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Revista do NUFEN

On-line version ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.2 no.1 São Paulo June 2010

 

ARTIGOS

 

Ludoterapia gestaltica: dois casos clínicos

 

Gestalt ludotherapy: two clinic cases

 

 

Carolina Silva1, Lívia Arrelias2

 

 


RESUMO

Neste artigo apresentamos dois estudos de casos realizados durante o treinamento de duas Psicólogas na clínica escola da Universidade Federal do Pará: Maurício, cuja queixa mencionava auto-imagem e expressão negativas da agressividade; Rafael, filho adotivo, agressivo na escola e com enurese noturna. O ludoterapeuta gestaltico articula o tratamento clínico em duas bases integradas: a relação dialógica e o brincar. Um objetivo do ludodiagnóstico é identificar as disfunções de contato, e da ludoterapia restabelecer o fluxo do contato intensificando a identificação das necessidades e a recepção de alimentos importantes à Nutrição Psicológica. O lúdico, o desenho, os jogos e as entrevistas com os menores e seus responsáveis foram alguns dos procedimentos usados no percurso do atendimento. Como resultado das intervenções, à medida que a confiança e a relação terapêutica foram sendo fortalecidos, os clientes reconfiguraram seus processos de metabolização e nutrição psicológica.

Palavras-chave: estudo de caso; ludoterapia; gestalt-terapia.


ABSTRACT

In this article we will present two case studied during the training of two Psychologists of the school clinic of the Federal University of Para State: Mauricio, whose plaint mentioned selfimage and negative expressions of aggression; Rafael, adopted, aggressive at school and afflicted with nocturnal enuresis. Gestalt ludotherapist manages articulated clinic treatment in two integrated bases: the dialogic relationship and the play. One of ludodiagnosis objectives is to identify the contact disfunctions and, of ludotherapy is to reestablish the flow of contact, intensifying identification of needs and reception of the important foods for Psychological Nutrition. Ludic, draw, games and interviews with the minors and the responsible adult were some of the proceedings used on the path through the supervisioned training. As a result of interventions, both confidence and therapeutic relationship were mutually strengthened, and clients reconfigured their psychological metabolism and nutrition processes.

Keywords: case study; ludotherapy; gestalt-therapy.


 

 

COMPREENSÃO GESTÁLTICA DO DESENVOLVIMENTO

O artigo aborda dois relatos de casos em ludoterapia. O método clínico obedeceu aos procedimentos éticos para a prática psicoterapêutica elaborados pela Clínica de Psicologia da Universidade Federal do Pará.

Perls (1973, 1988) considerou o contato e a fuga opostos dialéticos, meios de lidar na fronteira de contato com os objetos do campo; os extremos polares da experiência de expansão ou retração do eu. Nesta perspectiva, o modo pelo qual uma pessoa bloqueia ou permite a consciência e a ação na fronteira de contato é o seu modo de manter seus limites. Quando são estabelecidas fronteiras rígidas, surge o medo e uma sensação de receber uma carga insuportável de excitação, em conseqüência, o isolamento.

O temor e o estranhamento diante do desconhecido intensificam o contato com aquilo que é familiar, uma vez que o hábito tem grande força. Para interromper o padrão de comportamento já instalado, é necessária uma intensa mobilização de energia para que o indivíduo se movimente em direção ao afastamento da órbita do habitual, expandindo, dessa maneira, a fronteira da familiaridade. Uma das dificuldades para se sair do familiar é a tentação de se encerrar todo o drama da mudança. A sensação de sermos roubados de tudo aquilo que nos é familiar é um vácuo que ameaça sugar o que está ao alcance, tornando-se difícil de apreciar a idéia de que o vazio que fica pode-se tornar um vazio fértil (POLSTER, M. & POLSTER, E. 1979).

Em se tratando de crianças, o familiar está em processo de formação. As aprendizagens incluem a percepção da diferença entre situações nutritivas e situações tóxicas para a sua existência. Assim, a dinâmica dos processos de subjetivação infantil compreende a vivência de experiências que lhes permitam constituírem-se como seres autônomos, adultos saudáveis.

