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Revista do NUFEN

versão On-line ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.3 no.1 São Paulo  2011

 

Grupos de reflexão na escola: contribuições da abordagem centrada na pessoa para psicologia escolar1

 

Focal groups at school: person centered approach contibuitions to school psychology

 

 

Fernanda Fochi Nogueira Insfrán2

Centro Universitário Várzea Grande

 

 


RESUMO

Este artigo teve como objetivo apresentar uma proposta de grupos de reflexão como contribuição ao trabalho de psicólogos escolares na mediação de conflitos interpessoais nos ambientes educativos. Baseados na Abordagem Centrada na Pessoa, os grupos foram realizados durante dois meses e tiveram a participação de 115 alunos e nove professores de duas escolas selecionadas. Percebeu-se, durante estes grupos, que a escuta centrada na pessoa colaborou para a valorização/legitimação do grupo enquanto instrumento de mudança das relações. Além disso, os participantes puderam experimentar novas formas de compreender e atuar no cotidiano escolar. Esta breve experiência nos trouxe uma importante constatação: é possível modificarmos o atual paradigma relacional, no qual prima a intolerância e a violência, e construirmos relações mais harmônicas que certamente virão contribuir para o processo ensino-aprendizagem.

Palavras-chave: Relações Interpessoais; Psicologia Escolar; Abordagem Centrada Na Pessoa.


ABSTRACT

This article proposes to present a focus groups proposal as a contribution to school psychologists´ work. These groups were created as an instrument to reduce interpersonal conflicts at schools. Based on Person-Centered Approach, these groups happened for two months and were attended for 115 students and nine teachers in two selected schools. During these groups, we could realize that the listening person-centered contributed to the recovery/ legitimacy of the group as an instrument to change relationships. In addition, participants could experience new ways to understand and act in their school daily. This brief experience has brought us an important insight: it´s possible to modify the current relational paradigm, where press intolerance and violence. We can build more harmonious relationships that will contribute certainly to the teaching-learning process.

Keywords: Relationships; School Psychology; Person-centered Approach


RESUMEN

Este artículo propone presentar una propuesta de grupos focales como contribución a el trabajo de psicologos en escuelas en la mediación de los conflictos interpersonales. Con base en el Enfoque Centrado en la Persona, los grupos fueran hechos por dós meses y fueron atendidos por 115 alumnos y nueve maestros de dós escuelas seleccionadas. Se observó en estos grupos que la forma centrada de la escucha ha contribuido para el reconocimiento/ legitimación del grupo como un instrumento de cambio de las relaciones. Además, los participantes pudieron probar nuevas formas de comprensión/ actuación en la vida diaria de la escuela. Esta pequeña experiencia nos ha traído una constatación: es posible modificar el actual paradigma relacional, donde es fuerte la intolerancia y la violencia. Asi, la construcción de relaciones más armoniosas sin duda contribuirá al proceso enseñanza-aprendizaje.

Palabras-clave: Relaciones; Psicología Educativa; Enfoque Centrado en la Persona


 

 

INTRODUÇÃO

A pesquisa de doutorado, na qual se baseou este artigo, buscou conhecer as representações sociais (MOSCOVICI, 1978) de quatro grupos envolvidos nas relações escolares: alunos, professores, funcionários e pais de alunos. O objetivo era apreender as diferentes formas como estes participantes compreendiam as relações e atividades cotidianas no ambiente escolar, e que soluções propunham para os problemas enfrentados.

Porém, além de conhecer asdiferentes formas como os quatro grupos concebiam suas relações e orientavam suas ações no ambiente escolar, buscamos com esta pesquisa desenvolver uma proposta alternativa de intervenção para psicólogos escolares. Tal proposta consistiu na realização de grupos de reflexão com todos os envolvidos nas relações escolares. Nestes grupos buscou-se criar espaços de discussão, reflexão e negociação com o objetivo de construir, com e a partir dos participantes, práticas relacionais que favoreçam o empreendimento educacional.

Tais grupos tiveram como base teórica os pressupostos da Abordagem Centrada na Pessoa (ROGERS, 1961/1997). Além disso, algumas experiências de grupos de reflexão (com diferentes denominações, objetivos e públicos-alvo),realizadas por Walter (2007), Rocha et al (1999), Bacchi (1999) e Cambuy e Amatuzzi (2008), contribuíram para o desenvolvimento deste trabalho.

Desta forma, este artigo focará em uma parte pouco aprofundada na tese de doutorado: os resultados dos grupos de reflexão realizados com alunos e professores das escolas participantes da pesquisa.

Trabalhamos com duas escolas no Estado do Rio de Janeiro, uma pública e outra particular, entre os meses de maio e julho de 2009. Para a pesquisa de doutorado como um todo, tivemos a participação de alunos de 8º e 9º anos do ensino fundamental, além de seus pais, professores e funcionários da escola, num total de 251 participantes. A pesquisa se deu em duas fases, sendo realizado na primeira fase entrevistas e questionários que arrolavam as representações sociais dos quatro grupos. Já a segunda fase, que é objeto deste artigo, foram realizados grupos de reflexão, onde tivemos a colaboração de 115 alunos e nove professores.

Portanto, buscando pensar a atuação dos psicólogos escolares como facilitadores de relações interpessoais na escola, este artigo trará uma síntese dos resultados apresentados na tese de doutorado da autora. Além disso e como contribuição mais importante, aprofundará a discussão sobre a necessidade de um espaço confiável – livre de cobranças e julgamentos – para que as trocas realizadas possam suscitar novas possibilidades de diálogo entre os grupos de interação na escola.

Assim, acredita-se que oferecer um espaço de escuta para todos os envolvidos, pode ser uma estratégia apropriada para construir com eles soluções aos conflitos cotidianos, respeitando a experiência de cada um e desconstruindo juntos o arraigado "discurso de culpabilização generalizada" (PRATA, 2005, p.113).

