SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.2 número2A arte na promoção da resilência: um caminho de intervenção terapêutica ocupacional na atenção oncológica índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Revista do NUFEN

versão On-line ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.2 no.2 São Paulo  2010

 

ARTIGOS

 

Influência do contexto familiar no brincar simbólico de crianças com paralisia cerebral1

 

The influence of the family context in the symbolic play of children with cerebral palsy

 

 

Camila Abrão dos SantosI;2; Amanda Mota PacciulioII;3, Luzia Iara PfeiferII;4

I Associação de Assistência à Criança Deficiente - AACD

II Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo - HCFMRP-USP

 

 


RESUMO

Este estudo teve por objetivo analisar a influência do contexto familiar no desempenho do brincar simbólico de crianças de 3 a 6 anos de idade, com Paralisia Cerebral (PC). A Avaliação do Faz-de-Conta Iniciado pela Criança – ChIPPA, traduzida e adaptada culturalmente para a população brasileira, foi aplicada com 20 crianças, as quais possuem PC, e o Inventário de Recursos do Ambiente Familiar – RAF, foi aplicado com seus responsáveis. A maioria das crianças classificada na categoria "precisa de intervenção" no brincar simbólico do ChIPPA apresentou pontuação no RAF abaixo da média encontrada no estudo, enquanto que as crianças classificadas no brincar simbólico como "não apresenta risco", em geral possuem pontuação acima da média no RAF. Desta forma, conclui-se que o estímulo dos pais e da escola, a quantidade de recursos para o brincar e o convívio com os pares podem influenciar o desenvolvimento do brincar simbólico da criança com PC.

Palavras-chave: Paralisia cerebral; Terapia ocupacional; Avaliação de desempenho; Criança.


ABSTRACT

This study had the objective of analyze the influence of family context in the performance of the symbolic play of children with Cerebral Palsy (CP), aged from 3 to 6 years. The Child- Initiated Pretend Play Assessment – ChIPPA, translated and culturally adapted for use in the Brazilian population was applied with 20 children who have CP and the Home Environment Resources Scale – RAF was administered with those responsible for the children. Most children who were classified as "needs intervention" in the symbolic play of ChIPPA presented in RAF score below the average found in the study, whereas children classified as "no risk" in the symbolic play in general have above the average score in RAF. Thus it is concluded that the stimulus of parents and school, the amount of resources to play and the living together with peers, may influence the development of playing in children with CP.

Keywords: Cerebral palsy; Occupational therapy; Evaluation of performance; Child.


 

 

INTRODUÇÃO

A paralisia cerebral (PC) descreve um grupo de desordens do movimento e postura, as quais são atribuídas a um distúrbio não progressivo que ocorre no desenvolvimento do cérebro do feto ou da criança pequena, causando limitações de atividades (BAX et al., 2005). Trata-se da causa prevalente de comprometimento da função motora, com uma frequência de cerca de 1/500 nascimentos (O'SHEA, 2008). Os distúrbios motores da PC são frequentemente acompanhados por perturbações da sensação, percepção, cognição, comunicação e comportamento, pela epilepsia, e problemas osteomusculares secundários (ROSENBAUM et al., 2007).

Não há definição e classificação universalmente aceita de PC (MORRIS, 2007). De acordo com a nova classificação de Paralisia Cerebral definida pela Surveillance of Cerebral Palsy in Europe (SCPE), há três grupos principais quanto aos sinais clínicos: paralisia cerebral espástica, atáxica ou discinética; em casos de forma mista, a classificação deve ser realizada de acordo com a característica clínica dominante (CANS et al., 2007). Quanto ao comprometimento da função motora, recomenda-se o uso das classificações Gross Motor Function Classification System (GMFCS) para avaliar o sentar, transferências e mobilidade; quanto à topografia, a recomendação da SCPE é a de que os casos de PC sejam classificados como unilateral ou bilateral; sendo também recomendado acrescentar informações sobre o quadro de comprometimentos associados (CANS et al., 2007).

Atualmente é reconhecido que a avaliação do grau de restrição da atividade é parte da avaliação da PC, a qual deve ser abordada de forma multidisciplinar (ROSENBAUM et al., 2007).

