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Revista do NUFEN

On-line version ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.1 no.2 São Paulo Nov. 2009

 

ARTIGOS

 

Sobre a proposta de conhecimento presente na teoria Rogeriana, ou da sabedoria residente na ignorância

 

About the proposal of present knowledge in Roger's theory or of the resident wisdow in the ignorance

 

 

Emanuel Meireles Vieira1

Faculdade de Psicologia da Universidade Federal do Pará

 

 


RESUMO

Este artigo tem como objetivo situar a teoria rogeriana no âmbito das propostas epistemológicas modernas de conhecimento. Para tanto, recorre às reflexões realizadas por Figueiredo em torno da invenção do fenômeno psicológico na modernidade. Tal invenção se deu, segundo Figueiredo, calcada na idéia de uma razão que explica a subjetividade. Isto se expressa através da criação de um saber independente com pretensões científicas. O trabalho discorda, contudo, de Figueiredo quando este não reconhece a Psicologia Humanista como uma perspectiva dotada de proposta epistemológica. Argumenta-se a favor da valorização de uma forma de conhecer o mundo que não passa pelo crivo da razão moderna, mas sim pela sensação de certeza e busca incessante de conhecimento, a partir da sabedoria organísmica daquele que conhece. Esta sabedoria se daria por uma via de desconhecimento por parte do pesquisador em relação a seu objeto de investigação, pois se considera que a subjetividade não pode ser totalmente capturada pela razão.

Palavras-chave: teoria rogeriana, conhecimento, sabedoria organísmica.


ABSTRACT

This research has as objective to place Carl Rogers's theory on the scope of the epistemological projetct of the modern knowledge. For this, it refers to reflexions developed by Figueiredo about the invention of modern psychological phenomenon. This invention has happened, according to Figueiredo, based on the idea of a reason that explains the subjectivity. It is expressed by the creation of an independent knowledge with scientific intentions. The research, however, disagree with Figueiredo when he does not recognize the Humanistic Psychology as a perspective that has a epistemological proposition. It argues about the recovery of a way to know the world that does not have the sieve of the modern reason, but the orgnanismic wisdom from the one who knows. This wisdom would happen thorough an unknowing way from the researcher about his investigation object, because it is considered that subjectivity can not be totally captured by reason.

Keywords: Carl Rogers's Theory, knowledge, organismic wisdom.


 

 

INTRODUÇÃO

Este artigo parte da pergunta qual a concepção de conhecimento presente na obra rogeriana2, para situar a proposta epistemológica presente na teoria de Rogers em relação aos projetos de ciência que fundam a Psicologia. Este exercício se dará, tendo como parâmetro a própria criação do espaço psicológico, tal como apresentada por Figueiredo (2002). Diverge, contudo, do ponto de vista de Figueiredo, por apontar na teoria de Rogers a presença de uma crítica ao modelo moderno de construção do conhecimento.

Assim, iniciar-se-á com uma breve explanação a respeito da invenção do psicológico (título de obra homônima de Figueiredo), atrelando-a às condições de possibilidade de surgimento da modernidade. Em seguida, situaremos o modo como Rogers apresenta, em suas obras, sua preocupação com a teoria do conhecimento. Por último, confrontaremos o modo rogeriano de concepção do conhecimento com aquele inaugurado com a modernidade, enfatizando o modo como este difere daquele.

A epistemologia é um dos grandes temas presentes na construção de qualquer teoria, seja ela de que campo for. Sempre que uma teoria se apresenta, aqueles que têm por objetivo compreendê-la de modo profundo se questionam acerca de que epistemologia a fundamenta, bem como as implicações dessa construção teórica para a compreensão do processo de conhecer. Com a teoria de Rogers, um dos grandes expoentes da Psicologia no século passado, não poderia ser diferente, afinal, devido a seu amplo alcance e repercussão, muitos foram os que se preocuparam em buscar o fundamento dessa teoria (AMATUZZI, 1989; HOLANDA, 1997; MOREIRA, 2007; FONSECA, 1998; CURY, 1987).

