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Revista do NUFEN

versão On-line ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.1 no.1 São Paulo ago. 2009

 

ARTIGOS

 

A construção de uma relação de ajuda com portadores da Síndrome do Autismo

 

The construction of a relationship of help with bearers of the Syndrome of the Autism

 

 

Dorotéa Albuquerque de Cristo1

NUFEN: Laboratório de Práticas Clínicas da Abordagem Centrada

 

 


RESUMO

Este ensaio questiona a concepção clássica e o tratamento de crianças portadoras da síndrome do autismo, e propõe uma visão fenomenológica, oferecendo um novo suporte para abordar a questão da comunicação com portadores de autismo. Uma escuta sensível permite compreender essas crianças, e estabelecer com elas uma relação permeada pelo respeito e inclusão social.

Palavras-chave: linguagem, autismo, compreensão, relação.


ABSTRACT

This rehearsal questions the classic conception and the treatment of children with the autism and proposes a phenomenological view, offering a new support to approach the question of communication with the autism bearers. A sensitive listening allows understanding these children and establishing with them a relation permeated with respect and social inclusion.

Keywords: language, autism, comprehension, relation.


 

 

INTRODUÇÃO

Neste texto questionamos o modo como, ainda, são vistas crianças portadoras da síndrome do autismo: como possuidoras de grave inadequação no seu desenvolvimento. Muitos profissionais qualificam o autista de incapaz, inacessível, incomunicável. Tal perspectiva reduz o número de profissionais que aceitam tranquilamente atender clientes com este diagnóstico. Sem refletir sobre os próprios limites, seus medos, suas técnicas que não curam e pouco ajudam, o profissional tem uma sensação de fracasso. O autismo passa a ser uma ameaça ao saber do profissional.

Convivendo há 13 anos com portadores da síndrome do autismo e com suas famílias, podemos dizer que essas relações possibilitaram-nos uma aprendizagem diferente, para estabelecer uma comunicação que privilegia o sentimento dos participantes da relação. Crescemos a cada dia enquanto pessoas, buscando compreender essas crianças. Na construção dessas relações, o convencional é desconstruído.

Procuramos enfocar o oposto da maioria do material publicado sobre o autismo cujo destaque é para a deficiência, não para o potencial que essas crianças e adolescentes possuem. Convivendo com eles, aprendemos que nós é que somos deficientes quanto à comunicação, sabemos lidar bem com as palavras, mas temos uma enorme dificuldade em ouvir os sentimentos, principalmente quando são expostos de modo tão peculiar.

Carl Rogers caracteriza uma escuta profunda:

Quero dizer que ouço as palavras, os pensamentos, a tonalidade dos sentimentos, o significado pessoal... Em algumas ocasiões, ouço, por trás de uma mensagem que superficialmente parece pouco importante, um grito humano profundo, desconhecido e enterrado muito abaixo da superfície da pessoa (Rogers, 1983, p. 05).

Revendo Rogers e suas experiências em comunicação, nos reportamos ao mundo em que vivem os autistas. Ninguém parece entendê-los, não os escutam, assim, eles vão perdendo a esperança em se comunicar e se fecham cada vez mais em seu mundo interno, único lugar em que podem viver, sem compartilhar qualquer experiência. Eles estão sós.

Para Amatuzzi, compreender o sentido vai além de ouvir a fala, é preciso ouvir o silêncio encoberto por essa fala: "Ouvir não é um ato de inteligência ou do pensamento, mas uma participação existencial em um movimento de gestação ou parto no plano do sentido". (Amatuzzi, 2001, p. 41).

Imaginemos você procurando entender alguém que lhe fala numa língua desconhecida, ou usando gestos que você nunca viu. Para compreender, usará todo seu potencial para buscar, por trás dos gestos e da fala, o sentido. É bem difícil e exige certo grau de empatia, sensibilidade, abertura para o novo, interesse pelo outro e intuição. A comunicação genuína com autistas se circunscreve neste escopo. É preciso buscar essa rara escuta; essa compreensão do sentido para que haja uma aproximação de seu mundo e a conseqüente construção de uma relação de ajuda com eles, ajuda recíproca, para nós e para eles.

