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Revista do NUFEN

versão On-line ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.1 no.1 São Paulo ago. 2009

 

ARTIGOS

 

A modernidade da família moderna

 

The modernity of the modern family

 

 

Carlos Alberto Batista Maciel1

Programa de pós-graduação em Serviço Social da Universidade Federal do Pará (UFPA)

 

 


RESUMO

Este texto discute sobre a instituição família nos dias atuais. Argumenta acerca do avanço do indivíduo e a redução dos espaços destinados ao coletivo no ambiente social da família, e sobre as relações contraditórias entre a família, o indivíduo e a sociedade na atualidade.

Palavras-chave: família moderna, individualismo, processo civilizador.


ABSTRACT

This text discusses the family institution today. Claims about the progress of the individual and the reduction of spaces for the collective in the social environment of family, and the contradictory relationship between the family, the individual and society at present.

Keywords: modern family, individualism, civilizing process.


 

 

INTRODUÇÃO

No inicio deste século XXI a instituição família está enfrentando desafios decorrentes do acirramento das contradições econômico-político-sociais e culturais que montam um "tabuleiro" em que os atores desta instituição tendem a não compreender claramente as regras da gramática social que lhes compete neste "texto e contexto".

Frente aos impactos gerados pela intensificação e multiplicação das relações entre os agentes econômicos provenientes de diferentes pontos do espaço mundial, e seus impulsos sobre a quantidade e a velocidade das informações que circulam no mundo condicionando (em conjunto aos interesses econômicos e políticos) alterações espaciais, políticas, sociais e culturais, a instituição família defronta-se ainda com a desintegração dos símbolos e modelos de autoridade e de educação tradicionais, ao mesmo tempo em que mantém a condição (e talvez obrigação social) de continuar a ser um espaço privilegiado de socialização primária e de constituição e aprendizagem do sentimento de pertencimento que os indivíduos são sujeitados socialmente.

Neste texto, pretende-se refletir aspectos do caminho que vai da família moderna à modernidade da família, para contribuir na compreensão da complexidade desta trajetória, uma vez que a relação entre sociedade – família – indivíduo está longe de ser harmônica e sem conflitos, especialmente na realidade contemporânea em que imputa-se velozmente a corrosão da representação da condição social do homem em favor do individualismo exacerbado.

Para tanto, dividiremos essa abordagem em três seções afim de, didaticamente, organizar as idéias e reflexões que podem colaborar na problematização acerca dos desafios impostos à família moderna, são elas: Mundo Contemporâneo: entre o ideal e o real; Família Moderna: entre o público e o privado; e Família x Indivíduo x Sociedade: caminhos que se cruzam e se afastam.

 

Mundo Contemporâneo: entre o ideal e o real

O mundo contemporâneo é o mundo capitalista moderno, em que, segundo Debord (2000) se tornou o mundo do espetáculo da mercadoria. Esta compreensão parte do entendimento de que a lógica da produção da mercadoria se torna a lógica que se institui como hegemônica no viver cotidiano.

Dito de outra maneira, a racionalidade, os valores e a sociabilidade necessários à produção da mercadoria se espraiam para a integralidade da sociedade, procurando se tornar totalizante, pois não basta produzir a mercadoria é preciso também reproduzir idealmente a mercadoria nos indivíduos. Por isso Marx afirmou que o capital é uma relação social.

As implicações desta assertiva estão no fato de que a sociabilidade da produção tende a se tornar a sociabilidade da reprodução, pois a esfera da reprodução social, via de regra, reafirma repetidamente a sociabilidade e os valores presentes no processo de produção da mercadoria.

Daí porque a realidade social não é constituída somente pela produção econômica, mas também pela cultura que se articula a produção, seja reiterando-a, seja manifestando as suas contradições. De qualquer forma a cultura tende a ser um componente integrador ou unificador de uma sociedade (Featherstone, 1997), ou como prefere Marcuse (1997) "a cultura não é crítica, mas integradora: faz parte das condições sociais que favorecem a perpetuação da sociedade vigente" (1997 p.26).