Pimentel (2005) realizou pesquisas com crianças de 08 a 10 anos para repercutir a questão do metabolismo dental e cunhou a tese da nutrição psicológica entendida como o provimento à criança de alimentos afetivos positivos. Estes são indispensáveis para a formação da auto-estima, auto-conceito saudáveis, e a capacidade de reconhecimento do outro pela criança. A nutrição psicológica é uma idéia amparada nas proposições de Perls (1975) para o desenvolvimento psicológico. O ponto é baseado no princípio do isomorfismo que sugere a semelhança entre processos físicos e mentais.

Uma das conclusões da autora foi identificar que no processo de nutrição psicológica os dentes emprestam a qualidade de suas funções às ações do eu, contudo a característica não é associada a uma estrutura psíquica, um órgão, por exemplo, a boca, responsável pela mastigação. A analogia é oferecida pelos atributos dinâmicos operacionais do sistema digestivo: modo de quebrar os alimentos em partes. Logo, para haver nutrição psicológica saudável, faz-se necessário cortar, rasgar e triturar as orientações e informações contidas nos padrões de socialização da cultura em que a criança vive e que orientam as formas de expressividade e reconhecimento do outro.

A articulista considerou que a nutrição psicológica se refina, isto é, se atualiza, pois a criança não realiza plenamente a metabolização psicológica do alimento mental, já que seu sistema cognitivo está evoluindo e também por razões culturais, educacionais e instrucionais, porquanto não recebe uma orientação que lhe permita preparar-se para exercitar sua vontade (difere da falta de limites trazida pelo mimo). Consideramos o processo cognitivo está vinculado a um continuum de aprendizagens iniciadas na infância em casa, na escola, na turma, com os entes significativos e de confiança.

 

O PROCESSO LUDOTERAPEUTICO

A relação terapêutica é um importante fator de cura. Assim, é necessário ter em mente que a inclusão para realizar-se como um encontro genuíno requer amorosidade, diálogo, e oportunidade do cliente encontrar-se com outra pessoa – o terapeuta. O envolvimento pleno de contato entre terapeuta e cliente, como seres humanos, cria as possibilidades de ampliação da consciência do cliente, facilitando o processo de vir-a-ser de ambos. Em se tratando de atendimento infantil, o psicoterapeuta observa, acompanha e intervém, incluindo sempre os pais ou responsáveis pela criança.

O contexto familiar no atendimento psicoterápico infantil é um dos campos de observação e intervenção. Os teóricos do modelo sistêmico de terapia familiar lembram que o membro sintomático na família é apenas um representante circunstancial de alguma disfunção no sistema familiar. Este princípio está de acordo com a idéia de que as ações e comportamentos de um dos membros influenciam e, simultaneamente, são influenciados pelos comportamentos dos outros (CALIL, 1987). No atendimento psicoterápico infantil, a criança é quem faz o papel de "bode expiatório", pois ela geralmente apresenta os sintomas que fazem com que seus responsáveis procurem auxílio.

Oaklander (1980) observou que a criança, mesmo sendo o "bode expiatório" de uma família não pode ser diminuída como pessoa em si, por maior que seja a discriminação imposta pelos pais a um filho que apresenta desajustamento existencial e social. Além disso, reitera que o psicoterapeuta que se oferece à criança como pessoa permite que esta perceba que existe alguém em quem ela pode confiar que a respeita como indivíduo e que a apóia. Axline (1984) descreveu a brincadeira, o meio natural de auto-expressão da criança. Para ela, o jogo oportuniza a criança se libertar de seus problemas e, ao mesmo tempo, expandir as fronteiras de contato e também se emancipar de sentimentos malfazejos acumulados.

