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Revista de Psicologia da UNESP

versão On-line ISSN 1984-9044

Rev. Psicol. UNESP vol.19 no.2 Assis jul./ez. 2020

http://dx.doi.org/10.5935/1984-9044.20200025 

ARTIGO

 

A-vocação melancólica*

 

A-melancholy vocation

 

 

Jean-Michel Vives; Paula Montanheiro Barioni; Gustavo Henrique Dionísio

 

 


RESUMO

O autor se propõe a compreender as manifestações melancólicas à luz de uma disfunção no circuito pulsional invocante que não permite que o sujeito "seja ouvido". A hipótese é que a dinâmica de invocação, na própria origem do nascimento do sujeito psíquico, teria sido invalidada deixando o sujeito invadido por um grito que não poderia ser assumido pelo Outro auxiliar.

Palavras-chave: psicanálise; melancolia; pulsão invocante


ABSTRACT

The author proposes to understand the melancholic manifestations in terms of a dysfunction in the evocative drive circuit that does not allow the subject to "be heard". The hypothesis is that the invocation's dynamics, at the very origin of the birth of psychic subject, would have been invalidated, leaving the subject invaded by a shout that could not be assumed by the auxiliary Other.

Key words: psychoanalysis; melancholia; evocative drive


 

 

O chamado/a convocação e a melancolia

Elvira, uma paciente de mais ou menos 30 anos de idade e em análise há três, traz em sessão da seguinte situação: "Meu filho encontrou uma foto minha na casa dos meus pais de quando eu estava na escola maternal. Devia ter uns cinco anos de idade. Era uma fotografia de escola. Ele a pegou e a pendurou no quarto dele, na casa do seu pai. Eu não sei o porquê, eu não tenho muito interesse por fotos de família, muito menos por aquelas que me representam, mas eu a peguei". Após um silêncio, continua: "Ela me emociona muito e, de vez em quando, eu a aperto bem forte contra mim mesma, ou até mesmo a beijo". Ela descreve a foto em seguida: "Eu fui fotografada em uma pose bem pouco natural, como faziam na época, segurando um aparelho telefônico. Eu estou com um olhar extremamente triste, como se, nesta idade, eu já tivesse consciência que por mim não haveria jamais alguém para responder à chamada". Seguem-se várias sessões de análise em que Elvira vai fazer uma releitura da sua história a partir dessa problemática acerca da chamada. Nessa ocasião, ela traz um fato extremamente surpreendente. Sua mãe é de origem estrangeira, e mesmo que Elvira tenha sido apresentada a essa língua não por sua mãe, mas por sua avó materna, ela é perfeitamente bilíngue. Inclusive trabalhou alguns meses no país de origem de sua mãe. Entretanto, mesmo falando as duas línguas, Elvira não havia jamais percebido que seu sobrenome tem um duplo sentido. Sempre privilegiou um deles e não havia jamais "pensado" que esse sobrenome também pode ser entendido como "você chama". Diante da surpresa, seguirá a ideia de que o nome que ela escolheu para seu filho reenvia, da mesma maneira, na língua materna, a essa dimensão do chamado.

A última tentativa de suicídio de Elvira, que a levou à análise por insistência das pessoas que a rodeiam, mais que por uma decisão pessoal, ocorreu após uma chamada feita por ela que ficara sem resposta. A paciente diz: "A ruptura, esta eu sei viver". De fato, ela frequentemente rompe suas relações com brutalidade e sem grandes dificuldades, mas é incapaz de se confrontar com a não-resposta quando ela chama. Ela própria, entretanto, se coloca em posições inacreditáveis só para poder responder a um chamado quando dirigido a ela.

Uma outra paciente, chamada Ariane, me dizia: "Já fui em direção aos outros, mas não pude falar com eles. Não acredito que possam me escutar". Ariane, 28 anos de idade, veio consultar um analista para tentar ultrapassar um sentimento de vaidade que invade regularmente todos os seus relacionamentos, principalmente amorosos e profissionais. Para ela, tudo é consequência de um esforço que a esgota. "Nada vai por si só, nada é simples. O que parece fácil para os outros, para mim é incrivelmente inacessível", surpreende-se ela em nosso primeiro encontro. Frequentemente, ao longo das sessões, Ariane experimenta uma sensação de estar distante de tudo o que a cerca, sensação esta que ela define como "desafetação". Nesses momentos, o processo associativo se interrompe e é substituído por um branco que se expressa por um silêncio extremamente compacto. Face a isso, quando eu fico por muito tempo silencioso, Ariane demonstra preocupação em saber se não estou dormindo, que não "desafetei", de alguma forma, sua realidade rompendo o contato. Contudo, ela não tenta me contatar nesses momentos e pode esperar muitos meses antes de poder me falar sobre o assunto. Tanto para Elvira como para Ariane, a realidade parece ser uma enorme e generalizada decepção, emboscada fundamental diante da qual elas não podem se deixar levar. Uma "verdade verdadeira", para retomar os termos de Ariane, até parece existir, mas não é a mesma que elas vivem, e de qualquer modo é algo inalcançável. Então, por que se arriscar e se confrontar à falta do e no Outro, tentando invocá-lo? Ariane e Elvira parecem ter escolhido não somente se manterem aquém de qualquer desejo mas também aquém de toda e qualquer demanda.

As dinâmicas subjetivas, claramente melancólicas, de Elvira e de Ariane me conduziram a tentar reinterpretar - além do desafio clássico da impossibilidade permanente de um sujeito fazer o luto do objeto perdido (Freud, 1915/1994, p. 261-280) - a problemática melancólica a partir do posicionamento do sujeito no circuito da invocação. Isto é, demonstrar como a dinâmica da invocação, ou chamamento, se encontra inválida no momento da constituição psíquica do sujeito, o que tornaria problemático o investimento na realidade e a articulação de uma demanda.

