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Revista do NUFEN

versão On-line ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.3 no.1 São Paulo  2011

 

Ensaio sobre a conduta ética na abordagem centrada na pessoa

 

Essay on ethical behavior in the person-centered approach

 

 

Jaime Roy Doxsey1

Universidade Federal do Espírito Santo

 

 

RESUMO


O texto examina os rumos da produção dos estudos brasileiros da Abordagem Centrada na Pessoa (acadêmicos ou não) para fomentar uma reflexão sobre a evolução da prática desde os trabalhos científicos de Carl R. Rogers. A herança do trabalho pioneiro de Rogers nos obriga reconhecer a necessidade de continuar a busca para um conhecimento mais científico da nossa prática. Diretrizes federais para protocolos de pesquisa com seres humanos nos obrigam a repensar nossos sistemas atuais de coleta de dados, a autonomia anterior utilizada em nossos estudos bem como a necessidade de debater possíveis requisitos a apresentação de pesquisa, artigos e relatórios em congressos, seminários e outros eventos na Abordagem. O texto destaca a importância de criar espaços em eventos regionais e nacionais para lidar com questões éticas críticas, tanto na psicoterapia quanto na produção de trabalhos escritos.

Palavras-chave: Ética, Protocolos humanos, Ciência.


ABSTRACT

The text examines the directions of the production of studies in the person-centered approach (academics or not) in Brazil attempting to encourage reflection on the evolution of the practice since the scientific work of Carl R. Rogers. The legacy of the pioneering work of Rogers obliges us to recognize the need to continue the search for a scientific knowledge of our practice. Federal guidelines in Brazil for research with human protocols oblige us to rethink our current systems of data collection, the previous autonomy of our studies as well as the need to discuss possible requirements for the presentation of research articles and reports in conferences, seminars and other events in the Person-Centered Approach. The text also highlights the importance of creating space in national and regional events for dealing with critical ethical issues, both in psychotherapy and in the production of written work.

Keywords: Ethics, Human protocol, Science.


RESUMEN

El texto examina la dirección de la producción de estudios brasileños en el enfoque centrado en la persona (académicos o no) para fomentar una reflexión sobre la evolución de la práctica desde el trabajo científico de Carl R. Rogers. El legado de la labor pionera de Rogers nos obliga a reconocer la necesidad de continuar la búsqueda de un conocimiento científico de nuestra práctica. Normas federales de un protocolo para la investigación con seres humanos nos obligan a repensar nuestros sistemas de recopilación de datos, la autonomía anterior utilizada en nuestros estudios, así como la necesidad de discutir requisitos de su posible presentación, artículos de investigación e informes en conferencias, seminarios y otros eventos actuales en el Enfoque. El texto subraya la importancia de crear espacios en los eventos nacionales y regionales sobre cuestiones éticas críticas tanto en la psicoterapia como en la producción de obras escritas.

Palabras-clave: Ética; Protocolos humanos; Ciencia.


 

 

Não existe, certamente, estudo algum com o objetivo de
demonstrar que um terapeuta de atitude fria, intelectualista,
analítica e sistemática seja eficaz (ROGERS).

Contra o positivismo, que pára perante os fenômenos
e diz ‘Há apenas fatos', eu digo: ‘Ao contrário, fatos é
o que não há; há apenas interpretações (NIETZSCHE).

 

INTRODUÇÃO

1. O texto seguinte está organizado em forma de notas com o objetivo de ser direto e sintético. Não serão examinados os princípios da Abordagem Centrada na Pessoa - ACP, nem comentada a vasta literatura sobre ética, a conduta ética em pesquisa ou a filosofia da ética2.

2. Tampouco se questiona se os profissionais brasileiros da ACP são éticos ou estão registrando sua prática e seus resultados observando a conduta ética de pesquisa com seres humanos.

3. É relevante que examinemos com rigor e carinho os rumos da produção dos estudos brasileiros da Abordagem Centrada na Pessoa (acadêmicos ou não) para possibilitar uma reflexão coletiva sobre a evolução da nossa prática. É necessário, ao mesmo tempo, estarmos atentos às exigências em vigor para o registro de estudos com sujeitos humanos.