Além disso, Rogers não se deteve de modo exaustivo a respeito da epistemologia que compunha sua teoria. Em verdade, no que pese a presença de alguns artigos a respeito de preocupações epistemológicas em livros diversos, apenas em uma publicação completa Rogers expõe de modo mais específico sua concepção de conhecimento. Trata-se da obra "O homem e a ciência do homem" (ROGERS e COULSON, 1973). A epistemologia rogeriana, portanto, mais do que um caminho bem delimitado, apresenta-se como rastros, trilhas que ainda merecem ser percorridas sem que se tenha a pretensão de elaboração de um caminho mais trafegável.

 

A INVENÇÃO DO PSICOLÓGICO A PARTIR DA MODERNIDADE3

A psicologia é uma invenção contemporânea. Por mais simples que possa parecer essa afirmação, ela traz consigo implicações, éticas, políticas e epistemológicas que incidem diretamente no modo como foi constituída, bem como nas subjetividades de que cada uma das teorias que a compõem refletem. Para compreender o sentido disso, faz-se necessário que reconheçamos as condições de possibilidade de surgimento da Psicologia, de modo que o laboratório de Psicofisiologia de Wundt, em Leipzig, na Alemanha, não diz respeito ao início dessa história, mas sim a culminância de diversos outros fatores não necessariamente ligados a teorias de psicológicas.

Figueiredo (1992) nos apresenta uma rica e interessante discussão acerca do surgimento do fenômeno psicológico. Segundo este autor, no mundo ocidental, na idade média, com a instauração do feudalismo e, com ela, as instituições e a organização social bem delimitadas, não havia espaço para a consideração de uma experiência particular, afinal, todos estavam submetidos aos mesmos poderes (o da Igreja Católica e o do senhor feudal) e organizados numa sociedade dividida em estamentos, portanto, sem possibilidade de mobilidade social4, uma vez que, em tal sistema, a posição social ocupada por alguém é determinada por sua condição de parentesco.

Numa sociedade assim, ficava difícil imaginar a possibilidade de uma experiência privada, afinal de contas, não havia espaço para a expressão do indivíduo como singularidade e diversidade. No campo do conhecimento, por exemplo, as verdades já estavam postas, de modo que estas fortaleciam os dogmas bíblicos, não existindo, portanto, oportunidades de questionamento, estando aquele que insistia em questionar sob o sério risco de ter sua vida aniquilada, tal como aconteceu com Giordano Bruno e tantos outros no período da inquisição.

Um exemplo desta pretensa unidade na forma de organização do conhecimento é a questão da língua em que se publicavam os escritos de Filosofia, o latim, língua por poucos conhecida. Aliás, àquele período, a poucos era concedido o acesso ao advento da leitura. Até à publicação de "O discurso do método, de Descartes" todas as obras que chegavam a ser publicadas no período da idade média o eram em latim. Descartes inaugura, portanto, a publicação de obras filosóficas na língua materna do autor, apesar de, em seu célebre "penso, logo existo", ainda lançar mão do latim (cogito, ergo sum).

Não estamos defendendo aqui a idéia de que a Idade Média era a idade das trevas, senão que apenas demonstrando que as possibilidades de expressão privada, seja no âmbito da construção do conhecimento, seja no da experiência privada eram bastante limitadas. Tais limitações, como podemos observar, eram fortalecidas pelo poder da Igreja, que, àquele tempo, legitimava as próprias funções do Estado. O Saber, o Ser e o Poder possuíam, desta forma, referências bem definidas e garantiam aos homens um lugar no mundo.

