SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.1 issue2Assessment of quality of life in children with cystic fibrosisViolência doméstica e familiar: atenção social a detentos da delegacia da mulher de Belém do Pará - DEAM author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Revista do NUFEN

On-line version ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.1 no.2 São Paulo Nov. 2009

 

ARTIGOS

 

Compreendendo o pesar do luto nas atividades ocupacionais

 

Understanding the grief of the mourning in the occupational activitiess

 

 

Airle Miranda de SouzaI; 2; Victor Augusto Cavaleiro CorrêaII;3

IPrograma de Pós- Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Pará

IIDepartamento de Terapia Ocupacional da Universidade do Estado do Pará

 


RESUMO

Este texto busca compartilhar a experiência de um Terapeuta Ocupacional em um Serviço de Pronto Atendimento Psicológico às pessoas que perderam um ente significativo por morte, destacando o processo de luto e suas possíveis manifestações nas atividades ocupacionais e no meio social, bem como a importância da assistência do Terapeuta Ocupacional inserido em equipes multiprofissionais que prestem assistência ao enlutado.

Palavras-chave: representação Pesar, Luto, Atividades Ocupacionais, Terapia Ocupacional.


ABSTRACT

This paper seeks to share the experience of an Occupational Therapist in an Emergency Psychological Assistance to people who have lost a loved one significant death, highlighting the mourning process and its possible manifestations in the occupational and the social, as well as the importance of assistance the Occupational Therapist inserted in multidisciplinary teams to provide assistance to the bereaved.

Keywords: Weigh, Mourning, Occupational Activities, Occupational Therapy.


 

 

INTRODUÇÃO

Neste trabalho refletimos acerca do processo de luto, com ênfase às manifestações do pesar nas atividades ocupacionais e no meio social, compartilhando a experiência de um Terapeuta Ocupacional em um Serviço de Pronto Atendimento Psicológico às pessoas que perderam um ente significativo por morte. Neste é também apresentado á experiência do profissional no cuidado ao enlutado e as percepções acerca do processo de luto, entre eles, a maneira como sinais e sintomas são manifestados no cotidiano, principalmente, na realização e nas relações do dia-a-dia das atividades ocupacionais. Ressalta-se o luto enquanto um processo de elaboração perante uma perda significativa, na qual o pesar é expresso também nas atividades ocupacionais, convidando a reflexão sobre as implicações da morte de uma pessoa amada e a importância do trabalho do Terapeuta Ocupacional inserido em equipe multiprofissional de assistência ao enlutado, compreendendo que abandonar as atividades outrora realizadas com ou para a pessoa significativa que foi a óbito envolve significativo sofrimento exigindo a elaboração das perdas.

 

O PESAR DO LUTO E SUAS IMPLICAÇÕES BIOPSICOSSOCIAIS

(...) o homem é surpreendido por momentos ou períodos prolongados em que tudo parece ter chegado ao fim, sendo sacudido (...) por acontecimentos que o obrigam a enfrentar perdas e o agitam de tal modo que ele abandona o rumo e não sabe o que fazer. (Barreira)

A morte de um ente querido é algo que faz parte do ciclo de vida de todo ser humano, pois de acordo com Bromberg (2000, p. 23), “a morte pertence à condição humana”. A reação subseqüente a uma perda ou morte de um ente querido é o luto. Nesse sentido, para haver luto, antes é necessário haver uma perda significativa.

Compreende-se o luto enquanto um processo de elaboração frente a uma perda, especificamente, por morte de uma pessoa de vinculação importante. Constitui-se em uma vivência inevitável que se apresenta às pessoas em algum momento de suas vidas, uma vez que a morte compõe a vida, constituindo um processo contínuo de renovação. Entende-se que, em algum lugar, há alguém vivendo a dor e o sentimento de perder um ente querido, pois o luto por morte, assim como o morrer, é algo inerente à vida humana (CORRÊA et al, 2008).

Neste contexto, uma importante distinção a ser feita, é a diferenciação entre as experiências luto e pesar, que segundo Franco (2002, p. 24), refere que:

O pesar é o complexo de pensamentos e sentimentos sobre a perda, que são vivenciados internamente [...], é o significado interno dado à experiência do luto, [...] já o luto é pesar tornado público, é quando alguém se apodera desses sentimentos e pensamentos e os expressa e compartilha com os que a cercam.

Entende-se que diante da morte de um ente querido, a pessoa pode experienciar sentimentos que extrapolem os limites psíquicos, podendo se manifestar no meio social a que pertence, em que se destacam as atividades ocupacionais cotidianas. Nestas situações, a pessoa pode experimentar uma variedade de reações que, conforme a ocorrência e a severidade das manifestações irão repercutir na qualidade do seu viver.