4. Questões éticas cada vez mais formam parte da pauta de discussão da pesquisa acadêmica em todas as áreas de conhecimento. Desde 1996-97, resoluções federais3 nas áreas da saúde, no uso de medicamentos e na pesquisa médica estabeleceram diretrizes para o protocolo humano, a integridade de pesquisa, a proteção de sujeitos humanos e determinou um procedimento para a revisão de projetos de pesquisa. Estas diretrizes estendem-se para todos os estudos, as atividades científicas ou acadêmicas de pesquisas que envolvem sujeitos humanos.

5. O registro e a autorização para o desenvolvimento do trabalho por uma comissão de ética são requisitos atuais para publicação em muitas revistas acadêmicas e até para a apresentação de pesquisa, artigos e relatórios em congressos, seminários e outros eventos. Projetos de monografia, trabalhos de terminação de cursos – TCCs, dissertações e teses exigem aprovação de protocolos de ética antes de sua execução.

6. Registramos aqui algumas considerações que merecem discussão e debate coerente com os princípios humanistas e a prática ética característica da Abordagem Centrada na Pessoa. É oportuno lembrarmos-nos da herança do trabalho inicial de Carl Rogers e outros, bem como rever algumas tendências presentes no contexto brasileiro.

7. Carl Rogers, William Coulson, John Wood, Geral Bozarth, John Schlein, entre outros, em suas obras publicadas já enfrentaram críticas sobre ACP, analisando a ciência do homem e a possibilidade de que a postura humanista dos profissionais da Abordagem é por sua natureza uma atitude e uma conduta ética. No Brasil, Rosenberg (1987), Freire (1989) Amatuzzi, Cury et. al. (2002) e Amatuzzi (2010) analisaram a psicoterapia, a relação terapêutica e o papel do psicólogo na perspectiva da Abordagem Centrada na Pessoa.

 

A HERANÇA CIENTÍFICA DE ROGERS E SUA PRODUÇÃO INICIAL

8. Uma parte significativa da herança científica de Carl Rogers está presente no modo como ele apresentou as evidências de suas descobertas e documentou seus fundamentos teóricos. "A teoria centrada no cliente ainda está se desenvolvendo, não como uma ‘escola' ou dogma, mas como um conjunto de princípios hipotéticos" (ROGERS; WOOD, 1978, p. 193).

9. Em um dos seus primeiros livros em 1942, Rogers expõe sua convicção de que a consulta psicológica é "um processo suscetível de ser conhecido, previsto e compreendido, um processo que pode ser aprendido, testado, elaborado e aperfeiçoado" (1987, p. xv)4. Afirmou que o livro foi escrito na esperança de fomentar novas pesquisas, teorias e práticas para aprofundar o nosso conhecimento.

10. Neste livro, Rogers intercalou reflexões teóricas e sessões com pessoas em terapia. Na Quarta Parte, ele reproduz a gravação integra do caso Herbert Bryant onde declara que as transcrições foram corrigidas "quando necessário suprir ou alterar elementos de identificação" do Bryant. De novo o texto sugere as várias maneiras que as entrevistas podem ser lidas e utilizadas para pesquisa, reflexão ou treinamento.

11. Em Rogers e Kinget (1977), encontra-se o que Rogers denominou de estrutura geral apresentando um esquema de seu sistema teórico. Para Rogers a teoria da terapia e a teoria da personalidade deram lugar para outros segmentos teóricos com implicações teóricas para diversas aplicações e as relações humanas em geral. Em seguida acrescenta "noções–chave" significativas para a compreensão de sua teoria da terapia. É no Capitulo XII – A pesquisa - que aborda as raízes científicas de sua abordagem terapêutica. E afirma:

Acredito que em psicoterapia caminhamos para um mesmo futuro e que, em conseqüência disto, nós nos basearemos cada vez mais em fatos e cada vez menos em afirmações na arbitragem das nossas divergências. Simultaneamente, alcançaremos o desenvolvimento de uma psicoterapia cada vez mais eficaz e em contínuo desenvolvimento; de uma psicoterapia que poderia dispensar os rótulos específicos, uma vez que ela compreenderia todos os elementos já verificados pelas diversas orientações terapêuticas anteriores (1977, p. 253).

