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Revista do NUFEN

versão On-line ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.2 no.1 São Paulo jun. 2010

 

RESENHA

 

LAMARÃO, M. L. N; MACIEL, C. A. B. (orgs). Mulheres do Benguí: Contando histórias de trabalho infantil doméstico. Belém: Gráfica Alves, 2006. 147 páginas. ISBN 85-88314- 26-6

Resenha elaborada por Daniela dos Santos Barbosa, Fernanda Leite, Priscila Albuquerque Monteiro Khoury e Tiago Luiz de Araújo Santos, psicólogos e alunos especiais do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFPA.

 

Esta obra trata de uma pesquisa realizada com mulheres moradoras do bairro do Benguí, retrata através de seus relatos, uma peculiaridade do estado do Pará, o trabalho infantil, que é parte muito presente na vida da maioria destas participantes.

O primeiro capítulo do livro retrata a origem e a realidade hoje em dia no bairro Benguí, cujo surgimento é decorrente de uma invasão tendo seu nome originado das iniciais de Benedito "BEM" e Guilherme "GUI", filhos de pessoas residentes no local. Teve sua origem nos anos 40 e seu crescimento é conseqüência de um processo desordenado do município de Belém, de acordo com IBGE, de 2000, há mais 237 mil pessoas morando no bairro, sendo que 45% dessas pessoas são crianças e adolescente.

Os autores consideram o Benguí, um bairro periférico, no qual o índice de desemprego e violência são altos, e ainda há a falta de saneamento básico e de infra-estrutura. A maior parte das pessoas que constituem o bairro são pessoas advindas de migração, sendo principalmente do interior do estado.

Em relação ao ensino, grande parte das pessoas que vivem no bairro tem apenas ensino fundamental incompleto. De acordo com os autores, o ensino regular no bairro é de baixa qualidade, não tendo equipamentos, segurança e limpeza nas escolas. Observa-se também que a maioria dos habitantes do bairro encontra-se desempregada, encontrando possibilidades de trabalho no mercado informal.

Outro tópico abordado está relacionado à saúde e os autores após, uma pesquisa, constataram que existem apenas dois postos de saúde, sendo que o atendimento não corresponde às necessidades da população. Os atendimentos são precários e, em casos de emergência e para as consultas de rotina, é necessário que a população saia na madrugada para ser atendida. As questões mais emergentes, quanto aos postos de saúde, são a falta de infra-estrutura e de profissionais de saúde especializados.

No fator segurança, os autores verificaram outro problema, os freqüentes assaltos em estabelecimentos, seja instituição privada ou pública. Assim, o bairro é considerado o mais perigoso de Belém, prejudicando até mesmo o ensino nas escolas, onde estas terminam suas aulas do turno da noite mais cedo para a segurança dos alunos e professores.

Segundo os autores existem somente três postos da Polícia Militar e uma delegacia da Policia Civil que funciona até 18 horas, sendo que alguns policiais que se ausentam nos seus postos. Agrava-se ainda o despreparo por parte destes.

Em relação à cultura, esporte e lazer, há no bairro o Núcleo de Educação Popular que realiza atividades culturais e educacionais e duas praças, mas nenhuma das duas está habilitada para usufruto da comunidade, pois, não há cuidado por parte dos moradores e ainda há o descaso das autoridades competentes, que não fazem um trabalho de revitalização, conseqüentemente deixando as pessoas sem opções de lazer, indo à procura deste em outros locais fora do bairro.

O segundo capítulo trata sobre relatos de histórias de vida de dez mulheres (participantes da pesquisa) que possuem vivências semelhantes, onde o que permeia tais relatos é o trabalho infantil, que de acordo com o relato delas, é passado de geração em geração.

O que chama a atenção neste capitulo é que, apesar de terem começado a trabalhar muito cedo, ainda crianças, e os seus filhos também, estas mulheres tem em comum a vontade de que seus filhos estudem para que tenham um trabalho decente, com carteira assinada. Já que não tiveram a mesma oportunidade, pois a maioria delas veio do interior ou alguma vez na vida já morou no interior e desde criança trabalhou na roça, não obtendo assim, a oportunidade de estudar ou terminar seus estudos, tendo em vista, segundo os relatos, a dificuldade de ir a escola por conta da grande distância. Ao chegarem a Belém foram trabalhar em "casa de família", onde é, de acordo com os relatos, "um serviço humilhante". Ainda há em comum nestas histrias a troca de parceiros, visto que muitas ou deixaram seus maridos/companheiros ou foram abandonadas por eles e tendo que criar seus filhos sozinhas.