Se isto é verdadeiro, significa dizer que o mundo capitalista precisa de uma cultura capitalista para se manter e se reproduzir. Assim, o cotidiano é mediado por uma socialização que prepara e adestra as pessoas para acreditarem e reproduzirem os valores e as regras da sociedade em que vivem. Portanto, ao viverem na sociedade da mercadoria, é bem provável que os indivíduos tenham incorporados, a despeito do desconhecimento deste fato, os valores e as regras desta mesma sociedade.

Em suma, a sociedade moderna necessita além de braços para a produção da mercadoria, precisa que se ratifiquem diariamente seus valores, sua sociabilidade, enfim que se credite no espetáculo da mercadoria o próprio horizonte da humanidade.

É por isso que o consumo de bens simbólicos é usado para estabelecer os limites dos relacionamentos sociais, ou seja, os bens consumidos são usados para delimitar fronteiras invisíveis (mas funcionais) para criar e demarcar as diferenças ou o que existe de comum entre grupos de pessoas.

Entretanto, o fato de se reconhecer que o consumo dos bens são marcadores de fronteiras não implica em desconsiderar que esse fenômeno não é propriedade exclusiva da sociedade capitalista. Isto porque os bens já eram usados como diferenciadores de classes sociais há muito tempo.

Ocorre que a sociedade capitalista contemporânea alcançou um nível de complexificação que faz com que o fetiche da mercadoria aparente um grau de autonomia em que ela quase adquiriu "vida própria", como se ela fosse capaz de criar o seu próprio valor de uso.

Daí porque Debord (2000) considera que a sociedade da mercadoria tem no espetáculo "a afirmação da aparência e a afirmação de toda a vida humana – isto é, social – como simples aparência" (p.16). É por isso mesmo que nos dias de hoje "o que aparece é bom, o que é bom é o que aparece" (p.17).

Abre-se assim o caminho para a valorização do efêmero e do descartável em detrimento do duradouro. Assim como a mercadoria hoje consumida rapidamente se torna obsoleta e descartável, exigindo assim a sua substituição por uma nova, as relações de sociabilidade tendem a ser moldadas pela vivência do aqui e do agora, com uma existência efêmera produzidas nas regras da sociedade da sensação (Türcke, 2004).

É isso que faz com que Jameson (2001) afirme que "a cultura de massa assim como o outro lado da mesma moeda, a alta cultura transformada em grife, são também campos de treinamento onde aprendemos as regras fundamentais do jogo contemporâneo, o jogo do consumo" (p.9).

Sem saber, os indivíduos são treinados e adestrados para viverem e acreditarem nos valores e nas regras presentes na sociabilidade da sociedade do espetáculo da mercadoria.

Desta forma, o homem moderno ao incorporar a cultura do consumo tende a realizar um processo de transformação dos julgamentos morais em julgamentos de gosto. Em outras palavras, o domínio da ética se esvazia em favor da estetização da vida cotidiana (Featherstone, 1977; Türcke, 2004), o que tende a causar uma diminuição acentuada da reflexão e da crítica nos indivíduos em sociedade, e assim se cria uma "heteronomia2 sob a máscara de autonomia" (Marcuse, 1998 p.172).

A perversidade dessa situação está no fato de que, devido à ampla socialização a que os indivíduos em sociedade ficam sujeitos, a heteronomia se institui como "normal", e as pessoas obedecem às leis invisíveis da sociedade do espetáculo da mercadoria, que com o seu excesso de imagens cria um mundo de simulação, alucinatório e sem profundidade que tende a apagar as distinções entre o real e a idealização do real.

Inundado pela carga de estímulos do mundo saturado de imagens, o indivíduo se vê impactado e obrigado a responder incessante e ininterruptamente a esses mesmos estímulos. Sua sobrevivência fica associada à criação de uma rede que amortece os choques produzidos por esta inundação cotidiana, ao mesmo tempo em que produz o mundo da vivência na superficialidade. Vivência que prepara o homem para o agir superficial da aparência, ao mesmo tempo em que conspira contra a introspecção e a reflexão, corroendo assim a experiência humana (Benjamim, 1989).

