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Revista do NUFEN

versão On-line ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.1 no.1 São Paulo ago. 2009

 

ARTIGOS

 

Analítica do Dasein e Daseinsalyse

 

Dasein's analytical and daseinsalyse

 

 

Nelson José de Souza Júnior1

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Federal do Pará (UFPA)

 

 


RESUMO

Análise de construtos heideggerianos elaboradas nos seminários do final de 65, sobretudo a diferenciação entre os horizontes e as estruturações da analítica do Dasein e a Daseinsanalyse; críticas ao pensamento heideggeriano pela psicologia, psicopatologia e antropologia; clarificação inicial do lugar, numa acepção estritamente fenomenológica, em que Heidegger, desde o início, posiciona as determinações mais importantes e sugestivas destas críticas: a dependência com a metafísica e a necessidade da objetivação dos entes e, particularmente, do homem. Conclusão: sobre a relação entre a Daseinsanalyse e a analítica do Dasein é oportuno salientar que o modo no qual Heidegger realiza sua crítica, sem dúvida desconstrutiva, nos posicionamentos de Binswanger tem a motivação de proporcionar um acesso, bem mais consistente e conseqüente, aos núcleos da relação, sempre tensa nuançada, entre ontologia fundamental e antropologia filosófica.

Palavras-chave: fenomenologia, analítica do dasein, daseinsanalyse.


ABSTRACT

Analysis of constructed heideggerians elaborated in the seminars in the end of 1965, above all the differentiation between the horizons and the Dasein's analytical structuring and Daseinsanalyze; critics to the heideggerian thought by the Psychology, psychopathology and anthropology; initial clarification of the place, in a strictly phenomenonlogic meaning, in that Heidegger, since the beginning, establish the most important and suggestive determinations of these critics: the dependence with the metaphysics and the need of the objectivation of the beings and, particularly, of men. Conclusion: about the relation between Daseinsanalyze and Dasein's analytical is opportune to point out that the way in which Heidegger accomplishes his critic, with no doubts unconstructive; in the Binswanger's positioning has the motivation of providing an access, much more solid and consequent, to the nuclei of the relation, always tense nuance, between fundamental ontology and philosophical anthropology.

Keywords: phenomenology, dasein's analytical, daseinsanalyze.


 

 

INTRODUÇÃO

É, sem dúvida, pertinente e, mais do que isso, indispensável afirmar que a procura pelo entendimento, principalmente nos seminários do final de 65, efetuada por Heidegger acerca da diferenciação entre os horizontes e as estruturações da analítica do Dasein e a Daseinsanalyse propicia um alcance central no qual se tornam nitidamente visíveis o teor e a composição das críticas feitas ao pensamento heideggeriano pela psicologia, psicopatologia e antropologia, tomadas nos seus sentidos mais usuais; assim como, também, possibilita a clarificação, pelo menos inicial, do a partir do que, ou seja, do lugar, numa acepção estritamente fenomenológica, em que Heidegger, desde o início, já posiciona as determinações mais importantes e sugestivas destas críticas: a dependência com a metafísica e a necessidade da objetivação dos entes e, particularmente, do homem.

Heidegger, nestes seminários, parte das três críticas que são, segundo ele, freqüentemente dirigidas tanto à analítica do Dasein quanto a Daseinsanalyse, no entanto mais fortemente à segunda. Diante deste direcionamento preliminar cabe ao que tudo indica, esclarecer por que estas duas "análises" parecem permanecer constitutivamente hostis, ou melhor, refratárias à ciência, à objetividade e a conceptualidade. Contudo, a distribuição dos elementos, sempre fenomenológica, realizada por Heidegger estabelece que tais críticas jamais poderão ser devidamente aclaradas e respondidas antes da compreensão do significado dos termos analítica e analisar para elas. O que isso quer dizer?

O deslocamento da interpretação do âmbito dos conteúdos da crítica para os dois seus pressupostos, isto é, dos seus a priori, garante a Heidegger o alicerçamento, ainda que tênue, em que uma pergunta capital se torna concretizável: O que, propriamente, entende a psicologia, quando fala em análise?

Como se dá, então, a compreensão fenomenológica do termo análise, fundamentalmente na analítica do Dasein? Em primeiro lugar, Heidegger enfatiza que apalavra analítica foi retirada da Crítica da Razão Pura de Kant, e, daí, absorvida, durante os anos 20, pelo projeto de elaboração de uma ontologia fundamental, em bases fenomenológico-hermenêuticas. Porém, esta articulação, em nenhum momento, pretende afirmar a dependência estrutural e metodológica da analítica do Dasein frente aos posicionamentos kantianos. O que propicia em vista disso, seu esclarecimento mais pormenorizado?

