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Neuropsicologia Latinoamericana

versão On-line ISSN 2075-9479

Neuropsicologia Latinoamericana vol.4 no.2 Calle  2012

http://dx.doi.org/10.5579/rnl.2012.0080 

DOI:10.5579/rnl.2012.0080

 

Desenvolvimento de instrumento de compreensão leitora a partir de reconto e questionário

 

Desarrollo de un instrumento de comprensión lectora a partir de una tarea de recuento y de un cuestionario

 

Développement d'un instrument de compréhension de lecture de récit et questionnaire

 

Development of a reading comprehension instrument from retelling and questionnaire

 

 

Helena Vellinho Corso; Tania Mara Sperb; Jerusa Fumagalli de Salles

Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O trabalho tem por objetivo apresentar o processo de construção de um instrumento de avaliação da compreensão leitora por meio de reconto e questionário. A tarefa tem por base teórica dois modelos de compreensão: o de Kintsch e van Dijk e Kintsch, e o de Trabasso. Os objetivos específicos envolveram a seleção do texto, a análise do mesmo com base na teoria, e a operacionalização das variáveis derivadas da análise. O artigo revisa os tipos de instrumentos comumente utilizados na avaliação da compreensão, bem como os modelos que fundamentaram a construção da tarefa. São também abordados os fatores a considerar no processo de desenvolvimento de um instrumento de compreensão leitora e sua pontuação/interpretação. Completude e coerência do reconto do participante – aspectos da compreensão destacados nos modelos - foram os critérios para a atribuição dos protocolos a cinco diferentes categorias. Seis protocolos, apresentados para ilustrar o método de avaliação do reconto, mostram a variabilidade de resultados que o instrumento permite revelar. A precisão nos resultados indica a confiabilidade e a aplicabilidade do instrumento em pesquisa e na prática clínica.

Palavras-chave: Leitura, Compreensão, Avaliação educacional, Processamento de texto.


RESUMEN

Este trabajo se propone describir los procesos de construcción de un instrumento de evaluación de la comprensión lectora a partir de una tarea de recuento y respuestas a un cuestionario. Tomamos como base los modelos teórico de procesamiento discursivo y comprensión lectora de Kinstch y Van Dijk (1978), Kinstch (1988, 1998) y de Trabasso (Trabasso, van den Broek, & Suh, 1989; Suh & Trabasso, 1993). Los objetivos específicos implican la selección, el análisis a partir de la base teórica y la operacionalización de las variables derivadas del análisis. Revisamos los tipos de instrumentos habitualmente utilizados para evaluar comprensión así como los modelos que fundamentan la construcción de las pruebas. También se abordaron los factores que se deben considerar en el proceso de desarrollo de una prueba de evaluación de la comprensión lectora así como su puntuación/interpretación. Lo coherente y completo de los recuentos – aspectos de la comprensión destacados en los modelos – fueron los criterios para la atribución de los protocolos a cinco categorías. Seis protocolos, presentados para ilustrar el método de evaluación del recuento, muestran una variabilidad de resultados que el instrumento permite revelar. La precisión en los resultados indica la confiabilidad y la aplicabilidad del instrumento en investigación y en la práctica clínica.

Palabras clave: Lectura, Comprensión, Evaluación educacional, Procesamiento textual.


RÉSUMÉ

Cette étude a pour objectif de décrire le processus de construction d'un instrument d'évaluation de la compréhension de lecture, par le biais de tâches de récits et de questionnaire. L'évaluation repose sur les modèles de compréhension de lecture et le processus de discours Kintsch et Van Dijk (1978), Kintsch (1988, 1998) et Trabasso (Trabasso, van den Broek, & Suh, 1989, Suh & Trabasso, 1993). Les objectifs spécifiques incluent de conduire une sélection de texte, l'analyse et l'opérationnalisation de variables pour l'analyse. Nous faisons une revue des instruments habituellement utilisés pour évaluer la compréhension aussi bien que les modèles sur lesquels reposent ceux-ci. Nous discutons aussi quelques aspects à considérer dans le processus de développement d'un test pour la compréhension de lecture aussi bien que les résultats et interprétations. Un récit complet et cohérent des participants – aspects de compréhension de lecture soulignés dans les modèles – permis de mettre en place les critères rassemblant les protocoles en cinq catégories différentes. Six protocoles, présentés afin d'illustrer la méthode d'évaluation de récit, montrait la variabilité des résultats que l'instrument peut révéler. La précision des résultats rend l'évaluation de la compréhension fiable à travers cet instrument, et il indique son applicabilité en recherche et en pratique clinique.

Mots clefs: Lecture, Compréhension, Évaluation éducative, Traitement de texte.


ABSTRACT

This study aims to describe the process of constructing a reading comprehension assessment instrument, by means of retelling and questionnaire tasks. The assessment relies on discourse processing and reading comprehension models of Kintsch and Van Dijk (1978), Kintsch (1988, 1998) and Trabasso (Trabasso, van den Broek, & Suh, 1989, Suh & Trabasso, 1993). The specific objectives included to conduct text selection, analysis and operationalization of the variables from the analysis. We review the instruments usually used to assess comprehension as well as models that underlie to the construction of such instruments. We also discuss some aspects to be considered in the process of developing a test for reading comprehension as well as their scoring/interpretation. Completeness and coherence of participant's retelling – aspects of reading comprehension highlighted in the models – were the criteria conferring the protocols to five different categories. Six protocols, presented to illustrate the method of retelling evaluation, show the variability of results that the instrument can reveal. The accuracy of the results makes the evaluation of comprehension reliable through the instrument, and it indicates its applicability in research and clinical practice.

Keywords: Reading, Comprehension, Educational assessment, Text processing.