Crianças com PC participam de um conjunto diversificado de atividades, contudo podem existir barreiras a esta participação, no meio social e no físico (IMMS, 2008). Devido ao comprometimento motor, apresentam dificuldades quanto à exploração do ambiente e de objetos, fator inicial do processo do brincar e da participação com independência das atividades de vida diária e escolar (CIASCA; MOURA-RIBEIRO; TABAQUIM, 2006). A exploração de brinquedos e do brincar é indispensável na idade pré-escolar, pois proporciona estímulos para o desenvolvimento das áreas motora, social, emocional, cognitiva e da linguagem (EMMEL; OLIVEIRA; MALFITANO, 2000).

O brincar oferece ainda oportunidades de prazer, descoberta, mistério, criatividade, tomada de decisões e autoexpressão, contribuindo assim para o desenvolvimento infantil em um sentido amplo (FERLAND, 1997; BRACCIALLI; MANZINI; REGANHAN, 2004).

Segundo Piaget (1975) é possível identificar três grandes tipos de estruturas que caracterizam o brincar infantil: o exercício, o símbolo, e a regra. O brincar de faz-de-conta, de acordo com esta classificação, corresponde à segunda categoria dos jogos infantis, o jogo simbólico. Seus componentes estão presentes entre 18 meses e 5 anos de idade, período em que são formados e assimilados os símbolos; dos 4 aos 7 anos, os jogos simbólicos começam a declinar, já que o símbolo, ao se aproximar do real, transforma-se em representação imitativa da realidade (PIAGET, 1975).

O brincar simbólico contribui para o desenvolvimento infantil, sobretudo quanto às habilidades lingüísticas, cognitivas e sociais (CORDAZZO; VIEIRA, 2008). Para Vygotsky (1984), através do simbolismo as crianças podem satisfazer desejos impossíveis para a realidade daquele momento, como ser mãe, pai, bombeiro, etc. Desta forma, pelo fazde- conta, elas testam e experimentam os diferentes papéis existentes na sociedade.

Nesse sentido, o brincar de faz-de-conta pode promover o desenvolvimento de habilidades de resolução de problemas, criatividade, a autorregulação e a capacidade de tomar iniciativas (NICOLOPOULOU et al., 2010).

Piaget (1975) considera ainda o jogo simbólico como marco significativo no desenvolvimento cognitivo, indicando a capacidade da criança de imaginar objetos e simular a participação em eventos, que por sua vez são considerados como princípio para a resolução de problemas abstratos e desenvolvimento da linguagem.

Stagnitti (2007) justifica que a habilidade do faz-de-conta, quando a criança atinge a idade escolar, é evidenciada pelo domínio da linguagem, negociação com pares, crescente competência para entender conceitos, e capacidade para organizar o tempo do brincar.

A Avaliação do Faz-de-Conta Iniciado pela Criança (Child-Initiated Pretend Play Assessment) – ChIPPA foi desenvolvida pela terapeuta ocupacional australiana Karen Stagnitti e é uma ferramenta útil para compreender como as crianças, de 3 a 7 anos de idade, estão desenvolvendo suas habilidades em iniciar e organizar seu brincar (QUEIROZ e PFEIFER, 2008). Este instrumento passou pelo processo de adaptação transcultural para a língua portuguesa utilizada no Brasil, sendo que tal versão, após testagem em uma pequena amostra, demonstrou validade e confiabilidade, sendo potencialmente relevante para crianças brasileiras (PFEIFER et al., 2010).

O ChIPPA avalia, na mesma sessão, a habilidade da criança se envolver no fazde- conta, tanto no brincar utilizando materiais simbólicos, quanto no brincar utilizando materiais lúdicos convencionais, sem que o examinador direcione a criança, sugerindo como ou com o quê brincar ou atribua valor positivo ou negativo às suas ações (STAGNITTI, 2007).

O brincar simbólico ocorre quando a criança faz-de-conta que um objeto é algo a mais, diferente do que ele verdadeiramente é, sendo que isto pode ser mais facilmente observado quando a criança está brincando com objetos não estruturados, como por exemplo, quando usa uma caixa de papelão como um carro (STAGNITTI, 2007).