 

ABORDAGEM CENTRADA NA PESSOA: BASE PARA OS GRUPOS DE REFLEXÃO

É essencial no presente trabalho falar da contribuição da Abordagem Centrada na Pessoa (ACP), visto que seus pressupostos fundamentaram as atividades de grupos de reflexão realizadas nas escolas pesquisadas.

A Abordagem Centrada na Pessoa, desenvolvida por Carl Rogers e colaboradores, tem embasamento filosófico nos postulados humanistas e existencialistas. Difere-se de outras correntes da psicologia moderna, como o behaviorismo e a psicanálise, por exemplo, por situar-se em outro paradigma de entendimento do homem em suas relações com o mundo: o paradigma fenomenológico, que valoriza a experiência subjetiva e consciente, surgindo, portanto, como método para lidar com o aspecto existencial do processo terapêutico (SPIEGELBERG, 1972).

Segundo Boainain (1998), o enfoque da psicologia humanista seria: liberdade, responsabilidade e intencionalidade vistas como características intrínsecas à condição humana; privilegia-se a consciência e a vivência do momento presente; e enfatiza-se o enfoque fenomenológico e compreensivo, ou seja, se valoriza a experiência subjetiva e consciente e a compreensão por empatia, em contrapartida à explicação causal exterior.

Assim, o trabalho do psicoterapeuta centrado na pessoa, é facilitar o crescimento que favoreça a pessoa, ou seja, criar as condições necessárias e suficientes para o crescimento da pessoa em terapia (ROGERS, 1994). Isto se daria através das atitudes facilitadoras do terapeuta: autenticidade, aceitação positiva incondicional e compreensão empática.

Apesar de ser mais reconhecida como uma abordagem clínica, a ACP de Carl Rogers trouxe contribuições valiosas à área de Educação, por buscar deslocar o centro do ensino dos conteúdos/ conhecimento do professor para a aprendizagem significativa do aluno, centrando o ensino neste (ROGERS, 1972).

Desenvolveu, portanto, o modelo de ensino centrado no aluno, no qual o papel do professor passaria a ser o de facilitador da aprendizagem significativa, esta entendida como aquela que é auto-iniciada, avaliada pelo aprendiz e que tem como essência a significação. Assim, a aprendizagem seria algo experiencial, advindo da experiência vivenciada pelo aprendiz, contemplando todas as dimensões da vida destes, não só a dimensão cognitiva, que é privilegiada pelo ensino tradicional (ROGERS, 1972).

Rogers também traz contribuições significativas para os trabalhos com grupos. Inicialmente, ele imaginava que as mesmas condições facilitadoras utilizadas por terapeutas e professores, na clínica individual e na sala de aula, respectivamente, poderiam ser adaptados para o trabalho com grupos.

Porém, conforme atesta Fonseca (2005), "os participantes eram concebidos de uma forma um tanto individualizada e fragmentária, sem uma consideração mais profunda por sua articulação coletiva e pelo grupo como totalidade processual" (p.222). Isto ocorreu, segundo Fonseca (2005), porque a principal preocupação dos facilitadores de grupos, naquele momento, era com o estímulo à expressividade dos membros dos grupos. Reformulações foram feitas e a influência dos fundamentos fenomenológicoexistenciais trouxeram as seguintes contribuições para os "Grupos de Encontro" (ROGERS, 1970/2002):

- confiar no grupo, na capacidade deste e de seus membros de desenvolverem suas potencialidades, é um pré-requisito à criação do ambiente de confiança; - aceitar a vontade do grupo, mesmo que a princípio pareça que a discussão permanecerá apenas num nível superficial cognitivo: "descobri que é compensador viver com o grupo exatamente onde ele está" (p.57);

- dar espaço para que os indivíduos do grupo se posicionem como sentirem-se mais a vontade, ou seja, com maior ou menor comprometimento psicológico com o grupo. Segundo Rogers, poder recusar-se à participação pessoal e não sentir-se coagido a isso, é uma condição facilitadora para o estabelecimento da confiança (dos membros com o grupo e com o facilitador). Os membros percebem seu potencial autônomo a partir disso;

- atacar as defesas da pessoa, como uma forma de confrontá-la com suas incongruências, não parece a Rogers uma maneira facilitadora, pelo contrário, é condenável. Isto pode bloquear a pessoa e criar resistência ao processo; e

- evitar comentários interpretativos. Rogers (2002, p.68) explica: "Tenho tendência para não sondar ou comentar o que pode estar por detrás do comportamento de uma pessoa. Interpretar a causa do comportamento individual só pode ser altamente hipotético".

É importante ressaltar que não há uma direção específica para o trabalho em grupos de encontro. O próprio grupo vai direcionar o processo. Veremos no seguinte tópico, algumas experiências com grupos de reflexão baseadas nos pressupostos da ACP descritos aqui.

 

RELATOS DE EXPERIÊNCIAS COM GRUPOS DE REFLEXÃO

A palavra ´gruppo´ foi utilizada pela primeira vez na Itália, em 1668, para designar a representação figurativa de um conjunto de sujeitos. Hoje, este termo é compreendido como "um conjunto de pessoas presentes e orientadas para um fim comum" (BLANCHET; TROGNON, 1996, p.10).

Para a psicologia, o grupo é como um laboratório onde se forjam os elementos de construção social. Desde que nascemos estamos imersos em algum tipo de grupo, começando pelo grupo familiar. Assim, os grupos seriam estruturas intermediárias entre indivíduos e sociedade, como um espaço de trocas e construções psicológicas e sociais. Daí parte o pressuposto de que a noção de grupo se situa na articulação entre o psicológico e social.

