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Revista do NUFEN

versão On-line ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.1 no.2 São Paulo nov. 2009

 

ARTIGOS

 

Fotografias do uso do diagnóstico no pensamento rogeriano

 

Photography of the use of the diagnosis in the thought of Rogers

 

 

Carmen Silvia Nunes de Miranda1

 

 


RESUMO

Este artigo tem como objetivo descrever o desenvolvimento do uso do diagnóstico no pensamento de Carl Rogers. Inicia-se com a exposição da posição rogeriana acerca da temática na primeira obra do criador da Abordagem Centrada na Pessoa – "O tratamento clínico da criança problema", de 1939 –, na qual o autor situa o lócus de avaliação da experiência fora do cliente, a partir do uso do diagnóstico pelo profissional. Em seguida, no desenvolvimento da terapia centrada no cliente, Rogers julga desnecessário o uso do diagnóstico no processo psicoterapêutico. Noutro momento, Rogers radicaliza esta posição ao enfatizar a importância do encontro de pessoa para pessoa, a partir dos trabalhos realizados com esquizofrênicos e da afirmação da experiência do outro como lócus da avaliação do processo. Em seu quarto e último momento, Rogers não só não se utiliza de psicodiagnóstico, como os vê como perda de tempo, justificando tal posição através da compreensão da singularidade do outro. Apontam-se, ao fim, implicações éticas e metodológicas deste posicionamento.

Palavras-chave: psicodiagnóstico, abordagem centrada na pessoa, pensamento rogeriano.


ABSTRACT

This article has as objective to describe the development of the diagnostic use on Carl Rogers's thinking. It begins with the exposition of rogerian position about this theme on the first book of Person Centered Approach's founder – "The clinical treatment of the problem child", from 1939 –, where Rogers places the locus of evaluation outside of the client, from the using of diagnostic by the professional. After, on the development of client centered therapy, Rogers judges unnecessary the use of diagnostic on the psychotherapeutic process. In another moment, Rogers radicalizes this position emphasizing the importance of the person to person meeting, by the work made with schizophrenic people and the affirmation of the other's experience as the locus of evaluation of the process. In his fourth and last moment, Rogers not only does not use the psychodiagnostic, but also see it as loosing of time, justifying this position through the understanding of the other's singularity. It's pointed, in the end, ethical and methodological implications of this postion.

Keywords: psycodiagnostic, person centered approach, rogerian thinking.


 

 

POSICIONANDO A MÁQUINA

Carl R. Rogers (1902-1987) contribuiu de forma bastante significativa à Psicologia por meio de suas inúmeras pesquisas e formulações teóricas. Este autor desenvolveu a Abordagem Centrada na Pessoa partindo de sua prática, iniciada na clínica, e que mais tarde extrapolou as paredes das salas de atendimento individual, sendo utilizada nos diversos âmbitos das relações humanas, como salas de aula, facilitação de grupos terapêuticos e mediação de conflitos entre grupos com interesses antagônicos, por exemplo2. Embora suas contribuições tenham se dado para além de uma mera técnica clinica, e a aplicação de sua teoria tenha se estendido para diversos campos de atuação como os citados anteriormente, isto não é amplamente reconhecido.

Um dos temas abordados por Rogers em sua produção teórica acerca da facilitação das relações humanas é o do diagnóstico. Pretendemos, neste artigo, abordar o modo como a teoria rogeriana encara o diagnóstico. Assim, buscamos levar em consideração algumas obras referentes à Abordagem Centrada na Pessoa (ACP), produzidas em diferentes momentos, na tentativa de realizar um resgate da concepção de diagnóstico nesta teoria.

Acreditamos que este resgate amplie a compreensão da ACP, como uma abordagem essencialmente viva, que se movimenta em direção a uma atualização pautada na vivência, deixando, assim, para trás uma concepção estática, naturalizada e dogmática desta. Além disso, cremos que, desta forma, este artigo estimulará discussões que transcendem os limites desta abordagem, impulsionando reflexões éticas e metodológicas acerca da utilização de diagnóstico na atuação do psicólogo.

