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Revista do NUFEN

versão On-line ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.3 no.1 São Paulo  2011

 

Plantão psicológico e triagem: aproximações e distanciamentos

 

Psychological duty and triage: convergences e divergences

 

 

Maria Cristina Rocha1

Serviço de Aconselhamento Psicológico do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

 

 


RESUMO

O Serviço de Aconselhamento Psicológico do Instituto de Psicologia da USP mantém desde sua criação um plantão psicológico para acolhimento e esclarecimento da demanda dos clientes que buscam ajuda psicológica. Dada sua singularidade e a intimidade que a maioria dos profissionais de psicologia têm com a triagem, é comum que essas duas práticas sejam confundidas. O presente artigo discute as possíveis aproximações e distanciamentos entre o Plantão Psicológico e a Triagem. Percorrendo a literatura sobre o assunto, levanta as características de cada uma dessas práticas e a descrição de duas vertentes de triagem: a tradicional e a interventiva. A partir do reconhecimento das especificidades de cada uma delas, encontra uma diferenciação profunda entre plantão e triagem tradicional e pontos de convergência entre plantão e triagem interventiva.

Palavras-chave: Plantão psicológico; Triagem; Aconselhamento.


ABSTRACT

The Psychological Counseling Service of the Institute of Psychology of USP has had, since its creation, an emergency psychological service that provides counseling and orientation to clients who seek psychological support. Due to the service's uniqueness, and the intimacy that most professionals in the area have with psychological screening, there is commonly confusion between these two practices. The present article discusses possible similarities and differences between the Emergency Psychological Service and the Psychological Screening. Reviewing the literature about the subject, this work points out the characteristics of each practice and describes two types of screening: the traditional and the interventional. From the analysis of their specifics, this article finds a deep difference between emergency psychological service and traditional screening, as well as points of convergence between the emergency psychological service and the interventional screening.

Keywords: Psychological duty; Triage; Counseling.


RESUMEN

El Servicio de Consejo Psicológico del Instituto de Psicología de USP mantiene, desde su creación, un plantón psicológico para recibimiento y esclarecimiento de la demanda de los clientes que buscan ayuda psicológica. Por su singularidad y la intimidad que la mayoría de los profesionales de la psicología tienen con la clasificación, es común que las dos prácticas sean confundidas. Este artículo discute las aproximaciones y los distanciamientos entre el Plantón Psicológico y la Clasificación. Recorriendo la literatura sobre el tema, él plantea las características de cada uma de estas prácticas y la descripción de las dos vertientes de clasificación: la tradicional y la de intervención. Partiendo del reconocimiento de las especificidades de cada una de ellas, encuentra una diferenciación profunda entre plantón y clasificación tradicional y puntos de convergencia entre plantón y clasificación de intervención.

Palabras-clave: Guradia psicológica; Triaje; Consejo.


 

 

INTRODUÇÃO

O Serviço de Aconselhamento Psicológico (SAP) do Instituto de Psicologia da USP foi fundado em 1969, pelas mãos de Rachel Léa Rosenberg e Oswaldo de Barros Santos, tendo como objetivos a formação de psicólogos, a pesquisa e o atendimento à comunidade. Nasceu vinculado à Abordagem Centrada na Pessoa - dentro da chamada Terceira Força em relação ao Behaviorismo e à Psicanálise - desenvolvida por Carl Rogers, psicólogo americano. Atualmente, sem abandonar essa referência, temos nos aproximado e tomado como pano de fundo de nossos estudos e práticas a Fenomenologia Existencial e o Existencialismo. Rogers nos oferece sua proposta de prática psicológica e filósofos nos alimentam com suas reflexões sobre a existência humana.