Alguns fatores externos podem interferir no desenvolvimento do brincar e limitar o repertório das brincadeiras, inclusive de crianças com PC, como um ambiente social que não promova espaço e tempo para brincadeiras, quando o brincar é percebido como uma atividade banal ou perda de tempo, quando a educação formal é a absoluta prioridade de suas vidas ou quando os cuidadores não toleram movimentos, desordens e barulho (FERLAND, 1997).

Pode-se pensar que a dificuldade em se movimentar e em realizar a exploração do ambiente pode dificultar o aprendizado da criança com PC (PERES, 2004), como o adquirido através do brincar. Contudo, como expõe Blanche (2002), embora as incapacidades múltiplas das crianças com PC possam limitar suas atividades lúdicas, escolares e de autocuidado, as limitações impostas pelas pessoas e pelo ambiente costumam ser mais restritivas do que a própria deficiência da criança.

Assim, considerar a influência do ambiente social e familiar no desenvolvimento do brincar e da participação social é bastante relevante ao se analisar crianças com PC.

Através do Inventário de Recursos do Ambiente Familiar – RAF é possível analisar os recursos do ambiente doméstico que promovam estabilidade na vida familiar, participação social, oportunidades de interação de crianças com os pais em experiências estimuladoras do desenvolvimento, disponibilidade de brinquedos e materiais literários, uso adequado do tempo livre, acesso a atividades programadas de aprendizagem, e a ligação família-escola (MARTURANO, 2006).

O RAF pode ser considerado uma ferramenta útil não apenas para pesquisa, mas também para aplicação em contexto clínico ou educacional. O procedimento de entrevista semiestruturada favorece um rastreamento abrangente, ao mesmo tempo em que permite a investigação de particularidades. Informações obtidas junto às famílias através do RAF podem subsidiar programas de apoio aos pais, visando motivá-los a otimizarem recursos já disponíveis no contexto familiar, de modo a melhorar a qualidade do apoio ao desenvolvimento dos filhos (MARTURANO, 2006).

Helfer, Oliveira e Miosso (2005) encontraram em seus estudos crianças com PC que foram pouco estimuladas, principalmente por falta de conhecimentos dos pais. Desta forma, verifica-se a importância do conhecimento dos recursos do ambiente familiar para que esse seja um facilitador do desenvolvimento integral da criança, no qual, segundo o Ministério da Saúde (BRASIL, 2002), estão inseridos os comportamentos relacionados à maturação, desempenho psicomotor, interação social, funcionamento psíquico, linguagem e o brincar.

Neste contexto, o presente estudo teve por objetivo analisar a influência do ambiente familiar no desempenho do brincar simbólico de crianças com PC.

 

METODOLOGIA

Trata-se de uma pesquisa aplicada, não experimental, transversal, descritiva e de caráter quali-quantitativo.

O ChIPPA, em sua versão adaptada culturalmente para a população brasileira, foi aplicado com 20 crianças diagnosticadas com PC, com idade entre 3 e 6 anos e que, sentadas, conseguiam utilizar os membros superiores na manipulação de objetos, ainda que necessitassem de apoio no tronco. O RAF foi aplicado com os pais ou responsáveis pelas crianças.

Os participantes desta pesquisa foram selecionados nos ambulatórios do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto e convidados a fazer parte do estudo. Após o aceite, foi agendado o dia e informado o local para ser realizada a coleta de dados.

Durante a aplicação do ChIPPA, uma auxiliar de pesquisa registrou as ações da criança com uma câmera filmadora. As filmagens foram analisadas seguindo-se as instruções da autora do instrumento, por dois examinadores, buscando a fidedignidade dos registros, e os dados obtidos foram submetidos a uma análise quali-quantitativa.

A avaliação do ChIPPA apresenta as seguintes categorias: a) brincar imaginativo convencional; b) brincar simbólico; c) combinação do brincar imaginativo convencional e brincar simbólico. Nas três categorias são avaliadas as medidas PEPA (porcentagem de ações elaboradas), NOS (o número de substituições do objeto) e NIA (número de ações imitadas). Neste estudo foram utilizadas apenas as pontuações obtidas na medida PEPA do brincar simbólico de cada criança participante, sendo classificadas como: necessitam de intervenção; precisam ser monitoradas; e sem risco ao desenvolvimento.