A inauguração da Idade Moderna, ilustrada pelo pensamento de Descartes na Europa, abre possibilidades de evidência da diversidade. Se, anteriormente, a uns poucos era concedida a possibilidade de se questionar e investigar acerca de seus questionamentos, Idade Moderna esse quadro se transformou, o que se refletiu nos esforços empreendidos por diversos pensadores, como Descartes e Bacon (FIGUEIREDO, 2002) em favor da construção de ciências de rigor. A fé, outrora ancoragem de um saber confiável, foi substituída pela razão, grande expoente da fundação da modernidade e guiada sempre pelo questionamento e a possibilidade de conhecer, de modo mensurável e testável, a realidade.

Conforme afirma Figueiredo (2002, p. 24), essa mudança se operou da seguinte forma: "o mundo passou a ser considerado cada vez menos como sagrado e mais como objeto de uso – movido por forças mecânicas – a serviço dos homens. Essa transformação é parte essencial da origem da ciência moderna.".

A Religião, então, antes "proprietária" do verdadeiro conhecimento, cede lugar à Ciência de rigor, que se torna, então, depositária de toda a expectativa de libertação da humanidade de tiranias como as ocorridas durante o período da Idade Média. Assim, "a grande valorização e confiança no Homem, geradas pela concepção de que ele é o centro do mundo e livre para seguir seu caminho, fazem nascer o humanismo moderno." (FIGUEIREDO, 2002, p. 25).

Interessante destacar o título original da obra cartesiana: "Discours de la méthode pour bien conduire sa raison, et chercher la verité dans les sciences", ou seja, "Discurso do método para bem conduzir sua razão e procurar a verdade nas ciências". Interessava a Descartes, como sugere o título, a boa condução da razão na busca da verdade. O título da obra retrata bem, portanto, o intuito da construção do conhecimento moderno: a busca da verdade através do bom uso da razão. Estes, aliás, são dois símbolos fortes da fundação da modernidade.

Juntamente com Bacon, Descartes figura representa a transformação operada no modo de lidar com a realidade a partir da Idade Moderna. O primeiro, através do empirismo, no qual o conhecimento deveria se utilizar dos sentidos para conhecer a realidade, mas estes necessitavam ser purificados para que se atingisse a realidade do modo mais puro possível. Já Descartes é considerado o pai do racionalismo e aposta na razão e, conseqüentemente, no eu que a fundamenta, como o único elemento indubitável no ato de conhecer o mundo.

A modernidade, contudo, surgiu numa fenda que se abriu com a decadência do sistema feudal de produção, o que gerou uma série de expectativas não cumpridas. Afinal de contas, o eu, calcado na razão, que se anunciou no início da modernidade como capaz de conhecer e controlar a si próprio, apresentou-se falho na compreensão e explicação de um fenômeno que surge no início do período moderno: o desalojamento humano. Conforme afirma Figueiredo (2002, p. 23), "a falência do mundo medieval e a abertura do ocidente ao restante do mundo teriam lançado o home europeu numa condição de desamparo.".

Os projetos modernos de ciência, propondo uma matematização do mundo, não conseguem, portanto, dar conta de fenômenos advindos do desamparo a que se refere Figueiredo na citação acima. Em outro trabalho, Figueiredo (1992, p. 18-19) afirma que "o sujeito epistêmico é visceralmente avesso ao olhar psicológico; este, por sua vez, como veremos adiante, vai-se caracterizar pelo projeto de desvendar exatamente o avesso do sujeito supostamente pleno.".

A denúncia da falência do projeto moderno é feita a partir do Iluminismo, no século XVIII e se estende a autores tais como Kant e Hume (Figueiredo, 2002). A lacuna deixada pelas teorias vigentes e a denúncia da cisão do homem a partir de pensadores que produziram a partir do Iluminismo instauram as condições sócio-históricas para o surgimento de uma ciência que se pretendesse dar conta do fenômeno subjetivo: a Psicologia como ciência independente.