Bowlby (1990; 1998) refere que, o homem possui uma tendência para estabelecer vínculos afetivos fortes, estreitos e próximos, considerando a necessidade das pessoas em estabelecer relações que as provenham de segurança, cuidados e proteção. Considera que o apego se desenvolve desde a infância, é dirigido a um número pequeno de pessoas e pode estar presente ao longo do ciclo de vida do ser humano. Entretanto, quando a figura do apego lhes falta, há uma resposta e nela, está presente uma intensa ansiedade e um forte protesto emocional. Ainda ressalta que para compreender o impacto da perda na conduta humana é necessário conhecer o significado do apego. Desta forma, o luto é uma resposta a uma perda de uma pessoa com quem se tenha uma relação significativa, destacando que só pode haver luto quando existe um vínculo que tenha sido rompido.

Para Freitas (2000), quando ocorre o rompimento de um vínculo afetivo, pode haver dor e depressão. Essa resposta irá depender do tipo e de como foi a relação afetiva entre a pessoa que vivência o luto e aquela que faleceu. Essa condição influencia e explica a reação emocional quando ocorre uma perda significativa, entre elas, uma perda relacionada à atividade ocupacional.

O processo de luto pode envolver quatro fases, entre as quais: a do entorpecimento, em que a pessoa expressa o choque e não aceita a notícia da perda, a fase do anseio e busca pela pessoa perdida, na qual, comumente, a pessoa pode sentir raiva por não conseguir restabelecer o contato com o ente perdido. Em seguida, a fase de desorganização e desespero por não conseguir reviver o morto. Nessa fase, a pessoa pode manifestar-se apática e deprimida, isola-se e perde o desejo pela vida social. Por fim, a fase de reorganização, em que se dá o início da aceitação da perda (BOWLBY, 1990; BOWLBY, 1998; BROMBERG, 2000).

Segundo Parkes (1998, p. 22), “o luto pode não causar dor física, mas causa desconforto e geralmente altera funções”. Proporciona momentos de muita agitação, ansiedade, dúvidas e ânsia em relação a quem foi perdido. O luto pode promover inúmeras implicações para saúde global da pessoa enlutada, dentre elas, estão a dificuldade em manter a vida laborativa, a execução das atividades da vida diária, o autocuidado, a participação nas atividades de lazer, etc. Tal condição pode envolver muita tristeza e decorrer em grande sofrimento por quem a vivencia.

Essa situação reforça a compreensão baseada no modelo biopsicossocial, considerando a saúde como fruto de uma combinação de fatores, entre os quais estão: o biológico, o psíquico, o social, o cultural, abarcando aspectos relativos ao corpo, mente e ao em que a pessoa esteja inserida (MARCO, 2003; ENGEL apud GRILO, 2004; CASTRO, 2007). O homem é visto como um ser multidimensional, com o estado de saúde contínuo. Nesse sentido, busca-se valorizar e compreender os estilos de vida, hábitos familiares, a maneira com que ele interage socialmente, seus valores, entre outros.

Bromberg (2000) afirma que, nesse período, os enlutados convivem com o sentimento de desinteresse, afastamento e desânimo pelas atividades ocupacionais do mundo externo. Manifestam sentimentos de tristeza, isolamento, presença de humor depressivo, entre outras. Há também, pessoas que apresentam uma hiperatividade na execução de suas ocupações, envolvendo-se ainda mais em suas atividades. O processo de luto, portanto, pode alterar o bem estar de saúde da pessoa.

Dependendo da duração e de uma série de fatores tais como, história de perdas não elaboradas anteriormente, rede de apoio, predisposição a estados depressivos, entre outros, o processo de luto pode provocar situações traumáticas com conseqüentes transtornos ou desorganizações do equilíbrio geral da pessoa.

Por entender que o envolvimento em ocupações, como o trabalho, o lazer, atividades da vida diária (AVD'S) e as referentes à participação em comunidade, estão relacionadas à condição de saúde cognitiva, física, psicossocial e contextual da pessoa, destaca-se as especificidades do trabalho do Terapeuta Ocupacional na assistência às pessoas que perderam entes queridos por morte. Neste sentido, vem-se compartilhar o olhar deste profissional sobre o processo de luto, uma vez que, eventualmente, este causa desconforto e geralmente altera funções, podendo ocasionar momentos de agitação, ansiedade, isolamento, humor deprimido, baixa auto-estima, capacidade diminuída de pensar e concentrar-se, desinteresse e afastamento das atividades ocupacionais cotidianas. Enfim, a pessoa em situação de luto pode desligar-se de suas ocupações (desocupar-se), inclusive daquelas relacionadas aos cuidados destinados à manutenção de sua vida - cuidados pessoais.