Em um primeiro tempo, tentarei elucidar a articulação do surgimento do sujeito na constituição do recalque originário e da pulsão invocante, para em seguida identificar os elementos que podem conduzir à "escolha" melancólica, o que se pode entender a partir do que proponho como "a-vocação" melancólica. O recurso a este neologismo "a-vocação" nos permite desde já entender, graças ao equívoco, a ausência:

- de uma voz articulada e, então, coberta pela palavra - o objeto "a" voz não sendo completamente extraído, e

- de uma vocação subjetiva que se exprima com a implementação da corrida ao desejo.

O melancólico seria menos privado de uma voz (em relação a 0como se vive essa privação na neurose) ou invadido pela voz do Outro (como no caso da psicose), como suspenso a um grito que parece não poder se transformar em chamado.

 

A respeito do recalque originário

Se a psicanálise, em uma primeira parte da sua história, foi considerada como uma hermenêutica do inconsciente -apesar de certas restrições freudianas, tais como a designação do "umbigo" do sonho, em Interpretação dos sonhos, desde 1900 -, a cura do "Homem dos lobos" (Freud, 1914/1994) faz subentender que a reconstrução e a rememoração da cena primitiva irão conduzir Freud ao reconhecimento de um buraco no saber inconsciente do sujeito. É esse buraco real no simbólico que o conduzirá à elaboração do conceito enigmático de recalque originário que irá modificar profundamente a teoria e, consequentemente, a prática analítica.

A elaboração desse conceito, que perdura por mais de trinta anos, tem suas raízes no Ensaio para uma psicologia científica (1895/1996), na carta número 52 enviada a Fliess em 06/12/1896 (1986/1996). Em seguida, receberá uma formulação mais precisa nos dois textos de 1915, "O inconsciente" e "O recalcamiento", componentes da Metapsicologia (1915/1994), completando-se com o texto sobre A negação (1925/1992). Retomemos as grandes articulações do percurso freudiano tal como Henri Rey-Flaud (2002) nos permite detectar.

Em 1895, Freud descreve o surgimento do sujeito da seguinte maneira: originalmente, o infans é amputado de uma parte de si mesmo em consequência da expulsão do desprazer produzido pelas necessidades vitais elementares. A fome nos mostra o modelo desse processo: o objeto específico (seio materno), que apazigua a tensão desagradável, será de sua parte incapaz de extinguir a fonte da necessidade, necessidade esta que constitui no sujeito um foco de desprazer irredutível e sentido como um nó estrangeiro. Em razão de sua característica inassimilável, esse nó será expulso. Essa parte expulsa e perdida deixa, porém, como marca de seu desparecimento, os "sinais de percepção" dos quais Freud fala na carta 52 a Fliess. Convocados a registrar a perda do objeto que o sujeito jamais possuiu (pois é do próprio entrincheiramento desse objeto que o sujeito pode advir), tais sinais são as primeiras marcas de um corte. Em 1895, Freud demonstra como o infans, diante do "complexo perceptivo do Outro-semelhante" (Nebenmensh), se esforça para transferir elementos desse complexo para experiências vividas em seu próprio corpo. No entanto, esse empreendimento não funciona, ou falha diante de um certo número de "traços novos e incomparáveis", que acabarão sendo irredutíveis ao "si-mesmo" e constituem a essência organizada e estável do Outro, fora da representação: a Coisa (Das Ding). O complexo perceptivo desse Nebenmensh encontrase, então, originalmente dividido em dois: uma parte que pode ser levada a uma espécie de memória corporal, enquanto outra parte mostra-se refratária a toda e qualquer investida da percepção. Esse ponto não apreensível pela percepção - digamos, um ponto cego - torna-se a condição própria de toda percepção, pois se fosse dado ao sujeito perceber, tomar completamente o Outro, ou seja, se o que é percebido fosse a contrapartida perfeita do real, o sujeito se confundiria com esse real e reencontraria um estado de gozo absoluto. Estado esse que Freud é levado a supor como a origem do sujeito e diante do qual o sujeito mantém uma nostalgia. Assim, aparecem uma primeira diferença e uma primeira memória imemoriável que delimitará o espaço da Coisa. Não haverá rememoração desse ato, mas necessidade de comemoração. A possibilidade mesma do vir a ser sujeito é, desse modo, solidária da inscrição desses primeiros sinais: um fracasso na consignação desses sinais, correlacionado a uma falha dessa perda primeira conduzem a um destino psicótico (Freud, 1895/, p. 365-6).

Assim, diversos destinos desenham-se em função da relação que o sujeito-a-advir possui em relação à Coisa.

Confrontado à perda da Coisa, o neurótico não se resigna e parte para sua conquista; o perverso a recusa; o psicótico nunca a perdeu; já o melancólico tentaria, quanto a isso -proponho aqui uma hipótese -, não "se fazer nada", o que resultaria na perda e vazio da Coisa.

Num primeiro tempo, então, o infans é colocado diante de uma "escolha":

1) Ele pode fazer a "escolha" de rejeitar o corte, isto é, a escolha da recusa perante a consignação escritural da perda do objeto primordial pelos sinais de percepção. Tal escolha, que exprime uma rejeição primeira da perda, destina o sujeito a um espaço psicótico radical.

2) O sujeito pode, contrariamente, fazer a escolha de aceitar o corte como registro da perda do objeto, o que dá o modelo do que será mais tarde, no momento do juízo de existência, o recalcamento originário. Esta segunda escolha traduz uma primeira inscrição no simbólico, e assim uma primeira integração da falta.