Neste esteio, surgem vários projetos, sendo o mais reconhecidamente pioneiro o de Wundt, em Leipzig, na Alemanha. Segundo Figueiredo (2002), várias foram as tentativas de construção de uma Psicologia científica além do de Wundt: Titchener e seu introspeccionismo, que substituía a Psicologia pela Fisiologia, o funcionalismo, represntado por Dewey, que se interessavam pela função adaptativa da consciência, o comportamentalismo (com Watson, a princípio), a Psicologia da Gestalt, o comportamentalismo radical, de Skinner, a psicologia genética, de Piaget e a Psicanálise.

Figueiredo (2002) afirma que as psicologias humanistas falham na tentativa de elaboração de uma Psicologia científica. Tal falha se dá por dois motivos: a preocupação, segundo o autor, exclusiva com a compreensão e seu conseqüente desprezo pela explicação da ação do indivíduo, e a incapacidade destas psicologias em ultrapassar a experiência imediata, questioná-la, explicá-la e compreendê-la.

Segundo Figueiredo (1992, p. 31-32), em referência às Psicologia Humanistas,

uma teoria que à experiência um acolhimento pretensamente integral, mas que seja incapaz de nos colocar em contato com o que, do ponto de vista dessa experiência e desse lugar, permanece como o seu impensável, claramente contribui para a conservação das ilusões narcísicas, sejam as da autonomia liberal, sejam as da espontaneidade e da singularidade românticas.

Figueiredo, portanto, como podemos perceber, caracteriza as Psicologia Humanistas e, entre elas, a teoria rogeriana, como incapazes de se questionar a respeito da origem das vivências as quais desejam acolher e compreender e, desta forma, mantenedoras de uma ilusão narcísica postulada pela modernidade a partir de Descartes, como já afirmamos alhures. Cabe-nos, contudo, o questionamento: afinal, trata-se de um conhecimento acrítico? Qual a epistemologia subjacente a estas psicologias? De que modo elas lançam luz sobre a questão a que Figueiredo faz referência? Guiados por estes questionamentos, exporemos a seguir o modo como a teoria rogeriana (tomando-a como uma das psicologias humanistas citadas por Figueiredo) concebe o processo de conhecer.

 

O PROCESSO DO CONHECER NA TEORIA ROGERIANA E A SUBJETIVIDADE AÍ IMPLICADA

Conforme colocamos na introdução deste texto, Rogers não se dedicou exclusivamente à discussão a respeito da filosofia da ciência. Em "Tornar-se Pessoa", há, contudo, uma unidade dedicada à discussão acerca da filosofia da ciência psicológica, bem como das implicações éticas que esta ciência poderia a ter na sociedade, com especial destaque para dois capítulos: "Pessoa ou Ciência? Um Problema Filosófico" e "O Lugar do Indivíduo no Mundo Novo das Ciências do comportamento".

Uma obra que merece destaque, mas que, infelizmente, não é mais publicada no Brasil, é "O Homem e a Ciência do Homem", que Rogers publicou em 1968, juntamente com William Coulson. Trata-se de um apanhado geral de duas semanas de discussões a respeito da Filosofia da Ciência num seminário nos Estados Unidos, do qual participaram filósofos, biólogos, psicólogos e professores universitários. O desenvolvimento ético e epistemológico da Psicologia é amplamente discutido nesse livro pelas diversas áreas representas e Rogers expõe seu pensamento a respeito da filosofia da ciência que fundamenta a Psicologia. As perguntas que orientam a discussão desenvolvida por Rogers são as seguintes: Talvez seja hora de tentar examinar, em nível o mais fundamental possível e da maneira mais isenta possível, os pressupostos que constituem a base de todo o nosso campo de trabalho, e sua relação com a vida e o viver.

Talvez se nos colocarmos algumas perguntas profundas, podemos antecipar parte dos problemas com que, num futuro não muito distante, nós e nossa sociedade nos defrontaremos: como adquirimos o conhecimento? O que é "verdadeiro"? Quais são as características identificadoras de um cientista? O que é ciência? Qual a natureza específica da ciência do comportamento? (ROGERS, 1973, p. 56).