Muitas vezes, ocorre que a criança não consegue viabilizar a sua auto-expressão, pois não aprendeu a lidar com as emoções provenientes dessa atitude, ou por não ser estimulada a dar voz para si mesma, ou quando não é considerado importante o suficiente para deixar emergir suas necessidades, de modo a satisfazê-las. Assim, esta passa a criar estratégias de ajustamento social e emocional. Os casos examinados mostram várias estratégias infantis utilizadas para estabelecer auto-contato e contato social, experienciar situações e sensações, satisfazer necessidades ou para ser visto e notado, etc. Além, o movimento em busca de ressignificar os papéis determinados.

 

OS CASOS:

CASO I:

Maurício3, sete anos de idade completos, 1.ª série do ensino fundamental em escola da rede municipal de ensino; tem dois irmãos: uma menina de dois anos, por parte de pai, e um menino de quatro anos, por parte de mãe. Mora na casa dos avôs paternos com uma tia e um tio. Divide o quarto com a tia, que assumiu a responsabilidade pelo menor a partir do momento em que ele foi morar com a nova família.

Os atendimentos ocorreram na Clínica-escola de Psicologia da Universidade Federal do Pará durante oito meses, perfazendo um total de quinze sessões ludoterápicas, mais duas entrevistas devolutivas com sua responsável. A queixa inicial foi apresentada por uma tia paterna que estava preocupada com o comportamento do sobrinho: muito calado, se avaliando como um menino burro; que não aceitava os cuidados dos avós paternos e não interagia bem com outras crianças. Maurício nasceu de um relacionamento violento entre seus pais – Carina e Roberto - razão pela qual o menor não possuía moradia fixa: passava períodos morando com a sua mãe, ora com seu pai; ora com os avós paternos.

O psicodiagnóstico (PIMENTEL, 2003) foi realizado concomitantemente à psicoterapia durante três encontros. Questões familiares e de autoconceito apareceram com maior freqüência nas verbalizações de Maurício, de sua tia e nos desenhos dele. As demandas relativas ao autoconceito figuraram principalmente no início dos atendimentos, com Maurício verbalizando que não sabia fazer nada direito e que tudo o que fazia era sempre feio.

A ludoterapia possibilitou-lhe a expressão com maior liberdade e facilidade. Foram utilizados desenhos, bonecos de guerra (os preferidos de Maurício), fantoches, brinquedos de montar (casa e cidade), massa de modelar, quadro de giz, jogos como quebracabeças, banco imobiliário júnior e com letras e sílabas do alfabeto, livros de histórias e revistas em quadrinhos, fotos da família dele, além de relatos verbais, tanto de Maurício quanto de seus responsáveis – sua tia, principalmente, e sua madrasta.

Os três primeiros encontros geraram a base para que o estabelecimento de um clima de confiança entre cliente e terapeuta fosse construído. Procuramos acompanhar a criança deixando-a a vontade para que se expressasse livremente sobre qualquer assunto que tivesse interesse. No primeiro e segundo encontros, ele se manifestou, dizendo o que queria desenhar; pegou duas folhas de papel - uma para ele e outra para a terapeuta (T). Começou o seu desenho, depois parou e se interessou pelo desenho da T, dizendo que estava mais bonito que o seu. Em resposta, foi incentivado a concluir o seu desenho.

No terceiro encontro, Maurício e a T trabalharam com cola colorida. A T fez uma borboleta que o menino achou bonita e quiz fazer uma também. Largou o seu desenho e, apesar de dizer no início que não sabia como fazer uma borboleta, foi incentivado e fez a sua, com a ajuda da T. O título "Cotodifadais" (Conto de Fadas) foi dado em um encontro posterior.

Aos poucos, o menino ficou mais à vontade para manifestar os conteúdos de suas vivências, o que ampliou o volume de intervenções e confrontações, permitindo que ele pudesse se dar conta do que era podia fazer algo para diminuir a carga de sofrimento sentido. A primeira vez que lhe foi pedido para desenhar sua família, Maurício fez um elefante. O animal parecia simbolizar o peso muito grande que o menino sentia ao tratar deste assunto.