É aqui que eu situaria o momento da "escolha" melancólica. Nós não estamos mais do lado da psicose - já que houve o registro da perda, embora nem por isso estejamos do lado das neuroses de transferencia, pois o sujeito não parte em busca de outra "Coisa". Nesse sentido, Elvira apresenta, desde o início de sua cura, um sintoma bastante surpreendente que pode ganhar luz diante da proposição precedente: quando perde um objeto, ela não o procura, convencida de que não saberia reencontrá-lo. O objeto desaparecido torna-se perdido e não se saberia reencontrá-lo. Não que Elvira não tenha "atingido" o estádio da permanência do objeto; acontece que aqui o objeto é completamente tributário de suas coordenadas espaço-temporais. Essa impossibilidade é analisada por Darian Leader da seguinte maneira:

Desde que Piaget começou a desenvolver suas pesquisas sobre a busca ativa do objeto, ele se confrontou com um estranho fenômeno. Seu filho de nove meses estava sentado no sofá, entre uma colcha e uma peça de roupa. Piaget retira, então, repetidas vezes seu relógio do pulso e o coloca sob a colcha. O menino ia procurá-lo todas as vezes. Em seguida Piaget coloca o objeto embaixo da peça de roupa, sob o olhar atento de seu filho. Nesta ocasião, contudo, ao invés de procurar o relógio sob a peça de roupa o menino ainda ia buscá-lo sob a colcha. Pode-se interpretar este 'erro' como uma insuficiência do desenvolvimento, mas também se pode, do ponto de vista psicanalítico, afirmar que o filho de Piaget tinha entendido a questão fundamental do desejo humano: existe uma diferença entre um objeto e o lugar que este ocupa, como nos mostra o próprio ato da sublimação (Leader, 2003, p. 117).

Tudo acontece como se, contrariamente à proposta freudiana de que o objeto não é encontrado, mas reencontrado, o melancólico, tal como na cena com o filho de Piaget, não pode vislumbrar os reencontros a não ser dentro das coordenadas espaço-temporais que foram as do encontro originário.

Esse espaço, que não se resume às psicoses e neuroses simplesmente, nos conduz menos aos chamados estados-limite do que para as psiconeuroses narcísicas, tais como Freud as apreende em 1924.

Ainda que o termo psiconeurose narcísica tenda ao desaparecimento hoje em dia, parece-me importante reintroduzi-lo como no uso proposto por Freud em 1924, permitindo assim extrair a melancolia do campo da psicose.

Nós podemos, entretanto, postular que devem existir igualmente afetos que têm por fundamento um conflito entre o eu e o supereu. A análise nos dá o direito de admitir que a melancolia é uma espécie deste grupo, e assim nós reivindicaríamos para tais perturbações o nome de 'psiconeuroses narcísicas'. De fato, isso não está em desacordo com nossas impressões, o que permite colocar estados como a melancolia à parte frente as demais psicoses (Freud, 1924/1992, p. 6).

Em seu texto, Freud caracteriza as psiconeuroses narcísicas como um conflito entre o eu e o supereu, de modo a situar a melancolia menos como uma estrutura do que como um estado. Essa reflexão teórico-clínica foi finamente acompanhada por M.-C. Lambotte (2003), que especifica a figura da negação característica do melancólico sob a modalidade do que ela nomeia como "denegação da intenção". Minha aproximação da condição melancólica se inscreve na sequência desses trabalhos, que parecem de extrema importância em vista da compreensão metapsicológica desse afeto a ponto de nos fazer repensar os desafios quanto à direção da cura.

 

Do ponto cego ao ponto surdo

Retomando o percurso marcado por Henry Rey-Flaud em Le démenti pervers, podemos afirmar que o recalcamento primordial se apoia numa representação particular excluída da cadeia das representações e arrematando-a de sua própria forma. O inconsciente está marcado por uma mancha cega que sela, sobre um esquecimento sem retorno, a própria origem do sujeito. O recalcamento originário separa o sujeito de sua origem. A fronteira não se instala entre o sistema inconsciente e os sistemas pré-consciente e consciente, mas entre um inconsciente originário (Unerkannte - sempre não reconhecido, como traduzirá Lacan) e um inconsciente representativo solidário do sistema pré-consciente-consciente que se torna assim sua delegação no mundo - o conjunto constituindo o "eu/moi" da segunda tópica.

O que Freud apresentará como postulado necessário, em 1915, na ocasião da publicação de seu texto sobre O recalcamento implica, ao princípio do sistema representativo, a validade de uma representação singular, originalmente recalcada e à qual se fixará a pulsão. Freud nomeia essa representação Vorstellungreprasentanz, que se pode traduzir como o representante da representação, segundo a proposição de Lacan. É essa representação que, ao proteger a cadeia significante em seu próprio padrão, permite a implantação da referida cadeia.

Um "primeiro" significante recolhe os primeiros signos da percepção do Outro sob comando do representante da representação que, antes de ser representação de um objeto, garante a "representância" do padrão de representação da Coisa.

Quinze anos mais tarde, o ensaio sobre a Negação retoma a questão do surgimento do sujeito demonstrando como este último é arrancado do real, no julgamento de atribuição, por meio da inscrição de uma série de marcações que convém conceber como radicalmente fora da representação. Os primeiros recortes atributivos, descritos em termos de pulsão oral, operam uma série de partituras binárias no real, entre bom e mau. Essa operação constitui a matriz da introdução do sujeito no significante, e a tomada efetiva do sujeito na linguagem vai intervir com a chegada do "julgamento de existência" quando um primeiro significante será chamado para garantir a representatividade dessas primeiras marcas.

A divisão descrita em 1925 implica um resto irredutível. Assim se cria um espaço de falta que desencadeia a cadeia de representações que circunscreve, junto com o significante, o lugar onde a Coisa foi perdida, criando então um espaço vazio. O vazio é uma delimitação feita no real: ele não pode ser pensado sem se referir à noção de um continente - como indica o exemplo do vaso que Lacan (1960/1986) empresta de Heidegger no seminário VII - que irá bordejar esse primeiro nó inominável da subjetividade, demonstrando que é pela suposição desse vazio que o infans se desprende do real e se encontra introduzido na linguagem. A estreia primordial do ser, a perda dos objetos a,1 para Lacan, é o que faz com que o humano passe do todo ao não-todo, pois o vazio assim criado produz as condições da emergência do sujeito.