Em Kant, para Heidegger, o conceito de analítica evidencia, definitivamente, que ela é, sim, uma decomposição da faculdade do entendimento. Contudo, o que importa ser notado aqui é que o caráter constitucional de uma composição, e que já se encontra presente em Kant, não consiste, apenas, na decomposição em elementos. A decomposição, na primeira Crítica, se caracteriza por ser, fundamentalmente, não a recondução a supostos elementos primários, mas a uma unidade, isto é, a uma síntese de possibilitação da própria objetividade de objetos da experiência; o que para Heidegger corresponde a possibilitação ontológica do ser dos entes. Neste sentido, no conceito fenomenológico de analítica, na medida em que ele guarda o significado kantiano de uma unidade possibilitadora, não mantém nenhum vínculo positivo e produtivo com o problema da causalidade, uma vez que este problema apenas é concernente a uma relação ôntica, desde sempre orientada entre uma causa e um efeito. Qual, então, a legítima finalidade da analítica em Heidegger?

A motivação nuclear da analítica em Heidegger consiste na clarificação da unidade originária da estrutura da compreensão, isto é, da compreensão do ser, que é o próprio acontecimento do Dasein. Dizendo mais propriamente, a analítica, de acordo com os desenvolvimentos de Heidegger, tematiza uma "recondução", ou melhor, um retroceder ao que efetivamente une, conecta estruturas sempre co-originárias. Dessa maneira, a analítica possui como tarefa mais própria mostrar, num sentido especialmente fenomenológico, o que sustenta e organiza a unidade das condições de possibilitação ontológicas, sempre estruturantes e apriorísticas. Conseqüentemente, a analítica deve ser concebida como uma analítica ontológica, e nunca ôntica, como ainda ocorre em Kant, que possui, como já foi dito, o papel de articular a unidade máxima de estruturas co-originárias e eqüidistantes. Mas, qual a importância destes deslindamentos para o exame?

Se a centralidade do sentido da analítica em Heidegger corresponde ao seu caráter ontológico, se torna cabível e até mesmo, imprescindível, a partir daqui, o empenho para a realização de uma crítica, ou seja, de uma diferenciação fenomenológica entre a analítica do Dasein e a Daseinsanalyse. De que maneira esta distinção pode ser inicialmente delineada? Antes de qualquer coisa, Heidegger afirma que a Daseinsanalyse deve ser entendida como a "Daseinsanalyse psiquiátrica" de Binswanger. Isto significa dizer que Heidegger admite que na Daseinsanalyse elaborada por Binswanger haja, inquestionavelmente, a presença de elementos extraídos da analítica do Dasein, além de Heidegger reconhecer, sem grandes reservas, que Binswanger consegue, por assim dizer, obter uma "idéia", ainda que geral, isto é, vaga e confusa da totalidade estrutural do Dasein, enquanto ente privilegiado. Entretanto, o que deve ser destacado na Daseinsanalyse frente à analítica do Dasein?

Primeiramente, Heidegger rejeita, de maneira peremptória, toda tentativa de tornar a Daseinsanalyse de Binswanger uma "parte" da analítica do Dasein. O que, talvez, permita dimensionar com maior consistência e abrangência esta inadequação para Heidegger seja a sua necessidade de salientar, irônica e repetidamente, o "mal-entendido" produzido por Binswanger em relação à analítica do Dasein. No que ele consiste? Fundamentalmente, na afirmação de Binswanger de que há a indispensabilidade de uma complementação da estrutura existencial central que é o cuidado por um "tratado sobre o amor", o que teria sido, pretensamente, negligenciado pro Heidegger em Ser e Tempo. O que exprime, para Heidegger, este posicionamento, no mínimo bastante singular e inusitado de Binswanger?

A necessidade metodológica da complementação do existencial cuidado pelo "amor" evidencia, muito marcadamente, uma insuficiência, ou melhor, uma falta de Binswanger em relação ao que é propriamente elaborado em Ser e Tempo. Em outras palavras, Heidegger está apontando para a ausência na Daseinsanalyse de Binswanger de uma reflexão crítica suficientemente bem sustentada acerca de aspectos capitais da analítica do Dasein efetuada em Ser e Tempo. Quais aspectos, por conseguinte, parecem ser negligenciados pela Daseinsanalyse? Antes de tudo, na analítica do Dasein é firmado que este ente se ocupa primordialmente de si mesmo.