No quarto encontro, abordamos sentimentos a respeito de seu pai, percebido como alguém chato. Mauricio não gostava de ir para casa do pai porque não tinha nada para fazer lá. Após conversar e refletir um pouco, a T sugeriu que Maurício desenhasse alguma coisa legal que ele fazia na casa de seu pai, ao que ele respondeu: "Mas tem que ser agora?". A T disse que ele poderia levar no próximo encontro, o que pareceu melhor ao menino. No sexto encontro, ele levou o desenho e concluiu que não era tão ruim assim ir para a casa do pai.

Desde o começo do trabalho terapêutico, Maurício demonstrou bastante preocupação com a sua mãe e o relacionamento agressivo que ela mantinha com o pai do menino. Dizia com freqüência que gostaria de morar com ela, mesmo sendo bem tratado na casa dos avôs. Quanto ao relacionamento com seu pai, no início, mostrou-se bastante resistente em falar.

A partir do momento em que entrou em contato e aceitou expressar seus sentimentos com relação ao pai, narrou alguns fatos em que foi possível identificar que o menino sentia uma espécie de pressão ante algumas solicitações do pai, por exemplo, não brincar e exigir-lhe uma compreensão pouco compatível com o seu nível de desenvolvimento cognitivo. A negação constante pelo pai dos pedidos de brincar; de receber carinho e atenção; deitar na cama junto com ele e conversar fazia com que Maurício se mostrasse sem esperança de conseguir estabelecer um relacionamento afetivo com o seu pai.

As intervenções permitiram a Maurício compreender que se ele não expressasse seus desejos e sentimentos, seu pai não poderia saber o que ele queria. Foi então que o menino percebeu que não pedia a seu pai para brincar com ele, deitar a seu lado ou mesmo conversar, porque parecia que ele estava sempre trabalhando ou cansado. A comunicação estabelecida entre pai e filho fez Maurício perceber o amor do pai por ele e o seu próprio amor pelo pai.

No 15º encontro, o menino fez espontaneamente dois desenhos de coisas que fazia com seu pai: tomar banho de chuva e a despedida quando Roberto saia para trabalhar (Maurício passava o fim de semana na casa do pai). Após fazer os desenhos, Maurício disse: "Isso o papai faz comigo, porque ele gosta de mim e eu gosto dele o mesmo tanto que da mamãe".

A tia Alice, sua responsável, era a pessoa de quem Maurício demonstrava gostar mais e ter mais confiança, desde o princípio dos atendimentos. Ele dormia no quarto dela quando tinha dúvida ou quando estava com medo, principalmente do escuro e de aranhas. Em um encontro, pedimos ao menino que desenhasse o membro de sua família de que mais gostava. Maurício fez uma borboleta colorida e disse que era a tia.

Os avôs paternos pouco foram mencionados nos atendimentos. Permaneceram como figuras distantes relacionadas à responsabilidade pelas questões econômicas - alimentação, vestuário, moradia, etc. A avó de Maurício é, segundo Alice, uma pessoa que já não tem mais paciência para cuidar de uma criança, visto já ter criado os seus filhos. Apenas no segundo semestre o menino revelou que seus avôs eram pessoas legais e que o tratavam bem.

Finalizando as duas etapas do atendimento, realizamos entrevistas devolutivas com a tia Alice para elaborar sínteses, confrontar percepções, dar e receber realimentação. Algumas das questões abordadas foram: a) percepção de que Maurício parecia uma espécie de "batata-quente" que era jogada de mão em mão sem que alguém assumisse a responsabilidade por ele. A ilustração da situação era evidenciada pelas mudanças constantes de casa – mãe, pai, avós – em apenas sete anos de vida; b) troca freqüente de pessoas que o traziam para a psicoterapia – tia, a madrasta, pai, mãe, uma tia de seu pai.