É nesse nível que eu proponho a hipótese da constituição, no seio da psique, de um ponto surdo. Ponto surdo, hipotético assim como o recalque originário, mas uma hipótese que me parece necessária para compreender os desafios da subjetivação ligados ao circuito da pulsão invocante. Ponto surdo que eu definiria como o lugar onde o sujeito, depois de ter entrado em ressonância com o timbre originário, deverá poder se fazer surdo para falar sem saber o que diz, ou seja, como sujeito do inconsciente.

Freud pôde criar a hipótese de que a constituição do campo visual necessitava da exclusão de qualquer coisa que implicaria a constituição de um "ponto cego". Nessa medida, afirmou nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade: "O velamento progressivo do corpo que ocorre em paralelo com a civilização mantém acordada a curiosidade sexual, a qual aspira completar por si o objeto sexual revelando suas partes escondidas" (Freud, 1905/1992). Como lembra Darian Leader (2003, p. 22), em Faut-il voler la Joconde?, para Freud, nossa entrada na civilização exigiria a exclusão de uma parte do corpo, seria o preço a pagar e a condição de nosso prazer de olhar. O passo suplementar que Lacan nos permite dar é que o elemento excluído não é necessariamente a realidade dos órgãos genitais, mas sobretudo esse objeto que é o olhar.

Antes de ver, o infans é olhado de todas as partes, e esse olhar é tão intrusivo que se torna difícil perceber de onde vem. Esse elemento permite compreender a dimensão maléfica que é geralmente associada ao olhar: somos olhados sem saber de onde nos olham. O infans é jogado, desde sua chegada ao mundo, em um espaço panóptico. Para poder olhar e fazê-lo com prazer, o sujeito deve se desfazer do olhar do Outro: não mais somente ser olhado, mas olhar (dimensão ativa da pulsão escópica) ou se fazer ver (dimensão ativa na passividade, o que se pode chamar de passivação da pulsão escópica). Se a dimensão do visual é estruturada por uma ausência no seu campo, sugiro a hipótese de que o campo sonoro se organiza por sua vez em torno de um ponto surdo.

Ponto surdo cuja constituição parece, contudo, mais problemática que a do ponto cego. De fato, se o bebê pode desviar seu olhar, ele não poderá fazer o mesmo com relação ao seu ouvido. Se Freud teve a tendência de privilegiar a questão da alimentação na relação do infans com o Outro primordial, as pesquisas em psicologia do desenvolvimento demonstram que um tempo extremamente importante no momento da alimentação era consagrado ao fato do olhar dirigido à mãe, e que esta podia tornar-se ansiosa se o bebê recusasse essa troca de olhares. Desviar-se do seio poderia ser assim uma forma de mostrar sua subjetividade, assim como desviar o olhar pode ser outra. Porém, não se pode desviar o ouvido, que não possui esfíncter. Lacan menciona, no Seminário XI, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise: "As orelhas são no campo do inconsciente os únicos orifícios que não podem se fechar". Diante da voz do Outro não há escapatória. Talvez seja essa particularidade que dê à voz esse lugar preponderante no fenômeno da alucinação. A partir daqui, podemos avançar na ideia de que a constituição do ponto surdo não tem qualquer ligação com a função corporal, mas se estabelece como efeito de uma operação de linguagem: a metáfora. O que é bem o caso do recalcamento originário. Sustentar a hipótese do ponto surdo permitiria, assim, rever, no campo sonoro, a dinâmica do surgimento do sujeito no tempo de constituição do recalque originário.

 

O surgimento do sujeito na sua relação com a voz do Outro

Retomemos agora o surgimento do sujeito em sua articulação à voz do Outro.

O que faz do grito um chamado? É o acolhimento que este recebe do Outro, ou seja, a recepção que o Outro dá ao grito. Tal é a tese de Lacan em Remarque sur le rapport, de Daniel Lagache:

Antes [o sujeito] tem prazer em reencontrar as marcas de resposta que foram potentes em fazer do seu grito um chamado. Assim, elas ficam circunscritas na realidade do traço do significante, estas marcas onde se inscreve o 'super poder' da resposta. Não é em vão que chamemos essas realidades de emblemas. Este termo é nominativo. É a constelação destas insígnias que constitui o Ideal do Eu para o sujeito (Lagache, 1960/1966, p. 647-684).

De um lado, existe um emissor que se ignora como tal - o infans - e, de outro, um receptor-outro útil, que se posiciona como tal imediatamente. Este vai se transformar em emissor: tomada de uma "violência interpretativa" (Aulagnier, 1975), a mãe interpreta o grito como uma suposta palavra deste infans, que ela coloca, desde o seu nascimento, em posição de sujeito-suposto-falante. A mãe notifica a recepção desse grito e cria a hipótese de que isso quer dizer alguma coisa, apresenta-se o sujeito ao mundo. Reconhecemos aqui a definição de significante: o que representa o sujeito para um outro significante. O grito do infans não representa o infans para a mãe; neste caso, estaríamos no registro do signo; mas o grito representa o sujeito para o conjunto dos significantes que virão. A resposta do Outro - a recepção que ele reserva ao grito puro transformando-o em grito para, notificando-o - vai transformar então o grito, que se torna significação do sujeito, a partir do significante do Outro. Nós encontramos aí os três tempos do circuito pulsional descrito por Freud, no circuito da pulsão escópica, em Pulsões e seus destinos (Freud, 1915/1994, p. 163187).

a) Ser escutado: esse momento mítico corresponderia à expressão do grito. Nesse estádio, o sujeito ainda não existe. Estaríamos situados no nível do que Lacan propõe na ocasião de seu Seminário X, A angústia, sob a enigmática formulação de sujeito do gozo. Essa posição ativa será percebida como tal somente após o encontro com o Outro.

b) Escutar: esse segundo tempo corresponderia ao tempo da aparição do Outro da pulsão que responde ao grito.

c) Se fazer escutar: esse terceiro tempo seria o tempo durante o qual o sujeito-a-advir se faz voz, implorando pelo ouvido do Outro para obter uma resposta.