Contudo, também é estabelecido que o Dasein se constitui como um ser-com-os-outros igualmente originário. Dessa maneira, ocupando-se de si mesmo, o Dasein, desde sempre já está se ocupando dos outros entes, possuindo estes o seu caráter compreensivo ou não. Por essas razões, não há na analítica do Dasein nenhuma possibilidade deste ente vir a ser considerado como manifestação ou efetivação de uma subjetividade muito especial ou, muito mais preocupante e inadequado, de uma redução solipsística. Contudo, para Heidegger o "mal-entendido", de Binswanger não consiste na sua incapacidade de compreensão que o Dasein é, ao mesmo tempo, um ocupar-se de si se comportando com outros entes, o que propiciaria a reorientação da analítica do Dasein para o âmbito de subjetividade moderna. Muito antes disso, o que não ocorre em Binswanger é a mínima visualização que não só o cuidado, mas todas as estruturas co-originárias do Dasein possuem, necessariamente, um sentido existencial, isto é, ontológico, o que põe a analítica do Dasein como o questionamento, enquanto interpretação, dessas estruturas existenciaisontológicas, e, por essa medida, já a distancia e, no fundo, a impede de abranger o que diz respeito à descrição, pura e simples, dos fenômenos e da fenomenalidade ôntica do Dasein.

Buscando uma explicitação mais nuançada e minuciosa, o que compreende o projeto do que Heidegger expressa como o "ser-homem como Dasein no sentido ek-stático" é inteiramente ontológico, principalmente porque, de um modo mais direto, este projeto supera de modo não-dialético, ou seja, rejeita acentuando as insuficiências e os comprometimentos da tradicional representação do homem da filosofia moderna, desde Descartes, como subjetividade, consciência de si, reflexividade, e assim por diante. Porém, qual o verdadeiro propósito destas articulações operadas por Heidegger em confronto com a Daseinsanalyse?

A pergunta pela constituição ontológica do ser-homem como Dasein permite tornar claro e presente que a compreensão do Ser (Seyn) é o que constitui fundamentalmente o Dasein. De um modo mais imediato, como acentua Heidegger, este caráter constitutivo é decisivo para o início do questionamento da relação entre o Dasein, ou seja, do ser-homem como existente e o ser dos entes, isto é, tanto dos entes que não possuem o caráter do Dasein quanto do próprio Dasein. Portanto, o questionamento da relação entre o Dasein e o ser dos entes somente pode emergir do questionamento primordial do sentido do Ser, o qual, por sua vez, pertence inequivocamente ao acontecimento compreensivo do próprio Dasein.

Se estas insuficiências estão marcadamente presentes e condicionam, de uma vez por todas, o entendimento das motivações da analítica do Dasein pela Daseinsanalyse, o que, se os termos são pertinentes, molda e envolve a psiquiatria de Binswanger? De acordo com Heidegger, a questão do Ser enquanto tal, radicalmente distinta da questão do ente enquanto ente e da questão de ente em relação ao seu ser, jamais foi posta pela filosofia. A não visualização deste pressuposto crucial por Binswanger evidencia, inegavelmente, a partir da própria afirmação de que Ser e Tempo continua e desdobra o que já havia firmado por Kant e Husserl, dependências, aparentemente insuspeitadas, em suas formulações e conceituações que necessitam ser aclaradas. O que isto quer significar?

É correto afirmar, ainda que de modo bastante resumido, que a fenomenologia de Husserl, tal como Heidegger a tematiza, permanece no território de uma fenomenologia da consciência. Em virtude direta disso, a sua permanência no âmbito da consciência pura, de eu transcendental a impede de perceber as modificações essenciais, segundo Heidegger, trazidas pela hermenêutica fenomenológica do Dasein. Desse modo, e sem que se possa, aqui, desenrolar os elementos mais relevantes da relação entre Dasein e a intencionalidade da consciência, o que efetivamente interessa para a analítica do Dasein é o estabelecimento das determinações nas quais há o esclarecimento da relação do ser do Dasein com o Ser enquanto tal. Isso é, de alguma maneira, condizente com o projeto psiquiátrico de Binswanger?