12. Assim Rogers verificou que sua pesquisa possibilitou identificar as mudanças significativas do cliente "no nível de experiências eminentemente subjetivas de escolha, ... de autopercepção modificada", e que a eficácia do terapeuta ocorre quando é "caloroso e sinceramente humano"; quando se esforça ... "em compreender os pensamentos e sentimentos do cliente tais como se apresentam, na sua sucessão espontânea ... e orgânica" (p. 254).

13. Segundo Peretti (1979), Rogers sempre deu "mostras" de coerência e comunicação, de invenção e de rigor, utilizando múltiplos procedimentos psico- e sóciométricos. O Capitulo 13 - Desenvolvimento das pesquisas sobre terapia e relações humanas - é uma excelente apresentação cronológica do trabalho inicial de Rogers. Aqui o autor também comenta a metodologia objetiva das gravações e filmes que permitem que "o terapeuta, seus colaboradores, estudantes e inclusive os clientes" estudem de novo, com a freqüência e intensidade que desejam e com a subjetividade que querem, os dados objetivos que as gravações apóiam" (p. 250).

14. Peretti também organiza uma taxonomia de "puntos-clave" sobre o processo terapêutico, o processo (interno) do cliente e as conseqüências da terapia nos estudos até 1952, bem como lista as categorias de intervenção (p. 252-255). Além de comentar as diversas metodologias empregadas por Rogers e colaboradores, o autor descreve os planos metodológicos dos programas de pesquisa de Rogers. Para os interessados, o texto de Peretti revela detalhes importantes desta herança científica.

15. Nos anos 1960, Carl Rogers organizou um seminário polêmico sobre o "homem e a ciência do homem". Seu livro, escrito junto com William Coulson (1967) documentou as palestras e debates deste momento. Num pronunciamento sobre os pressupostos atuais das ciências do comportamento humano, Rogers desafiou os behavioristas afirmando que o ser humano com sua subjetividade deve ser conservado como objeto da investigação dessas ciências (p. 69). Foi enfático a declarar que quem se torna cientista teria que mergulhar nos fenômenos:

(Q)uanto mais completa for a imersão, quanto mais durar, quanto mais abertura eu estiver para todas as sutilezas de minha experiência, maiores probabilidades terei de descobrir novos conhecimentos. Isto significa tolerância face à ambiguidade e à contradição, resistência à necessidade de uma conclusão, valorização da curiosidade sem limites; significa absorver a experiência como uma esponja, de tal modo que ela seja recolhida em toda a sua complexidade, com o meu organismo total, e não apenas minha mente, participando livremente da experiência dos fenômenos (p. 61).

16. A produção teórica de Carl Rogers é uma herança fortemente fundamentada em pesquisa empírica e acadêmica. Suas hipóteses e pressupostos foram testados, criticados e reformulados durante mais do que 60 anos. Essa produção é, sobretudo uma tradição de estudos e procedimentos que investigaram milhares de sujeitos humanos, alvos de observações, filmagens, gravações e entrevistas, sem evidências documentadas de plágio, fraude, condutas anti-éticas, quebra de sigilo ou protocolos irregulares.

 

ÉTICA DA ABORDAGEM CENTRADA NA PESSOA

17. Bozarth (1998) afirma que o pressuposto fundamental da abordagem centrada na pessoa é também uma premissa ética básica para os praticantes da abordagem centrada na pessoa. "A manifestação do pressuposto é que o praticante se dedica à autoridade de si mesmo e autodeterminação do cliente. Sendo assim, o princípio sugere novas interpretações e até mesmo afirmações diferentes a respeito de padrões éticos. Tal revisão não sugere menos restrições éticas, mas sim sugere mais fortes princípios éticos e mais atenção à natureza e substância das relações profissionais" (p. 185).