 

 

A compreensão leitora é uma atividade complexa que envolve processos perceptivos, cognitivos e linguísticos. O caráter multicomponencial da habilidade de compreender vem sendo destacado por diferentes autores em trabalhos tanto teóricos como empíricos (Abusamra, Ferreres, Raiter, De Beni, & Cornoldi, 2010; Cromley & Azevedo, 2007; Kintch & Rawson, 2005; Meneghetti, Carreti, & De Beni, 2006; Oakhill & Cain, 2006). Tal complexidade impõe dificuldades à avaliação desta habilidade. Os resultados da avaliação podem ser diferentes conforme os instrumentos utilizados, já que estes variam, tanto em função do material lido (frase, texto, gênero de texto, etc.), como das tarefas (preenchimento de lacunas, resposta aberta, múltipla escolha, etc.), ou das demandas cognitivas envolvidas (memória, inferência, vocabulário, etc.) (Fletcher, Lyons, Fuchs, & Barnes, 2009). Assim, uma discussão sobre o instrumento utilizado na avaliação da compreensão leitora assume importância central, seja em um contexto clínico, escolar, ou de pesquisa.

A avaliação da compreensão leitora não é direta. Enquanto as medidas de precisão do reconhecimento de palavras apresentam uma relação razoavelmente transparente entre o conteúdo dos testes e os requisitos para o desempenho na leitura de palavras, o mesmo não acontece no caso da compreensão leitora (Fletcher et al., 2009). Algumas questões metodológicas particulares ao estudo da compreensão leitora são determinadas por se tratar de um construto latente. Diferentes medidas de compreensão podem apresentar fraca correlação, e podem estar apoiadas por habilidades cognitivas diferentes (Johnston, Barnes, & Desrochers, 2008). Num estudo empírico, é relevante o exame minucioso da tarefa utilizada, no sentido de identificar quais são as demandas que ela impõe ao leitor, em termos de processos cognitivos. Ao mesmo tempo, é muito importante que haja uma base teórica a partir da qual será determinada a relação entre a medida empírica e o processo e estrutura que ela supostamente mede (McKoon & Ratcliff, 1990).

Este trabalho tem por objetivo apresentar o processo de construção de um instrumento de avaliação da compreensão leitora com base em dois modelos de compreensão. Os objetivos específicos envolvem a seleção do texto, a análise do mesmo com base na teoria, e a operacionalização das variáveis derivadas da análise. No texto que segue, iniciamos revisando os tipos de instrumentos comumente utilizados na avaliação da compreensão, bem como os modelos que fundamentaram a construção da tarefa. Ainda na introdução abordamos os fatores a considerar no processo de desenvolvimento de um instrumento de compreensão leitora e sua interpretação/pontuação. As etapas de desenvolvimento da tarefa, apresentadas na segunda metade do texto, caracterizam a um só tempo método e resultados. Finalmente, para ilustrar a correção dos recontos, são apresentados os dados de seis participantes.

Diferentes Métodos e Instrumentos de Avaliação da Compreensão Leitora

Para o estudo da compreensao leitora, interessa saber tanto o que as pessoas lembram do que leram, quanto entender como os leitores compreendem o texto lido momento a momento (Rayner, 1990). Assim, uma distinção inicial deve ser feita entre a avaliação do processamento online e a avaliação do resultado da leitura (offline). As medidas online indicam o que está ativo na memória de trabalho, ao mesmo tempo, durante a leitura. Isso é importante porque limites nos recursos atencionais limitam a quantidade de texto e de conhecimento prévio que pode ser ativado simultaneamente, sendo que a ativação simultânea é necessária para a formação de links entre o texto e o conhecimento prévio em todos os modelos atuais de compreensão (Goldmann & Wolfe, 2004). Na metodologia online, a compreensão é examinada durante a leitura. A técnica de Cloze, na qual os participantes preenchem lacunas do texto, é, entre as diferentes tecnicas online, uma medida de fácil elaboração, aplicação e correção, além de apresentar alta correlação positiva com o desempenho acadêmico (Santos, Primi, Taxa & Vendramini, 2002).

Na metodologia offline, a compreensão é examinada após a leitura do texto. As tarefas avaliam o produto da compreensão, isto é, a representação mental construída pelo leitor, e baseiam-se em índices observáveis dessa representação em atividades. As tarefas podem exigir que o leitor apenas recupere (retrieve) a informação do texto – como o reconto – ou podem demandar, além da recuperação, um raciocínio sobre ela – como a resposta a questões sobre informações que não podem ser resgatadas diretamente a partir do texto, mas requerem algum tipo de inferência. Há distinção entre as técnicas que envolvem reconhecimento e lembrança (recall). Uma tarefa de múltipla escolha envolve o reconhecimento. O reconto e a resposta livre são técnicas abertas: o leitor pode ser solicitado a recontar o texto, recontar apenas as principais ideias, resumir o texto, ou a responder questões sobre informações presentes ou inferidas a partir do texto (Goldmann & Wolfe, 2004). No instrumento Test Leer para Comprender – TLC (Abusamra et al., 2010) são apresentadas perguntas de múltipla escolha com o texto presente, com o objetivo de reduzir as exigências em relação a memória de trabalho. Por outro lado, as respostas a perguntas de múltipla escolha evitam a ingerência das dificuldades de produção. Tais características permitem, segundo os autores, avaliar especificamente as habilidades de compreensão textual, através desse instrumento que explora os diferentes componentes da compreensão (esquema básico do texto, estrutura sintática, fatos e sequências, semântica lexical, coesão textual, inferências, intuição do texto, hierarquia do texto, flexibilidade mental, modelos mentales, detecção de erros).