Sem dúvida alguma, não. Contudo, ainda que se esteja buscando uma aproximação criteriosa e bem sustentada entre analítica do Dasein e a Daseinsanalyse, já se pode afirmar, sem grandes riscos, que a Daseinsanalyse se move no nível que corresponde, ineliminavelmente, ao da pergunta o que é o homem. Com isso, ela revela, de modo decisivo e definitivo, o seu caráter antropológico, se dedicando abertamente à execução, ou seja, ao por em operação certos caracteres essenciais do Dasein retirados da analítica de Heidegger, por intermédio de uma vinculação ao que ocorre em um indivíduo, ou melhor, em um existente histórico-socialmente determinado em cada caso. Objetivando uma explicitação mais adensada, a constituição da Daseinsanalyse intenciona, nos seus próprios limites, alcançar a completude de uma disciplina possível que se auto-impõe a tarefa de demonstrar os fenômenos existenciais comprováveis do Dasein social-histórico e individual relacionados no sentido de uma antropologia ôntica, supostamente oriunda da analítica do Dasein. No entanto, isto se fundamenta, se sustenta?

Heidegger, também, responde a esta pergunta de maneira enfaticamente negativa. Porém, antes de apresentar os conteúdos centrais da rejeição heideggeriana às finalidades subjacentes da psiquiatria de Binswanger, cabe elucidar o modo no qual a própria Daseinsanalyse retira e, principalmente, absorve elementos estruturantes e organizadores, sempre apriorísticos, da analítica do Dasein, desenvolvida em Ser e Tempo. Heidegger afirma, inicialmente, que a Daseinsanalyse extrai e, muito especialmente, se apropria, por assim dizer, da constituição fundamental do Dasein: ser-no-mundo. Estranhamente, para Heidegger, Binswanger parece se utilizar, abundante e irrestritamente, deste constitutivo existencial nuclear, chegando a alicerçar nele os seus desenvolvimentos mais relevantes e mais sugestivos. Contudo, o que dificulta o modo de absorção efetuado pela Daseinsanalyse do existencial ser no mundo?

Ao autonomizar precipitadamente o constitutivo ser no mundo, o Daseinsanalyse se impossibilita, de uma vez por todas, de perceber que este caráter fundamental do Dasein corresponde, sim, a estrutura primária que é mostrada na primeira parte da ontologia fundamental, entretanto, e isto é decisivo, ela não é a única estrutura, o único constitutivo essencial do Dasein e, muito menos, o para o que se dirige às motivações da própria ontologia fundamental em relação ao Dasein, uma vez que, como já foi salientado anteriormente, a constituição principal do Dasein corresponde ao que Heidegger denomina de compreensão do Ser. Em outras palavras, este modo ao mesmo tempo, do Dasein se diferenciar dos demais entes, e de se fundamentar relacionando-se consigo mesmo compõe, sem dúvida alguma, a ocupação por excelência de Ser e Tempo.

Em virtude desses aclaramentos, se torna indispensável firmar, em primeiro lugar, que na analítica do Dasein o que é realizado sobre o esclarecimento do próprio Dasein (serno- mundo, cuidado, ser-para-a-morte, temporalidade, etc) cumpre a tarefa de tornar melhor dimensionável e determinável o que Heidegger entende como a compreensão do Ser. Além disso, na estrita medida em que esta compreensão do Ser se encontra na abertura positiva do aí (Da) do Dasein, constituindo-o mais propriamente, este ente privilegiado se manifesta enquanto o que mantém, em si mesmo, uma relação ontológica com o Ser. Qual, então, a necessidade expositiva destas articulações?

Para Heidegger, a relação com o Ser não tem como ser subtraída ou, mesmo, negligenciada da constituição do Dasein, uma vez que a ocorrência disto acarretaria, prontamente, a impossibilitação do pensar o Dasein enquanto Dasein. Esta subtração, razão dos mais diversos mal-entendidos, reaparece, muito fortemente, na Daseinsanalyse psiquiátrica. Isto significa dizer, ainda que de maneira muito concentrada, que, como acentua Heidegger, a compreensão do Ser não deve ser caracterizada como uma determinação concernente apenas ao domínio da ontologia fundamental. Muito antes disso, ela constitui a determinação mais fundamental e, portanto, principal do Dasein enquanto tal. Sendo assim, qualquer pretensa análise do Dasein que negligencia ou, pura e simplesmente, omite a sua relação com o Ser, que se dá na compreensão, perde, desde o início, o seu alcance ontológico e mais determinante.