O RAF foi aplicado junto aos pais e/ou cuidadores das crianças e os dados foram analisados quali-quantitativamente. O escore em cada tópico é a soma dos pontos obtidos, dividido pelo número de itens que compõem aquele tópico. O escore total corresponde à soma dos escores obtidos nos 13 tópicos do RAF.

Os resultados do brincar simbólico do ChIPPA e do RAF de cada criança foram comparados para verificar se há influência do ambiente familiar no brincar simbólico de crianças com PC.

 

RESULTADOS

Dentre as 20 crianças avaliadas, 11 são do sexo masculino (55 %) e 9 são do sexo feminino (45%). Em relação à idade, participaram do estudo 6 crianças de 3 anos de idade (30%), 3 de 4 anos (15%), 9 de 5 anos (45%) e 2 de 6 anos (10%).

Quanto à distribuição anatômica, 5 crianças (25%) apresentam PC unilateral e 9 delas, PC bilateral (45%). Em relação ao nível motor, 9 crianças foram classificadas no nível I (45%), 7 no nível V (35%), 2 no nível II (10%), 1 criança foi classificada no nível III (5%) e 1 no nível IV (5%), como pode ser observado na tabela 1.

 

 

Os resultados acerca do brincar simbólico variaram entre 0 e 86 pontos, com uma média de 26 pontos, sendo que 45% das crianças não demonstraram habilidades ou o seu brincar foi insuficiente, justificando a necessidade de intervenção; 35% apresentaram limitação significativa do brincar simbólico e, portanto, necessitam que seu desenvolvimento seja monitorado; e apenas 20% das crianças avaliadas apresentaram um brincar simbólico satisfatório, que não representa risco ao desenvolvimento.

Em relação aos recursos do ambiente familiar, as pontuações variaram de 26,5 a 79,5, com uma média de 56,95 pontos, sendo que 10 crianças estão abaixo (50%) e 10 (50%) acima da média.

A maioria das crianças que necessitam de intervenção (80%) apresentam pontuação no RAF abaixo da média encontrada no estudo e 75% dos participantes que não apresentam risco ao desenvolvimento obtiveram pontuação no RAF acima dela, como pode ser observado no gráfico 1, que apresenta a relação entre as pontuações do brincar simbólico e no RAF de cada criança.

 

 

O RAF permitiu avaliar a diversidade de estímulos oferecidos à criança, que podem favorecer o seu desenvolvimento. Os gráficos 2 a 4 apresentam os resultados do RAF relativos à escolarização, à diversidade de tipos de brinquedos que a criança possui ou já possuiu e ao número de lugares distintos aos quais a criança foi levada para passear nos últimos 12 meses, respectivamente, de acordo com a necessidade ou não de intervenção em seu desenvolvimento.

 

 

 

 

O RAF permitiu ainda avaliar a estrutura e a forma de relação familiar nas quais as crianças com PC estão inseridas. Em relação à composição familiar, verificou-se que das 2 crianças que moram apenas com a mãe, 1 necessita de intervenção e 1 precisa ser monitorada; das 6 crianças que moram com ambos os pais, 3 necessitam de intervenção, 1 precisa ser monitorada e 2 não possuem risco; das 6 crianças que moram com os pais mais irmãs ou irmãos, 3 necessitam de intervenção, 1 precisa ser monitorada e 2 não possuem risco; finalmente, das 6 crianças que moram com outras pessoas, como avós e tios, por exemplo, 2 necessitam de intervenção e 4 precisam ser monitoradas.

Os dados relativos à convivência familiar são provenientes dos itens do RAF: atividades realizadas com os pais e momentos de reunião da família. Em relação às atividades realizadas conjuntamente entre crianças e seus responsáveis, apenas 1 criança realiza unicamente 1 tipo de atividade com seus pais e ela necessita de intervenção no desenvolvimento do brincar simbólico; das 8 crianças que realizam de 4 a 6 atividades diferentes com seus cuidadores, 6 necessitam de intervenção, 1 precisa ser monitorada e 1 não possui risco; das 11 crianças que realizam de 7 a 10 atividades diferentes com seus responsáveis, 2 necessitam de intervenção, 6 precisam ser monitoradas e 3 não possuem risco. Em relação aos momentos de reunião entre os familiares, entre as 12 crianças que se encontram com todos os outros membros da família todos os dias da semana, 4 necessitam de intervenção, 5 precisam ser monitoradas e 3 não possuem risco; as 4 crianças cujas famílias se reúnem apenas aos finais de semana necessitam de intervenção; e das 4 crianças que pertencem a famílias que somente se reúnem às vezes, 1 necessita de intervenção, 2 precisam ser monitoradas e 1 não possui risco.