A palavra aconselhamento, que compõe o nome desse serviço – e causa estranhamento e polêmica -, é uma tradução de counseling e permite várias interpretações. A mais comum delas, que circula no cotidiano de todos nós, é dar conselhos. Não é assim, no entanto, que compreendemos e exercitamos o aconselhamento. Recuperando Schmidt (1987, p. IX):

(...) aconselhar vem do verbo latino consiliare e nos remete a consilium, que significa com/unidade, com/união. Esta significação é importante, pois supõe a ação de duas ou mais pessoas voltadas para a consideração de algo. (...) Quando pensamos no processo de Aconselhamento Psicológico, pensamos exatamente na relação de duas ou mais pessoas voltadas para a consideração atenta, respeitosa e prudente de algo que é vital para uma ou várias delas. Aconselhar, nesse sentido, não significa fazer ou pensar pelo outro, mas fazer ou pensar com o outro.

Da maneira como compreendemos, o conselheiro é aquele que se oferece ao cliente para que, a partir da relação mantida entre eles, o indivíduo veja-se, ouça-se, compreenda suas vivências e faça escolhas para sua vida. Ocupa o lugar de testemunha e interlocutor atento e interessado, capaz de movimentar-se na relação, manifestar sua compreensão das histórias vividas e narradas e caminhar, lado a lado, pelas alamedas da ressignificação das experiências do cliente.

Desde seu início, o SAP oferece um Plantão Psicológico constituído como espaço institucional de aprendizagem para os alunos da graduação em Psicologia e como serviço de atendimento psicológico à população.

Ancorado numa visão de mundo que se apóia na fenomenologia existencial e no existencialismo, prioriza a escuta da experiência de quem procura pelo plantão psicológico, assim como trabalha, sempre, contando com a implicação do cliente. Faz-se importante ressaltar esses aspectos, pois eles são fundamentais para compreender os caminhos e movimentos dessa modalidade de atendimento psicológico – o plantão – no SAP.

 

PLANTÃO PSICOLÓGICO

O plantão, como o concebemos no SAP, não se limita ao modelo mais tradicional de ter horário e pessoal disponível para receber as pessoas que nos procuram. Contamos com essa estrutura, mas não nos definimos por ela. Toda quarta-feira, no período da manhã, estão disponíveis como plantonistas de 5 a 10 alunos e de 2 a 4 supervisoras. As pessoas que nos procuram são atendidas por ordem de chegada ou por outro critério proposto e decidido em grupo durante o acolhimento na sala de espera. Oferecemos plantão individual e em grupo e o próprio cliente opta por um deles.

O plantão se inicia com dois grupos simultâneos. Em uma sala, as supervisoras se reúnem com os alunos-plantonistas. Nessa conversa, compartilhamos nossos humores, disponibilidades e expectativas, além de conversarmos sobre questões teóricas, caso sejam motivo de dúvidas e novas reflexões. Desse modo, vamos constituindo o grupo de plantonistas do dia, responsável pelo atendimento da clientela e cuidado das questões previsíveis e imprevisíveis que surgirem durante a manhã. A partir daí, decidimos o número inicial de pessoas que poderemos atender. Como os atendimentos têm tempos variáveis determinados pela necessidade do cliente e disponibilidade do terapeuta, durante o plantão é possível que mais pessoas possam ser atendidas se alguns encontros forem curtos. Em outra sala, monitores recebem e conversam com os clientes, explicando-lhes que serviços oferecemos, as características de um serviço-escola, o tempo de espera, ouvem suas dúvidas – às vezes, angústias -, e orientam as inscrições.

Estar de plantão é estar presente num determinado dia e hora, mas, sobretudo, é estar aberto e disponível para receber e escutar o outro que procura por ajuda psicológica. Compreendemos o plantão como uma modalidade de atendimento psicológico em que podemos facilitar o processo de compreensão do momento de vida em que o cliente se encontra e projetar seu cuidado. Trata-se de um atendimento com foco na experiência e não exclusivamente no problema do cliente, não cabendo ao plantonista avaliar, julgar ou decidir por ele.