Kintsch e Rawson (2005) consideram que há vantagens e desvantagens nas duas medidas (online e offline) já que, ao final, a compreensão textual – tanto os processos subjacentes quanto os resultados representacionais desses processos – será melhor compreendida com evidências convergentes de medidas diferentes. Brandão e Spinillo (1998) também discutem o uso de mais de uma medida na avaliação da compreensão leitora (embora ambas offline), a saber, o reconto e as questões sobre o texto, e concluem que um único instrumento não revela todos os aspectos envolvidos na compreensão, ao mesmo tempo em que tarefas distintas requerem diferentes mecanismos cognitivos e linguísticos. A utilização das duas tarefas, com suas demandas lingüísticas e cognitivas distintas, pode oferecer um entendimento mais abrangente do processo de compreensão. O uso das duas tarefas em uma mesma amostra, permitindo a comparação entre as tarefas, foi verificado em pesquisas nacionais sobre a compreensão (Brandão & Spinillo, 1998, 2001; Salles & Parente, 2004; Salles & Corso, 2009).

Pelos motivos considerados, optou-se pela utilização dessas duas tarefas – reconto e questões sobre o texto. Diferentes autores chamam uma atenção especial para as vantagens do reconto na avaliação da habilidade de compreensão leitora, um recurso muito utilizado há décadas em pesquisa sobre o tema (Irwin & Mitchell, 1983). Trata-se do meio mais autêntico de avaliação da compreensão de textos, já que apresenta pouca ou nenhuma restrição ao leitor (Wilson, Marten, Arya & Jin, 2007). Entretanto, se a correção de questões de múltipla escolha sobre o texto não dá margem a dúvidas, a correção dos recontos, únicos para cada participante, e por isso extremamente diferentes entre si, suscita cuidado e discussão quanto ao método de avaliação

Métodos de Avaliação de Recontos de Textos na Pesquisa sobre Compreensão

Os recontos (retelling) a partir da leitura de um texto vêm sendohá muito tempo reconhecidos e utilizados como uma maneira apropriada de examinar a compreensão do leitor. A questão que aos poucos foi sendo colocada na literatura é como avaliar o reconto, no sentido de obter uma medida fidedigna da compreensão do participante/aluno. Irwin e Mitchell (1983) perguntam quais as características precisas do reconto que diferenciam níveis de compreensão de um texto. Ou ainda, qual é o reconto superior – aquele em que o leitor é capaz de lembrar as passagens do texto com precisão, ou aquele no qual o leitor faz generalizações sobre a vida enquanto resume o texto. Os autores consideram que sistemas de pontuação não capturam a riqueza e profundidade do reconto como um todo, e assim propõem uma avaliação holística geral, por meio da classificaçãodo reconto em cinco categorias diferentes, a partir de critérios como generalizações para além do texto, coerência, completitude e compreensibilidade.

Brandão e Spinillo (2001) também estabeleceram cinco categorias para a análise do reconto de uma história, levando em conta tanto a fidelidade da reprodução oral da criança em relação à história original (avaliada a partir da presença ou ausência dos cinco blocos entre os quais a história foi dividida), bem como a presença de inferências. As mesmas categorias foram adaptadas para a avaliação do reconto de outra história, no estudo de Salles e Parente (2004) com crianças de segunda série.

Wilson et al. (2007) chamam a atenção para o quanto varia de estudo para estudo a forma como os recontos são analisados e pontuados. A variedade de métodos não é exatamente o problema, mas sim o fato de a maioria dos estudos não especificar qual foi o método usado e, ainda mais importante, em que contexto teórico ele se justifica. Os autores investigaram três tipos diferentes de métodos/protocolos, avaliando o reconto dos mesmos participantes segundo cada um deles, e procurando verificar o que cada um revela, ou oculta, sobre a compreensão dos leitores. Concluem que a representação da compreensão varia dependendo do aspecto que cada método/protocolo evidencia, o que, por sua vez, depende da teoria que informa o pesquisador. Considerando que a definição da tarefa dá-se no contexto de uma perspectiva teórica sobre a compreensão, e que a clareza quanto a essa base teórica é indispensável à pesquisa, passamos à breve revisão de dois importantes modelos de compreensão, base teórica do instrumento aqui proposto.

Modelos de Compreensão Leitora de Kintch e cols. e de Trabasso

Os diferentes modelos de compreensão textual descrevem como a compreensão resulta da construção pelo leitor de uma representação mental do texto lido a partir da integração da informação de unidades menores do texto. No modelo de Kintsch e van Dijk (1978) e Kintsch (1988, 1998) as proposições (unidades de ideias) compõem a microestrutura do texto, que, por sua vez, organiza-se dentro de uma estrutura mais global do texto, a macroestrutura, a partir do reconhecimento dos tópicos globais e suas interelações. Este texto base (microestrutura e macroestrutura) representa o significado expresso do texto, devendo ser integrado ao conhecimento prévio para que se construa o modelo da situação (situation model), um modelo mental da situação descrita pelo texto, o que garante uma compreensão profunda (Kintch & Rawson, 2005). No modelo de Trabasso (1985) são as inferências causais que conectam as unidades no discurso narrativo, unidades definidas como cláusulas. Tais inferências conectam trechos distantes do texto em forma de rede. Assim, o texto narrativo é representado como uma rede causal de cláusulas categorizadas e das relações entre elas. Nessa estrutura, os nodos correspondem às cláusulas enquanto as conexões entre os nodos são as relações causais entre os eventos (Trabasso, van den Broek & Suh, 1989; para uma revisão mais aprofundada dos modelos de Kintch e Trabasso ver Corso, Sperb & Salles, in press).

As revisões da literatura mostram que há suporte empírico considerável para os modelos. A pesquisa vem comprovando a participação de diferentes componentes cognitivos ou neuropsicológicos na leitura, tanto em seu aspecto de reconhecimento de palavras, quanto no que diz respeito à compreensão (Salles & Corso, 2011). Interessante observar que os modelos podem concentrar-se em alguns aspectos da compreensão, em detrimento de outros. O modelo de Kintsch enfatiza o papel da memória de trabalho e de longo prazo (sem enfatizar o papel da resolução de problemas), enquanto o modelo de Trabasso enfatiza o papel da resolução de problemas (não mencionando o papel da memória (Fletcher, van den Broek,& Arthur, 1996). Fletcher e Bloom (1988), entretanto, argumentaram que embora tendo pouco em comum ambos os modelos estão corretos, propondo então um modelo híbrido de compreensão de narrativa.