Do mesmo modo, os indivíduos capitulados pela vivência em detrimento da experiência tendem a ser objetos de uma semiformação que exige deles "um mínimo para que alcance a satisfação do narcisismo coletivo: basta a freqüência de um certo colégio ou instituto, ou, ainda, a simples aparência de se proceder de uma boa família" (Adorno, 1996 p.405) para que eles se bastem e passem a adotar ares de bem informados e que estão a par de tudo.

A vivência na aparência destitui o indivíduo da experiência humana, pois esta "exige ‘perder tempo’ com as pessoas, com os objetos, exige o otium – tempo reservado para fortalecer as coisas do espírito – supõe um olhar longo e contemplativo sobre o mundo" (Silva, 2001 p.14).

A sociedade da mercadoria, em que tudo é consumido rapidamente, não deixa espaço para se "perder tempo" com as pessoas e com os objetos, afinal "tempo é dinheiro". Se não se pode "perder tempo" com os outros resta-se "perder tempo" consigo próprio. Joga-se cada vez mais as fichas no enclausuramento das práticas individualistas e busca-se a realização na felicidade prometida pelo último modelo de celular, do carro novo, da televisão e do dvd com teclas e funções que talvez nunca sejam utilizadas por seus compradores.

Essa apologia do individualismo em que o indivíduo precisa estar sempre preparado para o mercado, a fim de não perder a empregabilidade, ou seja, estar dominando a tecnologia mais moderna, falar duas ou mais línguas e ter outras habilidades que o preparam para ficar sempre atento as oportunidades pode cristalizar uma espécie de endurecimento com ele próprio.

Esse endurecimento ocorre justamente porque o indivíduo ocupa quase a integralidade do seu tempo com práticas sociais substanciadas pela racionalidade instrumental que tende a avaliar os prós e contras de cada ação a fim de obter as maiores e melhores vantagens dos seus esforços pessoais. É a institucionalização da regra do custo x benefício em cada ação humana. Esse processo tende a se instituir como modelo de sociabilidade entre os indivíduos em sociedade. O extremo dessa lança é a instituição de relações instrumentais como padrão de sociabilidade. Mas como alerta Adorno "aquele que é duro consigo mesmo se arroga o direito de ser duro também com os demais e se vinga neles da dor que não pode manifestar, que teve de reprimir" (Adorno, 1995 p.114).

Como corolário tem-se o aparecimento de um campo fértil para o surgimento da indiferença como comportamento social. Esta indiferença revela uma "incapacidade para a identificação com o outro" (Silva, 2001 p.8), pois a realização do individualismo não incorpora o outro, a não ser na perspectiva utilitarista. É por isso que a ganância, o egoísmo e o individualismo ganham terreno velozmente, juntamente com a indiferença, o preconceito e a intolerância com o diferente que representa uma ameaça ao modo de vida do individualista.

Desta forma, "o preconceito ao desumanizar o outro e tratá-lo como ‘diferente’ ou ‘inferior’, justifica que se pratique contra ele todo tipo de atrocidade" (Silva, 2001 p.214) que se torna banalizada, se não por todos, pelo menos por seus praticantes.

É assim que os indivíduos de hoje "estão mais parecidos com seu tempo do que com seus pais" (Debord, 2000 p.182). É como se o racionalismo da sociedade moderna tivesse conseguido definitivamente produzir "um homem totalmente self-made" (Gellner, 1992 p. 181).

Não obstante, crer em um indivíduo totalmente auto-realizador é uma ilusão tola, mas que tem encontrado guarida em justificações ideológicas que desconhecem o fato de que a humanidade e os seres humanos são produtos de um processo coletivo. O mundo acadêmico, inclusive, tem sido um dos espaços em que são aradas as ideologias e as práticas individualistas que corroem o coletivo e fragilizam a dimensão genérica do ser humano.