Rogers expressa forte ambigüidade com relação ao conhecimento científico tal como usualmente conhecido, afirmando que sente profunda admiração pelo desenvolvimento da ciência, a ponto de se sentir maravilhado com relação, por exemplo, à lei da alavanca, da física. Por outro lado, como psicoterapeuta, Rogers não consegue ver em seus clientes o homem descrito pela ciência psicológica de seu tempo, o que o leva a afirmar: "[...] não é de surpreender que eu me oponha ao processo de despersonalização e desumanização do indivíduo que observo em nossa cultura. Lamento que as ciências do comportamento, ao que me parece, promovam e reforcem esta tendência." (ROGERS, 1973, p. 58).

Na passagem citada acima, Rogers se opõe frontalmente ao comportamentalismo, que se desenvolvia celeremente pelos Estados Unidos e se difundia pelo restante do mundo, tornando-se a perspectiva predominante em Psicologia. O comportamentalismo, como afirma Figueiredo (2002), é um dos empreendimentos mais científicos que a Psicologia conseguiu criar, de modo que a despersonalização a que Rogers se refere acima nada mais é do que um compromisso do comportamentalismo com este projeto científico de Psicologia.

Aliás, como nos expõe Figueiredo, o comportamentalismo ousa na tentativa de aniquilação da Psicologia (estudo da alma, para muitos), propondo, no lugar desta, uma verdadeira ciência, a ciência do comportamento. Assim, a partir perspectiva, termos como mente, consciência, psiquismo, entre outros, não passaram a não fazer muito sentido no vocabulário de uma psicologia que se pretendesse de fato científica.

É preciso, contudo, compreender por que via Rogers teve acesso a eventos científicos, pois esta não era a do laboratório, mas sim da psicoterapia. Vale lembrar que Rogers começou sua obra com a exclusiva preocupação acerca do desenvolvimento de uma técnica de psicoterapia que fosse eficaz (ROGERS, 1974) e, para tanto, foi o primeiro a gravar em áudio e vídeo as sessões que realizava, ouvindo e analisando cada uma delas para o melhor desenvolvimento das técnicas que utilizava.

Situar o contexto de investigação em que Rogers realizou suas pesquisas é reconhecer que os fenômenos com os quais se deparava eram, de fato, diversos da Psicologia científica que, àquela época, se desenvolvia nos Estados Unidos e a respeito da qual Rogers sempre expressou ambigüidades (ROGERS, 1986). Mas afinal, que inteligibilidade Rogers dava aos fenômenos com os quais se lidava no contexto psicoterápico, ou seja, que concepção de conhecimento Rogers desenvolvia a partir de sua prática?

A resposta que poderia dar à questão acima é de que, para Rogers, o processo de conhecer apóia-se fortemente numa base subjetiva, não contendo neutralidade em seu desenvolvimento. Sobre isto, afirma Rogers (1973, p. 60-61):

Abordarei primeiro a pergunta: "Como adquirimos o conhecimento?". Quando deparamos pela primeira vez com esta pergunta, tendemos a pensar em parte da impressionante maquinaria da ciência. Quanto mais insistimos nesta pergunta, mais somos forçados a compreender que, em última análise, o conhecimento apóia-se no subjetivo: Eu experimento; ao experimentar, eu existo; no existir eu, em um determinado sentido, conheço, tenho uma sensação de certeza. Todo o conhecimento, inclusive todo o conhecimento científico, é uma imensa pirâmide invertida que repousa sobre esta minúscula base subjetiva e pessoal.