Eu situaria a assunção do ponto surdo junto à aparição do Outro que interpreta: a interpretação significante do grito vela a dimensão real da voz para a qual o sujeito se faz surdo, para poder acessar o status de sujeito falante. O terceiro tempo será o da posição subjetiva de onde o sujeito constitui um Outro não surdo suscetível de escutá-lo. Aqui poderia se situar a questão melancólica. Tudo acontece como se o sujeito melancólico renunciasse a se fazer escutar: o ponto surdo teria sido bem constituído (nós estaríamos fora do campo da psicose), mas a reversão da pulsão e a criação de um novo Outro da pulsão seriam dificultados - a demanda neurótica subentendida pela voz não estaria totalmente instalada. O melancólico estaria fisgado por uma voz que não se faz escutar.

O grito do infans é ouvido pela mãe como sendo um chamado, no qual ela se agarra para ler uma demanda. É a sua voz que é interpretada aqui como significante. A voz é tomada como objeto primeiro, objeto perdido, a partir do momento em que a mãe dá um significado a essa voz; a voz enquanto objeto é perdida por detrás do que significa para o Outro. A voz como objeto é esse primeiro objeto perdido, aquele que cai com a formação do significante. O objeto perdido não é inicialmente o seio, como se diz frequentemente, mas sim a voz, pois, para que o objeto oral possa ser considerado como objeto, é preciso que haja significante. O sujeito que era invocado pelo som originário irá se tornar, preso à linguagem, um invocador. Com essa mudança de situação, o sujeito conquista a sua própria voz e, segundo a formulação de Lacan, vai "se fazer escutar". Para que ele possa se fazer escutar é preciso, então, não somente que ele cesse de escutar a voz originária - justamente o que o psicótico não consegue realizar - mas, além disso, deve poder invocar, ou seja, fazer a hipótese de que existe um não-surdo para escutá-lo. Pois bem, é essa a hipótese que o melancólico parece não conseguir sustentar. O "se fazer escutar" corresponde à "passivação" da pulsão invocante. Não se trata aqui de "ser escutado", como se passa no momento em que o Outro primordial respondeu ao grito, ou o "escutou", como na ocasião da resposta que o Outro deu a esse grito, mas "se fazer escutar". Ou seja, a criação, no momento de inversão da pulsão, nesse movimento de passivação, de um novo sujeito, tal como propõe Freud em Pulsão e destino das pulsões. Nesse texto, Freud propõe analisar a atividade pulsional a partir do par de opostos pulsionais, cujo objetivo é "olhar e se mostrar". Descrevendo o destino da pulsão escópica, sob o modo inversão-reversão desse par pulsional, é num terceiro tempo, isto é, com a busca de uma satisfação em ser olhado, que Freud emprega pela terceira vez o termo de sujeito na ocasião da escrita do artigo.

a) o: olhar, como ação dirigida à um objeto estrangeiro; b) o abandono do objeto, a reversão da pulsão de olhar uma parte do próprio corpo, ao mesmo tempo que a inversão em passividade e a configuração de um novo objetivo: ser olhado; c) a instalação de um novo sujeito para o qual se mostra para ser olhado por ele (Freud, 1915/1994, p. 176).

Freud qualifica aqui o Outro da pulsão como novo sujeito. Qual seria então essa diferença qualitativa que ele confirma com a novidade? Eu diria que esse "novo sujeito" é aquele que se supõe no sujeito-a-ser e, além disso, se constitui como um Outro não-surdo mas igualmente não "Pan-fônico".

 

O melancólico e o "seu" Outro

É esse Outro não-surdo que parece não ter podido advir na melancolia. Essa surdez do Outro parece, aliás, se apoiar sobre um mutismo.2 O Outro é mudo e, em parte, surdo. Elvira se recorda e traz lembranças nas quais, durante longas semanas, sua mãe não lhe dirige a palavra. Ela mesma suporta dificilmente o silêncio do analista em sessão e, em casa, polui o espaço sonoro com uma confusão contínua provocada pelo barulho da televisão. Elvira passa várias noites diante da TV, de olhos fechados, embalada pelas vozes dos talk-shows. Aliás, ela marca uma diferença extremamente precisa entre a sua relação com a audição do rádio, na qual se concentra na questão do sentido, e sua anestesia televisiva, quando somente o barulho das vozes, sem necessidade de qualquer significado, parece contar. Elvira de fato reencontra aqui o que se pode chamar de esquize do ouvido e da voz, como Lacan pôde falar da esquize entre o olhar e a visão. Quando Elvira está mal, ela passa longas horas no telefone "fazendo falar" o seu interlocutor, a fim de escutar uma voz. Não é da ordem de um desafio de significado o que está em jogo aqui, mas sobretudo de uma busca da dimensão de um contínuo da voz. As lembranças de Elvira, sua relação com o mundo sonoro e a maneira que ela investe o espaço da sessão me conduziram a vislumbrar a relação do melancólico ao outro primordial como marcada por um não-encontro. O outro bem que existiu, mas ele mesmo, preocupado com outra Coisa, parece ter abandonado muito cedo a criança. De fato, a mãe de Elvira, uma estrangeira isolada no país de seu esposo, tomou conhecimento, no momento do parto e ao longo dos meses seguintes, do adultério de seu esposo. Aliás, Elvira guarda uma lembrança desses primeiros meses de vida, quando ela vê sua mãe silenciosa, aos prantos, carregando-a nos braços, antes ocupados de sacolas de compra, no caminho que as leva do mercado ao domicílio. Ela "lembra-se", igualmente, dos longos momentos que passava olhando para o teto à espera de sua mãe. E essa mãe vai contar, ao longo de toda a sua infância, como ela deixava Elvira, ainda bebê, durante horas sozinha em casa, no berço, certa de a reencontrar na volta na mesma posição. Tais lembranças, evidentemente reconstruídas em análise, assim como as manifestações transferenciais, deixam em evidência um hiato entre a palavra e a voz.