Finalmente, o RAF indicou ainda a presença ou ausência de rotina estabelecida para as crianças com PC realizarem suas atividades em casa, tais como as refeições, tarefas da escola, banho, assistir à televisão, brincar, acordar e dormir. Das 11 crianças que possuem rotina, 4 necessitam de intervenção, 4 precisam ser monitoradas e 3 não possuem risco; entre as 7 crianças que possuem horários estabelecidos apenas para algumas das atividades citadas, 4 necessitam de intervenção, 2 precisam ser monitoradas e 1 não possui risco; e das 2 crianças que não possuem qualquer rotina definida, apenas 1 necessita de intervenção e 1 precisa ser monitorada.

 

DISCUSSÃO

A partir dos resultados encontrados pode-se destacar que houve uma distribuição proporcional de crianças do sexo masculino (55%) e do sexo feminino (45%); houve participantes de todas as faixas etárias (3, 4, 5 e 6 anos), com prevalência de crianças com 5 anos (45%). Quanto à distribuição anatômica, a predominância foi de crianças com PC bilateral (45%), e quanto ao nível motor, apesar de existirem participantes em todos os níveis motores, houve um maior percentual de crianças no nível I (45%).

Como demonstram os resultados, 80% das crianças deste estudo apresentaram uma pontuação insuficiente ou uma limitação significativa na medida PEPA do brincar simbólico, justificando a necessidade de intervenção ou monitoramento. Comparando-se estes dados ao estudo de Queiroz e Pfeifer (2008) – que aplicaram a avaliação ChIPPA com 10 crianças de 4 a 7 anos sem comprometimento motor, sensorial e/ou cognitivo – tem-se que, na medida PEPA simbólico, a maior porcentagem das crianças (60%) pontuaram dentro dos limites normais ou acima, não apresentando risco ao desenvolvimento. De acordo com Stagnitti (2007), o aspecto da brincadeira de faz-de-conta chamado de simbólico avalia a resolução de problemas, a flexibilidade e organização de pensamento, a facilidade de alfabetização como competência narrativa e o entendimento de papéis sociais. Já a medida PEPA reflete a organização e complexidade do brincar, inclui a habilidade em elaborar e manter temas, sequências e narrativas durante o brincar (SWINDELLS e STAGNITTI, 2006).

Portanto, pode-se sugerir que as crianças com PC apresentam maior dificuldade na execução de ações elaboradas que envolvem o brincar simbólico, ao serem comparadas a crianças sem deficiência. Como corrobora a pesquisa de Miller e Reid (2003), que demonstra que as crianças com deficiência física são muitas vezes limitadas em sua experiência de jogo em relação aos seus pares sem deficiência física.

Em relação à avaliação RAF, houve uma distribuição proporcional, com 50% das crianças acima e 50% abaixo da média de pontuação obtida (56,95).

Ao correlacionar as pontuações finais das avaliações ChIPPA simbólico e RAF das crianças avaliadas neste estudo, nota-se influência dos recursos do ambiente familiar no brincar simbólico em alguns aspectos. As crianças que obtiveram menores pontuações no ChIPPA, ou seja, não apresentam elaboração do brincar simbólico, em geral não frequentam escolas regulares ou mesmo especiais e também tiveram menores pontuações no RAF, nos seguintes itens: passeios em diferentes lugares; atividades que os pais desempenham juntamente com as crianças; tipos de brinquedos que a criança possui ou já possuiu; existência de uma rotina; e momentos de reunião da família. Em contrapartida, das crianças que apresentam um brincar simbólico satisfatório, com as maiores pontuações no ChIPPA simbólico, em sua maioria: frequentam a escola; possuem maior número de brinquedos; foram a mais passeios a lugares diferentes; realizam maior número de atividades com seus pais; encontram os membros da família todos os dias da semana; e possuem rotina estabelecida para as atividades realizadas em casa.