A escuta é a principal oferta do facilitador. Ouvir a pessoa que traz um problema, como ela está, como lida com o que a incomoda, que alternativas está podendo vislumbrar ou não. É a partir dessa escuta que as intervenções do terapeuta são produzidas e comunicadas como a compreensão daquilo que lhe foi dito. Não há, portanto, nenhum roteiro, pergunta ou campo de pesquisa pré-determinados. A pessoa se apresenta como quer e pode, segundo suas possibilidades e necessidades. Trazer para a sessão um ou vários problemas e as dificuldades de lidar com eles é comum, no entanto, esse não será o foco do trabalho do plantonista, mas um de seus componentes. Privilegiar o problema apresentado é sedutor e impele-nos a procurar uma saída ou solução, o que constitui uma armadilha, pois "se o psicólogo encara um problema do cliente como algo ‘a resolver', tenderá a pensar e decidir por ele, em vez de acompanhá-lo em sua própria caminhada" (ROSENBERG, 1987, p. 87). Esta escuta ativa, compreensiva e sensível promove a aproximação entre cliente e terapeuta que se deixa tocar, penetrar pelas experiências de quem está ouvindo, aproximando-se daquilo que está vivendo: sua dor, alegria, incômodo, descoberta.

Esse encontro possibilitado pela empatia, pelo contato muito próximo com a experiência do cliente, não é fácil. Terminada a sessão, desligar-se do que ali foi vivido e abrir-se para outra pessoa requer um exercício de desapego para, então, abrir-se a outra pessoa. Com o propósito de facilitar esse movimento, o aluno/plantonista tem a possibilidade de conversar sobre esse atendimento numa supervisão curta e imediata.

No plantão, não se pretende medir ou controlar, mas esclarecer a demanda do cliente. Nele abre-se um lugar de escuta, compreensão e comunicação de nossa interpretação. Compreender significa ir ao encontro, criar ou recriar sentidos, descobrir destinações, abrir possibilidades. A interpretação, dentro de uma perspectiva fenomenológica, "não é tomar conhecimento do compreendido, mas o desenvolvimento das possibilidades projetadas no compreender"2 (HEIDEGGER, 1997, p. 166). "A compreensão, portanto, levanta possibilidades e seus desdobramentos constituem interpretações" (ROCHA, 2009, p. 107).

É essa a proposta de estágio que os alunos encontram quando começam a cursar a disciplina obrigatória Aconselhamento Psicológico no primeiro semestre do quarto ano da graduação. Para a grande maioria deles, trata-se de total novidade. Sua formação até então caminhava pelas trilhas da noção de análise interminável, atendimentos de longo prazo, psicodiagnóstico e algumas pinceladas de terapia comportamental. Encontram a possibilidade de encontros únicos, atendimento regular de curta duração, o distanciamento de compreensões psicopatologizantes e o compartilhamento de responsabilidades na escuta, intervenção e desdobramentos do atendimento.

Por si só, o plantão é o lugar da instabilidade. Reconhece sua (da instabilidade) presença vibrante na vida e acolhe sua dada existência. A vivência dessa instabilidade constitui um processo intenso que se inicia ao se perceber o quão a sala de espera pode estar repleta de pessoas procurando atendimento, segue pela experiência, sempre inaugural, de encontrar uma pessoa sem ter nenhuma idéia do que a levou ao plantão, adentra pela vida trazida nos relatos, posturas e marcas e começa a se fechar no momento em que se conversa sobre o caminho que a pessoa pretende trilhar a partir da sessão: quer voltar para mais uma conversa, quer encerrar e caminhar sozinha ou sente-se esclarecida quanto à sua demanda e deseja um encaminhamento.