Todavia, por mais totalizante que a sociedade da mercadoria pareça ser, especialmente pelas suas manifestações atuais como a globalização e o neoliberalismo, os ensinamentos de Berger e Luckmann (1995) afirmam que não existe um indivíduo totalmente institucionalizado, como também um ser humano sem qualquer institucionalização.

Dito diferente, a complexidade do ser humano é tão grande que faz com que seja impossível alguma cultura hegemônica integrar e controlar tudo e a todos. Por isso, o mundo assiste em diferentes lugares, o ressurgimento do senso de pertença com o aparecimento de práticas sociais que valorizam e fortalecem a luta contra a perda do senso de lugar. São práticas culturais locais que integram indivíduos a partir de uma perspectiva relacional que pretende construir uma identidade coletiva de lugar.

Daí porque essas práticas culturais locais tendem a usar metáforas como conceitos integradores de suas práticas sociais como sangue, solo, enraizamento, terra – natal e outras, que dão identidade e senso de pertença aos componentes dessas localidades (Featherstone, 1997). Essas manifestações de culturas locais parecem que reclamam a presença de Horkheimer a fim de que ele afirme que:

... há ainda forças de resistência dentro do homem. Contra o pessimismo social, há evidências de que apesar do contínuo assédio dos padrões coletivos, o espírito da humanidade ainda está vivo, se não no indivíduo enquanto membro de grupos sociais, pelo menos no indivíduo enquanto está só (Horkheimer, 2000 p.143).

Por isso a valorização e o fortalecimento dessas culturas de resistência são importantes. Ao mesmo tempo, é necessária uma atenção especial sobre os "subprodutos" da democracia burguesa dos dias atuais, em particular a democracia americana que pretende ser o paradigma e a referência para o mundo. Como destaca Debord (2000) "esta democracia tão perfeita fabrica seu inconcebível inimigo, o terrorismo. De fato, ela prefere ser julgada a partir de seus inimigos e não a partir de seus resultados" (p.185).

Assim, os "subprodutos" dessa democracia que se pretende hegemônica devem ser alertas para se pensar acerca da forma e do conteúdo de uma democracia que realiza a promessa de melhoraria da sociedade somente para uns, e a grande maioria, mesmo incluída no sistema democrático acaba sendo excluída dos bens e serviços produzidos pela mesma sociedade democrática.

Por outro lado, exige-se uma especial atenção sobre a imensa capacidade de subversão da sociedade da mercadoria. Esta sociedade tem um "toque de Midas" que tende a transformar tudo que toca em mercadoria, e assim mercantilizar até as formas de resistência contra ela própria. São exemplos sintomáticos, o movimento feminista, o movimento negro e de homossexuais que na atualidade se tornaram nichos de mercado, assim como o skatistas, os surfistas, etc. Sob esta questão Horkheimer alerta:

Os remanescentes da mitologia germânica foram uma força oculta à civilização burguesa. Sob a superfície da aceitação consciente do dogma e da ordem, as velhas lembranças pagãs ardiam secretamente como credo popular. Elas inspiraram a poesia, a música e a filosofia alemã. Uma vez redescobertas e manipuladas como elementos de educação de massas, seu antagonismo em relação às formas predominantes da realidade desapareceu, e se tornaram instrumentos da política moderna (Horkheimer, 2000, p.72).

Essa atenção crítica deve ser constante para não se adotar uma interpretação ingênua das culturas populares, dos bairros, etc. O elemento de resistência para se manter precisa ser capaz de fortalecer a experiência humana a partir de uma nova sociabilidade e uma nova ética, a fim de "reestabelecer nos indivíduos a capacidade para ‘experiência’ que permitissem um vínculo com valores e crenças, há muito suplantadas pelo pragmatismo da razão instrumental" (Silva, 2001 p.226).

Existe ainda a possibilidade de se aprofundar o conhecimento da sociabilidade humana para se investigar e identificarem-se elementos do social que escapam da totalização da sociedade da mercadoria. Esse esforço tem sido empreendido, por exemplo, pela escola francesa do Movimento Anti-utilitarista nas Ciências Sociais – MAUSS, que parte da compreensão de que o "social tem regras próprias não redutíveis às dimensões estatais e mercantis" (Martins, 2002 p.12).