Em função da riqueza na descrição do processo de compreensão, bem como da possibilidade de integração dos dois modelos (já que cada um evidencia um aspecto diferente da compreensão), ambos foram utilizados na construção do instrumento de avaliação aqui apresentado. Esse processo de construção exige uma análise não apenas das características das demandas de processamento e representação das tarefas, mas também das características do texto: o tipo de texto (narrativo ou informativo, por exemplo), e quais ideias ele contém (entendidas, por exemplo, como proposições) interferem na compreensão (Goldmann & Wolfe, 2004).

Fatores a Considerar no Processo de Desenvolvimento de um Instrumento de Compreensão Leitora e na sua Interpretação/Pontuação

O exame do processo de compreensão de um texto passa pela identificação da estrutura textual, ou análise do texto a ser utilizado na avaliação. Tal análise do texto deve permitir a derivação de sistemas de atribuição de pontos para provas experimentais de compreensão de textos (Marotto, 2000), além de ser necessária para a definição de níveis de compreensão –categorias – em uma avaliação mais qualitativa (Brandão & Spinillo, 2001; Irwin & Mitchell, 1983; Salles & Parente, 2004).

Seleção e análise do texto-instrumento

A primeira diferenciação a ser feita diz respeito ao tipo de texto, se narrativo ou expositivo. Os primeiros envolvem personagens e ações, e uma sucessão de eventos no tempo, a partir de relações causais e motivacionais. Romances, contos e fábulas são exemplos de textos narrativos, que têm um propósito literário. Os textos expositivos, como artigos científicos ou livros-texto, descrevem conceitos abstratos e relações lógicas entre acontecimentos e objetos, com o propósito de explicar ou informar, sendo utilizados sobretudo nos ambientes acadêmicos (Marotto, 2000).

As diferenças entre os textos afetam os processos e estratégias que o leitor utiliza na sua compreensão, havendo por parte dos leitores uma sensibilidade com respeito ao tipo de texto lido (Fletcher et al., 2009). Segundo Kintsch e van Dijk (1978), a pesquisa em compreensão deve se concentrar em textos que permitem ao leitor utilizar esse esquema prévio para a sua interpretação. Os textos que apresentam um esquema convencional de estrutura de discurso (isto e, um conjunto de caracteristicas e regras de formacao proprias) são os mais adequados para a pesquisa, pois geram esquemas que são compartilhados pelos membros de um determinado grupo cultural. As histórias, segundo esses autores, seriam um exemplo familiar desse tipo de texto. Além disso, ao contrário do texto expositivo, que trata sempre de um domínio determinado, e supõe do leitor um certo grau de conhecimento prévio acerca desse domínio, o texto narrativo só exige do leitor conhecimento geral de mundo, além das habilidades linguísticas também requeridas diante do texto expositivo (Marotto, 2000). Tal característica favorece o controle do conhecimento prévio, necessário na pesquisa em compreensão.

Estabelecidas as vantagens do texto narrativo na pesquisa, trata-se agora de estabelecer como seria proceder à análise do texto selecionado a partir dos modelos de Trabasso e de Kintsch e van Dijk.

Análise de cláusulas do texto

A análise do texto, segundo o modelo de Trabasso, supõe a identificação de sua estrutura causal. Tal análise se inicia pela decomposição (parsing) do texto en cláusulas. As cláusulas são unidades de sentido que expressam os eventos, isto é, os acontecimentos que tomam lugar na história. Cada cláusula corresponde ao enunciado de um evento. Depois de identificadas as clausulas, é preciso estabelecer a rede de conexões entre elas: todos os pares de enunciados são considerados e um evento A é considerado como causa de B se, no contexto da história, B não teria acontecido se A não tivesse acontecido (Myers, 1990). A rede de conexões permite a identificação das cláusulas que compõem a cadeia principal da narrativa, pois o número de conexões de uma cláusula (frase ou enunciado) determina o quão centralmente importante os leitores a consideram. Esta conectividade por sua vez determina probabilidade com que uma dada cláusula (ou evento) será lembrada e incluída nos sumários breves da história feitos pelos sujeitos (Bower & Morrow, 1990).

Análise da estrutura macroproposicional do texto

Se a identificação das cláusulas (menores unidades do texto, segundo o modelo de Trabasso), das conexões entre elas, e da cadeia causal principal configura uma análise útil e importante da história, há também que se considerar que toda a narrativa comporta partes maiores, ou níveis diferentes, ao logo dos quais os fatos se organizam e se sucedem no tempo. É assim que as narrativas vêm sendo há tempo analisadas como apresentando uma estrutura canônica, ordem predeterminada de episódios, cujo conhecimento é implícito ao leitor, e é utilizado na representação que ele faz da história (Marotto, 2000). Segundo Vieira (2001), Propp (1928/1983) foi o primeiro a chamar a atenção para a forma estrutural do enunciado narrativa. Stein e Glen (1976), com sua gramática de histórias, identificam na narrativa um conjunto formal de regras que tornam a história previsível.

Vieira (2001) identifica tanto na lingüística como na psicologia, a partir dos anos 1960, essa tendência de estabelecer um esqueleto do enunciado narrativo, propondo-se a ideia de que a narrativa comporta uma superestrutura textual, composta de macroproposições. Na psicologia cognitiva, tal formulação deu-se no âmbito dos estudos sobre compreensão e memorização de narrativas, trabalhos que enfatizaram as motivações do protagonista que, diante de algo que lhe acontece, desenvolve uma meta que inspira suas ações. As macroproposições narrativas recebem denominações que variam de autor para autor, conforme as ênfases de cada um.