18. Para Bozarth, "A ética centrada na pessoa consistente opera a partir de ... (certas) qualidades atitudinais. Esta é a maneira como o terapeuta centrada na pessoa se esforça para "ser". A ética centrada na pessoa se baseia nas qualidades das atitudes do terapeuta "(ibid).

19. Wood (2010) alerta sobre um perigo para o profissional de "escorregar" das crenças e valores da ACP para um raciocínio moralista de como as pessoas "devem ser". "A moralidade e a ética apesar de não serem formalmente mencionadas, constituem uma parte implícita do comportamento do participante nas aplicações da Abordagem Centrada na Pessoa" (p. 223).

20. Wood entendeu que as aplicações da Abordagem "não ficam imunes ao mesmo processo cultural geral que ocorre na maioria das inovações: a moralidade substitui a função compreensiva do julgamento, marcando o fim da inovação", sendo "irônico que essa abordagem que ajudou pessoas a se livraram dos ‘deve" e ‘tem que' da moralidade de sua época" ... (possa) manifestar nas suas aplicações uma moralidade em tudo e por tudo escravizante" (p. 225).

21. A conduta de profissionais da Abordagem Centrada na Pessoa se fundamenta em princípios humanistas e fenomenológicos com um respeito ético profundo pelo individuo, seu contexto sociocultural, étnico e suas preferências pessoais. A pesquisa e seus procedimentos científicos empregados na construção de seu embasamento teórico refletem a mesma ética sem seguir normas ou protocolos que os regulamentam sobre a proteção dos seres humanos estudados. Assim, a Abordagem Centrada na Pessoa deve ser considerada vanguarda nas pesquisas científicas sobre o homem e suas relações.

22. Já não estaria implícita uma ética em toda a proposta humanista?

 

BREVES OBSERVAÇÕES SOBRE ÉTICA NO CONTEXTO BRASILEIRO DA ACP

23. As minhas observações aqui carecem de maiores informações a respeito da ética em textos disponíveis, módulos oferecidos em cursos e seminários da ACP, pesquisas acadêmicas e apresentações realizadas pelos profissionais da Abordagem. Para o presente texto fica registrada essa lacuna. Um levantamento mais detalhado deste material poderia ser uma relevante análise de nossa prática e pensamento.

24. A primeira manifestação pública sobre a ética, registrada nos trabalhos da Abordagem Centrada na Pessoa no Brasil, ocorreu durante o primeiro dia do workshop de Acozelo I, Aldeia de Acozelo – Paty de Alferes, Rio de Janeiro em 1977. A discussão na abertura do encontro focalizou a gravação que estava sendo realizada por uma participante de Brasília. Os participantes junto a equipe de Carl Rogers questionaram a ética da gravação sem autorização dos presentes. Após protestos e considerações políticas sobre o uso desta gravação, o gravador foi removido do grupo.5

25. Em "palavras sobre a ética", Rosenberg (1987) refletiu sobre os "efeitos colaterais" de condutas do psicólogo na instituição ou no consultório. A autora alertou sobre:

a. O papel do psicólogo em avaliar o caminho, tratando apenas o "cliente" ou a situação interpessoal - mãe ou filho; mulher ou marido; aluno ou professor, etc. (p. 85);

b. A possibilidade de o profissional exercer uma influência indevida sobre o seu cliente, transmitindo-lhe valores pessoais... (p. 86); e

c. Sobre o pressuposto de que a "presença do outro" não pode ser anulada, por neutralidade ou anominato pelo profissional que deve manter-se disponível sem conduzir ou julgar o interlocutor (p. 87).

26 Rosenberg conclui que "a conduta ética e condizente do psicólogo conselheiro é ... vista como resultante de sua postura pessoal básica e ... como decorrência de uma reflexão informada sobre os seres humanos e seus modos de interagir" (p 88).

27. Mais recentemente Amatuzzi (2010) publicou um livro Rogers - ética humanista e psicoterapia em que buscou regatar aspectos "radicais" das afirmações paradoxais de Rogers e declara que "à luz dos pensamentos de Rogers, o próprio humanismo torna-se mais claro." Para Amatuzzi, "(a) ACP é basicamente uma postura ética. Uma ética humana" (p. 36).