Tendo em vista a bagagem de conhecimento acumulada nos três primeiros anos do curso, a proposta de plantão como esclarecimento da demanda do cliente para, a partir daí, pensar em possíveis caminhos de cuidado, soa estranha para os alunos, difícil de compreender num primeiro momento. A tendência é voltarem-se para aquilo que já conhecem, compreender o plantão como triagem, ou seja, segundo sua compreensão, um espaço de escuta a partir do qual o terapeuta pode avaliar para onde o cliente será encaminhado. E, note-se, a perspectiva de encaminhamento é sempre no campo do psi, quase sempre, psicoterapia de longo prazo.

É nosso trabalho na supervisão e nas aulas teóricas apresentar um novo modo de ver o mundo, compreender as relações e trabalhar na clínica. Para tanto, têm aulas sobre a Abordagem Centrada na Pessoa e supervisões centradas em suas experiências como terapeutas, nas relações que estabelecem com os clientes e nas expectativas que rondam o exercício da profissão. Nas palavras de Almeida (2009, p. 33)

A especificidade dessa supervisão é dada pelo caráter de acolhimento ao estagiário, visando à elaboração de sua experiência de testemunha de uma história que, de algum modo, o impactou. Valoriza, também, a relação que se estabelece entre o supervisor e o estagiário, na medida em que o supervisor atenta ao modo como o estagiário é tocado, compreensivamente, no trato com o cliente (...).

É esse o filme que nos instiga a refletir sobre as aproximações e distanciamentos entre plantão e triagem. Terão a mesma perspectiva de cuidado?

 

TRIAGEM

A triagem é uma forma de atendimento comum em clínicas-escola e serviços públicos de saúde. Segundo Chammas (2009, p. 16),

(...) foi assimilada (...) para designar a prática de atendimento que se destina a selecionar a parte da população que pode ser atendida no serviço, considerando a especificidade da demanda do cliente e atendimentos disponíveis. Não se trata de inscrição (embora a inscrição possa fazer parte da triagem), mas de um serviço de atendimento psicológico com características específicas.

Uma questão interessante que permeia os textos sobre o assunto é a intersecção, às vezes, identificação entre triagem e psicodiagnóstico. Note-se que apesar de serem intervenções diferentes, ambos compartilham do mesmo modo de lidar com o cliente e têm os mesmos objetivos: conhecer a pessoa que busca ajuda, avaliar sua situação e sugerir o encaminhamento mais adequado. Vários trabalhos se referem a eles como se fossem sinônimos, o que acontecerá, também, no presente artigo em função dos textos consultados.

Observamos, ainda, que a triagem não é passível de uma única compreensão. A pesquisa bibliográfica logo nos mostra algo que podemos observar na prática: há várias maneiras de compreendê-la e praticá-la. A literatura, no entanto, destaca duas vertentes, basicamente, a triagem tradicional e a triagem estendida ou interventiva. Elas não esgotam o cotidiano de trabalho dos profissionais que utilizam esse tipo de atendimento, mas dão uma noção geral a respeito do tema.

 

TRIAGEM TRADICIONAL

A triagem tradicional é uma prática bastante difundida entre profissionais da psicologia. Por existir há mais tempo, é, também, mais conhecida por psicólogos e usuários dos serviços de saúde. Constitui-se numa estratégia que cumpre três objetivos principais: coletar dados pessoais do cliente, identificar sua queixa e realizar um breve diagnóstico. O conjunto dessas informações deve criar um quadro tal capaz de apontar para um encaminhamento adequado da pessoa em questão. Nas palavras de Chammas (2009, p. 17),

...são estimados, desta maneira, dois momentos centrais, o encontro com o cliente, no qual são coletados dados e a partir dos quais se realiza a primeira avaliação e o momento do encaminhamento, seja interno ou externo à instituição. Desta conceituação depreende-se que, uma triagem é bem sucedida quando, considerando a função para a qual se destina, exerce boa compreensão do cliente e resulta em um encaminhamento adequado.

Fica clara a função primordial do profissional de receber e distribuir a clientela a partir de um primeiro diagnóstico, realizado com base em sua compreensão dos dados coletados.