Ora, o conhecimento, tal como pensado a partir do advento da modernidade, conforme já expusemos alhures, aniquila escolhas pessoais do indivíduo que conhece. A certeza, num projeto moderno de Ciência, não se dá pela via da sensação de certeza, mas sim pelas evidências que a realidade fornece, que, por este ponto de vista, pode e deve ser desvelada. Basta lembrarmos Bacon, um dos expoentes do conhecimento moderndo, e suas recomendações acerca da postura do investigador em relação aos "ídolos" que poderiam falsear o verdadeiro conhecimento da realidade: os ídolos da tribo, da caverna, da vida pública e da autoridade.

Para Rogers, a verdade passa por um crivo que não encontra correspondência objetiva: a experiência subjetiva. O paralelo que Rogers e outros estudiosos de sua obra (AMATUZZI, 1989; FONSECA, 1998; HOLANDA, 1998; MOREIRA, 2007) conseguem estabelecer é entre sua obra e a de pensadores como Kierkegaard e Buber, ao mesmo tempo em que se sabia pragmatista no desenvolvimento de sua teoria da psicoterapia, o que não é necessariamente uma contradição (PINHEIRO, 2004).

As descobertas realizadas pelo psicoterapeuta são da ordem do que Rogers (1978) define como aprendizagem significativa, um tipo de aprendizagem em que o conteúdo necessariamente se relaciona com os objetivos daquele que aprende, de modo se torna necessário que faça sentido para ele. Rogers (2001, p. 232) descreve este tipo de descoberta da seguinte forma:

são descobertas auto-apropriadas baseadas, de uma maneira ou de outra, na experiência e não em símbolos. São semelhantes à descoberta da criança que sabe que "dois e dois são quatro" e que um dia, brincando com dois objetos e com mais dois objetos, apercebe-se subitamente na experiência de uma descoberta absolutamente inédita, que "dois e dois são realmente quatro".

Como vemos na passagem acima, a verdade pela qual se interessa a teoria rogeriana, qual seja, a verdade da pessoa, que é única capaz de acessá-la e compreendê-la, é difícil de ser significada através de um símbolo ou palavras. Ao terapeuta, por exemplo, cabe exercitar a escuta de algo que está para além das palavras, uma empatia que se dá pela sensibilidade e abertura à alteridade do outro (VIEIRA e FREIRE, 2006).

Para o momento da psicoterapia, não interessa construir um conceito acerca da pessoa com quem se relaciona, mas sim considerar e compreender sua experiência, de modo que sua vivência do aqui-e-agora possa lhe facilitar a mudança desejada. Conforme afirma Rogers (1974), o método de Psicologia que desenvolveu não era uma preparação para mudança, senão que ele mesmo já é a mudança, o que significa que, ao sujeito, é apresentada uma outra possibilidade de lidar com suas questões.

A experiência clínica rogeriana evidenciou um fenômeno por demais curioso: se, por um lado, o desenvolvimento científico-conceitual propiciou à humanidade a possibilidade de depender cada vez menos da experiência imediata e, com isso, adaptar-se mais facilmente às contingências ambientais, por outro lado, afastou-o cada de uma dimensão que o constitui de modo peculiar, a sensibilidade. Evidentemente, nenhum conhecimento se dá exclusivamente por esta via, mas é interessante notar que Rogers sinaliza a existência dessa dimensão na construção do conhecimento e, sobretudo, na constituição do sujeito psicológico (em seu caso, a pessoa em psicoterapia).

De que forma isto incide sobre uma teoria do conhecimento? Ora, conhecer, numa perspectiva centrada na pessoa, é valorizar mais o processo de busca do que uma verdade absoluta. Como afirma Rogers (1973), a ciência, repousando sobre uma base subjetiva, é um processo, uma busca, o que significa que o que a guia não é certeza, mas a possibilidade de se questionar a respeito do mundo e buscar soluções na experiência singular.