As noções descritas acima, se apresentam já nos primeiros estudos sobre o fenômeno de grupos, realizados por Gustave Le Bon (1954), que ainda no século XIX buscou explicar o fenômeno que começa a surgir junto com o crescimento populacional e formação dos centros urbanos europeus: as multidões. Além de Le Bon, Jacob Levy Moreno e Kurt Lewin trouxeram contribuições importantes para os estudos sobre grupos (BLANCHET; TROGNON, 1996).

Na década de 1950, estudiosos da Escola de Frankfurt começaram a utilizar grupos de discussão nas pesquisas sociais empíricas. Porém somente na década de 1980, os grupos de discussão passam a ser utilizados como método de pesquisa, sobretudo nas pesquisas com jovens. Segundo Weller (2006), a análise do discurso dos sujeitos é fundamental para a identificação da importância coletiva de um determinado tema a ser discutido e problematizado.

Já o grupo focal é uma técnica qualitativa introduzida por Merton, em 1970 (PINTO; GARCIA; LETICHEVSKY, 2006) e é um instrumento que permite explicitar conteúdos sobre assuntos que interessam a determinado grupo, que partilha algumas dimensões sociais de suas vidas, como ser estudante de uma mesma escola, etc., que se reúnem para discutir assuntos do seu interesse. Grupos desse tipo podem ser úteis para acessar padrões de comunicação e interação no interior do próprio grupo em situação natural. É um instrumento muito utilizado pelos pesquisadores de psicologia social, por servir tanto numa fase exploratória, onde pretende-se suscitar os temas de maior mobilização do grupo, quanto numa fase de aprofundamento das questões suscitadas.

Selecionamos dois relatos de experiências com grupos de reflexão fundamentados na ACP. Estes possuem similaridades com grupos de discussão ou grupos focais, porém ambos têm o mesmo objetivo: criar espaços de discussão, reflexão, negociação onde novas práticas possam ser construídas pelos participantes, de modo a todos legitimarem tal espaço como confiável e livre.

O primeiro trabalho relatado aqui foi o realizado por Cambuy e Amatuzzi (2008) com profissionais do programa de saúde da família de Campinas-SP. Este teve como objetivo discutir as práticas cotidianas de trabalho. "Este tipo de grupo é caracterizado como psicoeducativo, de caráter semiestruturado, e visa ao desenvolvimento psicossocial dos participantes através de reflexões sobre vivências cotidianas e a elaboração de seus significados" (CAMBUY, AMATUZZI, 2008, p.614).

Segundo os autores, o trabalho em grupo é desenvolvido seguindo sete passos que vêm em sequência à pergunta disparadora: "O que mais o (a) tocou nessa última semana? ou Qual fato vivenciado por você durante esta semana foi mais marcante ou significativo?" A partir daí, os passos são os seguintes: sentar – momento de parar a correria do dia a dia, sentar num espaço disposto em círculos para que todos possam se olhar; contar – os participantes começam a relatar situações vividas durante semana, a partir da pergunta disparadora; escolher – o grupo escolhe um dos relatos para que este seja mais detalhado. Normalmente acontece em consenso; sintonizar – os participantes são convocados a contar experiências semelhantes àquela exposta no relato escolhido; analisar – é o momento de expressar ressonâncias afetivas e reflexões sobre o tema escolhido, após um aprofundamento daquilo que foi sintonizado; agir – os participantes expõe que contribuições o encontro trouxe para eles, evidenciando aquilo que mais fez sentido; despedir-se: são feitas as combinações para o encontro posterior e se necessário, o psicólogo facilitador conversa com algum membro que precise de atenção particular (CAMBUY; AMATUZZI, 2008).

Assim, foram realizados oito encontros quinzenais, com duração de uma hora e meia, do qual participaram 13 profissionais, entre médicos, enfermeiros e agentes comunitários de saúde. Ao final dos encontros, os autores puderam concluir que o trabalho permitiu não só uma reflexão pessoal para um melhor posicionamento diante das situações vivenciadas no cotidiano, como também fortaleceu a identidade da equipe, colaborando assim para que as soluções das questões passassem a ser conjuntas.

A experiência aqui relatada mostrou que este tipo de espaço reflexivo grupal foi importante para os profissionais, já que se sentiram acolhidos e escutados em suas demandas e puderam adotar estratégias mais criativas para prevenir possíveis desgastes. Acreditamos que a abertura para a reflexão sobre as experiências permite aos trabalhadores de saúde examinarem sua prática, buscando significados ao seu fazer profissional. Isto possibilita um posicionamento mais atuante no ambiente de trabalho e o desenvolvimento de ações mais criativas e transformadoras da realidade (CAMBUY, AMATUZZI, 2008, p. 617).

A segunda experiência relatada se deu no contexto educativo e foi desenvolvida pelo Serviço de Aconselhamento Psicológico do Instituto de Psicologia da USP (ROCHA, 1999; BACCHI, 1999; ROCHA et al, 1999). O trabalho com grupos de reflexão foi intitulado Supervisão de Apoio Psicológico (SAP). Tais grupos seriam uma espécie de grupos de reflexão centrados na ressignificação das vivências cotidianas na escola. O objetivo destes seria construir junto aos participantes, um espaço de reflexão, elaboração e "experienciação" (GENDLIN, 1977), onde as trocas realizadas suscitassem novas possibilidades de diálogo entre os grupos de interação na escola.

Os trabalhos desenvolvidos por Rocha (1999) e Bacchi (1999) com grupos de educadores de rua, evidenciam a importância de construir esses espaços para educadores e profissionais de saúde:

O educador necessita de um momento de elaboração de sua prática, onde possa realmente colocar-se a partir de seus sentimentos mais autênticos. È importante que ele possa reconhecer e admitir sua impotência, confusão, desespero, raiva, aflição, afeição, amor sem o temor de estar sendo avaliado como incompetente e inadequado (ROCHA, 1999, p. 251).