Por outro lado, a composição familiar não parece influenciar o desempenho da criança com PC no brincar. O que sugere que a diversidade de estímulos oferecidos e a qualidade da relação entre os responsáveis com a criança tem maior relevância no desenvolvimento de comportamentos lúdicos adequados do que a definição dos membros da família que residem com a criança. A importância da interação da criança com o adulto ou com outras crianças é destacada no estudo de Andrade et al. (2005) como um dos principais elementos para uma adequada estimulação no espaço familiar, e ressaltam que esta interação contribui para o desenvolvimento da percepção, direção e controle do comportamento da criança. Além disso, os autores afirmam, a partir de dados da literatura, que a estimulação ambiental contribui positivamente para o desenvolvimento cognitivo das crianças a longo prazo.

A literatura evidencia pesquisas que exploram a influência da família no desempenho de áreas importantes ao desenvolvimento de crianças e adolescentes com PC, além de destacarem a importância do conhecimento do ambiente familiar por parte do profissional como forma de aprimorar o plano de intervenção terapêutica (ANDRADE et al., 2005; BLUM et al., 1991; CHIARELLO et al., 2010; DIAMOND e KONTOS, 2004; OKIMOTO; BUNDY; HANZLIK, 2000; PARKES; MCCULLOUGH; MADDEN, 2010; RIGBY e GAIK, 2007).

Diamond e Kontos (2004) sugerem que há relação entre as necessidades de desenvolvimento de crianças com deficiência e os recursos das famílias. Em pesquisa de Rigby e Gaik (2007), os recursos ambientais foram considerados como fatores externos que influenciam o brincar de crianças com PC nos ambientes de casa, da comunidade e da escola; além disso, os autores sugerem a necessidade de pesquisas para identificar os fatores que ajudam e os que impedem a brincadeira de crianças com PC.

Parkes, Mccullough e Madden (2010) ao investigarem a relação entre a participação de criança com PC e as características dos pais, verificaram que a frequência de participação destas crianças em situações da vida cotidiana (como atividades culturais, relacionamentos interpessoais na escola, atividades comunitárias, etc.), comparada com crianças sem deficiência, apresenta níveis significativamente menores.

Da mesma forma, Blum et al. (1991) identificaram os padrões da família e das interações de pares de jovens com deficiência física. Entre outros resultados, observaram que as relações parentais foram consideradas positivas, as relações fora da escola foram consideradas extremamente limitadas, além de participação insignificante em atividades sociais e contatos sociais pouco frequentes, e concluíram ser necessário otimizar as experiências de desenvolvimento social de jovens com PC.

Contudo, o desenvolvimento social não se encontra entre as prioridades das famílias de crianças e jovens com PC, segundo estudo de Chiarello et al. (2010), em que relacionaram as prioridades das famílias quanto às atividades e participação ao nível motor pelo GMFCS dos participantes. Os autores sugerem que o uso de entrevistas com as famílias de crianças com PC para a identificação de atividades realizadas e o nível de participação possibilita uma melhor definição do plano de intervenção terapêutica.

A obtenção de informações sobre a família e o ambiente familiar da criança com PC é imprescindível por parte do terapeuta, sobretudo quando o enfoque é otimizar o desenvolvimento lúdico. Um estudo de Okimoto, Bundy e Hanzlik (2000) aponta que quando o objetivo comum de pais e terapeutas é permitir que as crianças expressem suas brincadeiras inerentes, a intervenção para melhorar as interações entre pais e filhos pode ser mais eficaz do que a intervenção direcionada a melhorar habilidades específicas.

Andrade et al. (2005) destacam a pertinência de ações de intervenção que favoreçam a qualidade do ambiente e da relação cuidador-criança para o desenvolvimento cognitivo. Apontam ainda que há associação positiva e estatisticamente significante entre a qualidade da estimulação no ambiente doméstico e o desempenho cognitivo infantil.

A partir do presente estudo e dos dados provenientes da literatura pode-se afirmar que os pais e a estimulação da escola, a quantidade de recursos para brincar e a convivência com pares podem influenciar o desenvolvimento do brincar das crianças com PC.

Acredita-se que a limitação de experiências lúdicas não seja apenas decorrente da limitação física, mas dos recursos ambientais e estimulação oferecidos. De forma que, ao serem otimizados os recursos do ambiente familiar, cria-se um ambiente mais propício e com mais oportunidades para o desenvolvimento de habilidades para o brincar.