Para efetivar essa proposta, utiliza instrumentos como testes psicológicos e entrevistas, quase sempre, semi-abertas, podendo lançar mão, também, de recursos mais estruturados como questionários e anamneses, dentre outros. Característica importante da triagem tradicional é a utilização de instrumentos que possibilitem a coleta de dados que não foram relatados espontaneamente pelo cliente e que o psicólogo considera relevante. Essas informações são avaliadas como essenciais para que um bom trabalho seja realizado, antes mesmo do contato com a pessoa atendida, a partir dos objetivos da triagem.

O engajamento do cliente ao encaminhamento é algo que cabe ser avaliado nesse momento, também. Para tanto, é importante que se abra espaço para a compreensão da necessidade do atendimento e das possibilidades de encaminhamento. É preciso, ainda, dar atenção às expectativas do cliente, refletindo sobre as fantasias quanto ao atendimento e informando sobre aquilo que realmente pode ser oferecido.

 

TRIAGEM INTERVENTIVA

Esse modelo mais tradicional de triagem vem passando por reformulações. Hoje, já é comum que as entrevistas sejam abertas. A triagem interventiva, sem negar sua função de recepcionar e coletar dados do cliente, constitui-se como cuidado, abrindo sua escuta para aquilo que o cliente tem a dizer, o que o mobilizou a procurar ajuda psicológica. Trabalhos mais recentes têm retratado a triagem:

(...) não como um mero processo de seleção de demanda ou coleta de dados da história do cliente, mas como parte da intervenção psicoterapêutica propriamente dita. Nessa fase, há uma clarificação da situação psicodinâmica individual ou grupal, para além do simples levantamento de dados e isso tem efeito psicoterapêutico. (...) As altas durante o processo de triagem são um indicativo relevante que corrobora com tal idéia (PERFEITO; MELO, 2004, p. 37).

O encontro entre terapeuta e cliente é muito valorizado e o foco principal passa a ser o acolhimento das pessoas e a elaboração das questões que mobilizaram a busca de ajuda psicológica. O profissional, nessa perspectiva, não realiza uma sessão devolutiva como acontece nas triagens tradicionais, mas comunica sua compreensão, compartilha suas impressões a partir do que está ouvindo e vendo.

Vista dessa maneira, a triagem volta-se para o conhecimento da pessoa como ela se apresenta, sem preocupações em relação a conteúdos pré-estabelecidos que qualifiquem esse saber. Mais do que o sintoma, busca-se contato com o sofrimento do cliente. A prioridade não é mais encontrar, nomear e classificar a doença para, então, decidir como deve se dar o tratamento ou cura. O olhar exclusivamente individual, por vezes, biológico, caminha para a consideração do contexto onde e como se insere o cliente, atentando para os aspectos culturais, econômicos e sociais. Há um movimento, pois, da avaliação para a compreensão, da psicopatologia para a experiência, permitindo, ainda, que o profissional apareça, compartilhe suas percepções, discuta possibilidades, se debruce com o cliente sobre a relação que está se estabelecendo e sobre a vida, propriamente, da pessoa. E essa expressão não pretende avaliar como certo ou errado o que está sendo narrado, mas iluminar esse texto/vivência a partir dessa escuta empática e, ao mesmo tempo, estranha ao outro, abrindo espaço para possíveis reorganizações e novas escolhas (ANCONA-LOPEZ, 1995). Deste prisma, o processo de compreender a situação psicodinâmica do cliente pode encerrar-se na própria triagem, mostrando-se suficiente para cliente e terapeuta. Compreendida dessa maneira "a triagem é um processo psicodiagnóstico que tem início, meio e fim, dura 4 ou 5 sessões (...)" (PERFEITO; MELO, 2004, p. 38).

A proposta de triagem interventiva apóia-se na percepção de que "a atenção aos processos de acolhimento ou elaborações, considerando o momento por que passa o cliente quando procura atendimento" (CHAMMAS, 2009, p. 23) pode ser terapêutico, enfatizando o encontro e as intervenções do psicólogo a partir da narrativa do cliente, como intervenções clínicas relevantes.