Considerando a existência de potencialidades e limites de uma teoria, bem como das formas como essa pode vir a ser apresentada e compreendida, negamo-nos a falar da ACP como um "conhecimento de sala-de-aula", que é ensinado e aprendido de forma superficial (ROGERS, 1992), o que transforma, por vezes, idéias intensamente dinâmicas e imersas em um dado contexto histórico e social, numa mera técnica sem maior profundidade nas implicações e análises a respeito da construção de seu saber. O termo "conhecimento de salade- aula" encontra-se no prefácio do livro Terapia Centrada no Cliente, em que Rogers fala do seu receio e das conseqüências do uso de sua produção teórica

[...] se juntar à massa já avassaladora de palavras escritas sobre palavras, se incutir nos leitores a idéia de que a pagina impressa é tudo, então terá fracassado lamentavelmente. E, se sofrer a degradação definitiva de tornar-se conhecimento de sala de aula – no qual as palavras mortas de um autor são dissecadas e despejadas na mente de estudantes passivos, de tal maneira que indivíduos vivos carreguem consigo as partes mortas e dissecadas do que já foram pensamentos e experiências vivas, sem ao menos a consciência de que algum dia já foram vivas- melhor seria que este livro jamais houvesse sido escrito [...] (ROGERS, 1992, p.7).

Diante da impossibilidade que nos colocamos, propomos encarar a teoria rogeriana como um processo, um contínuo desenvolvimento de idéias, que, por vezes, são fotografadas em forma de livros. Assim, temos o intuito de enxergar a dinamicidade presente no desenvolvimento das idéias que constituem esta teoria, para que, ao senti-la pulsar, possamos melhor compreendê-la (MEIRELES, 2009).

 

Primeiro flash

Em seu primeiro livro, O tratamento clínico da criança problema, publicado em 1939, Rogers procura descrever e discutir as possibilidades de tratamento clínico de crianças consideradas difíceis, partindo de sua experiência em Rochester e dos estudos desenvolvidos por outros profissionais. Com isso pretendia "[...] levar a uma melhor compreensão das técnicas de tratamento e a uma consideração mais crítica de seu emprego" (ROGERS, 1994a, p. 15), além de salientar áreas para futuras pesquisas.Primeiro flash Em seu primeiro livro, O tratamento clínico da criança problema, publicado em 1939, Rogers procura descrever e discutir as possibilidades de tratamento clínico de crianças consideradas difíceis, partindo de sua experiência em Rochester e dos estudos desenvolvidos por outros profissionais. Com isso pretendia "[...] levar a uma melhor compreensão das técnicas de tratamento e a uma consideração mais crítica de seu emprego" (ROGERS, 1994a, p. 15), além de salientar áreas para futuras pesquisas.

Apesar de uma constante preocupação do autor com a criança que está para além do diagnóstico, por considerar que "[...] é com a criança que devemos lidar, não com a generalização que fazemos a respeito de seu comportamento" (ROGERS, 1994a, p.20), podemos perceber uma leitura favorável, neste primeiro momento, no que diz respeito à utilização do diagnóstico. A definição que Rogers adota deste termo é exposta no trecho abaixo:

Ao lidar com a criança que apresenta dificuldades de comportamento, é essencial que tenhamos uma visão de profundidade. Devemos ter algum conhecimento, não apenas dos fatos sobre a criança, mas da relevância desses fatos – o seu significado, o modo como se articulam para explicar determinado desvio do normal. Esse processo é chamado diagnóstico, e bastante apropriadamente, pois o sentido original da palavra é muito próximo ao da expressão "ver através" de uma situação complexa (Rogers, 1994a, p.29).

Para Rogers, na obra citada anteriormente, o "[...] único objetivo ao se considerar o comportamento sintomático da criança é obter auxilio na compreensão desse comportamento. Uma vez esclarecidas as causas, é inútil tratar os sintomas" (1994a, p.26). Desta forma, ele acaba por esclarecer sua postura em considerar que a eficácia da prática diagnóstica independe da teoria que a embase, já que o importante na sua utilização é ampliar a compreensão que o profissional possa vir a ter do problema, possibilitando, portanto, uma atuação mais eficaz. Assim, podemos averiguar que Rogers considera, neste momento de sua obra, que o locus de avaliação da experiência do cliente é o terapeuta, e a favor desta avaliação funciona o uso do diagnóstico.