Esta pesquisa aponta a importância dos terapeutas ocupacionais conhecerem o maior número possível de recursos para estimular o desenvolvimento do brincar em crianças com PC, para estarem aptos a orientar os cuidadores, de forma que estes possam oferecer essa estimulação no ambiente domiciliar.

Sendo o brincar uma área de desempenho ocupacional e a principal ocupação na infância, é essencial que os terapeutas ocupacionais tenham uma medida confiável do comportamento da criança no brincar. Desta forma, o ChIPPA é uma avaliação que produz uma medida estável da brincadeira, podendo guiar o terapeuta no planejamento de estratégias de intervenção para as crianças (STAGNITTI; UNSWORTH, 2004).

 

REFERÊNCIAS

ANDRADE, S. A. et al. Ambiente familiar e desenvolvimento cognitivo infantil: uma abordagem epidemiológica. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 39, n. 4, p. 606-611, aug. 2005.         [ Links ]

BAX, M. et al. Proposed definition and classification of cerebral palsy. Developmental Medicine & Child Neurology, v. 47, n. 8, p. 571-576, aug. 2005.         [ Links ]

BLANCHE, E. I. Faz junto com – não fazer para: a recreação e as crianças portadoras de paralisia cerebral. In: PARHAM, L. D., FAZIO, L. S. (Orgs.) A recreação na terapia ocupacional pediátrica. São Paulo: Santos, 2002. p. 202-218.

BLUM, R. W. et al. Family and peer issues among adolescents with spina bifida and cerebral palsy. Pediatrics, v. 88, n. 2, p. 280-285, aug. 1991.         [ Links ]

BRACCIALLI, L. M. P.; MANZINI, E. J.; REGANHAN, W. G. Contribuição de um programa de jogos e brincadeiras adaptados para a estimulação de habilidades motoras em alunos com deficiência física. Temas sobre Desenvolvimento, São Paulo, v. 13, n. 77, p. 37- 46, nov./dez. 2004.         [ Links ]

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde. Departamento de Atenção Básica. Saúde da criança: acompanhamento do crescimento e desenvolvimento infantil. Brasília: Ministério da Saúde, 2002. 100 p.         [ Links ]

CANS, C. et al. Recommendations from the SCPE collaborative group for defining and classifying cerebral palsy. Developmental Medicine & Child Neurology, v. 49, p. 35-38, feb. 2007. Supplement 109.         [ Links ]

CHIARELLO, L. A. et al. Family priorities for activity and participation of children and youth with cerebral palsy. Journal of the American Physical Therapy Association, v. 90, n. 6, jun. 2010.         [ Links ]

CIASCA, S. M.; MOURA-RIBEIRO, M. V. L.; TABAQUIM, M. L. M. Aprendizagem e Paralisia Cerebral. In: ROTTA, N. T.; OHLWEILER, L.; RIESGO, R. S. Transtornos da Aprendizagem: abordagem neurobiológica e multidisciplinar. Porto Alegre: Artmed, 2006, p. 409-415.         [ Links ]

CORDAZZO, S. T. D.; VIEIRA, M. L. Caracterização de brincadeiras de crianças em idade escolar. Psicologia: Reflexão e Crítica, Porto Alegre, v. 21, n. 3, p. 365-373, 2008.         [ Links ]

DIAMOND, K. E.; KONTOS, S. Families' resources and accommodations: toddlers with down syndrome, cerebral palsy, and developmental delay. Journal of Early Intervention, v. 26, n. 4, p. 253-265, july 2004.         [ Links ]

EMMEL, M. L. G.; OLIVEIRA, A. A. E; MALFITANO, A. P. S. Brinquedoteca: um espaço experimental para o desenvolvimento infantil. Revista de estudos universitários. Sorocaba, v. 26, n. 2, p. 141-115, dez. 2000.         [ Links ]

FERLAND, F. Play, children with physical disabilities and occupational therapy: the ludic model. University of Ottawa Press: Ottawa, 1997. 172 p.         [ Links ]

HELFER, I. C.; OLIVEIRA, R. D.; MIOSSO, S. M. P. O brincar e a realidade de aprendizagem da criança com deficiência física decorrente de paralisia cerebral. Arquivos brasileiros de paralisia cerebral, São Paulo, v. 1 n. 2, p. 26-35, jan./abr. 2005.         [ Links ]

