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Revista do NUFEN

versão On-line ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.4 no.1 São Paulo jun. 2012

 

ARTIGO

 

 

De Kant a Mouffe: Desenvolvendo argumentos positivos acerca do reconhecimento "famílias homoafetivas" pelo judiciário brasileiro

 

From Kant to Mouffe: developing positive arguments about the recognition of "families homoafetivas" by the brazilian judiciary

 

 

Alan Michel Santiago Nina; Carlos Augusto Silva Souza

Universidade Federal do Pará.

 

 


RESUMO

A proposta deste artigo é desenvolver uma argumentação positiva acerca do reconhecimento, como ente familiar, de casais formados por pessoas do mesmo sexo (as chamadas relações homoafetivas), partindo dos julgados do STF. O reconhecimento de direitos e a construção de sujeitos politicamente definidos podem revelar o perigo de normatizar a sexualidade e, nesse sentido, pulverizar parte das possibilidades de vivências e arranjos sociais, quando se reafirma uma homossexualidade assentada nos padrões heteronormativos: familiar, monogâmica, afetiva. Neste sentido, ao lado dos argumentos conservadores, que não estendem aos casais homossexuais o direito de constituir famílias, soma-se uma crítica cujo principal esteio é a percepção de que normas jurídicas podem limitar a possibilidade de sexualidades libertárias. A hipótese do artigo é mostrar que estas duas visões podem ser superadas sob a perspectiva tanto da filosofia kantiana quanto da Teoria do Discurso desenvolvida no final do século XX por Ernesto Laclau e Chantal Mouffe.

Palavras-chave: direito de família; homoafetividade; Kant; Laclau; Mouffe.


ABSTRACT

The purpose of this paper is to develop a positive argument about the recognition as family, couples including same sex (called relationships homoafetivas), starting from STF. The recognition of rights and the construction of politically defined subject can reveal the danger of regulating sexuality and, in this sense, spraying part of the experiences and social arrangements, when it reaffirms a seated homosexuality heteronormative standards: family, monogamous, affectionate. In this sense, the conservative side of the arguments, which do not extend to gay couples the right to form families, adds to a critique whose mainstay is the perception that legal rules may limit the possibility of libertarian sexuality. The hypothesis of this paper is to show that these two views can be overcome both the perspective of Kantian philosophy as the Discourse Theory developed in the late twentieth century by Ernesto Laclau and Chantal Mouffe.

Keywords: family law; homoafetividade; Kant; Laclau, Mouffe.


Resumen

El propósito de este trabajo es desarrollar un argumento sobre el reconocimiento positivo como familia, pareja incluida mismo sexo (relaciones llamadas homoafetivas) a partir de Magistrados de la Corte Suprema de Justicia. El reconocimiento de los derechos y la construcción del sujeto político definido puede revelar el peligro de la regulación de la sexualidad y, en este sentido, la pulverización parte de las posibilidades de experiencias y acuerdos sociales, cuando se reafirma en estándares homosexualidad sentados heteronormativos: familia, monógamas, cariñoso. En este sentido, el lado conservador de los argumentos, que no se extienden a las parejas homosexuales el derecho a formar una familia, se suma a una crítica cuyo pilar es la percepción de que las normas jurídicas pueden limitar la posibilidad de la sexualidad libertaria. La hipótesis de este trabajo es mostrar que estos dos puntos de vista pueden ser superados tanto en la perspectiva de la filosofía kantiana como la teoría del discurso desarrollado en el siglo XX por Ernesto Laclau y Chantal Mouffe

Palabras clave: derecho de familia; homoafetividade; Kant; Laclau, Mouffe.


 

 

Introdução

Em 05 de maio de 2011, o Estado brasileiro presenciou uma decisão histórica promovida pelo Supremo Tribunal Federal: o reconhecimento da união estável passa a ser legítima para casais do mesmo sexo1. Esta decisão tem sua importância por aumentar o leque interpretativo da Constituição Brasileira, especialmente o artigo 226, onde são enumeradas três formas diferentes de família: casamento, união estável e famílias monoparentais, além do controverso parágrafo 3º: "Para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre homem e mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento", o que, a partir da ótica do Judiciário, passa a ser extensivo também a casais formados por homens ou por mulheres.

A decisão então proferida pelo STF pode apontar alguns elementos interessantes para a questão, não apenas em relação às práticas jurídicas e seus avanços às pessoas homossexuais, mas principalmente à interrelação entre Estado e sexualidade de um"instituição Estado" e o "dispositivo da sexualidade"2, temos um percurso, no mínimo, insa forma mais ampla. Isto porque, tomando apenas estes dois eixos, isto é, atigante:

1) Os grupos LGBT's formam um complexo movimento de minoria, assentado na influência do discurso feminista, onde se opta por uma desconstrução do sujeito (BUTLER, 2009) e por uma busca de identidades fluidas, dinâmicas e instáveis (HALL, 2006), sintetizada na ideia de "diversidade";

2) No entanto, é central adotar a perspectiva de garantia de direitos; nesse sentido, a articulação entre as demandas do movimento LGBT e o papel do Estado ganha um novo enfoque (o próprio movimento feminista preconiza que o "pessoal é político", isto é, há certa necessidade em levar à arena pública e das decisões políticas questões que, a princípio, estariam restritas ao mundo privado, como a sexualidade);

3) No entanto, paralelamente à lógica de se estender direitos, a homossexualidade ressignifica conceitos até então intocados, sendo posta com facilidade no universo da transgressão (SEDGWICK, 2007). São discursos que desestabilizam a noção de público e privado, confrontando-se com símbolos tradicionais como família, parentalidade e conjugalidade.

