentos. Tais questões foram acolhidas e discutidas sempre que apareciam.

 

Discussão

No Brasil não existem dados precisos sobre a prevalência dos transtornos mentais na população negra. Embora hoje possa ser observada a presença do quesito raça/cor em vários sistemas nacionais de informação em saúde, a análise desses dados ainda é incompleta (Brasil, 2016).

Apesar disso, é notável o aumento da exposição ao sofrimento psíquico que a população negra sofre devido à reestruturação do setor produtivo e à consequente diminuição do emprego, às precárias condições de vida, à discriminação racial, entre outros fatores, que podem gerar manifestações como ansiedade, ataques de pânico, depressão, ataques de raiva violenta e aparentemente não provocada, depressão, hipertensão arterial, úlcera gástrica, alcoolismo, entre outras (Da Silva, 2005).

Em tudo o que André referia, era possível perceber marcas que o racismo foi produzindo em sua vida. O racismo estruturado nas relações sociais faz isto: tende a anular qualquer potência do sujeito negro sobre sua existência real, sua ancestralidade, sobre sua criatividade de existir, sentir prazer e legitimar sua identidade racial (Costa, 1983). Dessa forma, é possível afirmar que o racismo, enquanto relação de poder e sustentação de privilégios, pode gerar o sofrimento psíquico (David, 2018).

E, nesse sentido, temos observado um movimento crescente de análise das problemáticas geradas no interior das relações sociais sendo convertidas em patologias, pois os comportamentos legítimos de enfrentamento do racismo são patologizados. A terapia ocupacional brasileira tem produzido, nesse contexto da discussão sobre os processos de adoecimento e dos significados a eles relacionados, análises críticas da medicalização da sociedade. Dessa forma, o adoecimento é entendido como resultante de fenômenos individuais, sociais, médicos e existenciais (Barros, 2004).

Diferente de outras áreas da saúde, para a terapia ocupacional, a exclusão social (neste caso, decorrente do racismo) é a problemática de partida. O diagnóstico em terapia ocupacional é diferente; é um diagnóstico situacional (Benetton, 1994). Quando um usuário é considerado grave, está assim não só pelo diagnóstico médico, mas principalmente pela repercussão social acarretada pelo seu quadro.

No processo terapêutico ocupacional interessa o que as pessoas fazem, como fazem, como usam o tempo, aonde vão, quais são seus desejos, como o contexto social facilita ou dificulta o engajamento do indivíduo em diferentes atividades (Salles e Matsukura, 2018). As intervenções com André foram construídas por meio dessa significação sobre seu jeito de ser para que ele não precisasse esperar pela mudança social para nela se inserir. Ele mesmo se tornaria agente dessa mudança (Benetton, 2010).

Compartilhar vivências minhas sobre racismo, ou responder algumas perguntas/ comentários pessoais que de alguma forma se relacionavam com essa temática também se mostraram relevantes para o seu tratamento. Segundo Kahtuni (2005), a qualidade da interação estabelecida (transferência e contratransferência) durante um processo terapêutico está diretamente vinculada ao clima de confiabilidade e previsibilidade que o terapeuta pode oferecer e que o paciente ansiosamente espera encontrar. No processo terapêutico ocupacional, os fenômenos transferenciais podem ser parte dos procedimentos desde que a relação triádica (terapeuta, paciente e atividade) esteja estabelecida; e desde que haja, por parte do terapeuta ocupacional, o reconhecimento e compreensão da transferência para pensar no seu manejo (Ceccato, 2012).

O fato de André sempre dizer que "não fazia nada", mas compartilhar comigo algumas de suas produções, nos convida a pensar a atividade como algo que ultrapassa a ideia de atividade terapêutica, ou do mito da atividade terapêutica, para pensar a atividade humana como território existencial, onde o tempo todo estamos em atividade; efetivamente, em múltiplas atividades. São acontecimentos de vida, ligadas às necessidades (seja do ponto de vista da sobrevivência, do crescimento, da sociedade, da cultura etc.) e sempre plenas de sentidos; sentidos de si no mundo (Quarentei, 2007).