As autoras explicam também os objetivos e resultados do grupo com crianças e adolescentes:

O grupo funcionou como um espaço para poderem vivenciar outras formas de ser consigo mesmos e com outros, possibilitando assim que essas crianças e adolescentes tivessem experiências que lhe fizessem questionar, refletir e buscar alternativas para práticas cotidianas. (...) Pensamos que isso foi possível através de jogos e brincadeiras, mas também com as discussões suscitadas, com a existência desse espaço diferenciado (ROCHA et al, 1999, p.399).

Dessa forma, estes trabalhados relatados servem de referencial para as possibilidades de prática que podem ser desenvolvidas pelos psicólogos escolares. A seguir, uma breve discussão sobre o papel do psicólogo escolar hoje no Brasil.

 

AFINAL, QUAL O PAPEL DO PSICÓLOGO ESCOLAR?

Discutir aqui sobre a inclusão de grupos de reflexão – com todos os envolvidos nas relações escolares – como uma atividade de responsabilidade dos psicólogos escolares é uma maneira de contribuir para a temática sobre as necessárias mudanças à prática dos psicólogos escolares. Este assunto foi um dos temas debatidos durante o ano de 2008, eleito como o ano da educação no Sistema Conselhos (Conselho Federal de Psicologia e conselhos regionais). Guzzo (2008), uma das relatoras dos textos geradores do Ano da Psicologia na Educação, diz que:

A formação cada vez maior de psicólogos no país, ainda preponderantemente para a atuação clínica, dificulta a inserção efetiva do profissional nestes espaços e acaba por impedir que a relação – teoria e prática – deixe de produzir avanços para a realidade de uma maioria de crianças e adolescentes que vivem sua escolaridade na rede pública (GUZZO, 2008, p.54).

Conforme Guzzo (2008) expõe, apesar de a psicologia estar crescendo muito nos últimos anos no Brasil, a psicologia aplicada à Educação e aos ambientes educativos ainda tem baixa inserção de profissionais, principalmente nas escolas públicas. A autora ainda explica que a demanda que chega ao psicólogo que atua nas escolas é preponderantemente de uma atuação dentro do modelo médico, "culpabilizando o indivíduo pelo seu problema e tratando-o de preferência longe do seu contexto de desenvolvimento" (GUZZO, 2008, p.56).

Praça e Novaes (2004) vão mais longe e dizem que:

(...) à medida que a Psicologia e os psicólogos são ainda representados como agentes de adequação e integração social, não há espaço para a ética, pois, dessa forma, o sujeito torna-se objeto. Cabe ao psicólogo (e também aos estudantes) interrogar-se constantemente sobre seu saber-fazer de forma crítica. Agente de transformação ou agente de adequação? (p. 44).

Patto (1999) explica que a visão de psicologia como "ciência do ajustamento" foi valorizada nas primeiras décadas do século XX e influenciou o trabalho do psicólogo nos ambientes educativos. De acordo com as pesquisas recentes, esse caminho seguido pela psicologia escolar é forte até os dias de hoje.

Conforme atestam Cenci (2006) e Praça e Novaes (2004), em duas pesquisas distintas sobre as representações sociais da prática do psicólogo, a psicologia ainda é vista pela sociedade, de modo geral, como uma prática de adequação e ajustamento de indivíduos à sociedade. Além disso, a atuação clínica é percebida como o principal serviço que pode ser prestado pelo profissional de psicologia presente em instituições como escolas e hospitais, por exemplo.

Assim, a proposta de um novo paradigma para a prática do psicólogo escolar/ educacional vem para contrapor essa corrente que dominou a psicologia no início do século XX e ainda influencia fortemente a ideologia construída socialmente em torno da representação do papel deste profissional na sociedade.

Portanto, faz-se necessário pensar politicamente o sentido dessa atuação, buscando a "construção de uma ciência e uma profissão comprometida com as massas" (GUZZO, 2008, p.56). Para Patto (1997) a maneira de se alcançar esse comprometimento proposto por Guzzo seria através de uma psicologia empenhada em superar o modelo clínico tradicional, que culpabiliza o aluno por seu suposto distúrbio físico ou psíquico - que por sua vez impediria o sucesso educacional -, por um modelo institucional onde as dimensões econômica, política e cultural da sociedade brasileira fossem consideradas, permitindo assim elucidar processos que se dariam na vida diária escolar.

 

METODOLOGIA

Será exposto neste tópico uma breve descrição dos participantes, dos instrumentos e procedimentos dos grupos de reflexão realizados nas duas escolas pesquisadas.

Participantes

Participaram da pesquisa completa 251 sujeitos, dos quais 177 alunos, 17 professores, 22 funcionários e 35 pais. Estes atuavam, durante o ano de 2009, em duas escolas de diferentes municípios do Estado do Rio de Janeiro: Araruama e Nova Iguaçu. Destes, tivemos como participantes dos grupos de reflexão: 115 alunos e nove professores, dos quais 60 alunos e seis professores eram da escola particular de Araruama; e 55 alunos e três professoras da escola municipal de Nova Iguaçu.

As autorizações para a pesquisa foram fornecidas pelo diretor geral, no caso da escola particular situada na cidade de Araruama, e pela Secretária Adjunta de Educação do município de Nova Iguaçu no caso da escola municipal daquela cidade.

Todos os participantes só iniciaram a participação na pesquisa após tomarem ciência do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e assinarem este documento. Os menores de 18 anos tiveram que encaminhar o documento aos responsáveis legais e somente após a assinatura do referido termo, iniciaram as atividades da pesquisa.