A ausência de Roberto e Carina, pais do menino, se configurou como um fator que impediu intervenções mais eficazes em relação às dificuldades e necessidades do menino. Vale ressaltar que, apesar de morar com os avós, a efetiva residência do menino não estava definida, uma vez que a madrasta queria levá-lo para morar com eles. Esta mudança só não ocorrera dada as dúvidas sentidas pelo pai de Maurício quanto à paternidade biológica. Este assunto não era comentado com o menino. Foi trazido para a psicoterapia pela madrasta dele.

CASO II:

Rafael, nove anos de idade, 2ª série do ensino fundamental. Sua família foi desestruturada quando ele tinha quase três anos de idade: foi abandonado, juntamente com a irmã, pela mãe biológica e não tinha contato com o pai. Foi acolhido por uma tia (irmã da mãe dele), que se tornou responsável por eles assumindo o papel de mãe, sendo reconhecida como figura materna pelas duas crianças, constituindo assim uma nova família.

Foram 14 sessões no total, duas conjuntamente com Rafael e a mãe adotiva; uma apenas com a mãe adotiva; e as demais somente com Rafael. Na sessão devolutiva dialogamos acerca do modo como ele havia chegado, a hipótese da terapeuta sobre o comportamento da criança e sobre as mudanças ocorridas durante o atendimento.

A criança foi descrita na triagem como desobediente a quase tudo que lhe era solicitado. As professoras costumavam mandar bilhetes para sua casa falando sobre seu comportamento agressivo com os colegas como reação a apelidos e à realização das atividades escolares. A escola o encaminhou ao Departamento de Educação Especial da secretaria de educação do estado, Divisão de Diagnóstico para uma avaliação, que por sua vez o encaminhou para nossa clínica. As conclusões da avaliação da divisão o consideraram sem déficits cognitivos.

A queixa também apontou que ele ainda fazia xixi na cama e que era uma criança "diferente". Quanto à expectativa do tratamento, a mãe revelou o desejo de que ele melhorasse as atitudes, que fosse menos agitado e queria se certificar de que ele não apresentava nenhum problema. Além disso, ela mencionou o medo de as pessoas pensarem que ela o maltratava.

Depois do afastamento definitivo da mãe biológica, o pai iniciou um vínculo de afeto com ele, que permanece até hoje. A mãe adotiva (tia) buscou restabelecer o vínculo do menino com a mãe biológica, sem resultado. No momento dos atendimentos, ela freqüentava a casa da nova família de Rafael, junto com o filho mais novo (5º filho), porém, de acordo com o relato da mãe adotiva, o menino se manifestava com indiferença à presença da mãe biológica.

A mãe adotiva informou que a mãe biológica negligenciava afeto, cuidado e alimentação aos filhos. Quem exercia o papel de cuidadora era a avó materna, mas depois da morte desta, Rafael era deixado sozinho em casa. Após o nascimento da irmã do menino, ambos foram deixados aos cuidados da tia, que por sua vez também não queria responsabilizar-se por eles. Ela pensou em deixá-los em uma instituição de adoção, mas em seguida desistiu da idéia e resolveu ficar com eles. O final dos atendimentos coincidiu com o processo de adoção das crianças.

O afastamento pleno da mãe biológica foi experimentado por ele, ainda muito pequeno, de forma muito dolorosa, uma vez que os choros eram freqüentes. A mãe adotiva o fazia rezar pedindo pela volta da mãe biológica. Ele recusava o contato com as pessoas, não tolerava abraços e beijos. Passado algum tempo, ele passou a abandonar a mãe biológica. A manifestação da rejeição ocorreu quando ele deixou de chamá-la de mãe.

Enquanto elaborávamos a hipótese do psicodiagnóstico informal observamos que o menor expressava suas dificuldades exibindo uma grande tensão corporal: contenção das mãos, rebaixamento dos olhos e da cabeça e encolhimento do corpo, quando eram mencionados assuntos que pareciam trazer à tona sentimentos doloridos gerados em algumas experiências afetivas. Assim, a observação das reações exibidas pelo corpo do cliente foi utilizada tanto como mecanismo de composição do psicodiagnóstico, quanto material de trabalho terapêutico, uma vez que este era estimulado a integrar os sentimentos vivenciados aos bloqueios corporais. Para auxiliar no processo de descoberta do "mundo" do cliente, o desenho foi outro recurso utilizado como meio de comunicação. O instrumento proporcionou prazer ao menino.