Segundo Winnicott (1969, 1994), a comunicação também pode ser verbalmente silenciosa tanto em sua transmissão como em sua recepção, mas ela está ocorrendo constantemente, modelada em sua sonoridade, gestos, contatos físicos e silêncios. Na terapia ocupacional a comunicação se dá na articulação entre fazer e falar sem que se interprete nenhuma dessas duas formas, pois aqui se trata de ocupar o espaço transicional da teoria winnicottiana e abrir a possibilidade de caminhar por trilhas associativas; trilhas essas que são construídas a partir das associações entre as atividades realizadas e as falas a elas referidas, que levam ao caminho da simbolização (Benetton, 1991).

Como sugere Benetton (1994), o setting da terapia ocupacional deve ser um local que possibilite o fazer de múltiplas atividades e, como em qualquer situação onde há realizações, comporta produtos acabados, inacabados, abandonados, destruídos, resgatados, trazidos de fora, enfim, com a finalidade de receber quem lá está, da maneira que for possível. Tudo isso sustentado por uma terapeuta ativa e observadora de desejos e necessidades do paciente, que poderá trabalhar sobre uma transferência positiva.

Nos atendimentos finais, resgatamos todas as coisas realizadas ao longo do processo e construímos uma trilha associativa. Através dessa técnica de análise de atividades na terapia ocupacional, é possível o sujeito alvo se apropriar de sua história e criar possibilidades de novas organizações em seu cotidiano (Ceccato, 2012).

Acolhendo as questões emergentes, possibilitando o reconhecimento das vivências de exclusão decorrentes do racismo, auxiliando na construção e implementação de resolução de conflitos, fortalecendo a autoestima por meio da identificação de recursos pessoais e profissionais, André pôde participar mais ativamente das escolhas de seus projetos de vida, significando e transpondo para seu cotidiano experiências vividas no setting terapêutico. Foi possível que ele experimentasse novos jeitos de ser, fazer e estar no social.

Compartilhando a compreensão de Souza (1983), uma das formas de exercer autonomia é possuir um discurso sobre si mesmo. Discurso esse que se faz muito mais significativo quanto mais fundamentado no conhecimento concreto da realidade.

 

Considerações finais

Buscamos neste trabalho destacar a significância de um (a) terapeuta negro (a) envolvido nesse processo de cuidado, mas é importante ressaltar que essas questões não dizem respeito somente a terapeutas negros. Todo e qualquer terapeuta precisa atentar para as especificidades da população negra, buscar aprimorar a prática, se rever, a fim de não reproduzir o racismo institucional, a exclusão e a negligência.

A relação terapêutica relatada me afetou de diferentes formas e demonstrou o quanto legitimar a dor e o sofrimento do sujeito pode transformálo; o quanto considerar o impacto do racismo na saúde mental pode ser suficientemente transformador.

No Brasil, nascer com a pele preta e/ou outras características negroides e compartilhar de uma mesma história de desenraizamento, escravização e discriminação racial não organiza, por si só, uma identidade negra. Da mesma forma, apenas a presença de profissionais negros(as) nos serviços de saúde não garante a potencialidade dos encontros e dos manejos terapêuticos.

Nesse sentido, algumas considerações são importantes: desnaturalizar o preconceito e gerar identificação negra positiva podem configurar-se em ações de prevenção e promoção de saúde. Não afirmamos que há um modelo específico de cuidado em saúde mental para a população negra, assim como não consideramos que o efeito da violência racista sempre promoverá doenças, mas, quando profissionais de saúde consideram os efeitos negativos do preconceito e da discriminação racial, o sujeito se sente acolhido no seu sofrimento.

 

Referências

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Recebido em: 18/08/2020
Aprovado em: 15/12/2020

 

 

1 Optouse neste trabalho por utilizar o termo escravização/ escravizado(a), entendendo que é um sistema de dominação que transforma aquele considerado diferente e inferior em escravizado; não se nasce escravo, torna-se por meio de opressão (CFP, 2017).

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