Abaixo dados gerais dos alunos e professores participantes dos grupos de reflexão:

- Alunos: em Araruama, tivemos 60 alunos de 8º e 9º ano do ensino fundamental, totalizando quatro turmas, onde a média de idade era de 13,4 anos e 62,7% eram do sexo feminino. Em Nova Iguaçu, participaram 55 alunos do 8º ano do ensino fundamental, turno da tarde, que totalizavam três turmas. Destes, 52,9% eram do sexo feminino, com média de idade de 13,6 anos.

- Professores: em Araruama, foram apenas seis professores participantes, dos quais 66,7% eram do sexo feminino (n = 4), com idade média de 38,2 anos. A média de tempo de docência na escola é de quase 7 anos. Cada professor leciona, em média, para 15 turmas de alunos. Em Nova Iguaçu, três professoras (100% sexo feminino) aceitaram participar de um grupo de reflexão. A idade média era de 39,5 anos. A média de tempo de docência na escola é de quase 8 anos. Cada professora leciona, em média, para 12 turmas de alunos.

Instrumentos

A pesquisa de doutorado da autora compreendeu duas fases. Na primeira buscouse conhecer as representações sociais dos participantes quanto à compreensão destes sobre as relações estabelecidas e as atividades cotidianas na escola. Para isso, utilizou-se questionários e entrevistas visando conhecer tais representações.

A segunda fase, onde foram formados grupos de reflexão, ocorreu com os participantes da primeira fase que tiveram interesse de continuar contribuindo com a pesquisa. Assim, objetivou-se construir um espaço livre e confiável onde os participantes pudessem conversar e refletir sobre todos os temas relacionados aos aspectos funcionais e relacionais do ambiente escolar.

Os grupos de reflexão com professores se justificam, conforme Rocha (1999) explica, por possibilitarem um espaço onde estes podem retomar da experiência vivida no cotidiano escolar, ressignificando, ampliando e compartilhando estas experiências com o grupo.

Procedimentos

Antes de iniciar a coleta de dados para esta pesquisa, dois importantes procedimentos foram realizados. Primeiramente foi feito um contato prévio com escolas públicas, particulares e secretarias de educação, nos municípios de Araruama, Nova Iguaçu e Rio de Janeiro.

Diversas escolas foram contatadas e conseguimos a autorização de uma escola particular em Araruama e da secretaria municipal de educação de Nova Iguaçu. Assim, iniciamos o segundo procedimento que foi o encaminhamento do projeto ao Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria Municipal de Saúde e Defesa Civil (SMSDC-RJ) do município do Rio de Janeiro. Este avaliou a pesquisa e retornou a decisão de aprovação da mesma no dia 27 de abril de 2009.

Após a aprovação, iniciou-se a coleta de dados para a primeira fase que foi realizada nas escolas entre 4 de maio e 3 de julho de 2009, em horários acordados com direção e coordenação das unidades de ensino acima citadas. Os grupos de reflexão ocorreram entre 18 de maio e 3 de julho de 2009, na escola particular de Araruama e em uma escola selecionada da rede municipal de Nova Iguaçu.

A seguir, uma descrição mais detalhada dos procedimentos realizados nos grupos de reflexão:

- em Nova Iguaçu, foram realizados grupos entre os dias 20 de maio e 2 de julho de 2009, num total de doze encontros, sendo seis realizados com uma turma de 8º ano, e seis realizados com alunos de três turmas misturadas de 8º ano. Apenas três professoras participaram de um encontro com alunos, realizado com o grupo da turma única. Esta turma contava com uma média de 17 alunos participantes por encontro. Já o grupo das três turmas juntas, tinha uma média de 30 alunos. Não tivemos grupos grandes, porque a maioria dos alunos das cinco turmas, que participaram da primeira fase da pesquisa, não se interessou em continuar colaborando com a pesquisa. Porém tivemos um total de 55 alunos participantes nesta etapa da pesquisa. Os dois grupos eram semanais e aconteceram em dias da semana diferentes durante seis semanas: o grupo da turma única acontecia às 4as feiras, e o grupo das três turmas misturadas acontecia às 5as feiras. Os locais onde os grupos aconteceram variaram muito e em geral eram inapropriados para a atividade. Nos dois primeiros encontros realizados, deixamos os alunos livres para tratarem dos temas de interesse deles, que tivessem relação com o cotidiano da escola. Falaram basicamente dos conflitos nas relações professoraluno e aluno-aluno. O grupo de alunos da turma única sugeriu que fosse feito um encontro com professores e conseguimos a adesão de três professoras que lecionavam para eles na 4ª feira e que, portanto, teriam horário disponível para reunirem-se com o grupo. O grupo formado pelas três turmas também manifestou interesse em reunirem-se com professores, porém não tivemos a mesma adesão de professores.

- em Araruama, os grupos foram realizados entre os dias 18 de maio e 3 de julho de 2009, num total de sete dias de encontros. Destes, participaram um total de 60 alunos, de duas turmas de 8º ano e duas de 9º ano, e seis professores que lecionavam para estas turmas. Tanto alunos como professores tiveram presença bastante flutuante durante as sete semanas em que os grupos aconteceram. Ocorreram grupos de alunos onde tivemos apenas nove participantes, outros com 40 e um com 60 alunos. Os locais, onde os grupos aconteceram, variaram também. Por duas vezes utilizou-se a sala de biblioteca da escola com alunos e a sala dos professores com estes. Os demais encontros aconteceram num auditório, com capacidade para 100 pessoas, que causou certa dificuldade em alguns encontros, porque o número de participantes era reduzido e os alunos ficavam dispersos na grande sala, formando grupos menores de bate papo. Em geral, os grupos transcorreram sem problemas, tanto com professores quanto com alunos. Estes últimos demonstraram sentir-se muito à vontade para relatar as situações vividas na escola, que segundo os próprios, não teriam coragem de contar a professores/ diretores/ pais, por medo de punições, como castigos – por parte dos pais – e repreensões, notas baixas, suspensões, por parte dos professores. Porém, no grupo onde alunos e professores estavam juntos, que aconteceu no último encontro por uma demanda dos alunos, estes demonstraram estar mais confiantes em relatar aos professores aquilo que os incomodava nas aulas, os momentos em que se sentiram injustiçados e pouco compreendidos pelos professores.