 

ATIVIDADE HUMANA E AS CONDIÇÕES DE PERDA E LUTO: A EMERGÊNCIA DE UMA ATUAÇÃO

Através das suas ocupações, o homem revela suas motivações, suas preferências, seus interesses, sua maneira de interagir em seu meio, suas habilidades, sua cultura, enfim, revela a si mesmo.

(Chamone Jorge)

 

As atividades cotidianas atuam como forma de definir a condição humana, de apresentar um compromisso real com a existência, de promover trocas sociais e de romper com o isolamento e a invalidação das pessoas, simultaneamente, ao realizar uma atividade, a pessoa adentra ao campo lingüístico e cultural, abrindo com isso um “caminho de humanização” (CARLO; BARTALOTTI, 2001). Compreende-se que o ato de realizar atividade promove ao homem mudanças de atitudes, pensamentos e até mesmo sentimentos, podendo restabelecer de maneira sutil o equilíbrio emocional e a vida social, num processo de real percepção e ação.

A realização de atividades atua como forma de expressar a condição humana e de apresentar um compromisso com a existência, promovendo trocas sociais e rompendo com o isolamento das pessoas. A valorização da atividade como meio para socialização e interrelação, pode constituir-se em instrumento que revela e que promove a inserção no universo do trabalho, das AVD'S, atividades de lazer, etc.

Jorge (1981, p. 20) relata que ao “fazer antes de ser simplesmente uma ação mecânica, foi à forma que o homem encontrou para satisfazer sua premência de utilidades”. Nesta compreensão, as atividades ocupacionais são pensadas e compreendidas em cada pessoa, para cada situação, remetem à história grupal, à classe social e ao universo simbólico de cada pessoa.

Entende-se que no “homem-organismo”, existe uma necessidade fundamental em ocupar-se, como se a atividade funcionasse para a sobrevivência do organismo humano. No entanto, este ocupar não vem a ser necessariamente ‘passar o tempo', mas sim um ocupar-se com objetivo, sentido e direcionamento que envolva interesse pessoal e social.

Segundo Hagedorn (2007), as pessoas necessitam fazer algo para se sentirem capazes de estarem bem ajustadas, saudáveis e para satisfazerem as necessidades da vida, pois as ocupações estruturam a vida humana, organizam a maneira como este usa o tempo e dá seqüência às tarefas. Nesse sentido, destaca-se que os seres humanos desenvolvem diversas atividades todos os dias: trabalham, estudam, praticam atividades de lazer, cuidam das atividades relacionadas ao lar, da higiene, alimentam-se, entre outras.

Para Kielhofner apud Francisco (2001), os humanos são conhecidos como possuidores de uma natureza ocupacional, em que a doença é compreendida enquanto uma força potencial para interromper ou romper a ocupação, que é entendida como organizadora natural do comportamento humano que pode ser usada terapeuticamente para reorganizar o comportamento cotidiano deste homem.

Percebe-se que a atividade humana é compreendida enquanto espaço para criar, recriar, produzir um mundo humano, repleto de simbolismo, intenções, vontades, desejos e necessidades, fazendo parte da condição humana estar envolvido em uma ou várias atividades ocupacionais (FRANCISCO, 2001). As atividades ocupacionais desenvolvidas pelos seres humanos podem estar associadas a uma quantidade variada de objetivos e finalidades pessoais. As pessoas ora se ocupam para dispor de lazer, ora para brincar, ora para se divertir, ora com o objetivo de trocar o tempo em que estiveram ocupados por um retorno financeiro. Outros se ocupam estudando e, todos esses, ainda dispõem de tempo para ocupar-se com atividades necessárias para sua conservação, para realizarem seus autocuidados, para a manutenção do seu entorno social e do seu lar.

Castro, Lima e Brunelo (2001, p. 49) afirmam que “a vida cotidiana é a verdadeira essência da substância social, (...), e os acontecimentos cotidianos marcam a passagem do tempo, dão consistência à experiência existencial e a singularizam”. A realização de atividades, portanto, atua como forma de expressar a condição humana, de apresentar um “compromisso com a existência”, promovendo trocas sociais e rompendo com o isolamento entre as pessoas. Ressalta-se que a importância das ocupações para o ser humano, o valor empregado por este no meio social e nota-se que as atividades ocupacionais compreendem algo muito singular e importante para as pessoas. Para realizá-las, a pessoa necessita de inúmeras competências e deve associá-las à várias habilidades simultaneamente.