Esta não é uma proposta pronta, há, ainda, modos distintos de realizá-la. Em relação ao encaminhamento ou encerramento do processo de triagem interventiva em si mesmo, há posturas diferentes, prevalecendo o parecer do psicólogo acerca do que é mais indicado para o cliente naquele momento. Muitos profissionais, no entanto, não descartam a possibilidade de essa escolha ser do cliente, a partir do processo vivenciado com o profissional.

 

PLANTÃO E TRIAGEM: CAMINHOS QUE SE CRUZAM?

São evidentes as diferenças entre o plantão psicológico e a triagem tradicional. A ruptura mais marcante se dá na relação entre cliente e psicólogo. Na triagem tradicional, o profissional precisa saber de informações que permitam que ele faça uma boa avaliação da situação do cliente, perceba patologias e recomende o melhor encaminhamento ou forma de cuidado possível, segundo sua avaliação. Há uma distância considerável entre esses dois interlocutores. O profissional quer saber alguns dados previamente selecionados. Ao cliente cabe ofertar o que lhe é pedido e seguir as recomendações profissionais que fecharão o processo de triagem. Outra questão importante é que a triagem se dispõe, também, a responder às demandas de pesquisas e estudos em andamento, selecionando pessoas que se encaixem nessas necessidades. Não negamos, em absoluto, que numa clínica-escola, numa universidade, pesquisas e estudos são fundamentais para dar consistência à formação de futuros profissionais, seja de qual área for, no entanto, o atendimento à população não pode servir, exclusivamente, à satisfação das necessidades de pesquisas. Ainda que essas investigações sejam mobilizadas pelo acontecer social (o que nem sempre é verdade!), não podemos ignorar aqueles que apresentam sofrimentos, questões, vivências "fora de moda" ou de pouca incidência na população. Ou ainda, aqueles que querem se debruçar sobre suas vidas, se repensar, compartilhar experiências e ressignificá-las, se for o caso.

A triagem interventiva desloca essa postura, dá movimento e importância à relação estabelecida entre terapeuta e cliente, assim como imprime vida aos encontros, buscando sentidos e abrindo caminhos de compreensão da experiência trazida para as sessões. Nesse ponto, a triagem começa a se aproximar do plantão, modalidade de atendimento psicológico em que o profissional se junta ao cliente na compreensão de sua experiência para, também em conjunto, descobrir possibilidades de cuidado. No artigo em que tece considerações sobre o plantão e o psicodiagnóstico colaborativo – prática que guarda semelhanças com a triagem interventiva -, Yehia afirma que estas duas propostas se aproximam "(...) no que diz respeito à atitude diante do cliente e à concepção de saúde e doença. Ambas as práticas propõem-se a estimular os aspectos saudáveis presentes na experiência do sujeito, e não classificar e rotular" (2004, p. 68).

Chammas (2009) ressalta que em sua origem, diferentemente da triagem, o plantão não teve e não tem o "propósito de receber e distribuir a clientela, mas de ser em si espaço de acolhimento" (p. 28). Podemos acrescentar que o plantão psicológico não se pretende uma técnica, como é reconhecida a triagem, mas uma disposição, uma abertura para o outro da maneira como se apresentar, sem exigências pré-estabelecidas em relação às informações que o cliente deve oferecer e sem compromisso com o encaminhamento, que pode, sim, ser uma possibilidade, mas não o é, necessariamente. Outra característica importante dessa abertura é que, se for um caminho desejável e/ou necessário, o encaminhamento pode abranger um sem número de possibilidades sem restringir-se ao mundo psi, considerando e explicitando a complexidade e riqueza da vida de cada um. Para Almeida (2009, p. 33)

As entrevistas do Plantão não visam uma continuidade do atendimento segundo o modelo psicoterápico; em cada uma, focam-se os desdobramentos possíveis para as questões patenteadas na elucidação de demandas, considerando-se, no diálogo com a pessoa, intervenções de práticas especializadas ou populares, contando com recursos institucionais, comunitários ou familiares. Assim, paciente e conselheiro examinam e apreciam aquilo que melhor responde, nesse momento, aos pedidos manifestados na ocasião.