 

A LINGUAGEM

As crianças, ao nascerem, possuem uma espécie de linguagem universal, são cidadãs do mundo. Por volta dos 08 meses começam a reconhecer e tentar reproduzir palavras próprias de seu povo, de sua família. O que favorece tal reconhecimento é sua maturação neurológica. Se tudo correr bem, a criança vai ter capacidade de incorporar novos signos à sua comunicação à medida que for crescendo, tendo acesso a novas formas de relação com o mundo. Elas iniciam a fala geralmente com palavras simples, indo sempre em direção às mais complexas. Essa fala pode sofrer atrasos ou pode ser ausente em crianças com problemas de desenvolvimento.

A comunicação é uma necessidade humana e a fala é o modo, por excelência, de satisfazer essa necessidade. De acordo com Augras, (1998, p. 76) a fala é uma forma de compreensão do mundo. Para entender o mundo, o homem elabora um conjunto de signos que lhe dêem significado humano: "A linguagem é criação e organização do mundo".

O homem nasce com uma capacidade para desenvolver a linguagem falada, necessitando, para isso, de condições físicas e psicológicas que favoreçam esse desenvolvimento. É na relação com outros seres humanos que a criança aprende a se comunicar. Se esse encontro for tolhido, a criança não irá desenvolver o potencial humano, porém, buscará outras maneiras de se relacionar com o mundo. A tendência para crescer está presente em todos os seres humanos.

Brito, (1996), em sua obra "Uma menina Especial: Histórias e curiosidades sobre o Autismo", fala de uma forma criativa sobre o autismo, sem discutir causas para a síndrome, ou tentar classificá-la em categorias, mas relatando fatos, que mostrar os caminhos trilhados para compreender o jeito de ser do autista.

Em dois relatos a autora discursa sobre jovens que foram encontrados após anos de abandono, crescendo longe do convívio social, considerados selvagens, não necessariamente autistas. Um destes casos é do menino Victor, descoberto no final do séc. XVII em uma floresta de Aveyron, na França, aparentando 12 anos de idade. A criança não falava, não usava roupas, tinha o corpo coberto de feridas e era raquítico. Victor tinha muita dificuldade em entrar em relação com outros, chegava a demonstrar afeição, mas mudava rapidamente de humor e sua comunicação era escassa.

Até hoje não se sabe com quantos anos Victor foi abandonado, pode ter sido antes dos 05 anos, pois não desenvolveu a fala; mas como alguém tão jovem sobreviveu às condições precárias da floresta? Como enfrentou baixíssimas temperaturas sem roupas? E a fome? Victor morreu aos 40 anos e, durante toda a sua vida, os especialistas tentaram responder a essas perguntas. Jean Itard (1774-1838), foi o médico que aceitou o desafio de educar Victor e seus métodos até hoje são bastante conhecidos. Itard alcançou algum êxito, já que Victor, mesmo permanecendo mudo, aprendeu a reconhecer sinais de linguagem, chegando a ler algumas palavras.

Muitas autoridades médicas, incluindo Pinel, consideraram o jovem como retardado, já que não se adaptava às regras sociais. Um dos momentos que ilustra bem essa dificuldade de Victor é descrito por Brito, a partir do relato de Harlan Lane (1977).

Victor e Itard foram convidados a um jantar; durante o jantar, Victor correu para o jardim, tirou sua cueca, começou a correr na grama velozmente, como um animal, rasgou toda a sua roupa com facilidade e subiu numa árvore, como se fosse um esquilo. O jardineiro ofereceu a ele uma cesta de pêssegos e Victor desceu da árvore, agarrou a cesta e pôs os pêssegos na carruagem para levar as frutas para casa. O fato causou constrangimento em todos os presentes.

Na floresta, Victor pode não ter desenvolvido a fala, até porque sua relação era com animais; porém, em busca da sobrevivência, ele se desenvolveu mesmo em condições tão precárias, parecendo pouco humano para os outros.