Conhecer mais profundamente o homem e a sua sociabilidade pode nos oferecer pistas para a resistência e a luta contra a lógica da mercadoria e da cultura do consumo. E ainda, recuperar o genérico, o coletivo e o universal em um mundo em que se crê que o que existe é um mar de indivíduos isolados e fragmentados. Por isso mesmo vale lembrar a observação de René Pomeau na introdução do livro de Voltaire "Tratado Sobre a Tolerância" (2000), No mundo em que vivemos, dois séculos depois de Voltaire a universalidade faz da tolerância um dever, para que os indivíduos sejam capazes de reconhecer no diferente uma das muitas possibilidades de realização humana em vez de se conformarem ao fatalismo anacrônico da sociedade da mercadoria.

 

Família Moderna: entre o público e o privado

Nesta seção pretendemos desenvolver uma reflexão acerca da família moderna quanto à posição que esta ocupa na relação público e privado. A idéia central que movimenta esta abordagem está no fato de que, atualmente, a instituição família não assume mais uma configuração hermética frente ao espaço público.

Dito de outra forma, a disposição comumente considerada da instituição família como um espaço privado, e, portanto, lugar separado do público, sem ingerência externa, não encontra, atualmente, guarida nem na legislação brasileira em vigor nem nas relações produzidas por uma socialização ampla formada pela conjugação das ações de diferentes instituições que participam e formam a sociedade em geral.

Esse debate parte do reconhecimento do fato histórico do surgimento das esferas pública e privada em articulação ao desenvolvimento da civilização humana. Segundo Arendt (1991, p.33) "O surgimento da cidade-estado significava que o homem recebera; ‘além de sua vida privada, uma espécie de segunda vida o seu bio politikos’".

Desta forma, o homem provinha de duas entidades diferentes nas antigas cidadesestado gregas: a esfera privada ou da família, e a esfera pública ou da política. Ocorre que essas diferenças tinham efeitos e implicavam em obrigações distintas, mas necessariamente articuladas, pois "sem ser dono de sua casa, o homem não podia participar dos negócios do mundo porque não tinha nele lugar algum que lhe pertencesse" (Arendt, 1991, p.39).

Como esfera privada o espaço familiar era o lugar em que os homens eram subjugados pelas obrigações de suas necessidades e carências humanas, portanto insuprimíveis em si. Diferentemente, a esfera pública ou polis "era a esfera da liberdade, e se, havia uma relação entre essas duas esferas era que a vitória sobre as necessidades da vida em família constituía a condição natural para a liberdade na polis" (Arendt, 1991 p.40)

Para as cidades-estado gregas a esfera da polis era formada por iguais, enquanto que na família reinava a desigualdade em que o chefe do lar precisava dominá-la para ascender à esfera política como igual entre os seus pares.

O grande abismo entre a esfera pública e a privada somente foi superado, paulatinamente, na passagem do período medieval ao período moderno. Esse processo configurou a associação entre o privado e a esfera da intimidade com o surgimento e a expansão da privacidade moderna que, por sua vez, tinha como função proteger o íntimo, a intimidade "contra as exigências niveladoras do social, contra o que hoje chamaríamos de conformismo inerente a toda sociedade" (Arendt, 1991, p.49).

Entretanto, a privacidade moderna, embora pretenda aparentemente proteger a esfera íntima, tem funções mais complexas e profundas. Uma vez que essa privacidade alcança inclusive a organização do próprio espaço familiar, aumentando em número os quartos privados que tende a ampliar o isolamento dos membros da família, ocorre em paralelo a diminuição do local de permanência e sociabilidade, comum entre os indivíduos do espaço familiar (Habermas, 1984).

A resultante da sedimentação da privacidade moderna sobre os ambientes familiares é a constituição de um espaço cada vez mais preparado para a sociabilidade do indivíduo e menos constituído para a sociabilidade da família enquanto grupo.