28. Amatuzzi, Cury et. al. (2002) levantaram as características da atitude de "boa vontade - BV", comparando-as às características da Abordagem Centrada na Pessoa. Essa comparação mostrou que há semelhanças e diferenças entre as duas: na idéia de BV o foco é a bondade do ato apontando para o aspecto ético, e na ACP o foco é a relação voltada para o outro confiando nos processos básicos da vida. Enfatizaram a importância do aspecto ético, entendido como essencial, para formação na ACP e, em geral, na formação do psicólogo.

29. Como a questão da ética é abordada na formação de psicólogos brasileiros? Os cursos de Psicologia em faculdades e universidades com linhas de pesquisa na Abordagem Centrada na Pessoa são poucos. Os institutos e centros que oferecem formação especifica na Abordagem, com ou sem vínculos institucionais para certificação, também não são muitos. Qual a natureza do ensino da ética e quais são os procedimentos seguidos para aprovação de estudos com sujeitos humanos?

 

OS DESAFIOS ÉTICOS E CIENTÍFICOS

30. Enquanto a promoção de integridade na pesquisa recebe amplo apoio governamental e institucional nos Estados Unidos e no Canadá, a conduta responsável na pesquisa, a prevenção e a legislação/controle de possível conduta imprópria até recentemente não foram assuntos proeminentes em países como o Brasil. Surge a necessidade para estimular a consciência e o debate institucional em assuntos importantes como a produção e a comunicação de conhecimento científico.

31. O debate sobre a pesquisa ética é uma discussão que não só cabe aos institutos universitários enquanto entidades comprometidas com o treinamento para e o exercício de uma pesquisa científica ética. Os programas de formação na ACP, cursos de graduação e especialização, dentro e fora dos âmbitos acadêmicos, precisam enfrentar os desafios éticos para o desenvolvimento de práticas de pesquisas e estudos responsáveis.

32. A falta de políticas institucionais eficientes ou de uma preocupação pública relativo à qualidade e a ética de pesquisa científica não isentam investigadores, instituições ou universidades da responsabilidade de estabelecer programas para assegurar a integridade da pesquisa. Nota-se que o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) tem incluído em seus editais, cláusulas que alertam os pesquisadores sobre suas responsabilidades éticas (Veja um exemplo – É de exclusiva responsabilidade de cada proponente adotar todas as providências que envolvam permissões e autorizações especiais de caráter ético ou legal, necessárias para a execução do projeto)6.

33. As resoluções federais brasileiras determinaram um procedimento para a revisão de projetos de pesquisa nas linhas da legislação norte-americana. Como afirmado acima, as diretrizes estendem-se para qualquer classe de atividade cujo objetivo é desenvolver ou contribuir para o conhecimento generalizável (artigo II.1, p. 1)6. Uma pesquisa ou estudo com seres humanos é aquela definida no artigo II.3 como "pesquisa que, individualmente ou coletivamente envolva o ser humano, de forma direta ou indireta, em sua totalidade ou partes dele, incluindo o manejo de informações ou materiais".

34. A Resolução 196/96 determina que toda pesquisa envolvendo seres humanos deve ser submetida à apreciação de um - Comitê de Ética em Pesquisa – CEP. CEPs são "colegiados interdisciplinares e independentes, com ‘munus público', de caráter consultivo, deliberativo e educativo, criados para defender os interesses dos sujeitos da pesquisa em sua integridade e dignidade e para contribuir no desenvolvimento da pesquisa dentro de padrões éticos"7.

35. As universidades, os institutos de pesquisas, centros acadêmicos, departamentos e programas de pós-graduação devem estabelecem políticas próprias para a aprovação dos projetos de pesquisa e as linhas de produção científica de acordo com a Resolução 196/96. Cumprir com esta Resolução inicialmente produziu resistências em muitas universidades sendo considerado como uma burocracia que dificultava a aprovação e execução de trabalhos científicos. As áreas de conhecimento vinculadas à saúde, a medicina e psicologia foram as primeiras para adotarem as diretrizes. Programas nas demais ciências sociais e humanas, inclusive os cursos na área da educação, terão que se transformar para acatar a resolução.