Se o jovem nasceu com retardo, até hoje não se sabe. Como não houve compreensão de seu jeito de ser, nem êxito em tentar transformá-lo naquilo que esperavam dele, foi considerado retardado.

Carl Rogers discursou acerca de uma tendência realizadora presente em todos os organismos vivos. Em cada estrutura há uma espécie de energia em movimento, sempre dirigida para a realização construtiva de suas possibilidades. Mesmo que o ambiente seja desfavorável, como no caso de Victor. O organismo dirige-se para sua manutenção. Como não cresceu em relação com outro ser humano, seu comportamento parecia anormal. Rogers, (1983, p. 41) falando a respeito de vidas desfavorecidas, sem condições facilitadoras de crescimento, explicou:

A chave para entender seu comportamento é a luta em que se empenham para crescer e ser, utilizando-se dos recursos que acreditam ser os disponíveis. Para as pessoas saudáveis, os resultados podem parecer bizarros e inúteis, mas são uma tentativa desesperada da vida para existir.

Outro caso ilustrado por Brito que destaca a importância da relação com o outro como fundamental para o desenvolvimento de nossas capacidades comunicativa, compreensiva e relacional, é o caso de Kaspar Hause.

O jovem foi encontrado num domingo de Pentecostes de 1828, em Nuremberg. Trazia uma carta na mão, que dizia a data de seu nascimento (tinha 16 anos) e pedia para que ele servisse o Rei como soldado. Kaspar falava uma frase, repetidamente: "Eu quero ser um cavaleiro, igual era meu pai". Ele sabia escrever seu nome e falava poucas palavras, com o tempo sua linguagem foi ficando mais complexa. Ele contou que viveu encarcerado num porão escuro, ignorava o mundo lá fora e a existência de pessoas, sua comida era entregue enquanto dormia.

Apesar de se comunicar através da fala, Kaspar falava de modo peculiar, com uma voz áspera, estranha para os demais. Não diferenciava pessoas de animais ou de brinquedos, ele oferecia comida para seu cavalinho de brinquedo e, se pisasse em minhocas, se desculpava. Apresentava excelente memória e tinha os sentidos altamente discriminativos. Aprendeu jardinagem, jogar xadrez e falar latim. Tinha verdadeira avidez para aprender. Para Brito, Kaspar buscava, talvez, "recuperar"o tempo em que foi privado até de pensar. Após cinco anos de seu aparecimento, na época em que estava escrevendo sua autobiografia, Kaspar foi assassinado por um desconhecido.

No caso de Kaspar Hause, pode-se perceber a importância da fala nos primeiros anos de vida. O jovem falava pouco e, até hoje, não se sabe como desenvolveu a linguagem falada. Acredita-se que a pessoa que o alimentava falava um pouco com ele. Em condições facilitadoras, proporcionadas por pessoas que o recolheram e o ajudaram, desenvolveu uma linguagem mais complexa e a uma melhor compreensão de seu mundo.

Nos dois casos, podemos observar alguns comportamentos característicos da síndrome do autismo. Brito questionou se não se tratavam de crianças com autismo, que foram abandonadas.

Não nos é possível responder esta pergunta, contudo indagamos: Como compreender crianças que, mesmo não sendo privadas de contatos humanos, agem como tal? Como construir relações com essas crianças, compreender sua linguagem? Crianças autistas, parecem ser crianças diferentes, que buscam, assim como as pessoas citadas nos exemplos os recursos disponíveis internos e externos, para por em comunicação seu mundo interno e como percebem seu mundo ao redor.

Geralmente os pais de crianças com autismo procuram os especialistas quando seu filho não fala no tempo esperado. Alguns chegam a dizer que perceberam que seu bebê era diferente, porém aguardaram seu crescimento. Como andam no tempo previsto, os pais passam a esperar a fala, como esta geralmente sofre atraso, resolvem procurar auxílio médico.