No modelo de Kintsch e van Dijk – que reúne a análise da estrutura textual e a descrição de seu funcionamento – o conceito de macroestrutura é o que costuma denominar-se como tópico ou núcleo, que é identificado pelo leitor, à medida que as proposições principais vão sendo descobertas (Marotto, 2000). As macroproposições correspondem às partes do texto, abstraídas das microproposições relevantes, que formam a sua essência (gist) (Kintsch & van Dijk, 1978). Assim, em se tratando de uma narrativa, as macroproposições terminam por corresponder às partes da narrativa, identificadas pelas gramáticas de histórias.

Análise das inferências: coerência textual e estratégias de evocação

Ao finalizar a consideração sobre a análise da estrutura textual, cabe ainda salientar que a coerência do texto é, em grande parte, garantida pela atividade do próprio leitor que, para chegar a uma representação integrada dele, realiza diferentes processos inferenciais (Marotto, 2000). As inferências são necessárias, porque os textos não são completamente explícitos. Pelo contrário, no discurso oral ou escrito a maior parte das proposições necessárias para estabelecer coerência permanece implícita (van Dijk, 1988). Segundo Kintsch e van Dijk (1978), um texto explícito, que abrange todas as proposições necessárias para estabelecer a coerência formal– inclusive as inferidas pelo leitor só existe enquanto um construto teorético.

No processo de compreensão são realizadas tanto inferências que ligam informações do texto entre si, necessárias à formação do texto base, quanto inferências que ligam a informação do texto ao conhecimento prévio do leitor, indispensáveis à construção do modelo da situação (Kintsch & Rowson, 2005). Diferentes modelos de compreensão leitora se assemelham quanto à importância crucial que atribuem às inferências no processo de compreensão (Spinillo & Mahon, 2007). Ao mesmo tempo, os vários autores identificam diferentes tipos de inferências, como as anafóricas, lexicais, lógicas, espaciais, temporais, causais ou temáticas (Suh & Trabasso, 1993). Também para Oakhill e Cain (2006), a realização de inferência - definida como a atividade de estabelecer relações capazes de preencher mentalmente as informações deixadas implícitas no texto - está entre as habilidades cruciais envolvidas no processo construtivo que caracteriza o entendimento de um texto. Os autores classificam as inferências em dois tipos principais: as inferências de coerência e as inferências elaborativas. As primeiras tomam lugar na integração de diferentes informações do próprio texto, assim como na integração de informacao do texto com o conhecimento prévio. As inferencias elaborativas, embora enriqueçam a informação do texto, não são estritamente necessárias para a compreensão. Assim, ao se analisar o texto, é preciso considerar que ele necessariamente conterá proposições que o próprio leitor agrega, referentes às inferências que ele realiza para preencher as lacunas do texto e conferir-lhe coesão e coerência (Marotto, 2001).

As inferências também são caracterizadas como uma entre diferentes estratégias de evocação, necessárias quando o leitor é solicitado a lembrar ou reconstruir uma história por meio do relato. Parente, Capuano e Nespoulous (1999), em estudo envolvendo oreconto de histórias em adultos e idosos, classificaram as estratégias de evocação dos participantes em inferências, interferências (evocações que modificam o significado das proposições do texto a partir de uma associação de dois elementos presentes na história, mas de forma independente) e reconstruções (relatos de fatos não presentes na história original). A mesma classificação foi usada na avaliação de recontos de crianças em outro estudo nacional (Salles & Parente, 2004; Salles & Corso, 2009).

Sintetizando essa seção, verifica-se que a estrutura da narrativa apresenta tanto uma relação lógica entre os eventos e ações dos personagens, quanto uma organização macroproposicional desses eventos. Fica claro, como esclarece Vieira (2001), que os dois aspectos se relacionam, já que esta estrutura macroproposicional implica um ordenamento sequencial dos eventos segundo uma lógica própria do enunciado narrativo. Adicionalmente, conclui-se que o resultado do processo de compreensão deste tipo de texto por parte do leitor supõe a representação de ambos os aspectos. Ainda, propõe-se que, a partir do modelo de Trabasso, é possível operacionalizar a avaliação do primeiro aspecto, enquanto que, a partir do modelo de Kintsch, pode-se operacionalizar a verificação do segundo aspecto característico das narrativas. Finalmente, é possível concluir que a verificação do processo compreensivo precisa considerar as cláusulas ou proposições não presentes literalmente no texto, e que podem corresponder às inferências, interferências ou reconstruções realizadas pelo examinado durante o processo de leitura.

Etapas da Construção do Instrumento de Compreensão de Leitura Textual

Com o objetivo de construir um instrumento de avaliação da compreensão leitora próprio para ser utilizado com crianças entre a quarta e a sexta séries do Ensino Fundamental, diferentes etapas foram seguidas, desde a seleção do texto utilizado até a definição da forma de interpretar e corrigir o reconto. Essas diferentes etapas da construção do instrumento, cada uma com objetivos particulares, contaram a participação de juízes independentes. Um estudo piloto foi realizado como última etapa.

Seleção do Texto Narrativo

A seleção do texto foi feita a partir da leitura de diferentes textos narrativos (aproximadamente 40) que integravam o conteúdo de livros didáticos de Português elaborados para a quarta, a quinta e a sexta séries do Ensino Fundamental publicados no Brasil, já que o instrumento seria utilizado na avaliação da compreensão leitora de alunos deste nível de escolaridade. Geralmente o texto era apresentado antes de exercícios de interpretação. A inclusão dos textos nesses livros faz supor que houve uma análise prévia deles em termos de sua adequação para a faixa etária/série. A apreciação desses textos não indicou diferenças dignas de nota entre a extensão ou complexidade dos textos entre as séries, sendo que alguns, inclusive, repetiam-se em livros de séries diferentes.

A história selecionada pelas pesquisadoras (apêndice um) atendeu os seguintes critérios de seleção: qualidade literária do texto, familiaridade do conteúdo em relação ao universo de crianças em geral (intependentemente de situação socioeconômica) e extensão (341 palavras). Ainda foram feitas ligeiras adaptações na forma do texto, dando-se preferência por construções linguísticas mais simples e familiares às crianças de modo geral. O texto também foi considerado pelas pesquisadoras como próprio para a verificação da presença de inferências por parte dos examinandos, já que precisamente a compreensão do desfecho final supõe a realização de inferências.