Ariane também conheceu uma mãe distante, que percorria o mundo para se consagrar a uma brilhante carreira artística e, assim que voltava, tendo deixado a filha sob a guarda de sua própria mãe, parecia estar sempre em outro lugar, inatingível. Esse sentimento se atualiza regularmente ao longo das sessões, levando-me a intervir, às vezes, de modo mais frequente do que gostaria. Ariane me liga de vez em quando e fica em silêncio do outro lado da linha, incapaz de se fazer escutar; ou então telefona fora dos horários de consulta para escutar repetidamente, dezenas de vezes, minha voz na secretária eletrônica. Não obstante, ela não cessa de colocar em questão a pertinência do dispositivo analítico: "Apesar de tudo que você faz, eu tenho a impressão que isso não vai funcionar para mim. Para os outros, sem dúvida, mas não para mim...".

Tudo acontece como se um não-encontro - ou, pelo menos, um encontro problemático - entre a voz infans e a palavra do Outro, ela mesma subentendida por sua voz, tornasse impossível a formulação de uma demanda. Trata-se menos de um medo da recusa que da certeza de um fim atordoante de não-receber, antecipadamente, qualquer demanda de "caducidade".

Diferentemente da foraclusão na psicose, a negação na melancolia se exprime no registro da linguagem e acompanha um comportamento orientado em manter à distância todo investimento possível. Assim, a realidade não é rejeitada - como se esse sujeito nada tivesse podido saber - mas faz com que o sujeito se identifique com o "resto" da operação que o constituiu, de modo a se ver então marcado pelo significante "nada", o qual caracterizará sua relação com o Outro. O resto, ligado ao "tomar palavra" e assim engendrar a voz, no melancólico se faz silêncio. O silêncio não sendo aquilo que vem se opor à voz, por conseguinte, mas à palavra. É o que se vê de modo muito claro no mutismo "teimoso, emburrado" da criança. O silêncio é isso que exemplifica da maneira a mais aproximativa a voz como objeto a, introduzindo a dimensão do contínuo característica dos objetos voz e olhar. Dessa forma, a negação melancólica não é foraclusão, não é denegação, mas é, tal como se depreende em Luto e Melancolia (Freud, 1992), um "se deixar", uma negação que "deixaria" um vazio, uma ausência. Em 1917, Freud constata que a "perda ocasiona a melancolia", o que podemos entender como: a perda deixa advir a melancolia, não sendo exatamente sua causa, embora em virtude do apagamento do objeto deixe o campo livre à negação característica da melancolia.

Com efeito, apoiar a falha na rejeição das possibilidades de investimento que a realidade oferece é reconhecer essa realidade sem, contudo, considerar uma possibilidade mínima de relação outra que a sua recusa. A existência da realidade não é de modo algum colocada em questão pelo sujeito melancólico, mas é o investimento possível nessa realidade que se torna problemático. A realidade, com tudo o que oferece, vale para os outros, mas não para o melancólico. "Como eles fazem?" repete incansavelmente Elvira, ao falar daqueles que podem se deixar levar pelo jogo dos semblantes, das aparências. Dizer que nada tem sentido e que,

consequentemente, nada vale a pena ser vivido é negar que as coisas possam ganhar um sentido para si, assim reconhecendo não apenas a existência dessas coisas, bem como o interesse e o prazer que devam dar aos outros. O desconfiar das coisas pelo fato de que apresentem perigo atinge no melancólico uma intensidade extrema, já que ele nega que elas possam lhe trazer qualquer coisa. O melancólico não deseja mais nada e demanda ainda menos.

A negatividade do discurso melancólico que se expressa no fato de se identificar com o nada, em que o sujeito se considera arruinado e despossuído de todos os seus bens, encontra-se necessariamente numa relação simbólica com um estado nostálgico que ele suficientemente experimentou para, na sequência, rejeitar aquilo que poderia ser ainda pior. "A afirmação primordial", que precede o processo da negação e que permite o advento do sujeito de maneira cada vez mais independente em relação ao princípio do prazer, diz muito respeito ao melancólico. Contrariamente ao sujeito psicótico, em quem a Verwerfung (foraclusão) se opõe à afirmação primordial (Bejahung) e faz como se nada tivesse existido, o nada em que se encadeia o melancólico reenvia ao primeiro traço da identificação, que permite estabelecer a distinção entre o organismo e o meio. Ela extrai o sujeito do gozo absoluto. Tal como formula Lacan, (1961/2001, p. 463): "Em suas autoacusações, ele (o melancólico) está inteiramente no campo do simbólico".

 

Metapsicologia do tornar-se melancólico: perspectivas técnicas e éticas

A hipótese metapsicológica que podemos emitir aqui é a seguinte: na origem dessa recusa de investimento encontra-se a angústia do retorno da catástrofe que fez do sujeito o resíduo de uma relação interrompida. Tudo acontece como se o sujeito-a-ser, entre o julgamento de atribuição e o julgamento de existência, não pudesse ter suficientemente experimentado a resposta do Outro, o que deixa toda e qualquer tentativa de se fazer escutar vivida como vã e fadada ao fracasso de antemão.