Entretanto, Kovács (1996) refere que as doenças e suas seqüelas podem implicar modificações na vida das pessoas, que podem ser experienciadas como mortes, quando impedem as pessoas de desenvolverem atividades ou função significativas ou quando não podem desenvolver suas ocupações como antes. Na atuação terapêutica ocupacional, o paciente enfrenta condições que, por vezes, caracterizam dependência, ao não poder retornar a realizar suas atividades, situações que podem implicar em desestruturação psíquica – sócio – ocupacional, pois a pessoa pode deixar de ter sua autonomia e independência funcional, ocupacional, financeira, entre outras. Entende-se que quando a pessoa já não pode estar e/ou desempenhar atividades que para si são significativas, esta pode vivenciar uma perda e entrar em condição de enlutamento.

De acordo com Silva (2007), estas experiências podem acarretar sentimentos de tristeza, inutilidade, episódios depressivos, entre outros. Envolvem fatores complexos da vida da pessoa, os quais podem refletir na qualidade do viver, bem como, revelar uma sintomatologia que se manifeste nas atividades ocupacionais cotidianas. Essa condição pode demandar a assistência do Terapeuta Ocupacional.

Jorge (1981) refere que a perda do trabalho faz com que a pessoa perca sua identidade social, aumenta o risco de óbitos, pode levar ao envelhecimento precoce e produz um sentimento de inutilidade social. Nesse sentido, compreende-se que quando alguém deixa de desempenhar suas atividades após a perda de uma pessoa significativa ou de parte do corpo - amputação, ou após seqüelas neurológicas, perdas físico-funcionais, diante de um período de hospitalização, ou mesmo diante da perda de um trabalho significativo, ou da não possibilidade em desempenhar uma atividade de lazer que se gosta muito, bem como, da incapacidade e/ou impossibilidade de desempenhar uma atividade da vida diária muito importante e significativa para si, como pentear, maquiar, enfim, se cuidar, algo muito importante também se perde além das estruturas e condições físico - funcionais – pode-se perder a condição de fazer aquilo que gosta.

Essas situações podem implicar em condições de luto e promover mudanças em suas vidas, em que a pessoa abandona antigas rotinas, é levada a assumir novos papéis e, conseqüentemente, tem que se adaptar a novas situações ocupacionais.

 

O TERAPEUTA OCUPACIONAL NA ASSISTÊNCIA A PESSOAS QUE PERDERAM ENTES QUERIDOS: A EXPERIÊNCIA COMPARTILHADA

A cada ponto em que o Terapeuta se tolher na compreensão do homem como um ser infinito, corresponderá uma mutilação na integralidade do ser com quem ele se propôs caminhar.

(Autor Desconhecido)

Com a problematização dos estudos sobre a morte e o processo de luto quando da perda de um ente querido, primeiramente, foi possível conhecer e compreender a importância da temática na vida das pessoas nestas situações. A inserção do Terapeuta Ocupacional em um Serviço de Pronto Atendimento Psicológico ao Enlutado ocorreu por ocasião do desenvolvimento de uma Pesquisa de Mestrado, que tinha como objetivo avaliar as implicações do enlutamento nas atividades ocupacionais, sendo desenvolvida em um hospital público da Cidade de Belém. Neste sentido, eram questionados quais as especificidades deste profissional em um serviço de pronto atendimento às pessoas que vivenciavam o luto quando da morte de um ente querido.

O trabalho consistia na avaliação e intervenção a essa clientela, que deveria ocorrer imediatamente após o primeiro atendimento psicológico, não ultrapassando o total de três atendimentos realizados pelo Terapeuta Ocupacional. Após cada sessão, os casos eram discutidos pela equipe, sendo consideradas as implicações deste processo nas diferentes áreas do viver. Na avaliação do processo de luto e desempenho ocupacional foram utilizadas entrevistas abertas, as quais ocorriam nos dois primeiros atendimentos, sendo o terceiro destinado a uma oficina para livre expressão.

Através da escuta e da experiência compartilhada com outros profissionais que atuavam no serviço, psicólogos, psiquiatras, enfermeiros, entre outros, era possível refletir e entender a morte e o luto como parte da vida, acontecimento esse envolvendo dor, sentimento de perda, mas podendo também resultar em severo sofrimento implicando em mudanças significativas e prejuízo ocupacional. Por outro lado, um momento favorável a compreender e promover as potencialidades daquele que vivencia o luto, visando (re)significar seu cotidiano ocupacional.