Além disso, Rogers aponta para uma dimensão do modo de conhecer o mundo rechaçada pela concepção moderna de ciência: a via dos sentidos, organísmica. Se a modernidade elevou a razão à condição de crivo de verdade da construção de um conhecimento de rigor, e descartou tudo o que não seguisse essa lógica, Rogers deixa claro que, em psicoterapia, o modo de concepção de conhecimento deve ser outro. A partir da valorização da expressão e compreensão dos sentimentos em psicoterapia, Rogers (1978) descobriu que sabemos mais do que nosso intelecto permite conhecer.

Rogers (1973, p. 61) compara esse tipo de concepção do processo do conhecer a um modo artístico de compreensão do mundo: "o cientista, como o artista, confia em si próprio e em sua experiência [...] 'é amigo' de si próprio, na medida em que procura pelas noções de verdade que lhe são próprias, que realmente lhe pertencem, que constituem sua base para dar o salto subjetivo.".

Na investigação do humano (AMATUZZI, 2001), especialmente em psicoterapia, para Rogers, interessa enfatizar a compreensão muito mais do que a explicação, pois há algo do fenômeno observado no processo psicoterápico que sempre escapa à razão. Podemos afirmar, portanto, que se trata de uma investigação da significação que a pessoa atribui a suas vivências cotidianas. Concordamos, então, com Amatuzzi (2001, p. 47) quando este afirma que "o mundo da ciência dos humanos não é o mundo em si, mas o mundo tal como experienciado pelo homem e, portanto, carregado de significados.".

Vale destacar que este mundo de significados experimentado pela pessoa em psicoterapia e acompanhado pelo psicoterapeuta como um guia sherpa (BOWEN, 2004) pode ser compreendido como uma experiência de alterização do eu, para além de um ensimesmamento ou essencialismo em que muitas vezes esta teoria é compreendida (VIEIRA e FREIRE, 2006). Isto se justifica da seguinte forma: para Rogers (1978), interessa estimular, através das atitudes facilitadoras (consideração positiva incondicional, empatia e autenticidade), a abertura da pessoa para a vivência do aqui-e-agora, portanto, do devir de possibilidades, o que Rogers (2001) compara a ser o que realmente se é tal como exposto por Kierkegaard.

Cabem aqui, contudo, as seguintes questões: o que é o ser e o que é verdade, nesta perspectiva? O ser, ou a pessoa, é algo capaz de significar seu mundo, dentro de um campo fenomenológico do qual seu melhor conhecedor é ele próprio (ROGERS, 1992). Dentro deste campo, é livre para escolher e criar diversas possibilidades, não sendo determinado por fatores externos, sejam estes quais forem, portanto, "ser" é possibilidade, abertura. Neste sentido, a verdade que interessa na compreensão deste ser, como já expusemos alhures, é a verdade idiossincrática que o constitui, o que significa que "ser o que realmente se é", pode significar abertura para uma verdade singular.

Isto se evidencia quando Rogers (2003), teorizando acerca do elemento fundamental que constitui a psicoterapia, fala de um momento de viragem no processo, momento este denominado pelo autor de "momento de movimento". Tal momento se dá num instante em que a experiência é expressa do modo mais pleno possível, sem, necessariamente, passar por um entendimento do que ela seja, mas em que o eu, até então concebido de um modo cristalizado (neurótico), torna-se vulnerável às possibilidades que sua interação organísmica com a realidade lhe apresenta na imediaticidade do aqui-e-agora. Podemos dizer, então, que o momento de movimento é, também, um momento de desconhecimento, ruptura de algo cristalizado, pré-concebido.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Mais do que eu que se conhece a si mesmo, a psicoterapia produz uma subjetividade que se estranha, pois se caracteriza sobretudo pela imprevisibilidade e entrega ao fluxo da existência. Diferentemente do que afirma Figueiredo (1992; 2002), pensamos que tal perspectiva não reforça ilusões narcísicas, pois o homem aí mostrado é tensionado pelo pathos (paixão) organísmico, que demonstra ao indivíduo sua incapacidade em controlá-la e evidencia a necessidade de entrega fluida a este sob pena de se causar sofrimento.