A seguir, resultados dos grupos de reflexão realizados e discussões suscitadas por esta prática.

 

Resultados

Decidimos descrever aqui os sete dias de encontros realizados na escola particular de Araruama e apenas os cinco encontros com uma das turmas da escola municipal de Nova Iguaçu. Tal descrição foi feita através de evocação dos principais temas. Não fizemos gravação em áudio ou vídeo, por isso todos os encontros foram relatados pelos psicólogos e estagiários de psicologia da nossa equipe que participaram como facilitadores dos grupos.

Assim, apresentamos abaixo, os principais temas evocados durante os encontros realizados nessas duas escolas. Os temas foram exemplificados com frases, palavras ou expressões entre aspas que foram retiradas na fala original dos alunos e professores. É importante ressaltar que um grupo misto, com alunos e professores, será apresentado como relato e não apenas focalizando os temas principais.

 

Escola de Araruama

Sete dias de encontros foram realizados entre os dias 18 de maio e 3 de julho de 2009. Seis grupos somente de alunos, quatro grupos somente de professores e um grupo misto. Abaixo, os principais temas discutidos, na ordem cronológica em que foram surgindo nos encontros:

Grupos com Alunos

- dificuldades na relação professor-aluno: Alunos dizem sentirem-se desvalorizados. Exemplos: "desqualificados"; "desmerecidos";demonstram preocupação com a "marcação" de alguns professores; dizem que "os professores são chatos"; durante uma encenação promovida pelos alunos, onde uma aluna imita o comportamento de uma professora, esta aluna repete uma frase usualmente dita pela professora: "Vocês têm que estudar, senão, não vão ser ninguém na vida, eu, pelo menos, tenho meu salário."; falam de outra professora que tratava a todos como "idiotas"; falam de dois professores que a maioria dos alunos presentes concorda que não têm conhecimento suficiente para dar aula;

- valorização do modelo tradicional de autoridade do professor: para os alunos participantes, o professor precisa "ter moral" para controlar a turma, caso contrário ninguém vai respeitar esse professor. Porém, eles acreditam que é possível "ter moral sem diminuir a gente". Para eles, "ter moral" é impor autoridade, mas sem desrespeitá-los.

- faltam atividades extra curriculares na escola: "não tem feira de ciências"; "não tem excursão"; "não tem laboratório de química". - relação direção/coordenação-alunos: percebem a necessidade de professores/ coordenadores / diretores mentirem para controlar a disciplina deles. Falam sobre as câmeras que a direção disse que estavam instaladas, mas que na verdade não estavam funcionando. "Eles mentem para sentirmos medo"

- relação pais-filhos e namoro: tema desenvolvido em um dos encontros por alunas. Falaram beijo, namoro e as proibições dos pais. Uma aluna demonstrou preocupação por ainda não ter beijado, mas disse que tem boa relação com a mãe, que é "mente aberta" e aceita que ela namore sem problemas. Outras meninas disseram que namoram escondido e que os pais "fingem que não sabem".

- reconhecimento das dificuldades dos professores: Alguns alunos concordam que às vezes é difícil para o professor dar uma aula interessante: "ela se esforça pra ser legal, mas a matéria é muito chata mesmo";

- proposta do grupo misto (alunos e professores): Uma aluna diz a respeito de uma professora específica: "ela tem que vir! Ela é a pior! Ela tem que vir pra ouvir umas verdades!". Outros alunos concordam e dizem que querem o grupo misto para falar coisas que os professores precisam ouvir. Uma outra aluna se mostra receosa e diz que falar "na cara" dos professores o que eles pensam pode ser ruim, porque o professor "vai perseguir depois".

Grupos com Professores

- frustração devido à falta de alunos interessados: uma professora conta um caso recente, onde mesmo se esforçado para despertar o interesse dos alunos, usando em uma prova o tema futebol, ela não foi bem sucedida, pois os alunos pediram anulação da prova por não terem entendido o objetivo dela; outra professora explica que durante a realização de uma prova, os alunos questionaram porque a prova tinha tantos textos se era de Geografia. A resposta dela, ao que considerou "má vontade" dos alunos para fazer a prova, foi: "não tá entendendo o texto? Ih, acho que vocês precisam voltar pra alfabetização"; uma terceira professora reclamou da falta de reconhecimento, dizendo que passa os fins de semana corrigindo provas, pesquisando novos meios de cativar a atenção dos alunos, e quando chega "toda empolgada" com algo novo para aplicar o desinteresse é "altamente desestimulante" para ela; um professor explica o "quanto que a bagunça influencia na motivação do aluno e o quanto que a motivação do aluno influencia na bagunça", demonstrando que o problema é de difícil resolução;

- culpabilização da familia: Fala sobre a "falta de educação" que os alunos têm e que "trazem de casa". Diz que os pais dos alunos, muitas vezes, são pessoas que também não tem educação e não sabem respeitar os outros. Dificuldade de relacionamento com os alunos seria culpa do "descompromisso" da família. Outro problema é que "os pais não acompanham" o aluno em casa (com dever de casa, por exemplo); um professor diz que "a mudança na família" é a principal causa da indisciplina que "atrapalha" a educação hoje e que as famílias não têm o "controle dos filhos";

- valorização do modelo tradicional de autoridade do professor: uma professora diz que não sabe dar aula "falando alto, gritando", se impondo e se sente prejudicada por isso, porque sente que os alunos só respeitam professores que agem assim;

- baixos salários: alguns professores frisam que ganham muito mal.