É importante salientar que neste período nos referimos mais especificamente à trajetória profissional de Rogers, no que concerne talvez ao embrião do que mais tarde ficaria conhecida como ACP (CURY, 1987). Ainda não podemos falar de um posicionamento desta abordagem sobre o uso de diagnóstico, pois a criação da denominação "ACP" data de um momento posterior a 1939 (PINHEIRO, 2004).

 

Segundo flash

Um movimento significativo na concepção rogeriana de diagnóstico pode ser percebido na obra intitulada Terapia Centrada no Cliente, de 1951. Nela, Rogers se refere ao problema do diagnóstico, numa perspectiva bem diferente da encontrada na obra citada anteriormente. Aqui, para ele, "[...] o diagnóstico psicológico, da maneira como usualmente é compreendido, é desnecessário para a psicoterapia e pode, na verdade, ser prejudicial ao processo terapêutico" (1992, p. 253). Como podemos perceber, Rogers desaconselha o uso de um diagnóstico tradicional para o bom andamento da psicoterapia. De uma forma geral, isso aconteceria porque, para o autor, quando o locus da avaliação da experiência do cliente passa a ser o terapeuta, têm-se perdas para o processo psicoterápico.

Assim, existem implicações que atrapalham o processo terapêutico, na medida em que "há um grau de perda de identidade quando o individuo passa a acreditar que só o especialista pode avaliá-lo com exatidão e que, portanto, a medida de seu valor pessoal encontra-se nas mãos de uma outra pessoa" (ROGERS, 1992, p.257). Neste caso, reforçam-se tendências de dependências que possam existir do cliente, o que dificulta uma abertura à experiência organísmica por parte deste.

Segundo Rogers (1992, p. 255), "o comportamento é causado, e a causa psicológica do comportamento é uma certa percepção ou maneira de perceber". Para que este comportamento mude, torna-se necessário que se experimente uma mudança de percepção, e é a isso que se propõe o processo terapêutico. A terapia consistiria, então, "[...] na experiência das inadequações das velhas formas de percepção, na experiência de novas percepções, mais exatas e adequadas, e no reconhecimento das relações significativas entre as percepções" (ROGERS, 1992, p.256).

Desta forma, o cliente é o único capaz de mudar um comportamento de forma efetiva, não superficial, através da experiência de uma mudança de percepção a respeito de sua queixa, por ele ser "[...] a única pessoa capaz de conhecer completamente a dinâmica de suas percepções e de seu comportamento" (ROGERS, 1992, p.255).

Partindo disso, Rogers escreve sobre a "impotência" do terapeuta em utilizar seu conhecimento para garantir uma atuação mais efetiva, pois, mesmo

se o terapeuta soubesse, com segurança que superasse qualquer certeza que ele pudesse ter com base nas ferramentas diagnósticas atuais, exatamente o que causou o desajustamento psicológico atual, é duvidoso que ele pudesse fazer uso efetivo desse conhecimento (ROGERS, 1992, p.255)

É visível, portanto, que este ponto de vista difere sobremaneira do apresentado em sua obra O tratamento clínico da criança problema e descrito no tópico anterior. Tal diferenciação acontece devido a uma mudança de compreensão no locus de avaliação da experiência do cliente, que anteriormente era o terapeuta, e, que passa a ser a própria pessoa que busca a psicoterapia.

Neste mesmo livro, Rogers (1992, p. 256) abre espaço para outra forma de se encarar o diagnóstico, ao escrever que "num sentido significativo e acurado, a terapia é diagnóstico, e esse diagnóstico é um processo que se desenrola mais na experiência do cliente do que no intelecto do terapeuta". Desta forma, ele considera a possibilidade de uma concepção outra de diagnóstico, que não a tradicional, em que esse seria o próprio processo terapêutico.

 

Terceiro flash

Rogers aborda o processo terapêutico através de duas posturas que podem ser facilmente consideradas antagônicas. De um lado, nos deparamos com uma postura mais voltada para o método das ciências naturais, vinculando-se ao pragmatismo, em contraponto a uma compreensão mais existencial da relação genuína entre terapeuta e cliente (PINHEIRO, 2004).