A sabedoria organísmica, tão discutida por Rogers (1978) é algo que reside, como propõe o título deste trabalho, na ignorância. Ignorância esta que é exercida pelo psicoterapeuta, que se coloca num lugar de não-saber, por mais que o cliente espere dele o contrário, e revelada ao cliente, pois, ao longo do processo psicoterapêutico, este geralmente percebe que sua subjetividade exige ser expressa de outro modo que não apenas o conceitual. A teoria rogeriana aponta, portanto, o que outras teorias, por outras vias, já haviam demonstrado: a subjetividade não consegue ser capturada pela racionalidade, havendo sempre algo que escapa e pede pra ser expresso pela via da compreensão.

Não se trata de negar a utilidade da teoria na investigação dos processos que a concepção moderna de conhecimento rechaça, especialmente no âmbito da psicoterapia, mas sim de reconhecer o lugar que esta tem. Ora, se a teoria é nociva ao momento da psicoterapia (ROGERS, 1976), não o é quando se tenta afastar do momento e se lhe dá alguma inteligibilidade, o que Rogers fez, por exemplo, quando da elaboração de sua teoria da personalidade (ROGERS, 1992).

Admitimos que o discurso de um autor supera a si próprio (LÉVINAS, 1998). Por isso mesmo, o que buscamos evidenciar nesse trabalho é uma outra possibilidade de compreensão do tema no trabalho rogeriano. Sabemos que em muitos momentos Rogers dá margem para que pensemos em sua teoria como mantenedora de ilusões narcísicas e comprometida com um certo "american way of life". Contudo, afirmando a polifonia que atravessa a obra de um autor, esperamos que apontar outras possibilidades de compreensão nos permita explorar aspectos ainda não desenvolvidos da teoria rogeriana.

Questões, mais do que soluções nos ficam ao fim deste escrito. Um bom caminho para investigação seria o da relação dessa singularidade presente na pessoa descrita pela teoria rogeriana com a pesquisa qualitativa. Outra relação interessante, apontada por Amatuzzi (2001), é a dessa perspectiva com um modo fenomenológico de compreensão do humano.

Uma dúvida que nos fica, também, e que poderá se desenvolver noutros escritos e investigações, é a da relação da experiência organísmica com a linguagem, pois esta, apesar de não dar conta do tipo de experiência enfatizado na psicoterapia centrada na pessoa, é a via de acesso ao afeto que a desencadeia. O que significa, portanto, linguagem, neste modo de (des)conhecer-se?

Uma abordagem ex-cêntrica da pessoa (VIEIRA e FREIRE, 2006), portanto, exige que façamos releituras e representemos ("re-apresentar") a teoria rogeriana, de modo a que se possam construir mais e mais sentidos em torno dela para que não perca o caráter sobretudo original que sempre guiou Rogers no desenvolvimento de sua teoria.

 

REFERÊNCIAS

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Artigo recebido em 16 de setembro de 2009
Aceito para publicação em 02 dezembro de 2009

 

 

1 Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará. Docente da Faculdade de Psicologia da Universidade Federal do Pará. e-mail: emeireles@ufpa.br
2
Preferimos a utilização do termo "obra rogeriana", ao invés de Abordagem Centrada na Pessoa (ACP), como comumente é conhecida a obra de Rogers, pelo fato de nos limitarmos, aqui, aos escritos de Rogers, não levando em conta, para este estudo, concepções presentes em obras de comentadores
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O título deste tópico é uma alusão ao livro "A invenção do Psicológico", de Luis Cláudio Figueiredo, no qual o autor analisa as condições de possibilidade criação de uma ciência psicológica, a partir do advento da modernidade
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Embora reconheçamos que a idéia de mobilidade social é contestável dentro no sistema capitalista, não faremos análises a respeito deste tema, uma vez que tal iniciativa fugiria dos objetivos propostos para este escrito.

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