Acompanhando os que chegavam ao serviço, era possível compreender que, além dos freqüentes sintomas descritos na literatura especializada, como choque, tristeza, negação, dificuldade de aceitar a realidade da perda, a ansiedade, procura, anseio pela pessoa perdida, raiva, culpa, solidão, desamparo, fadiga, aperto no peito, fraqueza muscular, confusão, preocupação, distúrbio do sono, distúrbios do apetite, comportamento ‘aéreo' (tendência ao esquecimento das coisas), isolamento social, tentativa de suicídio, entre outros, o pesar do luto revelava-se no desempenho das atividades ocupacionais, situações essas, que geralmente, implicavam no declínio do bem-estar geral da pessoa.

Portanto, no âmbito ocupacional, verificava-se um afastamento ou a baixa motivação para desempenhar as atividades ocupacionais, o isolamento social, entre outras, ou seja, situações que implicavam no desenvolvimento das atividades significativas do dia-a-dia. Para o Terapeuta Ocupacional, essa experiência possibilitava perceber que as pessoas desligavam-se de suas ocupações, inclusive daquelas relacionadas aos cuidados do seu próprio corpo, destinadas à manutenção de sua vida como as atividades da vida diária (AVD'S). O enlutado deixava de ter prazer em manter seus cuidados pessoais, como tomar banho e realizar as tarefas de preparar e consumir sua alimentação. Ainda observava-se o isolamento e afastamento social que geravam grandes mudanças no desempenho das atividades laborativas, sociais e de lazer.

Percebia-se que apesar dos sintomas comuns nessas condições, cada pessoa que chegava ao Serviço trazia uma história específica, uma demanda única e singular. Essas demandavam um espaço para expressar seu mundo relacional, psíquico e ocupacional. A dor, o sentimento de pesar e os transtornos de humor vividos quando da perda de uma pessoa próxima e querida extrapolavam os limites psíquicos e manifestavam-se também nas atividades ocupacionais, exigindo avaliação e cuidados. Espaços para expressão da vida ocupacional no cotidiano eram requisitados, em especial aquelas dirigidas ou relacionadas à pessoa que foi a óbito. Algumas vezes, dificuldades no desempenho ocupacional eram observadas ao longo da história de vida, outras vezes, essas eram acentuadas quando da perda e ainda os casos em que o evento deflagrava severas implicações no desenvolvimento de suas ocupações.

Enquanto demanda ocupacional, percebia-se que havia um envolvimento significativo das pessoas que chegavam ao Serviço nas vidas e nas atividades ocupacionais dos entes queridos falecidos, como por exemplo, o auxilio nas ocupações, desempenhando suporte no desenvolvimento das atividades dos mesmos, pois eram esses quem, geralmente, resolviam as dificuldades, cuidavam e compartilhavam as atividades. Entretanto, quando da interrupção no desenvolvimento dessas atividades, surgiam mudanças no estilo de vida, havendo uma destituição de papéis, ou impossibilidade de realizar atividades com e/ou para aquele ente querido que faleceu. Nestas condições, observava-se a ausência das atividades realizadas anteriormente e direcionadas àqueles que morreram, um afastamento das atividades ocupacionais e um “não saber o que fazer”, situações que confirmavam o que diz Worden (1998), quando afirma que nas condições de luto, não é raro a pessoa enlutada sentir que perdeu a direção da vida, a pessoa ressente-se do fato de ter que desenvolver novas tarefas e/ou de desenvolver funções que antes eram desempenhados por companheiros. Para Bromberg (1996), Worden (1998) e Parkes (1998), a pessoa que perde um ente querido, geralmente, tem que levar a vida adiante e a aprender novas formas de lidar com o mundo, a aprender novos papéis que não poderão ter apoio da pessoa falecida, com quem contava.

O pesar referente à perda do ser amado e das atividades realizadas para e com esses era compreendido. O vazio da perda é a ausência do outro e das ocupações compartilhadas ou direcionadas a este, em que a pessoa em situação de luto questionava o que iria fazer sem a presença do ser amado, tendo que assumir novas funções. Nestas condições, era possível compreender que emergiram não só o luto em decorrência do afastamento da pessoa morta, mas a falta, a perda da condição de desenvolver tal tarefa a pessoa que se foi. Era então necessário desocupar-se de antigas e prazerosas atividades compartilhadas, reconstruindo seu mundo e adaptando-se a outras atividades que substituíram o conhecido pelo novo: outros fazeres, outra realidade, sem mais a presença no real da pessoa amada.