- conflito de gerações: uma professora parece um pouco insatisfeita porque o professor mais novo e com "décadas a menos de experiência", consegue ter "um controle da turma maior" e é muito mais querido pelos alunos. Ambos falaram da diferença de idade concluindo que o professor, por ter faixa étaria mais próxima aos alunos, é mais bem aceito e "mais identificado" com eles do que a professora, que tem uma "distância de realidade maior"; demonstrando compreender os alunos, um professor diz: "eu me lembro de quando era aluno e às vezes, só queria dormir lá atrás. Parece que, quando o professor vira professor, ele esquece que já foi aluno também."; um outro professor diz que os professores mais experientes e com controle de turma estão se aposentando e que está cada vez mais difícil encontrar pessoas que consigam dar aula, pois "os alunos não têm limites"; o mesmo professor diz que é muito difícil para "um professor recém-saído da universidade" conseguir lidar com alunos, pois segundo ele, as universidades não formam para lidar com os problemas da escola porque estes só se aprendem com a experiência de vida.

- desrespeito dos alunos: uma professora admite que lida mal com desrespeitos e se compara a um professor mais novo que ela. Diz que "se um aluno fala um foda-se pra F., ele vai lidar com isso muito melhor que eu. Um FODA-SE E. é desse tamanho pra mim, ainda!" (abre os braços e mostra a grande dimensão do desrespeito que isso representa para ela); outra professora diz que discute com o aluno que sala de aula não é lugar para palavrão, que se os pais dele deixam que ele fale isso em casa, ela não admite ali porque não está acostumada com isso; outra professora diz: "alguns alunos me tratam como se eu fosse merda";

- conflito na relação professores-direção: Uma professora diz que "a rotatividade dos professores mais novos é bem alta", porque "ninguém aguenta" trabalhar seguindo as diretrizes da escola e "ganhando 11 reais a hora-aula"; outra professora conta algumas situações que passou na escola, onde o diretor a fez "passar vergonha a frente de alunos". -amor pela docência: "não saberia fazer outra coisa da vida"; "apesar de tudo, me sinto feliz e realizada".

Relato do grupo com alunos e professores juntos

Na 6ª feira, dia 3 de julho de 2009, realizamos o sétimo e último encontro na escola particular de Araruama, onde se reuniram 60 alunos das quatro turmas pesquisadas e quatro professores.

Alguns alunos ao saberem que uma específica professora com quem eles queriam conversar, não estava na escola neste dia, decidiram não participar do grupo. Depois que estavam todos sentados e organizados, tivemos alguns segundos de silêncio total. Pedimos para que os alunos começassem a falar, já que tinham pedido o encontro. Um aluno disse que não sabia por onde começar, que achava que ninguém ia falar nada porque estavam com medo de ficarem "marcados" pelo professor. Uma professora fala que nunca marca aluno nenhum, que isso não existe. O mesmo aluno decidiu começar a falar. Disse que estavam ali para falar de algumas situações que aconteciam em sala de aula, onde eles se sentiam desrespeitados pelos professores e nunca tinham chance de conversar sobre isso, de mostrar como se sentiam.

A partir dessa fala, outros alunos começaram a falar, porém não todos ao mesmo tempo como de costume. Um falava e os outros escutavam. Às vezes acontecia de um falar por cima do outro aluno, mas era raro. Uma aluna, que veio poucas vezes ao grupo, parecia mais indignada e se alterava um pouco quando falava da professora ausente que todos queriam conversar, que segundo a aluna, "é a professora que mais a humilha" em sala de aula. Os alunos falam de todos os professores que estão presentes. Uma aluna fala de um professorque segundo ela, não tem "autoridade com a turma" e "ninguém dá valor pra aula dele". O professor se defende e conta que é um professor substituto, que está no lugar da professora oficial que está doente e que por isso não tem muita condição de mudar o programa do curso. O professor diz também que se sente muito frustrado por perceber que quase ninguém tem interesse nas suas aulas, mas que apesar disso, tenta fazer o melhor. Percebemos que alguns alunos se sensibilizam com a fala deste professor.

Um outro aluno diz que tem dificuldade com determinada matéria porque não consegue entender e por isso acaba conversando durante a aula e atrapalhando a todos. A professora desta disciplina diz que o problema deste aluno é "imaturidade", que por causa disso ele "não consegue ser responsável e dar valor ao que aprende".

Outro aluno diz que a forma como a matéria é explicada poderia ser diferente, talvez assim os alunos prestassem mais atenção. Outra professora responde dizendo que "não tem como ser de outra maneira", e que se eles tivessem "um pouquinho mais de interesse" conseguiriam entender a explicação que é dada, que "é trivial".

Ao meio-dia, após 40 minutos de duração, o grupo terminou porque os professores avisaram que tinham compromissos após aquele horário. Alunos começaram a sair. Perguntamos a uma das professoras que ficou na sala, o que ela tinha achado do encontro e ela comentou que é difícil fazer os alunos aceitarem que devem ser responsáveis. Outra professora demonstrou ter gostado da experiência de ouvir e ser ouvida pelos alunos e disse que precisávamos de mais momentos como este. Alguns alunos comentaram, após a saída dos professores, que estes pareciam não dar muito valor àquilo que eles falavam.

Este foi nosso último encontro nestas escolas. Retornamos ao colégio, seis meses após para discutir os resultados da pesquisa com o coordenador pedagógico, que disse que se encarregaria de apresentá-los aos participantes – professores e alunos. Infelizmente não tivemos a oportunidade de apresentar, nós mesmos, os resultados da pesquisa.

Escola de Nova Iguaçu

Estivemos durante 12 dias nesta escola durante os meses de maio e julho de 2009 para realizar grupos de reflexão com alunos e professores. Realizamos seis encontros com alunos de três turmas agrupadas do 8º ano, cinco encontros com alunos de apenas uma turma do 8º ano e um encontro misto, com alunos e professoras desta mesma única turma de 8º ano.