36. A recente expansão do número de programas de pós-graduação aumenta a necessidade desses programas promoverem o ensino da integridade de pesquisa e a ética de orientação científica. A pressão de carreira acadêmica, resultando numa competição entre pesquisadores, tem contribuído para condutas de fraude, falsificação de dados e plágio. Problemas relativos à administração de dados produzidos em pesquisa, a guarda, a retenção dos dados para o registro científico, etc., exigem políticas proativas para antecipar conflitos e incidentes de conduta imprópria.

37. Antes de examinar as implicações para a Abordagem Centrada na Pessoa é relevante ter um conhecimento pleno sobre o que a Resolução 196/96 define como 1) os aspectos éticos da pesquisa e 2) consentimento informado. (Leitores que discordam podem pular para a última parte do texto sobre as implicações para a ACP.)

38. Conforme a Resolução 196/96:

 

 

 

39. A definição de consentimento livre e esclarecido pode ser considerada como a mais importante noção da ética em pesquisa humana:

II.11- Consentimento livre e esclarecido - anuência do sujeito da pesquisa e/ou de seu representante legal, livre de vícios (simulação, fraude ou erro), dependência, subordinação ou intimidação, após explicação completa e pormenorizada sobre a natureza da pesquisa, seus objetivos, métodos, benefícios previstos, potenciais riscos e o incômodo que esta possa acarretar, formulada em um termo de consentimento, autorizando sua participação voluntária na pesquisa8.

40. Segundo a Resolução, o consentimento livre e esclarecido é considerado:

 

 

41. O protocolo da pesquisa envolve, entre outras informações: 1) a descrição completa do projeto; 2) informações relativas ao(s) sujeito(s), inclusive o termo de consentimento especifico para o projeto e as medidas de proteção e confidencialidade. O protocolo deve ser apresentado ao Comitê de Ética em Pesquisa – CEP – da instituição ou na sua ausência, a um CEP de outra instituição indicado pelo Conselho Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP).

42. O SISNEP - Sistema Nacional de Informação sobre Ética em Pesquisa envolvendo Seres Humanos é um sistema de informações via internet sobre pesquisas envolvendo seres humanos que permite o registro e acompanhamento de projetos.9 Uma recomendação importante do site: O ideal é que o registro do projeto seja feito quatro meses antes do inicio previsto da pesquisa. Pesquisadores sem vinculo institucional podem utilizar este sistema.

43. Pode ser concluído que ainda há necessidade para ações institucionais urgentes no desenvolvimento de padrões normativos que promovam um ambiente de pesquisa responsável e uma consciência crítica da necessidade de treinamento/pesquisa sobre a integridade científica em todas as áreas de conhecimento no Brasil.

 

IMPLICAÇÕES PARA ACP

44. Mesmo para profissionais da Abordagem Centrada na Pessoa sem atuação em instituições acadêmicas, a herança do trabalho pioneiro de Rogers nos obriga reconhecer a necessidade de continuar a nossa busca para um conhecimento mais científico da nossa prática. Continuamos com questionamentos e dúvidas referentes o processo e relação terapêutica; o possível papel da ACP perante a violência humana, o abuso de sustâncias, o racismo e a discriminação de gênero e preferências sexuais, entre outros problemas psicossociais atuais.

45. Rogers nos ensinou sobre a importância do estudo cientifico de nosso trabalho para testar ideias e comunicar fatos. Até que ponto estamos disponíveis individualmente para buscar meios coletivos para avançar em nosso trabalho? Podemos trocar mais nossos projetos de estudo, nossos dados, nossos problemas da conduta (ética ou não) das nossas pesquisas? Existe a possibilidade de linhas de pesquisa em comum? Projetos em comum?