No trecho abaixo, esse autor relata essa dupla postura terapeuta-investigador científico, e o decorrente confronto objetividade versus subjetividade provindo desta:

Com a experiência que adquiri como terapeuta, acompanhando a experiência estimulante e enriquecedora da psicoterapia, e tomando em consideração o meu trabalho como investigador cientifico para descobrir algumas verdades sobre a terapia, fui tomando uma consciência maior da separação entre as duas funções. Quanto melhor terapeuta me tornava (e creio que isso seja verdade), mais consciência ganhava da minha completa subjetividade, quando exercia melhor essa função. Mas ao tornar-me melhor investigador, mais teimoso e mais cientifico (como creio ter acontecido), sentia um embaraço crescente perante a distância entre minha objetividade rigorosa como cientista e minha subjetividade quase mística como terapeuta. (ROGERS, 2001, p.228-229)

Decorrente disso, Rogers realizou, ao longo da sua vida, inúmeras pesquisas que se encontram presentes em suas obras e embasam suas conclusões. Exemplo disso, identificamos no De pessoa para pessoa – o problema de ser humano , publicado em 1967. Em um capítulo desse livro, Rogers se propõe a averiguar os limites da aplicabilidade da ACP através da realização de pesquisas, que comprovassem, ou não, sua hipótese de que "[...] uma relação regular e constante entre, de um lado, as condições de atitudes apresentadas pelo terapeuta e, de outra, o processo de terapia e mudança de personalidade no cliente." (ROGERS, 1987, p.212-213) se manteria constante quer estivéssemos falando de indivíduos normais, esquizofrênicos ou neuróticos.

Segundo Rogers (1987), um dos fatores que influenciam o andamento da psicoterapia é o "desejo de relação terapêutica". Para este autor, tal aspecto é de extrema relevância para a eficiência do processo terapêutico, independentemente da rotulação que possamos atribuir à pessoa em questão. Podemos perceber tais considerações quando ele escreve que "existe uma grande diferença entre trabalhar com um cliente motivado conscientemente, seja neurótico ou psicótico, e trabalhar com a pessoa que não tem esse motivo consciente, seja normal, neurótica ou psicótica" (ROGERS, 1987, p.214).

Essa não-motivação e o desinteresse em fazer parte do processo terapêutico, ou seja, o "não desejo de ajuda", faz com que, para esse autor, esta relação seja encarada como uma tarefa bem diferente da psicoterapia, embora possa a vir a ser como tal, caso o cliente passe a procurar ajuda. Esta outra forma de relação é, geralmente, estabelecida no tratamento de pessoas rotuladas de esquizofrênicas, ou de qualquer outra categoria que limite e negue uma maior autonomia. Estes indivíduos, por vezes, são levados a tratar de seus sintomas sem que sejam implicadas como pessoas nesse processo, como se os sintomas que apresentam não tivessem um sentido na sua dinâmica psicológica.

Podemos perceber então que neste terceiro momento Rogers passa a fundamentar, através de pesquisas, seu posicionamento de não-utilização do diagnóstico ao considerar que

(...) atrás das cortinas de silêncio e alucinação de uma fala estranha, hostilidade e indiferença, em cada caso existe uma pessoa e, se formos habilidosos e tivermos sorte, podemos atingir essa pessoa, e freqüentemente, apenas por rápidos momentos, podemos ter uma relação direta de pessoa-para-pessoa com elas (...) Parece dizer que os seres humanos são pessoas, quer os tenhamos rotulados de esquizofrênicos ou de outra coisa. (1987, p. 224).

Assim, o reconhecimento dos indivíduos tidos como esquizofrênicos em sua condição de pessoa significa um passo decisivo na prática da terapia centrada no cliente. Trata-se de reconhecer a singularidade de cada um, bem como abrir-se para ela e reconhecer que, nessa abertura, produz-se um movimento em prol do cliente. A relação, portanto, é pautada no encontro de pessoas, e não de conceitos. Em seus atendimentos a pessoas diagnosticadas como esquizofrênicas, Rogers percebeu que a presença do terapeuta, seu interesse em estar ali como uma pessoa diante de outra pessoa, antes mesmo das técnicas que este adotava, era o que havia de mais terapêutico e potente na relação de ajuda.

 

Quarto e último flash

O desenvolvimento do modo de concepção da relação terapêutica leva Rogers a uma quarta fase no que diz respeito à questão do diagnóstico em psicoterapia. Se, no início,havia certo pudor em abrir mão da utilização de instrumentos psicodiagnósticos no processo psicoterápico, nesta fase, o que observamos é que Rogers desacredita completamente neste tipo de trabalho. A este respeito, em um artigo de 1974, Rogers (1986, p. 29) afirma: "Realizei estudos diagnósticos de crianças e elaborei recomendações para o tratamento de seus problemas; em 1928, desenvolvi um inventário para a avaliação do mundo interior da criança, que – Deus me perdoe continua a ser vendido aos milhares".