Bromberg (2000), Domingos e Maluf (2003) ressaltam que, quando um ente querido morre, o enlutado não perde só a pessoa, o corpo físico, mas também o que este representava em sua vida. As perdas são acompanhadas por uma constelação de perdas secundárias subsequentes à perda inicial. A partir da experiência, percebe-se que o que também se perde é a ligação de suporte ocupacional em relação à pessoa que faleceu, que é expressa no meio externo diante da perda, da falta das atividades, antes desempenhadas em conjunto ou para aquele ente que faleceu, envolvendo a condição de enlutamento, intenso sofrimento e angústias relacionadas à identificação e eleição de atividades substitutivas. A pessoa vivenciava mudanças em suas funções, em que padrões habituais de atividade eram rompidos, remetendo-as a difícil tarefa de renunciar, excluir e incluir novos papéis. Nesta ocasião, era possível compreender as atividades ocupacionais antes e após a morte de seus entes queridos, considerando também esta etapa do ciclo de vida enquanto um período de elaboração referente às mudanças ocupacionais, as quais deixam marcas e alteram o viver.

Enquanto Terapeuta Ocupacional inserido em um serviço ao enlutado era foco de minha atenção a assistência multi e interdisciplinar a essa clientela. Neste sentido, questionava-se sobre o trabalho do Terapeuta Ocupacional no que se refere à prevenção e promoção da qualidade do viver diante da perda de uma pessoa amada. Emergia, portanto, a necessidade de compreensão do luto enquanto uma manifestação psíquica, mas também capaz de influenciar a qualidade de expressão e satisfação das atividades humanas.

Chamava atenção, a angústia das pessoas que vivenciavam a perda de um ente querido quando referiam que não eram compreendidos pelos familiares, amigos e até pelas chefias em ambiente de trabalho quando do desinteresse pelas atividades comumente desempenhadas ou mesmo quando reduziam sua produção ocupacional habitual. Compreendia-se que o luto promovia inúmeras implicações para saúde global, entre algumas das dificuldades advindas, a de manter a vida laborativa, as atividades da vida diária, de autocuidado, a participação nas atividades de lazer, entre outras.

Era observado a necessidade da inclusão deste profissional na equipe que prestava cuidados de pronto atendimento ao enlutado. Se algo interfere para que uma pessoa não desenvolva independentemente e satisfatoriamente suas atividades cotidianas, estas, então, ser assistidas pelo Terapeuta Ocupacional. Desse modo, confirmava-se a necessidade de se buscar a compreensão do luto enquanto uma manifestação psíquica que influenciava a qualidade de expressão e satisfação das atividades humanas ocupacionais e ainda sobre a importância de um espaço para expressar, (re)significar e (re)pensar suas atividades sem a presença da pessoa que morreu.

Casselato (2005) ressalta que o luto pode ser compreendido como uma reação à perda de um objeto valorizado, como a pessoa amada, o emprego, o status, parte do corpo, etc. Nesta experiência, compreendia-se que atividade era algo valorizado na relação com o ente querido falecido. Quando a relação de suporte ocupacional era interrompida diante da morte, observa-se uma reação de protesto, de reinvidicação pela perda, bem como pela falta das atividades, antes desempenhadas em conjunto e/ou para com os entes queridos, resultando em grande sofrimento. Essa situação revelava uma história de dedicação e/ou suporte ocupacional carregada de significados, de investimento pessoal e ocupacional do enlutado, que quando já não pode mais ser vivido em decorrência da morte do ente querido, comparece como mais uma manifestação significativa do processo de luto.

Portanto, destaca-se que as atividades cotidianas significativas, durante o processo de luto, também devem ser foco de atenção do Terapeuta Ocupacional, merecendo avaliação, visto que podem interferir no desempenho e participação ocupacional, destacando que é função deste profissional avaliar o tipo de relação ocupacional do enlutado para com o ente querido que foi a óbito, uma vez que as atividades direcionadas à eles, revelaram-se importantes no processo de aceitação e elaboração da perda, indicando, também, a importância da avaliação e acompanhamento disponibilizado pelo Terapeuta Ocupacional a essa clientela.

Ressalta-se também a necessidade e a relevância de se avaliar a compreensão acerca de questões da vida ocupacional, como por exemplo: qual ou quais eram as atividades do enlutado antes do falecimento do ente querido? Que atividades o enlutado e o ente querido falecido faziam juntos? O que significava para o enlutado as atividades realizadas junto com ou para o ente querido falecido? Diante de tais questionamentos, afirma-se a necessidade da assistência Terapêutica Ocupacional nestas condições, por compreender que este dispõe de habilidades e conhecimento técnicos que podem ser mais uma estratégia de acolhimento e de acompanhamento nestes casos.