Em termos mais gerais, o que será discutido neste artigo parte da seguinte questão norteadora: a normatização da União Estável (com seus desdobramentos no âmbito do Direito de Família) entre "casais homoafetivos" seria um elemento limitador ou libertador para o sujeito que vivencia sexualidades transgressoras?

No intuito de discutir acerca dos pontos favoráveis e desfavoráveis que a regulamentação de certos direitos provoca em relação à construção de uma visão crítica e ampla da sexualidade, o referencial teórico aqui discutido encontra assento em algumas indicações da filosofia kantiana, sem deixar de considerar aspectos mais contemporâneos da filosofia política, expressos pelo pensamento de Chantal Mouffe e sua Teoria do Discurso.

Ora, o resgate a Kant justifica-se por dois motivos principais: o primeiro devido a intersecção entre as demandas dos grupos LGBT's e a questão dos Direitos Humanos, o que, como evidencia Bobbio3, encontram respaldo numa "visão cosmopolita", termo kantiano que será discutido mais adiante; em segundo lugar, Kant resgata o Direito a partir de elementos morais, o que nos fornece uma ponte interessante para discutir a questão da legitimidade dos direitos das minorias.

Neste último ponto, seria bem mais provável (e talvez mais óbvio) adotar a perspectiva de Stuart Mill, uma vez que ele discorre diretamente sobre a representação das minorias. No entanto, o objetivo do trabalho é justamente realizar um resgate de princípios morais tangente à lógica das instituições democráticas, num sentido mais holístico, o que, em nossa visão, é feito com maior destaque por Kant.

Antes de iniciarmos a discussão é preciso apontar alguns elementos fundamentais sobre o desenho Institucional onde se insere a rena pública da luta pelo reconhecimento de direitos LGBT's. Primeiramente, destaca-se o papel pró-ativo do Judiciário em relação ao âmbito do Legislativo e do Executivo, o que leva ao questionamento até mesmo da clássica divisão de poderes: estaria o judiciário extrapolando o seu limite de atuação e desequilibrando a ideia de "freios e contrapesos" dos Poderes? Evidentemente, este não é o espaço e nem é a proposta do artigo discutir a harmonia (ou não) entre as três esferas de Poder; basta, por ora, pontuarmos um detalhe, que à primeira vista parece escapar: a noção clássica elaborada por Montesquieu4 sobre "o poder que controla o poder", leva em conta não apenas as funções típicas de cada esfera de poder, mas, principalmente, como estas atuam na conformação de um aparato estatal legítimo, isto é, como o poder passa a ser dividido para, em seguida, serem criados instrumentos de controle mútuo visando a preservação da engenharia institucional até então construída. Nesta interpretação, Montesquieu estaria mais acertadamente preocupado com a organicidade do poder - explicou porque as funções não podem ser concentradas nas mãos do mesmo titular, explicou que o titular não é necessariamente uma pessoa, mas um grupo social, mostrou como os órgãos estatais devem interagir, quais devem ser fortalecidos, quais devem ser enfraquecidos, quais os instrumentos de controle e o grau de estabilidade e legitimidade do sistema. A organicidade da "engenharia institucional" também foi o objeto de seus sucessores mais conhecidos, os chamados "federalistas", os quais realçam a necessidade da existência de uma soberania compartilhada, assentada num pacto federativo cujos pressupostos são um sistema de freios (Check and balances), autonomia delimitada na constituição e um harmonioso relacionamento com o poder central, assegurando dessa forma uma adequada divisão de recursos que visa o fortalecimento das diversas unidades componentes da federação.

O resgate destes pressupostos talvez seja importante para compreendermos que a engenharia democrática, numa discussão como essa (em que divergem opiniões), não parece estar abalada. Há uma vasta literatura que discute o "ativismo judicial" (ou seria "politização da justiça"?), e o que resta é que a forma permanece intacta, isto é, o Estado e as esferas de poder permanecem como instituições legítimas, soberanas, pelo menos no que tange à sua forma institucional. Neste sentido, o Estado aparece como um canal legítimo das demandas LGBT's, e a proposta do artigo é justamente dialogar com a crítica que se faz sobre este canal, em especial ao seu aparato normativo. É por isso, também, que fazemos o diálogo entre Kant e Moutffe, pois este último resgata o sentimento político de nosso tempo a partir de um "Estado Democrático Pluralista", ou seja, discute uma série de questões e de valores divergentes dentro de uma complexa arena política de tomada de decisões.