Isto quer dizer que o espaço familiar (mas não só ele) passa a organizar e ser o organizador de uma sociabilidade formadora da moderna individualidade. É "o local de uma emancipação psicológica" (Habermas, 1984, p.62) que, em conjunto com a totalidade das instituições sociais que preparam os indivíduos para a prática social, vivificam uma cultura com a dinâmica histórica da contemporaneidade.

Cultura presente nos "hábitos, costumes, arte, religião e filosofia" que "em seu entrelaçamento, sempre constituem fatores dinâmicos na conservação ou ruptura de uma determinada estrutura social" (Horkheimer, 1990, p.181). Cultura que ao ser produto, produtora e reprodutora do individuo e sua individualidade, se calça na constituição de um aparelho psíquico (Horkheimer, 1990) que dispõe as fronteiras por onde o individuo se movimenta para se credenciar como parte do mundo moderno.

Todo um sistema de instituição, pertencente ele mesmo à estrutura da sociedade, se acha em ação recíproca com esta determinada condição psíquica, de tal forma que ela, de um lado, reforça-a continuamente e ajuda-a a reproduzir-se e, de outro, ele mesmo é conservado e fomentado por ela (Horkheimer, 1990 p. 189)

Esse processo, em que a família faz parte, pretende produzir o credenciamento do indivíduo como integrante do mundo social que o cerca e, para tanto, condiciona e sedimenta dois movimentos que, via de regra, são representados como separados. Se por um lado os indivíduos incorporam a crença de que são autônomos e livres para o desenvolvimento de inúmeras potencialidades humanas realizadas na esfera da sociedade, por outro lado tende-se a representar que a esfera íntima da família é um espaço sem qualquer coação ou exigência social externa.

Não obstante, o indivíduo crente de que é livre e a família considerada como autônoma, na realidade, fazem parte de um mesmo processo complexo e articulado à socialização ampla. Isto porque tanto a família não se encontra isenta de injunções e de coações da cultura e dos interesses econômico - políticos e sociais hegemônicos, quanto o indivíduo tende a ser moldado para incorporar, além de uma estrutura de personalidade individual (Elias, 1994) vista e desejada como ideal, e também os padrões de desenvolvimento social expectados para as diferentes práticas sociais a serem desenvolvidas nas diversas instituições que o indivíduo faz parte.

É por isso que "a família desempenha exatamente o papel que lhe é prescrito no processo de valorização do capital" (Harbemas, 1984, p. 63-64), contribuindo para a sedimentação profunda dos traços característicos de um tempo e espaço em que esta instituição está situada. Enfim, a família colabora irremediavelmente para que a história experienciada se inscreva como integrante da história incorporada como habitus (Bourdieu, 2000) nos indivíduos.

Não obstante, este processo não é livre e isento de contradições decorrentes do próprio papel mediador que a família se inscreve, pois esta tende a socializar o indivíduo para a promessa de uma realidade em que ela mesma não tem condições de cumprir, já que "ela serve como agência da sociedade, ela assume a tarefa da difícil mediação que, sob a aparência da liberdade, assegura, no entanto, a estrita observância das inevitáveis exigências sociais" (Habermas, 1984, p.64).

Daí porque, além de ter de formar indivíduos com uma personalidade individual e uma estrutura psíquica que se vincula as exigências sociais da atualidade, a instituição família precisa se tornar um campo em que, por meio da sociabilidade realizada em seus domínios espaciais e simbólicos, são arados e fertilizados os valores, as normas e os sentimentos modernos (D´Incao, 1996) próprios e adequados à vida contemporânea.

Não obstante, o crescente processo social de individualização, associado ao aumento da domesticidade e da privacidade da vida moderna, tem colaborado para "devorar as esferas mais antigas do político e do privado, bem como a esfera mais recente da intimidade" (Arendt, 1991, p.55). Desta forma, acentua-se um processo que dilui gradativamente as fronteiras entre as esferas do público (espaço político) e do privado (espaço familiar), assim como esgarçam-se as demarcações das especificidades de cada uma dessas esferas.