Ao mesmo tempo, fez refletir a atuação do Terapeuta Ocupacional em situações de perda em outras áreas de assistência: no âmbito físico-funcional, diante das perdas de movimentos, da independência, ou de parte do corpo, quando vivência o processo de hospitalização, entre outras. O Terapeuta Ocupacional vem atuando com populações que sofrem com perdas, decorrentes de amputações, alterações ou perdas de movimentos, dificuldades quanto à coordenação motora e de independência para a realização das atividades cotidianas. Atua com pessoas que estão enfermos e vivenciando a hospitalização, situações onde geralmente perdem sua autonomia, sua singularidade, a convivência com seus familiares e amigos e/ou convivem diante das dúvidas e possíveis perdas no processo de recuperação, bem como, a morte.

Percebe-se que nem sempre essas situações são foco da assistência ou como essas perdas influenciam a saúde global da pessoa e, conseqüentemente, suas ocupações. Compreende-se que assistência Terapêutica Ocupacional ainda pouco investe na compreensão das demandas ocupacionais diante dos diversos processos de perdas e luto possíveis de serem vividos a longo da vida.

Entretanto, esta realidade tem revelado que há a necessidade do Terapeuta Ocupacional observar cada vez mais para os aspectos psicossocias - ocupacionais desencadeados diante de uma alteração nas condições de saúde após tais perdas, pois Segundo Silva (2007), nestas situações, a pessoa enfrenta situações de dependência, ao não poder retornar a realizar suas atividades com autonomia. Ainda relata que ao depara-se com suas reais dificuldades, este experiência situações de extrema desestruturação, pois na maioria das vezes o paciente deixa de ser independente.

Essa experiência, por fim, fez repensar as implicações do pesar quando da perda de pessoas e/ou outras situações na saúde, no cotidiano e na vida das pessoas, para que possa compreendê-las e assim pensar estratégias que contribuam na elaboração deste processo para favorecer um processo de assistência integral a pessoas que procuram o Terapeuta Ocupacional quando da perda de algo ou alguém significativo.

 

CONDIDERAÇÕES FINAIS

Nós,capacitamos as pessoas a se envolverem em papeis, tarefas e atividades que tenham sentido no seu dia-a-dia e que definem suas vidas. (Trombly, 1993)

Através dessa experiência, pode-se compreender a expressão do pesar nas atividades ocupacionais. Através da escuta e do convívio com outros profissionais que atuavam na equipe, foi possível também refletir sobre a morte e luto como parte da vida, um acontecimento acompanhado de dor, sentimento de perda, que quando vivido pelo ser humano deve ser respeitado como um momento de sofrimento e sintomas que implicam mudanças em sua vida, mas também como um momento de perceber, compreender e promover as potencialidades deste homem para que possa (re)significar o seu cotidiano.

Entende-se que a prática da Terapia Ocupacional oferece a pessoa uma assistência não somente voltada às disfunções físicas, mas, principalmente, às questões e as demandas do homem biopsicossocial e ocupacional. É necessário que cada vez mais se afirme isso, repercutindo em um fazer que abarque o homem em suas necessidades biopsicossociais e ocupacionais.

Destaca- se ainda as demandas do pesar nas atividades ocupacionais e relevância da assistência à pessoa em situação de luto, com ênfase a inclusão do Terapeuta Ocupacional em equipes de pronto-atendimento, somando esforços a prevenção de manifestações complicados do luto.

 

REFERÊNCIAS

BOWLBY, J. Formação e rompimentos dos laços afetivos. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1990. 165 p.         [ Links ]

BOWLBY, J. Perda tristeza e depressão. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. 423 p.         [ Links ]

BROMBERG, M. H. P. F. A psicoterapia em situação de perdas e luto. Campinas: Livro pleno, 2000, 174 p.         [ Links ]

CARLO, M. M. R.; BARTALOTTI, C. C. Caminhos da Terapia Ocupacional. In: ________. Terapia Ocupacional no Brasil: fundamentos e perspectivas. São Paulo: Plexus, 2001. p. 19-40.         [ Links ]

CASSELATO, G. Luto não reconhecido: um conceito a ser explorado. In: ___________. Dor silenciosa ou dor silenciada: perdas e luto não reconhecidos por enlutados e sociedade.Campinas: Livro Pleno, 2005, p. 19 – 34.