Quando iniciam atendimento, essas crianças apresentam comportamentos que parecem bizarros para muitos profissionais. Ignoram alguns sons e têm preferências por outros, sendo bastante hiperativos.

De acordo com Lorna Wing, "o que realmente preocupa é que ela geralmente não demonstra nenhum interesse quando as pessoas falam, nem mesmo quando chamam seu nome"(Wing, citado por Glat, 1987, p.114).

As crianças com autismo não entendem o significado da linguagem falada, algumas se esforçam e fazem progressos, mas a autora não chega a considerar as condições externas como significativas para esse progresso. Ela explica que, mesmo com progressos, a criança com autismo apresenta dificuldade em entender algo mais complicado.

No início, essas crianças tentam se comunicar chorando ou gritando; mais velhas, pegam o adulto pela mão e o levam ao objeto que desejam. As que conseguem desenvolver a fala, muitas vezes repetem o que os outros dizem (ecolalia), ou ficam repetindo palavras ou frases aparentemente desprovidas de sentido, sem objetivo de comunicação. Uma capacidade conhecida por todos os que convivem com eles e citada por Wing, é o fato de poderem copiar com exatidão o sotaque, o tom de voz do interlocutor. Quando percebe que algumas frases têm objetivo, a criança com autismo passa a repeti-las para obter algo.

Mas nem sempre a fala do autista é estereotipada, às vezes ela sai com intenção comunicativa, mesmo com todas as dificuldades. Leboyer (1991), após numerosas pesquisas, afirmou que os autistas não conseguem veicular emoções através da fala. Ele explica que, por isso, a voz deles sai inexpressiva, atônica (Lebovici & Mazet, 1991, p.98).

Amatuzzi (2001), fundamentando-se no pensamento de Merleau-Ponty, distingue duas falas humanas, uma autêntica, pronunciada com sentido e outra banal, cotidiana. A primeira é original, que transforma o ser, como a primeira fala do bebê ou a palavra do apaixonado que descobre seu sentimento. A segunda é derivada, não traz nada de novo, são consideradas falas de manutenção, como cumprimentar alguém.

Dentro desse pensamento, encontramos dificuldade em incluir a fala do autista, é preciso redefini-la. Mas como não nos cabe aqui classificar essa fala, vamos apenas tentar compreender que existem outras formas de se chegar ao mundo dos autistas, pegando uma outra rota.

Se quisermos abarcar o que nos diz uma pessoa com autismo, convêm que haja um esforço para se ter uma escuta profunda, além das palavras, pois sua comunicação se dá em outro nível, o das atitudes.

 

A COMPREENSÃO

Há um papel efetivo da linguagem para a construção da subjetividade. Ela é forjada através, entre outros fatores, na relação com o outro, a herança biológica que transmite a carga genética, não é o principal componente, embora possa trazer alterações estruturais graves.

Nosso foco é a importância da relação significativa para o crescimento, formação subjetiva e, em última instância para nortear o atendimento ao autista.

Crianças autistas, quando aceitas em um clima de facilitação, buscam alternativas de comunicação, sentem-se menos pressionadas, seu nível de tensão diminui e junto com o outro, o psicoterapeuta, procura formas novas de linguagem.

Mães, que por muitos anos foram acusadas de responsáveis pelo autismo do filho, conseguem ouvir, melhor que muitos profissionais, de forma sensível, o desespero da criança em dizer o que sente, e podem em conjunto com o profissional facilitar o atendimento na direção da relação afetiva. Afeto autêntico parece ser facilmente percebido por essas crianças, É claro que aqui se fala da mãe que fala com o filho, não do filho, que buscam, desde cedo conhecer a criança, não o autismo.

A verdadeira comunicação está além das palavras, não se refere à capacidade de falar, mas à possibilidade de criar formas de linguagem com significados. Quando falamos em escuta sensível, intuição, lançamos um desafio ao profissional que atende ou busca atender crianças autistas: construir uma relação autêntica com ela. A dificuldade parece demasiadamente cansativa, exigindo um trabalho pessoal que nem todos estão dispostos a enfrentar.