Note-se o caráter experiencial dos caminhos a serem descobertos ou criados. O plantão não pretende resolver os problemas dos clientes, mas acompanhá-los no processo de compreensão de suas demandas, clarificando um projeto de cuidado de si que pode traduzir-se em atitudes, decisões, perguntas ou encerrar-se na compreensão propriamente.

A triagem em clínicas-escola, independente de ser tradicional ou interventiva, ainda obedece um modelo de encaminhamento (quando ocorre) em que a escolha do caminho de cuidado não está exclusivamente vinculada à história do cliente. Não raro, prioriza as necessidades da clínica-escola: as pesquisas em andamento, os interesses dos pesquisadores, as necessidades de aprendizagem dos alunos são fatores de destaque nesse momento. Assim, se é necessário ter clientes para psicodiagnóstico ou para pesquisa sobre dificuldades escolares, ou filhos de pais separados, ou mulheres divorciadas, ou homens com desejo de serem pais, enfim, as pessoas são encaminhadas para grupos de interesse voltados para a execução de pesquisa e aprofundamento de estudos. Não desconsideramos, em absoluto, a função da Universidade de produzir conhecimento, mas questionamos que esse compromisso se sobreponha, com freqüência, à necessidade dos clientes, a ponto de alguns continuarem por longo tempo na fila de espera por não haver pesquisa sendo realizada sobre o tema que lhe mobiliza, no momento. Segundo Perfeito e Melo (2004, p. 39) "(...) como porta de entrada, a triagem identificaria e direcionaria os pacientes segundo o diagnóstico e as solicitações dos supervisores". Geralmente, o cliente não participa dessa escolha, cabendo a ele aceitar ou não esse encaminhamento.

Outra questão relevante diz respeito aos objetivos desses trabalhos. A triagem pretende identificar a queixa para realizar o encaminhamento. No plantão, ouve-se a queixa e o pedido do cliente e caminha-se para um projeto de cuidado de si, o que chamamos de esclarecimento da demanda. A partir do que a impulsiona a procurar ajuda psicológica (o que a incomoda) e de onde quer chegar (seu pedido), constrói-se um processo narrativo e vivencial de como tem lidado com o problema que provoca a queixa (passado), como se relaciona, agora, com essa questão (presente) e como projeta cuidar de si mesma a partir do que viveu, tem vivido e quer viver (futuro). Segundo Almeida (2009, p. 30):

O Plantão, de imediato, ofereceu-se para mim como um espaço privilegiado de escuta do sofrimento humano. Nesse tipo de atendimento, não se trata de fazer-se uma triagem com intuito de encaminhamento dos pacientes pra um trabalho de psicodiagnóstico e posterior psicoterapia. O Plantão é já um atendimento psicológico no qual o conselheiro se debruça sobre a narração da história do paciente com propósito de, perpassando queixas, deixar aflorar uma demanda da existência. As queixas estão no âmbito do manifesto, constituindo-se no que aparece e emerge na fala; já a demanda é latente, situando-se no âmbito do velado, urgindo desvelamento por uma compreensão testemunhada.

O plantão busca um mergulho no campo experiencial, um reconhecimento dos sentidos e a possível ressignificação das experiências. Dessa maneira, sendo possível esse processo, há uma implicação direta da pessoa na escolha e no trilhar das rotas que são reconhecidas ou criadas a partir desse encontro consigo mesmo e com o plantonista.