De fato, ao longo da explicação do funcionamento melancólico, Freud insiste sobre o efeito de nadificação do mecanismo psíquico na melancolia. Isso se agregaria à ausência de representações indispensáveis ao investimento no objeto - representações que Lacan qualifica como primitivas. "As Vorstellungen primitivas em torno das quais se dará o destino disto que é regulamentado segundo as leis do Lust e do Unlust, prazer e desprazer, no que podemos chamar as entradas primitivas do sujeito" (Lacan, 1960/1966, p. 65). Aqui estamos entre o julgamento de atribuição e o julgamento de existência. Na melancolia, não há busca de uma experiência de satisfação renovável. É o que podemos compreender se retomarmos o texto consagrado à "Negação": Freud enuncia de fato que "originalmente, a existência da representação já é uma garantia da realidade do representado" (Freud, 1925/1992, p. 169). Na falta de representações adequadas, o objeto não pode ser investido pelo sujeito melancólico. Após o julgamento de atribuição, encontra-se o julgamento de existência que se apoia sobre a possibilidade de reencontrar a coisa na realidade. Freud eleva essa categoria do julgamento a um interesse do eu que conseguiu levar em conta a realidade, em relação a um eu que tenderia anteriormente a se manter na economia narcísica.

Uma outra decisão da função do julgamento, aquela sobre a existência real de uma coisa representada, é um interesse do eu-real definitivo que se desenvolve a partir do eu-prazer inicial (exame de realidade). Agora, não se trata mais de saber se algo percebido (uma coisa) deve ser acolhido ou não no eu, mas se alguma coisa de presente no eu, como uma representação, pode ser reencontrada na percepção (realidade). (...) A experiência ensina que não somente é importante saber se uma coisa (objeto de satisfação) possui a 'boa' propriedade, e assim merece o acolhimento no eu, mas saber ainda se essa mesma está no mundo exterior, de maneira a aproveitar-se dela, se necessário for (Freud, 1925/1992, p. 169).

Esta noção de interesse que caracteriza o eu-real, que implica que o eu-real continue guiado pelo prazer, nos permite compreender que o melancólico, que declara justamente não poder se interessar por nada, encontra-se na impossibilidade de efetuar esse trabalho de julgamento de existência. O melancólico, por não poder reencontrar na percepção o que existia no eu, abandona o campo do desejo. Na falta dessa ilusão representativa, o melancólico se esforça para alinhar esse erro do imaginário - e, do mesmo modo, no desejo - negando vigorosamente tudo o que possa parecer engodo e mentira, diante de uma verdade encontrada muito antes: aquela da irredutível ficção que determina o sujeito. "Estar na ilusão: melhor morrer", dirá Elvira vigorosamente durante uma sessão. De fato, Elvira possui uma perspicácia extrema, podendo chegar à dor quando se trata de perceber a inevitável dimensão do semblante que torna possível o "viver juntos". A única ilusão com a qual pode consentir é aquela que propõe a arte. Experimenta uma pacificação da dor melancólica consumindo obras de arte. A única ilusão suportável para ela seria esta que se admite como tal, que pode elevar "o objeto à dignidade da Coisa" - para retomar a definição de sublimação proposta por Lacan -, permitindo-lhe reencontrar as coordenadas espaço-temporais.

Essa seria talvez a dimensão fictícia, claramente confessa, da situação analítica que permite ao melancólico, eventualmente, investir. Efetivamente, a transferência melancólica me parece extremamente complexa a manejar. Aliás, Elvira vai me censurar, de maneira justa, diversas vezes, por eu me vincular (pode-se dizer desligar) ao que me pareceriam ser manifestações transferenciais. Para ela, o que funciona - além dos momentos transferenciais que percebe de modo pertinente e que são extremamente massivos e coloridos de uma dimensão paranoide - é a condição claramente ficcional da situação. Essa particularidade da transferência na melancolia pode ser compreendida a partir do modelo metapsicológico proposto anteriormente neste texto. Se o melancólico, como propomos, está "encurralado" entre o julgamento de atribuição (no qual os desafios da divisão entre o bom e o mau são essenciais) e o julgamento de existência (sem poder investir na realidade na qual o objeto não se saberia reencontrar) - e com a impossibilidade de se fazer escutar - pode-se então concluir que as manifestações transferenciais irão elas mesmas "relançar" essa estrutura. O melancólico teria grande dificuldade em investir no analista tal como em relação aos objetos da realidade e, quando o faz - de maneira bastante esporádica -, é a dialética do bom e do mau, característica do julgamento de atribuição, que fará retorno de maneira massiva.

A questão que nos colocamos seria então: o que se pode esperar de uma cura analítica para um melancólico? A resposta que eu poderia propor é: construir um espaço suficientemente acolhedor onde o sujeito possa fazer repetidamente a experiência de ser escutado, com o intuito de, em um segundo tempo, poder novamente correr o risco de tentar se fazer escutar sem ter medo de que, uma vez mais, o seu chamado caia na orelha de um Outro vivenciado como surdo. A transferência, processo em que se coloca à prova essa experiência, faz deslocar a ausência por meio do retorno próprio do ritmo das sessões, e a regularidade permitirá ao sujeito experimentar que é possível "reencontrar" o objeto e, a partir de então, fazer secessão, separação. O enigmático desejo do analista estaria, portanto, além do "desejo de obter a diferença absoluta" descrita por Lacan; desejo de que, além dos sintomas, inibição e angústia, o sujeito do desejo -sujeito que é o desejo - advenha. O sujeito-suposto-saber consiste em escutar como sujeito suposto saber no que existe de sujeito, e, prontamente, no que chama a advir. Isso implica que o psicanalista possa, ele mesmo, além do "escutar" que caracteriza sua função, em certos momentos "se fazer escutar". "Wo Es war, soil Ich werden", o aforismo freudiano que Lacan não cessa de traduzir ao longo de toda a sua vida: "Onde há isso, o eu deve advir", poder ser apreendido, no caso do sujeito melancólico, como: "Ali onde posso apenas gritar silenciosamente, eu devo poder falar". Esse grito silencioso, no qual o objeto voz se revela, deve poder ser velado pelo dom da palavra. Dom de palavra que, conforme nossa hipótese, não faltaria totalmente ao melancólico, embora não permita investir nos objetos em sua dimensão de semblante (Safouan, 1988, p. 170).3 É o engano na transferência - engano, e não erro (Vives, 1999) - que permitirá que o chamado do psicanalista encontre o chamado da interpretação do paciente, autorizando este último a ocupar uma posição de sujeito invocante, ou seja, crendo na hipótese de que existe um não-surdo que possa escutá-lo, e assim conduzi-lo, para além do grito mudo que o invade, a "se fazer escutar".