É possível especular que um dos efeitos desse processo sobre o indivíduo seja a dificuldade de precisão da identificação do espaço social que este esteja desempenhando uma determinada prática, ou seja, uma incapacidade de associar "adequadamente" prática social e o lócus em que aquela ação é realizada. Talvez por isso não seja incomum nos ambientes e espaços públicos os indivíduos desempenharem práticas notadamente marcadas por valores e características do mundo doméstico.

 

Família x Indivíduo x Sociedade: caminhos que se cruzam e se afastam

Nesta seção temos o objetivo de refletir acerca da complexidade existente na relação entre família, indivíduo e sociedade na contemporaneidade. O ponto nodal desta argumentação centra-se nos caminhos de aproximação e distanciamento que são percorridos, via de regra, de forma titubeante pelos indivíduos que compõem a moderna família.

São caminhos nem sempre precisos, nem sempre claros, mas com imposições e coações externas quase sempre contundentes, e que oferecem pouca margem de movimentação no jogo das relações sociais em que indivíduo e família precisam guindar-se cotidianamente. Como jogo que precisa ser jogado na sociedade, os indivíduos e as famílias, além de ter que "dominar" as regras desse jogo, precisam estar dispostos a atuarem intensa ou superficialmente (como uma performance destinada a reprodução da aparência), dentro das fronteiras sociais que são realizadas as disputas pela posse dos capitais que garantirão uma posição e um status diferenciado para aqueles que mantêm o campo em que essas lutas são realizadas (Bourdieu, 2000).

Por isso a moderna família enfrenta paradoxos decorrentes das funções expectadas sobre ela, seja pela sociedade em que está inserida, seja pelos indivíduos que a compõe.

... en la relacón entre padres e hijos por lo común interviene una alta proporción de compromiso emocional, la prescripción social del reconocimiento de una considerable autonomia de los niños conduce a una situación extrañamente paradójica y difícil de asimilar (Elias, 1998, p.411).

A situação paradoxal e difícil de assimilar indicada por Elias está presente de várias formas na vida dos indivíduos em sociedade. Particularmente, o autor destaca que uma condição essencial para que o indivíduo participe da sociedade moderna como contemporâneo de sua época, é a incorporação do autocontrole (Elias, 1994a) como elemento essencial par ao desenvolvimento do indivíduo moderno. No entanto:

A oportunidade que os indivíduos têm hoje de buscar sozinhos a realização dos anseios pessoais, predominantemente com base em suas próprias decisões, envolve um tipo especial de risco. Exige não apenas considerável volume de persistência e visão, mas requer também, constantemente que o indivíduo deixe de lado as chances momentâneas de felicidade que se apresentam em favor de metas a longo prazo que prometem uma satisfação duradoura, ou que ele as sobreponha aos impulsos a curto prazo (Elias, 1994b, p.109).

Assim, ao mesmo tempo em que a sociedade atual inunda os indivíduos de estímulos à auto-realização, joga-os em uma arena em que os riscos envolvidos no sucesso ou no fracasso de suas ações, mormente, são considerados como decorrentes de raízes e de responsabilidades individuais.

Por isso mesmo os indivíduos, na medida em que a sociedade se complexifica criando cada vez mais divisões técnicas do trabalho, precisam de uma tempo maior para serem preparados para se credenciarem ao mundo dos adultos. A preparação par ao mundo adulto tem se tornado mais longa e complexa (Elias, 1994b).

Esse mundo em que os indivíduos são considerados responsáveis individuais por seus atos, contemporaneamente, tem se tornado um ambiente em que, quanto maiores são as possibilidades de escolha dos indivíduos que se auto-representam livres, são também grandes os riscos que os esperam, e que, associados à liberdade de escolha podem causar a realização ou o fracasso em um mesmo espaço social dependendo em parte do desempenho destes.

Dessa forma, quanto mais prolongada for a preparação dos indivíduos para ao autocontrole e para o desempenho satisfatório em sociedade, é possível também inferir que se torna mais complexa e desafiante a sociabilidade entre os membros da instituição família.