 

ALGUMAS REFLEXÕES

Percebemos, no decorrer do tempo, mudanças na prática da triagem que se traduzem, hoje, em duas propostas que coexistem: a tradicional e a interventiva. As mudanças de que falamos dizem respeito a reflexões de profissionais que percebem um potencial no encontro proporcionado pela entrevista de triagem que pode ser muito mais rico e terapêutico do que se propunha inicialmente. O caminho, no entanto, não é linear, as duas técnicas de trabalho são diferentes entre si e são adotadas por diferentes grupos, vinculados a referenciais teóricos diversos.

O plantão psicológico, por sua vez, da maneira como nasceu e permanece acontecendo no Serviço de Aconselhamento Psicológico3 - tendo o acolhimento, a escuta atenta e interessada e o esclarecimento da demanda, enquanto projeto de cuidado, como suas características essenciais – diferencia-se da proposta de triagem em seu todo, pois não se propõe a determinar que informações devem ser oferecidas ao psicólogo e nem que caminhos o cliente deve trilhar a partir da compreensão do profissional. No entanto, é inegável que a triagem interventiva caminha por trilhas semelhantes ao plantão, abrindo-se para conhecer a pessoa que procura ajuda e fortalecendo o caráter terapêutico dessa intervenção, considerando, até mesmo, a possibilidade de ser suficiente para o cliente naquele momento. Mahfoud nos diz que "o sistema de plantão psicológico contém um caráter de triagem nãoclássica, sendo que esta não é o centro do encontro, não o delimita nem o conduz, mas nem por isso está ausente para o conselheiro quando avalia as possibilidades de continuidade dentro da perspectiva do cliente" (1987, p. 82). Dentro da perspectiva do cliente. Essa é a chave. E complementa Mahfoud, "que seja o referencial do próprio cliente a definir a direção do processo não significa ausência ou passividade do conselheiro, ao contrário, é a sua presença clara e atenta que permite ao cliente uma clarificação maior de seu referencial" (1987, p. 81).

Essas semelhanças e diferenças, no entanto, não são tão genéricas como podem parecer. A postura e compreensão de cada profissional acerca de sua prática, sua visão de mundo e o referencial teórico com o qual se alinha permitem que as distâncias entre essas propostas variem sobremaneira.

Ainda assim, afirmamos que "o plantão psicológico é uma modalidade de atendimento específica com marcas que o diferenciam de outras propostas. A idéia principal é acompanhar e facilitar o processo de significação da procura por ajuda psicológica" a partir de uma abertura que "apóia e provoca a descoberta do impensado, que acolhe e respeita a diversidade, que evidencia a instabilidade, que angustia e permite a criação do novo (...)" (ROCHA, 2009, p. 109). Uma qualidade inequívoca do plantão é "poder privilegiar a melhor forma de cuidado que o cliente pode encontrar e não aquela que o profissional define que é a mais adequada" (ROCHA, 2009, p. 110).

Fazer essa diferenciação entre processos tão presentes no cotidiano de trabalho dos psicólogos é uma necessidade didática, sobretudo. Não nos cabe e nem é nossa intenção estabelecer uma escala de valores ou apontar que práticas são melhores. Estamos, sim, comprometidos com uma delas – o plantão – mas não pretendemos desqualificar nenhuma das outras, que seguem cumprindo suas funções e respondendo a necessidades diversificadas da população e dos profissionais da área psi. No entanto, consideramos importante saber suas diferenças, compreender suas características e escolher que modalidade adotar.

 

REFERÊNCIAS

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1 Autora vinculada ao Serviço de Aconselhamento Psicológico do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
2 Tradução livre de Maria Cristina Rocha
3Sabemos que várias clínicas-escola, profissionais em seus consultórios e serviços de saúde adotaram a prática de plantão caracterizado como momento em que profissionais estão disponíveis em hora e local conhecidos para receber quem procura ajuda psicológica, considerando que essa procura se dá em momentos de urgência, como acontece com os plantões médicos, como uma triagem, sem atenção e abertura para o sentido do cuidado que a pessoa procura.

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