Elaboração das Questões sobre o Texto "O Coelho e o Cachorro"

Sobre o texto foram elaboradas dez questões de múltipla escolha (apêndice dois), sendo as cinco primeiras literais (as informações estão diretamente explicitadas no texto), e as cinco últimas inferenciais (a resposta não está explicitada no texto). Assim, o principal critério para a definição dos primeiros cinco estímulos/questões foi a demanda em relação a lembranca de eventos descritos no texto. Os cinco estímulos finais deveriam exigir um raciocinio inferencial do participante. Foram elaboradas quatro opções de resposta para cada questão: um gabarito/correta e três distratores. Quanto aos distratores, procurou-se estabelecer afirmações plausíveis, ou seja, que giravam sobre algum tema do texto, mas estavam incorretas, de modo a evitar acertos por exclusão. Ainda, na medida do possível, buscou-se criar um paralelismo sintático e semântico entre os distratores e a resposta correta, além da extensão semelhante. As questões e alternativas foram submetidas à análise de quatro juízes, no sentido de verificar a qualidade do exercício - coerência e precisão das questões, característica de literal ou inferencial de cada uma das questões, qualidade de excludente das alternativas corretas, verossimilhança das alternativas incorretas. O estudo piloto realizado mostrou a adequação das opções de resposta para cada questão.

 

Análise do Texto"O Coelho e o Cachorro"

Análise de cláusulas e da cadeia principal da história

Conforme o modelo de Trabasso, o texto foi dividido em cláusulas – que correspondem a um enunciado, podendo ou não corresponder a uma oração. A análise – feita a partir de acordo entre três juízes – identificou 34 cláusulas no texto selecionado (ver apêndice um). A definição de quais cláusulas pertencem à cadeia principal está ligada à rede de conexões causais entre os eventos da história. Segundo Bower e Morrow (1990), no modelo de Trabasso, os leitores assumem que as ações dos personagens podem ser explicadas por seus objetivos e planos que se desenrolam por força da situação. Por meio dessas explicações, os leitores constroem uma rede de conexões causais entre os eventos da história – de algum evento iniciador (na história selecionada, o cachorro aparece com o coelho do vizinho, morto, em sua boca) passando pelos vários objetivos, subobjetivos, e ações do personagem principal (os donos do cachorro limpam o coelho e o colocam de volta em sua casinha, no quintal dos vizinhos, buscando evitar que estes descubram que o cachorro o matou), chegando a alguma resolução final (descobre-se que o coelho já estava morto quando o cachorro o trouxe na boca). Cada objetivo é visto como causando alguma ação que leva a resultados. Os leitores consideram os eventos nesta cadeia causal principal como as partes mais importantes da história. O desenho da possível rede de conexões entre as cláusulas da história pode ser visto no apêndice três. Tal representação permite concluir quais sao as cláusulas que compõem a cadeia principal da história (detalhadas no anexo 4). A representação da rede e a definição da cadeia principal também decorreram de concordância entre três juízes.

 

Análise da estrutura macroproposicional da história

Utilizando a noção de macroestrutura do modelo de Kintsch e van Dijk (1978) e Kintsch (1988, 1998), juntamente com a noção de uma estrutura típica da narrativa, também denominada de gramática de histórias (Marotto, 2000; Stein & Glen,1976; Vieira, 2001), o texto selecionado foi dividido em cinco partes, ou níveis. Cada um deles corresponde a um episódio dentro da sequência típica das narrativas simples: ambientação, estabelecimento do problema/conflito, reação diante do problema, ação correspondendo à tentativa de resolver o problema, e resultado/desfecho final. Nesta etapa coube aos três juízes combinar a análise dos níveis macroproposicionais com a análise de cláusulas, verificando quais são as cláusulas da cadeia principal dentro de cada nível (apêndice quatro).

Procedimentos de Aplicação da Tarefa de Compreensão Leitora

A tarefa dupla deve ser aplicada individualmente e na seguinte ordem: reconto e questionário. O reconto é realizado após leitura silenciosa da história, sendo gravado e transcrito para análise e categorização. As questões são aplicadas após o reconto, da seguinte forma: o examinador faz a leitura oral das questões e das alternativas colocando-se ao lado da criança, de modo que esta também possa visualizar o material; depois de ouvir a questão e as quatro alternativas possíveis, a criança escolhe aquela que julgar a mais correta, resposta anotada no protocolo pelo examinador; o reconto da história deve ser solicitado em primeiro lugar, de modo a não permitir que o conteúdo das questões e das alternativas possam representar alguma interferência. Essa ordem vem sendo estabelecida em diferentes estudos sobre compreensão textual (Brandão & Spinillo, 1998, 2001; Salles & Parente, 2004).

Para testar o instrumento e verificar sua funcionalidade com crianças de quarta a sexta séries, bem como para decidir acerca da necessidade de qualquer adaptação, foi feito um estudo piloto com nove crianças, três alunos de quarta série, quatro de quinta série, e dois de sexta série. O estudo mostrou que o instrumento é de fácil aplicabilidade, e tem condições de detectar variações na compreensão entre diferentes participantes. O tempo médio de aplicação, incluindo a gravação do reconto e a resposta às questões, foi de 11:67 minutos.