Conforme a evolução do tratamento, Rafael demonstrou aceitar a tia como figura materna, incluindo-a em seus desenhos como pertencente à família dele, desempenhando o papel de mãe. Na 4ª sessão, por meio do desenho, Rafael a apontou como mãe, e na 8ª sessão, ele a nomeou como vó, ficando clara a confusão sentida sobre o papel que a responsável desempenhava em sua vida.

Na 11ª sessão a mãe adotiva relatou novamente que, em situações cotidianas, p menino muitas vezes a chamava de "vó", sendo repreendido por ela: "Ele me chama de vó, mas eu digo pra ele: eu sou sua mãe. Eu digo pra ele parar de me chamar de vó, pois em algumas situações, como viagem, por exemplo, pode dar algum mal-entendido. Eu não queria obrigar ele a me chamar de mãe. Eu queria que isso viesse dele".

Ainda na 11ª sessão, percebemos o impasse também no discurso da mãe adotiva sobre si mesma, que evidenciava dificuldade em se aceitar como mãe de Rafael, não conseguindo sentir-se mãe dele: "Eu sinto que eu sou tia dele, mas ao mesmo tempo eu queria ser mãe, eu queria que ele me chamasse de mãe. Mas eu também não quero obrigar, mas às vezes eu peço que ele me chame assim. Eu fico em dúvida, pois temo que ele não me aceite como mãe".

A mãe adotiva justificava sua atitude supondo que o fato do menino saber da existência de sua mãe biológica e ter convivido com ela algum tempo a impedia de demonstrar o afeto que sentia por ele, bem como de portar-se como mãe de fato. Em conseqüência, ambos não se permitiam à assunção plena dos sentimentos e dos papéis de mãe e de filho.

Ao longo dos atendimentos, duas estratégias da atuação terapêutica foram destaque: a) o estímulo a expressividade do cliente proporcionando uma possível ressignificação e integração dos sentimentos agregados ao comportamento de retrair-se; b) orientação da mãe adotiva na aceitação do afeto de mãe e filho em substituição ao de tia/vó – sobrinho/neto.

 

DISCUSSÃO

No caso 1, em geral consideramos que Maurício conseguiu entrar em contato com suas emoções e sentimentos e se expressar tanto de forma lúdica quanto verbal. De acordo com a sua tia, ele reagiu bem à idéia de fazer psicoterapia, manifestando o desejo de retornar no dia seguinte à primeira entrevista com ele e se negando a terminar as sessões. Provavelmente isto aconteceu por ter sido oferecido ao menino um espaço de expressão livre sem pré-julgamentos, em que podia ser ele mesmo, de maneira integral com liberdade para escolher.

Os clientes foram recebidos pelas terapeutas de modo respeitoso aceitando as suas capacidades de expressar, compreender e solucionar suas próprias dificuldades. Por meio dos desenhos e dos jogos, Maurício trouxe temas relacionados ao seu autoconceito e aos relacionamentos familiares, estes particularmente criadores de maior ansiedade e mais difíceis de ser expressos, mesmo com procedimentos lúdicos. Nos relacionamentos familiares, o pai e o tio apareceram como as pessoas com quem o menino tinha mais dificuldade de interação. Ao final do atendimento o relacionamento com seu pai apresentaram um salto qualitativo importante.

Após 11 encontros, foi realizada a 1ª entrevista devolutiva com a tia de Maurício. Ela relatou que o sobrinho havia melhorado que estava menos resistente com os avós, tornando-se mais carinhoso com eles. Também não se achava mais "burro", conseguia brincar com outras crianças da sua vizinhança, e passou a estudar mais.