Abaixo, os principais temas discutidos, na ordem cronológica em que foram surgindo nos encontros:

Grupos com professores:

Não ocorreram grupos de reflexão somente com professores porque a maioria dos professores foi indiferente ao trabalho que propomos realizar com eles e disseram não ter disponibilidade para participar dos encontros.

Os poucos que conversaram conosco durante nossas visitas à escola, demonstram crer que o trabalho do psicólogo escolar restringe-se ao atendimento clínico com ajustamento do comportamento dos alunos. A fala de uma das professoras ilustra isso: "esses alunos precisam da ajuda de vocês para entrar nos eixos".

Grupos de alunos da turma 804:

- dificuldades na relação professor-aluno: conflito da turma com uma professora específica. Exemplos: "ela dá esporro em todo mundo sem motivo"; "ela fica falando dos defeitos dos outros como se ela fosse perfeita!". Os alunos relataram um episódio onde a professora falou na frente da turma toda, que ia jogar água no cabelo de uma das alunas para estragar a "chapinha" da menina, fazendo referência ao "cabelo ruim" da aluna que, portanto, precisaria de "chapinha".

- relação aluno-aluno: alguns alunos reclamaram da formação de pequenos grupos/ "panelinhas"; durante um dos encontros, tomam a iniciativa de refletir juntos sobre uma briga entre dois alunos da turma (presentes no grupo). Refletem sobre o motivo do desentendimento e perceberam excesso de rigidez/ incompreensão das atitudes de ambos. Alguns dias após este encontro, os dois alunos nos avisam que retomaram a amizade.

- comprometimento na manutenção do grupo de reflexão: os participantes mantinham presença assídua nos nossos encontros semanais e participavam ativamente da discussão, já que o grupo continha um máximo de 20 alunos e isto possibilitou que todos os participantes tivessem espaço e tempo para se colocarem. Foi o grupo onde todos puderam falar e serem ouvidos realmente por todos.

 

DISCUSSÃO: PODE O PSICÓLOGO ESCOLAR FACILITAR A CONSTRUÇÃO DE UM NOVO PARADIGMA RELACIONAL NAS ESCOLAS?

Este artigo teve como objetivo apresentar os grupos de reflexão como uma alternativa de atuação para psicólogo escolares interessados em contribuir para a redução dos conflitos na escola.

Após observar resultados na primeira fase da pesquisa da tese, que pouco se diferenciavam daqueles apresentados pelas pesquisas anteriores, decidiu-se pela intervenção em formato de grupos de reflexão. E nesses espaços construídos e garantidos pelos seus próprios participantes, estimulamos o aprofundamento de todas as dificuldades vistas e revistas pela literatura, pela mídia e pela sociedade em geral. Professores e funcionários reclamaram da "falta de participação dos pais" e queixaram-se do "desinteresse dos alunos". Estes por sua vez, disseram-se "humilhados" e "massacrados" por professores e coordenadores chatos que os obrigam a estudar "coisas sem sentido". Até aqui, "nada de novo". Como disseram alguns participantes, há décadas as vivências são parecidas com estas, e "mesmo assim tudo funciona" nas escolas...

Porém, nem tudo é como há décadas atrás... Instituições totalizadoras, que validavam o modelo relacional "calcado na idéia de disciplina" (PRATA, 2005, p.113), começaram a ruir. Deixamos de ser uma sociedade disciplinar e estamos nos transformando numa sociedade de controle (baseada no controle contínuo, formação permanente e comunicação/ informação instantânea). E a escola e seus agentes não acompanharam essa mudança. Assim, o que temos é um novo aluno que não cabe na velha escola. E esse novo aluno amedronta aqueles professores presos ao modelo disciplinar dos seus tempos de bancos escolares (PRATA, 2005).

Portanto, uma proposta de grupos de reflexão fundamentados na Abordagem Centrada na Pessoa ambiciona mais do que aprofundar questões antigas. Busca-se desconstruir visões cristalizadas sobre as relações estabelecidas. Almeja-se dar voz àqueles que nunca imaginavam que teriam audiência. Deseja-se que cada fala tenha seu valor reconhecido pelo orador e pelos ouvintes do grupo, de modo que estes possam autenticamente compreender e aceitar as singularidades de cada experiência relatada. Objetiva-se, lenta e continuamente, conquistar a confiança de mais e mais envolvidos neste sistema, para que estes, enfim, sejam protagonistas, sujeitos reflexivos que conduzem o seu próprio ensinoaprendizagem.

E este processo de mudança, que implica numa modificação no paradigma das relações interpessoais na escola, seria desencadeado pelo trabalho de facilitação de um psicólogo que tem o papel de "propiciar abertura", colocando-se, desta forma, "como ´auxiliar das forças de atualização´". Dessa forma, "a autonomia é respeitada, porque o tipo de relação é totalmente diferente daquele da imposição" (AMATUZZI, 1989, p. 52).

Acreditamos que este é o caminho para um processo de ensino-aprendizagem mais significativo, onde "o que se aprende é pra vida", conforme desejo relatado pelos participantes da pesquisa, que por enquanto não sabem como alcançar isso. Desejamos que seja um breve por enquanto.

 

REFERÊNCIAS

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1 Artigo baseado na tese de doutorado da autora, "Representações Sociais e Relações no Ambiente Educativo: construindo espaços de negociação". Defendida e aprovada pela Pós Graduação em Psicologia do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em 25 de fevereiro de 2010. Doutorado realizado com bolsa do CNPq, vigente entre março de 2006 e fevereiro de 2010
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Doutora em psicologia pela UFRJ e professora do UNIVAG (Centro Universitário Várzea Grande).

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