Essa proposição nos permitiria articular a análise do processo melancólico efetuado por Freud em Luto e melancolia ao que é esboçado, ainda em 1915, em Neuroses de transferência: uma síntese. Para compreender o mecanismo em jogo na melancolia, Freud (1915/1994, p. 300), nesse texto, argumenta que "O luto do pai originário provém da identificação com o mesmo, e nós demonstramos que esta identificação é a condição do mecanismo melancólico". Se por um lado parece que o melancólico está vivo, ele já está, por outro, morto, uma vez identificado ao Urvater (o pai pré-histórico). Se seguirmos com rigor a intuição freudiana, isso implica que, enquanto nós, assassinos graças ao trabalho do luto, conseguimos acessar a sublimação com todos os seus desafios, o melancólico não conseguirá. Ele não digere o ato e não cessa de comer do pai morto, e assim ruminar. O melancólico endossa o luto coletivo do pai originário, vindo testemunhá-lo para aqueles que, mais ou menos, o elaboraram. Esse testemunho se apresentará sob diversas formas, uma das mais características sendo a queixa inarticulável. O melancólico se faz voz enlutada, fora das palavras. A sua queixa aproxima-se assim do "aiai" ou do "ié" (Loraux, 1999) intraduzível, proferido pelo herói trágico na sua mais profunda angústia. "Mais morto que vivo"4, o melancólico está subjugado a esse resto do pai originário que é a voz. Resto este que, por sua vez, estando na origem do supereu, submeterá o eu do melancólico às suas injunções mais ferozes. Como nos diz Freud, "este pai da infância, todo potente (...) [que], assim que é incorporado à criança, torna-se uma força psíquica interna à qual chamamos supereu" (1930-38/1990, p. 80). "Força psíquica" que se manifestará sob a forma de uma voz. A partir disso, o melancólico seria aquele que comemora, ad vitam aeternam, pode-se dizer, o momento da emergência - interrompida no seu caso - do sujeito na sua relação com a voz do Outro. O melancólico seria então o porta-voz do Outro, sem jamais poder tornar-se o portador da própria palavra.5

 

Referências

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Recebido em: 01/08/2020
Aprovado em: 10/12/2020

 

 

* Publicado originalmente com o título L'avocation mélancolique, na revista Cliniques méditerranéennes em 2006. Traduzido por Paula Montanheiro Barioni e por Gustavo Henrique Dionísio.
1 "O objeto a é alguma coisa na qual o sujeito, para se constituir, é separado como órgão" (Lacan, 1964/1973).
2 Jacques Hassoun identificou perfeitamente esse fenômeno : "A surdez e cegueira do Outro, sua indiferença de endereçamento provoca no sujeito uma sideração que o deixa aquém do luto. Podemos dizer sobre os melancólicos que algo lhes acontece nesse sentido, o endereçamento de seu discurso está perdido no limbo" (Hassoun, 1997, p. 58).
3 Safouan propõe num outro contexto uma fórmula extremamente elucidativa que articula a necessidade (soll) e o apelo: "É o mesmo Sollen, e não o mesmo inconsciente, como dizem alguns, de que procedem analista e analisante: um ao interpretar e o outro ao interpelar esta interpretação na transferência" (Safouan, 1988, p. 170).
4"Plus mort que vif", no original.
5 Parece-me necessário contar aqui uma anedota histórica acerca de uma intervenção "musicoterapêutica" de um caso de melancolia, permitindo-nos ter um pressentimento do que pode consistir essa passagem de porta-voz para porta-palavra. Em 1737, o famoso castrato Farinelli foi chamado à cabeceira do moribundo Rei da Espanha, Philippe V. As crônicas contam que, a partir de 1729, o rei se trancou em seu quarto, com janelas e portas bloqueadas, e passou dias inteiros proferindo uivos tristes, às vezes recusando-se a se levantar e tomar banho por várias semanas. Diz a lenda que o cantor interpretou, escondido dos olhos do rei, noite após noite, durante anos, as mesmas árias, retiradas da ópera Mérope de Geminiano Giacomelli (Quell'usignolo che innamorato) em que Farinelli se destacou por imitar a infinita variedade do canto do rouxinol, que viria a constituir a melodia preferida do rei. Esse "tratamento" teria permitido ao rei sair de seu estado de prostração. O que podemos entender dessa "cura" é que a canção (mistura de vozes e palavras dirigidas ao Outro), longe de ser apenas um dispositivo "de extração" da voz como objeto a, é também o que encobre a voz. O grito ou o silêncio - na sua dimensão comum de continuidade - o revela. A música, ao articular as dimensões do contínuo e do descontínuo, o revela. A revelação envolve o duplo movimento de desvelar e voltar a velar. Provavelmente também não é à toa que a lenda esconde o cantor dos olhos do "paciente", apontando para um momento essencial na constituição do sujeito psíquico em que estão atados, em continuidade com a voz, afastamento do olhar e descontinuidade de discurso.

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