Em entrevista a Richard Evans (EVANS, 1979, p. 110), Rogers afirma que "o uso de testes diagnósticos é pior do que perda de tempo [...] relega o indivíduo para a categoria de objeto, de modo que você possa pensar nele, confortavelmente, sem considerá-lo como uma pessoa real com quem você se relaciona". O teste diagnóstico, portanto, não é visto mais sequer como uma ferramenta auxiliar no trabalho de psicoterapia que parte de uma abordagem centrada na pessoa. Mas por quê?

Ora, devemos nos lembrar que a concepção rogeriana acerca do ser humano que busca a psicoterapia vai na direção de enxergá-lo não como determinado, ou como categorias, ou conceitos, mas sim como possibilidades. Já na obra "Tornar-se Pessoa", Rogers apontava nessa direção quando afirmava que o objetivo da psicoterapia era de que o cliente se tornasse quem ele é.

Segundo Rogers (2001), "tornar-se o que se é" significa se abrir às possibilidades da existência, ao invés de um voltar-se sobre si mesmo em busca de uma essência da personalidade – interpretação que poderia ser realizada a partir da redundância da frase "tornar-se o que se é". O ser, portanto, é abertura. É neste sentido que Rogers (2001, p. 197- 198) afirma que

[...] muitas vezes, quando o cliente se apercebe de uma nova faceta sua, inicialmente, a rejeita. É apenas quando vivencia um aspecto de si mesmo negado até então [...] que pode tentar assumi-lo como uma parte de si mesmo [...]. Ele está se abrindo a sentimentos interiores que evidentemente não são novos para ele, mas que até então não tinha experimentado plenamente. Agora que pode permitir-se experimentá-los, eles serão menos terríveis para ele e será capaz de viver mais ligado à sua própria vivência.

O encontro "de pessoa para pessoa" indica a possibilidade de abertura para o estranho mundo do Outro e o terror e afetação de sua alteridade. A esquizofrenia, ou qualquer outra manifestação psíquica que é considerada pela psiquiatria tradicional como distúrbio, é vista pela ACP como uma expressão singular do sujeito, que precisa ser comunicada e compreendida. É neste sentido que já em 1957, num debate com Buber, Rogers afirma: Eu sinto que (...) se, do meu ponto de vista, essa é uma pessoa doente, (...) então provavelmente eu não vou ajudar tanto quanto poderia (...).

Eu sinto que esta é uma pessoa (...) Uh, sim, alguém pode chamá-lo de doente, ou se eu olhá-lo a partir de um tipo de ponto de vista objetivo, então eu devo concordar também: ‘sim, ele é doente'. Mas me lançando no relacionamento (...), me parece que se eu olhar para isso como ‘eu sou uma pessoa relativamente saudável (...) e essa é uma pessoa doente' – não ajuda (ANDERSON e CISSNA, 1997, p. 33-34).

Desta forma, o que interessa numa perspectiva centrada na pessoa são as possibilidades a serem construídas a partir de um relacionamento que favoreça o crescimento da pessoa que busca a psicoterapia. As três condições facilitadoras são elevadas ao extremo nesta perspectiva, pois o terapeuta mostra-se genuinamente disponível para considerar positiva e incondicionalmente não só os conteúdos, mas a pessoa diante dele, bem como chegar o mais empaticamente possível próximo de toda bizarrice e anormalidade que possam parecer-lhe as expressões daquela pessoa.

Isto, aliás, vale não apenas para aqueles que têm em seu protocolo de instituições psiquiátricas a denominação de esquizofrênicos, mas para toda e qualquer pessoa que se submeta a um processo psicoterápico a partir da ACP. É neste sentido que Rogers (1994b, p. 85) afirma que "parece possível (...) que a abertura, a adaptabilidade e o viver existencial, que são características da pessoa que recebeu ajuda máxima da terapia, sejam vistos por um diagnosticador, que utilize normas populacionais, como sinais de que a pessoa está se desintegrando (...)".