46. Diretrizes para protocolos de pesquisa com seres humanos nos obrigam a repensar nossos sistemas atuais de coleta de dados e a autonomia anterior utilizada em nossos estudos. Há novos requisitos para a apresentação e publicação de pesquisa. Para submeter um trabalho à Revista NUFEN, a comissão do IX Fórum Brasileiro da ACP solicitou informações sobre a aprovação do trabalho pelo comitê de ética que autorizou o desenvolvimento do mesmo, caso o trabalho se referisse à pesquisa com seres humanos. Devemos "filtrar" trabalhos para apresentação em nossos encontros, fóruns e seminários na Abordagem Centrada na Pessoa? Ou seria antiético ou autoritário por parte dos organizadores de cada evento? Como podemos discutir isso?

47. Quais os espaços atuais que podemos criar em nossos eventos para lidar com questões éticas críticas, tanto na psicoterapia quanto em outros estudos científicos? Temos abertura para aprofundamos a discussão sobre ética? E estamos falando da ética de quem?

48. Quanto à conduta ética de pesquisa, algumas perguntas são pertinentes, mesmo que não respondidas9:

a) O trabalho a ser feito vale a pena? Para quem? Por que?

b) A temática em si tem considerações éticas para os participantes envolvidos? Há distância ou paridade entre os pesquisadores e os participantes?

c) A seleção dos participantes é "voluntária", livre ou dirigida? Houve seleção? Com quais critérios?

d) Os procedimentos usados elicitam respostas ou produzem reações que fogem do alcance de ação pelo pesquisador? Quais as consequências verdadeiras para os participantes?

e) O estudo em si produz expectativas, mesmo silenciosas, sobre ajuda na resolução de algum problema ou situação crítica?

f) Os participantes terão acesso às informações sobre os resultados? Como?

g) A quem pertencem os dados? A informação coletada, mesmo organizada de forma autônoma, estará guardada, onde? Por quanto tempo? Quem terá acesso a essa informação?

49. A análise prévia de questões com implicações éticas deve ocorrer durante a escolha do problema de pesquisa. As considerações éticas vão além de protocolos e diretrizes para o estudo dos seres humanos.

50. Não existiam protocolos humanos para pesquisa psicológica durante as décadas dos estudos de Rogers e seus colaboradores. Não sabemos se as instituições de então teriam autorizado procedimentos tão radicais como a gravação e filmagem de sessões terapêuticas. Hoje temos a oportunidade de pesquisar dentro de nossos princípios e crenças que contem posturas éticas inerentes a abordagem que recriamos e praticamos. Que seja assim.

51. Mas podemos ir além. Podemos criar e melhorar a dinâmica da nossa busca para a verdade no contexto da comunidade profissional que sustentamos em cada encontro. A nossa ética emerge através da desconstrução das estruturas fechadas que nos isolam e nos calam. Vamos discutir a ética dos sentidos e em todos os sentidos!

 

REFERÊNCIAS

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1 Sociólogo, Doutor em Estudos Americanos, Processos de Desenvolvimento Social, professor aposentado da Universidade Federal do Espírito Santo
2 Para os interessados, Vasquez (2010) discute os problemas éticos e as relações entre moral e ciência e o uso social da ciência (p. 103-105)
3 Entre outras, a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde que estabelece a formação do um Conselho Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), bem como diretrizes para o tratamento de sujeitos humanos em pesquisa
4 Nota-se que o livro em Inglês foi publicado mais de 40 anos antes da tradução publicada em português. Isto ocorre com a maioria dos textos neste período
5Se houve outro evento ou documento escrito sobre a ética na ACP antes desta data, desconheço a fonte. Agradeço informações adicionais para editar o texto
6 Edital MCT/SETEC/CNPq Nº 75/2010 - RHAE Pesquisador na Empresa. Acesso em 12 ago 2011. Disponível em <http://www.cnpq.br/editais/ct/2010/docs/075.pdf>
7 Resolução Nº 196 de 10 de outubro de 1996. Conselho Nacional de Saúde/MS
8 Parte II, Artigo II.14, p. 1. Parte II.11, p. 2
9 Para maiores informações, veja http://portal2.saude.gov.br/sisnep/
10 Esta nota foi inspirada pelo trabalho de Rivlin, 2002.

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