Retornando ao âmbito da Daseinsanalyse, o efeito mais imediato da omissão da constituição mais fundamental do Dasein consiste, inequivocamente, na realização de uma interpretação inadequada do ser-no-mundo e de transcendência. O que isto quer dizer? Antes de qualquer coisa, que estes dois constitutivos, considerados fenomenologicamente, são tomados, pela Daseinsanalyse, somente como fenômenos de um Dasein, sempre isolado em si mesmo, caracterizado enquanto representação antropológica do homem enquanto sujeito. Neste sentido, o que está em jogo na absorção de certo traços na analítica do Dasein nada mais é do que a procura por uma caracterização, no máximo mais adequada e promissora, da subjetividade do sujeito. Como, então, isto pode ser reconhecido?

Heidegger diz que a tematização do sujeito, ou melhor, da subjetividade do sujeito se ancora, na época moderna, numa rigorosa e inflexível divisão entre sujeito e objeto. Ao tomar para si o existencial ser-no-mundo, a psiquiatria de Binswanger, na verdade, pretende eliminar esta separação através de uma pretensa transposição direta. Contudo, o que a Daseinsanalyse não consegue perceber no domínio ontológico da compreensão do Ser, condição de possibilidade do ser-no-mundo, é que não é mais necessária a persistência na representabilidade do sujeito e do objeto. Muito pelo contrário, o que Heidegger está intencionando afirmar é que o "problema" da subjetividade per si não é um problema autenticamente filosófico, porém, um problema derivado. Positivamente, entretanto, o que passa a revelar um exame mais cauteloso e crítico da incorporação de elementos da analítica do Dasein pela psiquiatria de Binswanger é, no fundo, ao eliminar o caráter central da ontologia fundamental, isto é, a compreensão do Ser enquanto, um entendimento distorcido e bastante trivializado da relação, igualmente capital em Heidegger, entre a própria ontologia fundamental e as ontologias regionais, uma vez que a ontologia fundamental cumpre o papel ineliminável de ser uma pressuposição ôntico-ontológica para toda e qualquer ciência, inclusive a psiquiatria, ou melhor, a psicoterapia. Como dimensionar, portanto, melhor este arranjo?

Durante o final da década de 20, Heidegger, em diferentes momentos e lugares, afirma que a ontologia fundamental não pode ser considerada como uma simples ontologia maximamente universal frente às ontologias regionais. Decididamente, esta não é a tarefa a ser realizada por ela, já que ela não se encontra num suposto âmbito mais elevado frente às regionais. Muito diferentemente disso, o Heidegger visa enfatizar é que a ontologia fundamental necessita ser entendida como um pensar que se movimenta no fundo de toda ontologia. Isto significa dizer, ainda que sucintamente, que a ontologia fundamental funda as demais ontologias, na medida em que mostra, fenomenologicamente, o modo de ser o Dasein: ser-no-mundo. Assim como tem a condição de possibilidade para a ocorrência de ser-nomundo: a compreensão do Ser. E, mais importante, revela no que está propriamente fundada esta condição de possibilidade: o desvelamento do Ser pelo Dasein enquanto destinação do próprio Ser. Diante, portanto, deste tríplice escopo, nenhuma ontologia regional pode aclarar os pressupostos nos quais as ontologias, desde sempre, já se encontram e são essenciais para as suas fundamentações. Desse modo, a ontologia regional da psiquiatria, que se institui, enquanto investigação, no âmbito da essência do homem, não tem como reservar para si o papel de ontologia fundamental.

Mas, o que estas articulações sobre a relação entre a Daseinsanalyse e a analítica do Dasein permitem perceber com maior agudeza? Talvez seja oportuno salientar que o modo no qual realiza sua crítica, sem dúvida desconstrutiva, nos posicionamentos de Binswanger tenha a motivação de proporcionar um acesso, bem mais consistente e conseqüente, aos núcleos da relação, sempre tensa nuançada, entre ontologia fundamental e antropologia filosófica.

 

REFERÊNCIAS

HEIDEGGER, M. Seminários de Zollikon. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001.         [ Links ]

STEIN, E. Diferença e Metafísica. Porto Alegre, RS: EDIPUCRS, 2000.         [ Links ]

__________. Pensar é Pensar a Diferença. Ijuí, RS: Ed. Unijuí, 2002.         [ Links ]

 

 

Artigo Recebido em 6 de novembro de 2008
Aceito para publicação em 2 de fevereiro de 2009.

 

 

1 Doutor em Filosofia. Diretor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Federal do Pará (UFPA). e-mail: nsouzajr@yahoo.com.br

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