CASTRO, E. D.; LIMA, E. M. F. A.; BRUNELO, M. I. B. Atividades humanas e terapia ocupacional. In: CARLO, M. M. R. P.; BARTALOTTI, C. C. Terapia Ocupacional no Brasil: fundamentos e perspectiva. São Paulo: Plexus, 2001. p. 41-59.         [ Links ]

CASTRO, E. K. Psicologia pediátrica: a atenção à criança e ao adolescente com problemas de saúde. Revista Psicologia: ciência e profissão, Brasília, v. 27, n. 3, p. 396 – 405, jul – set, 2007.

CORRÊA, V. A. C.; MOURA, D. S. C.; SOUZA, A. M.; PEDROSO, J. S. Sobre a assistência em saúde nas situações de luto por morte: algumas reflexões. Revista Paraense de Medicina, Belém, v. 22, n. 2, p. 97 – 100, abril – junho, 2008.

DOMINGOS, B.; MALUF, M. R. Experiências de perda e de luto em escolares de 13 a 18 anos. Psicologia: reflexão e crítica, Porto Alegre, v. 16, n. 3, p. 577-589, set-dez, 2003.         [ Links ]

FRANCISCO, Berenice Rosa. Terapia Ocupacional. 2. ed. Campinas, São Paulo: Papirus, 2001, 95 p.         [ Links ]

FRANCO, M. H. P. Uma mudança no paradigma sobre o enfoque da morte e do luto na contemporaneidade. In: FRANCO, M. H. P. Estudos avançados sobre o luto. Campinas: Livro Pleno, 2002, p. 15 – 38.

FREITAS, N. K. Luto materno e psicoterapia breve. São Paulo: Summus, 2000, 152 p.         [ Links ]

GRILO, A. M. Os Modelos de Saúde: suas implicações na humanização dos serviços de saúde. In: Congresso Híspano – Português de Psicologia, 2, 2004, Lisboa. Anais. Lisboa: Iber Psicologia, 2004. p. 1 – 8.

HAGEDORN, R. Ferramentas para prática em Terapia ocupacional: uma abordagem estruturada aos conhecimentos e processos centrais. São Paulo: Roca, 2007, 477 p.         [ Links ]

JORGE, R. C. Chance para uma esquizofrênica. Belo Horizonte, I. Oficial, 1981, 115 p.         [ Links ]

KOVÁCS, M. J. A morte em vida. In: BROMBERG, M. H. P. F.; KOVÁCS, M. J.; CARVALHO, M. M. J.; CARVALHO, V. A. Vida e morte: laços da existência. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1996, 122 p.         [ Links ]

LIMA, M. L. M. Luto materno: a perda de um filho por câncer. Revista da Faculdade Christus, Fortaleza, n. 9, p. 127 – 142, 2006.

MARCO, M. A. A face humana da medicina: do Modelo Biomédico ao Modelo Biopsicossocial. São Paulo: Casa do psicólogo, 2003, 296 p.         [ Links ]

PARKES, C. M. Luto: estudos sobre a perda na vida adulta. São Paulo: Summus, 1998, 291 p.         [ Links ]

SILVA, S. N. P. Análise da atividade. In: CAVALCANTI, A.; GALVÃO, C. Terapia Ocupacional: fundamento e prática. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2007, p. 110 – 124.

WORDEN, J. W. Terapia do luto: um manual para o profissional de saúde mental. 2ª ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998, 203 p.         [ Links ]

 

 

Artigo recebido em 31 de outubro de 2009
Aceito para publicação em 5 de dezembro de 2009

 

 

1 Texto vinculado à Dissertação de Mestrado: “A expressão do pesar nas atividades ocupacionais quando alguém querido morre”, no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Pará (2009), com a concessão de uma bolsa de apoio à pesquisa financiada pela Agência de Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível Superior - CAPES
2 Psicóloga, Doutora em Ciências Médicas / Saúde Mental (UNICAMP). Docente do Programa de Pós- Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Pará (UFPA), Coordenadora do Laboratório de Estudos sobre Luto e Saúde da Faculdade de Psicologia, desenvolvido no Hospital Universitário João de Barros Barreto (LAELS/HUJBB/UFPA). Coordenada o Grupo de Estudos do Luto do Hospital Universitário João de Barros Barreto (GEL/HUJBB) - (ams@amazon.com)
3 Terapeuta Ocupacional, Mestre em Psicologia, Docente do Departamento de Terapia Ocupacional da Universidade do Estado do Pará (UEPA). Terapeuta Ocupacional da Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará (FSCMPA). Membro do Laboratório de Estudos sobre Luto e Saúde (LAELS/UFPA). Coordenada o Grupo de Estudos do Luto da Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará (GEL/FSCMPA) - (vcavaleiro@hotmail.com)

Creative Commons License