Avaliação da Compreensão - Análise Quantitativa e Qualitativa do Reconto

Feita a análise do texto quanto às cláusulas e níveis macroestruturais, definiu-se como variáveis a serem extraídas do reconto o total de cláusulas recontadas, o total de cláusulas da cadeia principal da história, a porcentagem da cadeia principal da história recontada, e o número de inferências, de interferências e de reconstruções. É desejável que uma avaliação qualitativa complemente a avaliação quantitativa, levando em conta não apenas quantas, mas principalmente quais foram as cláusulas específicas que o participante/examinando reproduziu, bem como a maneira como ele as relacionou durante a reprodução oral do texto. Foram estabelecidos como critérios de avaliação do reconto: a completitude, através da presença/ausência dos níveis macroproposicionais da história; e a coerência, através da presença de inferências, interferências e reconstruções, bem como da forma de organização do relato, deixando ou não claros a sequência de eventos e os nexos causais que os unem. Os recontos, a partir dessa avaliação, podem então ser classificados em uma das cinco categorias descritas abaixo. A elaboração das categorias foi feita com base na teoria e na análise de mais de cem recontos de alunos de quarta a sexta séries, de escolas públicas e particulares. Para os objetivos do presente trabalho – descrever a construção do instrumento e ilustrar o método de avaliação da produção do participante –, julgou-se suficiente a apresentação de seis protocolos, exemplificando as características das diferentes categorias.

Categoria 5– O reconto é muito completo e coerente. A reprodução da narrativa feita pela criança segue um eixo em que as relações causais vão sendo explicitadas. Fica evidente que a criança pôde representar mentalmente a rede de conexões causais que ligam os eventos da história, através dos cinco níveis macroestruturais, revelando uma compreensão adequada do texto. As cláusulas do reconto que não correspondem às cláusulas do texto, caracterizam inferências. Pode haver interferências que alteram detalhes não importantes da história. Não há reconstruções. Todos os níveis são contemplados no reconto, e, dentro de cada nível, são recontadas a maior parte das cláusulas que fazem parte da cadeia principal da história. O reconto das cláusulas 32 e 34, ou pelo menos desta última, é essencial, pois é o que revela a compreensão do participante de que o coelho já estava morto e enterrado quando o cachorro o encontrou, de modo que não foi o cão que matou o coelho. Abaixo apresenta-se um exemplo de reconto classificado nesta categoria.

 

Quadro 1

 

Categoria 4 – O reconto é menos completo, em que cada cláusula é recontada com menos detalhes ou com menor precisão. Mesmo assim, a reprodução oral é coerente, revelando que o participante pôde representar a cadeia causal principal da narrativa, compreendendo que não foi o cachorro que matou o coelho. Nesta categoria há inferências. Podem aparecer interferências, ou mesmo reconstruções, mas, quando presentes, referem-se a detalhes que não alteram o sentido da história, além de serem pouco numerosas. Quanto à presença dos níveis, todos podem aparecer no reconto, embora com menos cláusulas dentro de cada nível (é possível estar ausente o nível 3, ou outro nível, desde que, no conjunto, as cláusulas recontadas, junto com as inferências, deixem claro que o participante entendeu a história). Quanto ao nível 5, se a cláusula 34 estiver ausente, a 32 deve estar presente (ou vice-versa), significando que o participante expressa a compreensão de que o coelho já estava morto quando seus donos foram viajar. Os critérios que diferenciam essa categoria da categoria 5 são ausência do nível 3, ou ausência da cláusula 34, ou a presença de reconstrução.

Categoria 3 –O reconto é incompleto. Os níveis da história não estão todos reproduzidos no reconto, e os que aparecem apresentam menos cláusulas. Nesta categoria aparecem interferências importantes, que alteram profundamente a narrativa, além de reconstruções, revelando falta de compreensão integral da história. Além disso, as interferências e reconstruções podem ser numerosas. O relato pode ainda ser desorganizado, não deixando clara a sequência de eventos, nem os nexos causais que os unem. Quanto à presença das cláusulas, aparecem pelo menos a 2 e a 4 (nível 1), a 10 e a 15 (nível 2), pelo menos a 21 (nível 4). O nível 3 pode estar ausente. Quanto ao nível 5 (resultado / revelação), o diálogo final pode aparecer de forma confusa, com as falas trocadas entre os personagens. As cláusulas 32 e 34, essenciais à compreensão da narrativa, estão ausentes. Por vezes a cláusula 34 (as crianças enterraram o coelho no quintal) aparece, mas é contada numa sequência diferente da história original; assim, alguns participantes contam que as crianças enterraram o coelho no final da história, depois que seus donos voltaram da viagem. Por vezes o nível inteiro está ausente.

 

Quadro 2

 

Os critérios que diferenciam essa categoria da categoria 4 são: ausência das cláusulas 32 e 34, ou presença de reconstruções numerosas ou importantes, no sentido de que alteram o sentido da história. Por outro lado, os critérios que diferenciam essa categoria da categoria 2, são a presença dos níveis 2 (sendo que as cláusulas 10 e 15 aparecem juntas) e do nível 4.

 

Quadro 3

 

Categoria 2–O reconto é incompleto e incoerente. As poucas cláusulas reproduzidas aparecem de forma descontextualizada, sem haver um encadeamento lógico. Aparecem interferências e reconstruções, indicando que a criança não compreendeu de fato a história. As interferências e reconstruções são numerosas. Os níveis da história não estão todos reproduzidos no reconto, e os que aparecem estão muito incompletos. Geralmente o reconto não ultrapassa o nível 2, sendo omitidas as cláusulas que compõem os níveis 3, 4 e 5 (pelo menos as cláusulas 32 e 34 estão ausentes).

Categoria 1 - O reconto é bastante incompleto e incoerente. Mesmo que alguns poucos episódios isolados de alguns dos níveis da narrativa estejam presentes, a reprodução oral da criança contém muitas interferências e reconstruções. O conflito ou problema não se estabelece com clareza (nível 2 pode estar ausente por completo), nem a tentativa de solucionar o problema (nível 4 pode estar ausente por completo), menos ainda a sua resolução, ou o desfecho final (o nível 5 pode estar ausente por completo). Mesmo o primeiro nível, que corresponde à ambientação da história, não é completo ou correto. Aparecem, por exemplo, assimilação de personagens entre si (a criança, por exemplo, refere um personagem, que possui dois animais).