Gauderer, médico, discorrendo, de forma corajosa, sobre as reações emocionais do profissional frente à doença crônica, esclareceu o que sente o profissional que se depara com a síndrome do autismo e a considera uma doença grave, irreversível.

Após anos de estudo, longo treinamento, etc. defronta-se com as limitações da profissão e de suas próprias. 'Mas será que não tem cura?'.'Não, é só isto que podemos fazer'. Este 'só isto' é vivido por nós como fracasso, como se pessoalmente fôssemos incapazes e isso é uma grande ameaça ao nosso saber. Somos, assim, obrigados a ser mais humildes. Tudo isso é vivido como grande ameaça, uma agressão aos nossos brios profissionais (Gauderer, 1987, p.167).

Axline (1964) ponderou sua admiração de crianças que, sendo desfavorecidas em sua vida e frustradas em sua tentativa de auto-realização, continuavam a lutar contra um mundo que lhes parecia insuportável. Algumas emergem com uma força renovada e enfrentam as dificuldades de uma forma mais construtiva. Outras não conseguem resistir às adversidades facilmente. Dizer que a criança foi rejeitada não acrescenta nada ao entendimento de seu mundo interno, isso vale apenas como álibi para desculpar a ignorância do profissional. O profissional que atende crianças autistas requer olhar para si mesmo, para as razões de suas atitudes. Muitos acreditam que dar esperança aos pais de crianças com autismo, é alimentar uma ilusão destrutiva, como se a comunicação com essas crianças fosse obra de um milagre. Axline não busca milagre e sim, uma compreensão que facilite a construção de caminhos mais efetivos para a pessoa desenvolver-se, utilizando suas capacidades de forma positiva.

 

A RELAÇÃO DE AJUDA

Para Rogers (1961/1999), uma relação de ajuda se caracteriza por uma situação na qual um participante (terapeuta), busca criar um clima que promova no outro (cliente), maior expressão e utilização de seus recursos internos de maneira mais funcional. Para que esse clima seja promovido, as atitudes e os sentimentos do terapeuta ganham maior relevância, são mais importantes que seu conhecimento teórico; assim como é relevante a forma como são percebidos pelo cliente.

Três atitudes fundamentais criam um clima de facilitação de crescimento: congruência, o terapeuta é aquilo que é em todos os momentos, transparente, não camufla seus sentimentos; consideração positiva incondicional, aceitação do outro pelo que é, vivenciada através de atitudes positivas, calorosas, de afeto e respeito para com o cliente; compreensão empática, quando o terapeuta é capaz de se permitir entrar no mundo do outro e vê-lo como ele o vê. Entrar no universo de suas significações pessoais, apreendê-las e comunicar com êxito essa compreensão ao cliente.

Conforme Rogers "quando alguém compreende como sinto e como sou, sem querer me analisar ou julgar, então, nesse clima, posso desabrochar e crescer"( p.73).

Psicoterapia para crianças, é uma viagem ao mundo infantil, do brinquedo, do criar e do recriar, da transformação através da brincadeira. É uma forma especial de terapia, qualificada de ludoterapia ou terapia através do brincar.

Crianças portadoras de autismo ou qualquer outra criança, a ludoterapia alcança êxito, já que o brinquedo faz parte de seu universo. As atitudes facilitadoras do terapeuta favorecem a criança a percepção de que o tempo da sessão é seu, que ela pode exprimir qualquer tipo de sentimento, que pode explorar a sala e os brinquedos sem receio de ser julgada.

Na ludoterapia, a afeição do terapeuta pela criança é expressa por meio de gestos, aqui valem mais as ações do que as palavras, "o fato de ser um tempo seu, de utilizá-lo como quiser, sem pressão, ordens ou coerção, tudo isso é aprendido através mais da experiência da sua liberdade do que de esclarecimentos verbais"(Rogers, 1942/1997, p.95).