IMMS, 2008. Children with cerebral palsy participate: a review of the literature. Disability & Rehabilitation, v. 30, n. 24, p. 1867-1884, 2008.         [ Links ]

MARTURANO, E. M. O inventário de recursos do ambiente familiar. Psicologia: Reflexão e Crítica, Porto Alegre, v. 19, n. 3, p. 498-506, 2006.         [ Links ]

MILLER, S.; REID, D. Doing play: competency, control, and expression. CyberPsychology and Behavior, v. 6, n. 6, p. 623-632, dec. 2003.         [ Links ]

MORRIS, C. Definition and classification of cerebral palsy: a historical perspective. Developmental Medicine & Child Neurology, v. 49, p. 3-7, feb. 2007. Supplement 109.         [ Links ]

NICOLOPOULOU, A. et al. Using the transformative power of play to educate hearts and minds: from Vygotsky to Vivian Paley and beyond. Mind, Culture and Activity, v. 17, n. 1, p. 42-58, 2010.         [ Links ]

OKIMOTO, A. M.; BUNDY, A.; HANZLIK, J. Playfulness in children with and without disability: measurement and intervention. American Journal of Occupational Therapy, v. 54, n. 1, p. 73-82, jan./feb. 2000.         [ Links ]

O'SHEA, T. M. Diagnosis, treatment, and prevention of cerebral palsy. Clinical Obstetrics and Gynecology, v. 51, n. 4, p. 816-28, dec. 2008.         [ Links ]

PARKES, J.; MCCULLOUGH, N; MADDEN, A. To what extent do children with cerebral palsy participate in everyday life situations? Health and Social Care in the Community, v. 18, n. 3, p. 304-15, feb. 2010.         [ Links ]

PERES, R. C. N. C. O lúdico no desenvolvimento da criança com paralisia cerebral espástica. Revista Brasileira de Crescimento e Desenvolvimento Humano, v. 14, n. 3, p. 37-49, set./dez. 2004.         [ Links ]

PFEIFER, L. et al. Cross-cultural adaptation and reliability of Child-Initiated Pretend Play Assessment (ChIPPA). Canadian Journal of Occupational Therapy. (Paper Submitted) 2010.         [ Links ]

PIAGET, J. A formação do símbolo na criança. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1975. 370 p.         [ Links ]

QUEIROZ, M. A; PFEIFER, L. I. Adaptação Trans-Cultural do Instrumento de Avaliação do Faz-de-Conta Iniciado pela Criança – ChIPPA. 2008. 108 f. Trabalho de conclusão de curso (Graduação em Terapia Ocupacional, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto), Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2008.

RIGBY, P.; GAIK, S. Stability of playfulness across environmental settings: a pilot study. Physical and Occupational Therapy in Pediatrics, v. 27, n. 1, p. 27-43, 2007.         [ Links ]

ROSENBAUM, P. et al. A report: the definition and classification of cerebral palsy April 2006. Developmental Medicine & Child Neurology, v. 49, p. 8-14, feb. 2007. Supplement 109.         [ Links ]

STAGNITTI, K.; UNSWORTH, C. The test–retest reliability of the Child-Initiated Pretend Play Assessment. American Journal of Occupational Therapy, v. 58, n.1, p. 93-99, 2004.

STAGNITTI, K. The Child-Initiated Pretend Play Assessment. Co-ordinates Therapy Publications: Melbourne Australia, 2007.         [ Links ]

SWINDELLS, D.; STAGNITTI, K. Pretend play and parents’ view of social competence: The construct validity of the Child-Initiated Pretend Play Assessment. Australian Occupational Therapy Journal, v. 53, n. 4, p. 314-324, 2006.

VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. São Paulo: Martins Fontes, 1984. 191 p.         [ Links ]

 

 

1 Financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq. Apresentado no 15th World Federation of Occupational Therapists Congress, realizado em Santiago – Chile, em maio de 2010
2
Terapeuta ocupacional da Associação de Assistência à Criança Deficiente - AACD
3
Terapeuta ocupacional do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo - HCFMRP-USP
4
Docente do curso de Terapia Ocupacional da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo - FMRP-USP

Creative Commons License