O terceiro capítulo se refere à trajetória de vida das participantes frisando o cruzamento de suas histórias, com categorias comuns. É dividido em quatro tópicos que demonstram os aspectos mais relevantes observados na pesquisa realizada, onde se objetivou verificar a origem e continuidade do trabalho infantil doméstico no sexo feminino em sucessivas gerações familiares.

O primeiro tópico abrange as semelhanças entre as dez mulheres relativas à predominância da vida rural nas trajetórias destas. Sendo, a maioria, oriundas e com vivência no interior, seus discursos trazem muito do que lhes foi repassado em contato com suas famílias, seus cotidianos e rotinas de trabalho. Introjeções que norteariam e norteiam suas vidas, de suas filhas e netas. Ressalta-se que as características interioranas prevalentes aqui, são, especialmente, da cultura amazônida, refletindo, principalmente, a miscigenação com origem indígena.

Posteriormente, os autores tratam das características de socialização das entrevistadas e as marcas deixadas nestas inter-relações por elas constituídas. Nove, das dez, tiveram famílias nucleares, com pai, mãe e muitos irmãos. Coincidentemente e infelizmente, algumas ficaram órfãs logo na infância, o que as direcionou à altas responsabilidades, como as de assumir a educação, o cuidado, o trabalho doméstico e a "gerência familiar", o que limitou muitos as possibilidades de estudo e por não terem orientação e acolhimento, enfim alicerces para seu desenvolvimento, não consolidaram sua auto-estima para serem plenas de suas potencialidades. Experimentaram grandes perdas daqueles que seriam seus sustentáculos e, em seguida, precisaram adaptar-se não só à dura realidade, mas sobreviver à situações cada vez mais complicadas.

O trabalho doméstico não se apresenta somente no contexto acima. Algumas dessas mulheres quando meninas, ao trabalharem na residência de conhecidos ou até mesmo familiares, ajudavam no seu próprio sustento ou na manutenção da renda familiar, já que a pobreza era o fator preponderante. Os autores frisam a construção da subjetividade destas mulheres a partir das constituições dessa sociabilidade com experiências amargas, segundo elas próprias, onde a sobrevivência era a peça fundamental e elementos básicos como o ensino (educação) ficaram em último plano e bastante lamentado, por este fato, pelas entrevistadas. Em alguns casos, o trabalho doméstico fora de seu domicílio significava a "solução" para os maus tratos familiares. No entanto, acabavam por trabalhar em condições piores que as anteriores, onde não eram escravas e podiam fugir. Prometiam-lhes dar-lhes "as coisas", quase sempre, dinheiro algum e jornadas de trabalho intermináveis, com tarefas absurdas para crianças e adolescentes.

Não sendo doméstico, o trabalho continuava a ser infantil, porém, na roça; já que estas famílias viviam de agricultura de subsistência, vendendo o mínimo excedente com pouco lucro. E a roça, além de exaustiva, não oportunizava a ida à escola, pois além de muito cansativa, não era priorizada pelos pais. Estes sendo roceiros e não tendo estudo, não primavam por isso aos seus filhos. Até mesmo porque o fato de morar no interior tornava mais difícil ainda o acesso à escola, que geralmente ficava muito distante, o que aumentava a desistência.

Embora o trabalho tivesse sido extenuante na infância e no decorrer de suas vidas, ele tornara-se a referência de honestidade, respeito e de valor familiar. Assim como a própria família, mesmo em situações complicadas, apresenta-se no discurso das participantes como algo de suma importância.

Um termo referido pelos autores é que a infância destas mulheres ficou "eclipsizada", ou seja, ficou sobreposta à fase adulta, já que na infância de algumas, não houve brincadeiras, afeto e sim muito trabalho, dificuldade e grandes responsabilidades. Isto é perceptível no relato delas quanto aos seus padrões de conduta atuais e limitações que não foram desenvolvidas talvez pela falta do lúdico em suas vidas.