Ao discorrer acerca da autenticidade, Vieira e Freire (2006, p. 429) afirmam que esta se trata de "uma vulnerabilidade ao excesso que ultrapassa a palavra pronunciada por [terapeuta e cliente] [...], afetação pelo que não pode nem deve ser explicado". O excesso que ultrapassa a palavra a que se referem os autores citados nada mais é do que a singularidade de cada ser, independentemente do rótulo que lhe atribuamos.

Nesta quarta etapa das considerações rogerianas acerca do diagnóstico, portanto, podemos afirmar haver um desnudamento da pessoa. Assim, por mais contraditório que possa parecer, a categorização conceitual da pessoa, bem como seu enquadramento numa categoria psicopatológica nada mais fariam do que matar qualquer possibilidade de o objetivo da psicoterapia se cumprir, ou seja, de a pessoa tornar-se o que ela é.

 

ÁLBUM

Mostrar o movimento das concepções de diagnóstico na obra de Rogers significa muito mais do que fazer um mero retrospecto. Trata-se da (re) construção de um caminho que aponta para percursos éticos e epistemológicos. Se, num primeiro momento, Rogers valorizava o diagnóstico no que diz respeito ao lócus de avaliação da experiência, em O tratamento clínico da criança problema, já em Terapia Centrada no Cliente, conforme expusemos no decorrer do texto, já há uma mudança do lócus, pois centra-se no processo do cliente. Um momento de crise, no qual se tenta ampliar o espectro de aplicação da ACP, surge quando Rogers se pergunta de sua eficiência com pessoas diagnosticadas por psiquiatras como esquizofrênicas. Nesses encontros, como expusemos, podemos perceber que ele vê fundamentos para abrir mão de ferramentas diagnósticas, o que fornece elementos para o quarto momento deste assunto em sua obra, no qual sua obra e experiência o autorizam a afirmar que o diagnóstico relega a pessoa à categoria de objeto.

Mas que implicações éticas tal postura tem? Podemos afirmar que o rechaço ao diagnóstico na ACP é uma postura de abertura à alteridade do Outro (FREIRE, 2002; VIEIRA e FREIRE, 2006). Ou seja, não importam as categorias em que a pessoa possa ser enquadrada, mas sim a diferença que pode advir da relação e afetar o terapeuta. Considerar o Outro como pessoa, portanto, é reconhecer sua idiossincrasia e seu modo particular de expressão no mundo.

Metodologicamente, podemos dizer que, com esta posição, Rogers reafirma (não de maneira dogmática, mas a partir de investigações) a importância das atitudes facilitadoras, com especial destaque à autenticidade. Isso deve pela importância observada por Rogers da presença do terapeuta como gente, não como especialista, não como aquele que produz um discurso sobre a pessoa, mas que cria condições (facilitadoras) para que ela construa o seu. Vale ressaltar que o discurso aqui é visto como para além da mera pronúncia de palavras, muito mais próximo de uma fala autêntica, que, segundo Amatuzzi (2001, p. 24), "[...] não apenas traduz, mas cumpre, dá andamento a uma intenção, tornando-a, de certa forma, passado como mera intenção, e dando origem a novas intenções no interior de um movimento".

Desta forma, compreendemos que valorizar uma expressão autêntica (singular), além de ser um reconhecimento do valor único de cada ser humano, é criar condições para o início um movimento de cada vez mais fluidez, o que esperamos que não se entenda como sendo um transformar o estranho em familiar. Esperamos, também, que este escrito possa estimular outras investigações dessa abordagem em torno desse assunto, ser um movimento que estimule outros movimentos, principalmente na prática da Psicologia, sob pena de recairmos no que condenamos no início do texto – conhecimento de sala de aula.

 

REFERÊNCIAS

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Artigo recebido em 22 de setembro de 2009
Aceito para publicação em 5 de dezembro de 2009

 

 

1 Psicóloga, graduada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). e-mail: csilvinha@yahoo.com.br
2
Em seu artigo, "At the heart of south african struggle", Rogers (texto digitado) relata sua experiência com mediação de conflitos entre negros e brancos na África do Sul no período do apartheid,. Já em Rogers e Wood (1978), ele comenta que atuou facilitando "as comunicações entre facções em luta" (p. 192) (católicos e protestantes) na Irlanda do Norte

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