 

Quadro 4

 

 

Quadro 5

 

 

Quadro 6

 

 

Discussão

Como diferentes modelos de compreensão leitora descrevem, o entendimento de um texto demanda do leitor um processo ativo de construcao de uma representação mental do material lido (Oakhill & Cain, 2006; Perfetti, Landi, & Oakhill, 2005; Trabasso et al. 1989; Suh, & Trabasso, 1993; Kintch, & Rawson, 2005). Diferentes fatores (neuro)psicológicos compõem esse processo. Entre eles, o papel da memória de trabalho e de longo prazo foi especialmente destacado no modelo de Kintch, enquanto que o aspecto de resolução de problemas que o entendimento do texto demanda foi salientado no modelo de Trabasso (Fletcher, & Bloom, 1988; Fletcher et al., 1996). Posto que tanto lembrar das partes do texto quanto relacioná-las de forma lógica são fatores igualmente necessários para encontrar sentido no texto lido, e, como consequência, garantir o sucesso da compreensão, ambos os aspectos devem ser contemplados na avaliação da habilidade. O reconto parece ser uma tarefa privilegiada para observar como o leitor compreende e retém ao mesmo tempo que relaciona os fatos da história. A análise do reconto, entretanto, não pode ser casual ou intuitiva, e requer um método que revele, através do protocolo do reconto, os aspectos da compreensão destacados nos modelos teóricos. O desenvolvimento desse método se inicia com a análise do texto a ser usado na avaliação, um texto narrativo neste caso.

A estrutura da narrativa apresenta tanto uma relação lógica entre os eventos e ações dos personagens, quanto uma organização macroproposicional desses eventos (Vieira, 2001), aspectos que precisam ser abrangidos pela representação do texto elaborada pelo leitor. Propusemos a operacionalizacao do primeiro aspecto a partir do modelo de Trabasso, enquanto que, a partir do modelo de Kintsch, poder-se-ia operacionalizar a verificação do segundo aspecto característico das narrativas. Isto foi possível através de uma análise híbrida do texto. De um lado foram identificadas as cláusulas da história, os links entre elas, e, em função dessa rede de relações causais, as cláusulas que compõem a cadeia principal da história. De outro lado o texto foi dividido em cinco partes, evidenciando desta forma sua estrutura macroproposicional. Assim, a presenca das cláusulas da cadeia principal, e dos níveis macroproposicionais, entre os quais aquelas cláusulas encontram-se distribuídas, além da forma de organização do relato, foram considerados aspectos indicadores da completude e coerência do relato do participante, isto é, como critérios para a atribuição dos protocolos a cinco diferentes categorias. Para tal atribuição ainda foram consideradas a presença de inferências, ou de interferências e reconstruções. O estabelecimento de categorias permite uma avaliação a um só tempo quantitativa e qualitativa do reconto da criança.

Os protocolos apresentados como ilustração, mostram a variabilidade de resultados que o instrumento permite revelar. A análise proposta em mais de cem protocolos (embora aqui apenas seis tenham sido apresentados), permitiu identificar cinco níveis de compreensão, correspondentes a cada uma das cinco categorias. Estas descrevem as diferenças entre os recontos, que variam desde aqueles que abrangem todos os níveis macroproposicionais, contendo as cláusulas que compõem a cadeia principal da história, bem como apresentando inferências, até aqueles que apresentam interferências e reconstruções, e que não logram representar todos os níveis macroproposicionais, nem alcançam os nexos entre os fatos da história. O instrumento parece ser capaz de estabelecer precisão nos resultados e confiabilidade na avaliação da compreensão textual.

A frequência de alunos em cada categoria de acordo com série, idade e tipo de escola, sera foco de analise em estudo posterior, com a amostra total de participantes da pesquisa para a qual o presente instrumento foi elaborado.

 

Considerações Finais

A pesquisa em compreensão leitora tem seus resultados, em grande parte, condicionados pelos instrumentos de avaliação utilizados. A elaboração cuidadosa desses instrumentos deve levar em conta a importância do uso de tarefas distintas, que se complementem, no sentido de abranger da melhor forma possível a complexa interação de fatores (neuro)psicológicos que compõem o processo de compreensão. A referência a modelos teóricos na elaboração do instrumento é de importância fundamental, especialmente quando se considera a forma de interpretar e pontuar recontos.

Neste trabalho nosso objetivo foi apresentar o processo de construção de um instrumento de avaliação da compreensão leitora, iniciando com a necessária referencia aos modelos teóricos que o fundamentam, e percorrendo todas as etapas dessa construção, a saber a seleção do texto, a análise do mesmo com base na teoria, e a operacionalização das variáveis derivadas da análise.

A opção pelas duas tarefas distintas que compõem o instrumento – questionário e reconto – procurou atender a necessidade de abranger da melhor forma possível a complexa interação de fatores (neuro)psicológicos que compõem o processo de compreensão. Foco de especial interesse e atenção nesse trabalho foi a tarefa do reconto, especificamente o metodo de avaliacao dos protocolos. Como procuramos deixar claro, e de fundamental importancia que os estudos sobre compreensao que se utilizam do reconto de textos, especifiquem e justifiquem o metodo utilizado dentro de um marco teorico. No caso da tarefa apresentada aqui, os modelos de Kintsch e Trabasso foram considerados complementares na descricao do processo de compreensao leitora, caracterizando a base teórica a partir da qual foi determinada a relação entre a medida empírica e o processo por ela medido.

 

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Endereço para correspondência
Helena Vellinho Corso
Rua Carlos Trein Filho, 441/301
CEP 90 450 120 - Porto Alegre, RS, Brasil
E-mail: hvcorso@gmail.com

Artigo recebido: 02/02/2012
Artigo revisado: 26/04/2012
Artigo aceito: 30/04/2012

 

 

Helena Vellinho Corso, Tania Mara Sperb e Jerusa Fumagalli de Salles. Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil.

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