Não tendo muita diferença entre infância, adolescência e fase adulta, várias participantes constituíram família de forma precoce e sem saber exatamente o que queriam e o que estavam fazendo. Com pais muito rígidos, sem diálogo e maturidade, que não lhes proporcionavam vida social, às vezes, se casavam ou fugiam para livrarem-se das castrações dos pais. Porém, terminavam com maridos alcoólatras, agresssivos e não muito cooperativos nas atribuições e responsabilidades familiares. Muitas assumiam inteiramente suas famílias, com proles numerosas, já que algumas foram até abandonadas por seus maridos. O sentimento das relações não era muito evidente e a passividade era um traço marcante destas mulheres, que, mesmo ao casarem-se, continuavam no mesmo ciclo de miséria que viviam com suas famílias de origem, visível no tópico denominado pelos autores de: Constituindo a própria família - o passado no presente.

O ciclo torna-se vicioso quando estas mulheres e seus maridos, sem condições financeiras de "dar as coisas" para seus filhos, os inserem no mercado de trabalho infantil. Embora sofram por terem que ver seus filhos passarem por isso e saberem o quanto é ruim, torna-se necessário para o sustento de todos, já que seria a solução mais fácil e emergencial para a solução da miséria, pois o trabalho doméstico infantil não exige grandes qualificações profissionais. Pena que, os que não conseguem reagir contra, dão prosseguimento ao que os autores intitulam de subcidadania, trabalhando de forma indevida e mantendo valores objetivos e subjetivos que estagnam o seu desenvolvimento de uma maneira geral.

E finalmente, as participantes embora lutassem contra situações de suas vidas, repetiram-nas as suas filhas e netas, destinando-as ao trabalho infantil. Poucas conseguiram não utilizar deste mecanismo. Contudo, vislumbram uma melhor trajetória para suas descendentes, frisando a importância do estudo (ensino, educação) para possam ter um desfecho melhor que o delas, cujo aprendizado foi através da sobrevivência.

Este estudo reflete o que infelizmente ainda é muito comum, especialmente no Pará. O costume de trazer meninas para estudar em Belém, "ajudarem em casa e serem ajudadas", ganhando "as coisas" encontra reforço na miséria dos interiores do estado. Com pouca educação, senso crítico e por terem constituído suas famílias sem planejamento, os interioranos pensam solucionar algo que resulta em tragédia, como o caso Marielma, onde uma criança de 11 anos sob as promessas de vida melhor em Belém, foi autorizada pelos pais a morar com um casal que a destinou ser babá de sua filha de 1 ano, empregada doméstica e sofrer violência sexual. Tudo culminou em um bárbaro assassinato que chocou e chamou atenção para uma realidade degradante. O Ministério do Desenvolvimento Social tem criado políticas públicas para ajuda no combate ao trabalho infantil. Porém, o cerne da questão continua sem solução. É preciso aplicação de conceito básico e repetitivo para o desenvolvimento de uma sociedade: educação, gerando reflexão e direcionamento rumo à construção de famílias planejadas com estrutura para se gerirem de forma equilibrada.

O último capítulo traz o levantamento de alguns trabalhos, livros, revistas, monografias, cadernos pedagógicos/cartilhas e sites onde se pode encontrar mais acerca do trabalho infantil.

Ao final da leitura do livro percebemos a sua relevância quanto ao levantamento de dados sobre o trabalho infantil no bairro do Benguí, uma vez que, através desta, observouse o trabalho do CEDECA/EMAUS no sentido de auxiliar as famílias ali residentes na tentativa de erradicação do trabalho infantil. Apesar de ser um trabalho focado em um bairro, acredita-se que esta seja uma realidade em quase todos os bairros periféricos da cidade de Belém. No entanto, analisando esta pesquisa, sentiu-se falta de referencial teórico sobre trabalho infantil, apesar de no último capítulo os autores fornecerem informações de onde se pode encontrá-las, mas acredita-se que o livro seriam bem mais enriquecido se nele houvesse referencial teórico.

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