Os atendimentos demonstravam o desenvolvimento emocional dos clientes. As intervenções tanto com o cliente quanto com os responsáveis contribuíram para a expansão das fronteiras de contato e para que percebessem que eram os responsáveis pela própria inserção responsável no mundo. No caso II, o desenho foi utilizado como recurso de visualização do universo interior do cliente e serviu como estratégia para complementar o psicodiagnóstico. Na representação intitulada "meu mundo", o cliente se apresentou como um menino solitário, vivendo em um mundo com pouca cor. Em um segundo momento, quando o confrontamos, demonstrou que reconfigurou algumas características e pareceu dar um novo sentido a ele.

 

CONCLUSÃO

Os dois casos tiveram em comum a problemática familiar: dificuldade em comunicar-se, o que mantinha rígida as fronteiras de contato e gerava sentimentos de temor. Esta situação não permitia o ajustamento criativo, já que os meninos estavam recebendo mais alimentos tóxicos que nutritivos.

À medida que a confiança e a relação terapêutica foram sendo configuradas, puderam ativar adequadamente o processo de nutrição psicológica criando maior independência, perceber melhor e obter satisfação com o relacionamento familiar.

O encerramento do atendimento nem sempre coincide com o fim do processo psicoterapêutico dos clientes. Para Mauricio o tratamento proporcionou algumas reformulações no relacionamento familiar: definição de um cuidador principal, confiança no amor paterno, autoconfiança, e, indicaram o potencial de cura do menino. Quanto a Rafael, este apresentou um quadro de desestruturação familiar e nutrição psicológica inadequada, evidenciados no modo de estabelecer contatos interpessoais: retraído e com dificuldade de aprendizagem na escola.

Os meninos interrompiam o contato quando se sentiam sem suportes. As intervenções foram propostas buscando fazê-los vivenciar seus temores, tomar consciência e expandir suas fronteiras de contato. Conforme relatos, os efeitos da ludoterapia puderam ser constatados através da diminuição da agressividade e desobediência.

Mauricio e Rafael eram crianças que integravam famílias adoecidas e sem diálogo. Às vezes funcionavam como "bodes expiatórios" o que aumentava a sensação de desajustamento existencial e social. Intervindo diretamente com os meninos e orientando os familiares próximos contribuímos para que ambos atualizassem os processos de contato, conscientização, nutrição psicológica e mudança. Finalizamos considerando que a integração do sentimento à ação parece ter sido promovida em alguns aspectos da vida dos clientes.

 

REFERÊNCIAS

AXLINE, V. M. A dinâmica interior da criança, Ludoterapia. Belo Horizonte: Interlivros, 1984.         [ Links ]

OAKLANDER, V. Descobrindo crianças: uma abordagem gestáltica com crianças e adolescentes. São Paulo: Summus, 1980.         [ Links ]

PERLS, F. S. Isto é Gestalt. São Paulo: Summus, 1973.         [ Links ]

________ A abordagem gestáltica e Testemunha ocular da terapia. Rio de Janeiro: LCT editora, 1988.         [ Links ]

_________Yo, Hunger Y Agresion. México: Fondo de Cultura Económica, 1975.         [ Links ]

PIMENTEL, A. Psicodiagnóstico em Gestalt-Terapia. São Paulo: Summus, 2003.         [ Links ]

______________Nutrição psicológica e desenvolvimento emocional e social de crianças. São Paulo: Summus, 2005.         [ Links ]

POLSTER, E. P. E POLSTER, M. P. Gestalt-Terapia Integrada. Belo Horizonte: Ed. Interlivros, 1979.         [ Links ]

 

 

1 Psicoterapeuta
2 Mestre em teoria e pesquisa do comportamento pela UFPA
3Todos os nomes aqui relatados foram trocados para preservar a identidade das pessoas citadas. Os atendimentos obedeceram às regras éticas praticadas na Clínica de Psicologia da Universidade Federal do Pará.

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