Esta instituição constitui-se, até o presente, em um espaço privilegiado de aprendizagem do processo civilizatório. É neste ambiente que os indivíduos, tenramente, apreendem as proto-formas doa autocontrole, e ainda, são preparados para "el alto grado de individualización que hoy se espera de los adultos en las sociedades industriales (Elias, 1998, p.432).

Para o desempenho adequado desta aprendizagem a instituição família permanece sendo um espaço hierarquizado que agrega indivíduos com interesses em comum, que possui regras e normas garantidoras da funcionalidade deste espaço social considerado por seus membros tão real quanto um espaço geográfico.

Por outro lado a família continua a ser um lugar social de enclave emocional dos homens (Elias, 1998), pois mobiliza sentimentos revelados e incorporados na sociabilidade cotidiana dos membros familiares. Lugar de enclave emocional que propicia uma socialização primária (Berger & Luckmann, 1985) que vincula profundamente emoções, comportamentos e valores inscritos e registrados visceralmente nos indivíduos.

A família compreende, devido sua condição de enclave emocional, uma ambiência que vai configurando os traços do sentimento de pertencimento (Heller, 1987) que dispõe os indivíduos em um determinado espaço e tempo, constituindo uma auto-imagem de alguém que faz parte, que é membro, ou não, de um grupo social, de uma sociedade.

Muito embora essas características, a família moderna tem enfrentado desafios contemporâneos. Se por um lado ela mantém uma estrutura hierarquizada com normas e regras pertinazes, não deve, por imposição legal e da ética da civilização atual, mais ser o lugar da violência e da agressão entre seus membros (Elias, 1998). Por outro lado, a família tem incorporado "un relajamiento de las barreras de respecto en el trato entre apdres e hijos, o sea una informalización (Ibidem, p.443) das relações entre os indivíduos que ocupam posições hierárquicas distintas em u determinado espaço social.

Dito de outra forma, a família moderna precisa educar seus membros para a autoregulação, para o autocontrole e a individualização, ao mesmo tempo em que enfrenta o desvanecer e o desaparecimento dos símbolos de autoridade que marcaram a estrutura estratificada desta instituição em épocas anteriores. Por isso, o ambiente de sociabilidade das famílias modernas revela a condição de transição que esta instituição está experienciando nos dias atuais.

... nos encontramos en un período de transición en el cual unas relaciones de padres e hijos más viejas, estrictamente autoritárias, y otras más recientes, más igualitárias, se encuentran simultáneamente, y ambas formas suelen mezclarse incluso en las famílias (Elias, 1998, p. 412).

Esta transição expõe a construção de uma ambiência com muitas fragilidades, uma vez que os membros das famílias de hoje não tiveram a oportunidade para incorporarem e instituírem como referência paradigmática relações menos hierárquicas, com ausência de autoritarismo e violência.

A referência para a construção de uma família em que os padrões de estruturação de sua organização e funcionamento sejam distantes das relações tradicionais encontra-se bastante imponderável. Essa imponderabilidade não decorre necessariamente da ausência de vontade em construir um padrão distinto do modelo de família tradicional, mas, provavelmente da inexistência de referências que fundem a construção de elementos que sedimentariam uma modernidade da família moderna distante da família como agência da sociedade.

La perseverancia anacrónica en la representación idealizada de la relación padreshijos, así como de las relaciones familiares en gerneral es uno de los mayores obstáculos que se opone a um manejo más adecuado de los problemas familiares contemporáneos (Elias, 1998 p. 449)

 

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Artigo recebido em 12 de novembro de 2008
Aceito para publicação em 10 de janeiro de 2009

 

 

1 Assistente Social, Dr. em Sociologia. Docente do programa de pós-graduação em Serviço Social da Universidade Federal do Pará (UFPA). e-mail: camaciel@globo.com
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Heteronomia: s.f. condição de pessoa ou de grupo que receba de um elemento que lhe é exterior, ou de um princípio estranho à razão, a lei que se deve submeter.

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