A criança percebendo uma aceitação genuína por parte do terapeuta, que acolhe suas diferenças sem tentar conter cada gesto ou ação, que não a obriga a brincar de determinada forma, que não a força a sentar, quando quer correr; passa a ser mais ela mesma. O jeito de ser de crianças portadoras de autismo difere do da maioria das crianças, mas, a partir do momento que percebe a aceitação e a autenticidade por parte do terapeuta, a criança busca ser ela, se libertando de sua necessidade de defesa.

E os limites? Como qualquer terapia, aqui também há limites, a criança percebe que existe um tempo determinado para o final da sessão, que não pode agredir o terapeuta, nem destruir os objetos da sala. Estes limites precisam ser claramente definidos e compreendidos pela criança, tanto através de ações, como de palavras simples, desde o início do processo, "os limites representam um dos elementos vitais que fazem da situação terapêutica um microcosmos em que o cliente pode enfrentar aspectos essenciais que caracterizam a vida como um todo"(Rogers, 1942/1997, p.89).

A maioria dos programas de atendimento a crianças portadoras da síndrome do autismo hoje, trabalham tentando modificar seu comportamento. Com essa atitude o profissional acaba perdendo verdadeiros tesouros no sentido da compreensão. Comportamentos considerados "inadequados"são logo proibidos, contidos, a criança é, então, impedida de se comunicar. Wendy Brown comenta que "trabalhar 'os problemas da criança' ou sua possível causa é muito desgastante e de pouco adianta. Também não é útil perder tempo tentando descobrir o 'por quê' de seu comportamento (Brown, citado por Glat, 1987, p. 144).

Para muitos profissionais, aceitar o jeito de ser dessas crianças é um risco, pois não confiam na capacidade delas para o crescimento. Para muitos especialistas, a permissividade pode distanciá-las mais de nosso mundo, isolando-as. Como querer a compreensão (base para uma relação saudável), se tentamos controlar seus comportamentos, forçando-as a fazerem o que queremos?

No atendimento psicoterápico de orientação fenomenológica a ênfase é dada ao processo, a construção da relação baseada na escuta e na resposta. "Ouvir realmente aqui, significa entrar em contato com o mundo da pessoa"(Amatuzzi, 2001, p. 70). Se o terapeuta se esforça em compreender a criança, sua linguagem e maneira de perceber o mundo, ele encontrará dentro de si mesmo recursos que permitam responder à criança sem precipitação e será expressivo o suficiente para ser capaz de lhe comunicar sua compreensão. Não há modelos prontos. É importante destacar a contribuição que a família pode trazer, traduzindo em palavras muitas das ações de seus filhos.

 

CONCLUINDO

Em nossa prática clínica temos percebido que vivenciar atitudes facilitadoras na relação com as crianças portadoras de autismo contribui para que a terapia flua de maneira positiva, elas parecem compreender com mais facilidade as palavras, ficam menos agressivas, por não sentirem ameaças e passam a dar e retribuir afeto com mais espontaneidade. Seu organismo parece todo voltado para seu enriquecimento.

Conviver com crianças e adolescentes adoecidos é também observar em alguns a demonstração de uma capacidade surpreendente para realizar tarefas que teriam enorme grau de dificuldade para a maioria de nós. Jovens que aprenderam a ler sem passar pelos métodos convencionais de alfabetização. Crianças que iniciam a fala após anos de mutismo. Jovens que, buscam usar todos os recursos que encontram disponíveis para aprender a se comunicar.

Na relação facilitadora buscamos alcançar o mundo dessas crianças, respeitando suas diferenças. Quando alcançamos nosso intento elas ficam livres para elaborar suas próprias formas de comunicação.

 

 

REFERÊNCIAS

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Artigo recebido em 14 de outubro de 2008
Aceito para publicação em 10 de dezembro de 2008

 

 

1 Especialista em Psicologia Clínica e Sexologia pela Universidade Cândido Mendes, RJ. Membro do NUFEN: Laboratório de Práticas Clínicas da Abordagem Centrada; pesquisadora, supervisora de estagio em Psicologia Clínica: Centrada na Pessoa na UFPA. e-mail: dcristo@bol.com.br

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