De fato, o que parece inaceitável diante do olhar de muitos conservadores e pessoas contrárias à decisão do STF, parece ser muito mais o conteúdo da interpretação jurídica, os valores embutidos nas Leis e julgados, do que propriamente a forma como se organizam as instituições, uma vez que as decisões referentes ao Direito de Família para casais homossexuais não representam nenhum perigo para a legitimidade do Estado. E quando se percebe que a "forma" do Estado era o germe da discussão acerca da divisão dos Poderes, infere-se que, pelo menos neste quesito, não estamos diante de nenhum escândalo ou ofensa muito grave às "regras do jogo" institucionais, e isto nos leva a um segundo ponto: esta decisão do STF sobre o reconhecimento das uniões estáveis entre casais do mesmo sexo soa, surpreendentemente, como um forte ranço de tradicionalismo e conservadorismo, não em sua forma clássico de retrocesso, mas sob uma nova perspectiva muito mais interessante. Explica-se: em que pese uma série de reivindicações promovidas pelo movimento LGBT5, como direito à adoção, criminalização da homofobia, a questão da transexualidade (ainda encarada de forma patológica), ou mesmo a adoção de práticas na educação infantil direcionadas à diversidade, tem-se, no entanto, a predominância e um avanço maior do reconhecimento de demandas nas questões ligadas direta e indiretamente ao Direito de Família (com forte protagonismo do judiciário, especialmente em questões de herança e direitos previdenciários). Ora, é justamente na família que vem se assentando esse novo "olhar" sobre a homossexualidade, carregando valores como monogamia, afetividade e continuidade. É instigante pensar que a homossexualidade se faz "reconhecida" através de uma instituição por vezes mais do que tradicional: a família.

Parece desconcertante, mas é possível perceber, mesmo sem desconsiderar os importantes ganhos para os indivíduos que diferem do padrão heterossexista, que a homossexualidade cada vez mais se aproxima de um modelo de sexualidade "limpo", "aceitável". Ao realizar análise sobre os discursos emitidos pelos ministros do STF em suas decisões, o eminente juiz Roger Rios6, que defende os direitos de homossexuais a partir da ótica dos direitos sexuais e dos direitos humanos, já enxerga este movimento "assimilacionista" (tanto como conceito propriamente jurídico quanto como projeção de certos valores).

O percurso metodológico deste artigo é partir de percepções de juristas acerca da decisão do STF e, com base nelas, defender que os avanços nas questões jurídicas estão muito além da sua mera interpretação casuística, a qual pode nos fazer perder seu alcance. Logo, retomando uma linha de raciocínio construída genuinamente por Kant, e mais recentemente por Norberto Bobbio, para quem "a ética é eminentemente política", argumenta-se que as questões jurídicas atingem também os valores morais pelos quais pensamos e reproduzimos nossas condutas, sendo basicamente impossível separar estas esferas. E esta relação é importante para repensarmos tanto as críticas conservadoras quanto a própria crítica dos militantes ao se depararem com os preceitos normativos que supostamente parecem reger as condutas típicas do "dispositivo da sexualidade", em alusão à crítica foucaultiana7.

Diversos autores já discutem esta relação entre liberdade de vivência da sexualidade e direitos8. Além do aparente paradoxo que a norma enseja perante a possibilidade de viver sexualidades libertárias, certos princípios evocados (como a "dignidade da pessoa humana") para defender os direitos sexuais, oscilam entre um tratamento individualizado, o qual remonta ao germe do pensamento liberal, e um tratamento mais pluralista e, talvez, mais revolucionário, como foi despido por Bobbio (2004), quando de sua tentativa de situar os Direitos do Homem não apenas em seu contexto de direito negativo. Nas palavras do autor:

A Declaração Universal contém em germe a síntese de um movimento dialético, que começa pela universalidade abstrata dos direitos naturais, transfigurava-se na particularidade concreta dos direitos positivos e termina na universalidade não mais abstrata, mas também ela concreta, dos direitos positivos universais. (p.79)

A perspectiva histórica de Bobbio o leva a defender a tese de que podemos situar certos acontecimentos históricos (como a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1944) para além do seu tempo, e perceber além da crítica imediatista que se apresenta de forma superficial.

Em certo sentido, é este o esforço analítico que se fará neste artigo: a partir de um caso específico, a decisão do STF para reconhecer a união estável entre casais do mesmo sexo, procura-se identificar discursos favoráveis e desfavoráveis, de forma sucinta, e inserir a tese de que não podemos fazer este deslocamento histórico sem deixar de discutir o aspecto moral embutido nas questões que envolvem direito, famílias e sexualidade.

Dialogando com a perspectiva moral Kantiana, é possível perceber, no conceito de "direito cosmopolita", uma ideia arrebatadora para a convivência pacífica entre os homens. Ora, é certo que Kant (1983) estava mais preocupado com as controvérsias políticas entre os povos, portanto, é preciso fazer uma ressalva: o que nos interessa é como este autor construiu seu argumento e, partir daí, traçar um paralelo para a questão da sexualidade.

Far-se-á, pois, o seguinte percurso: apresentação de algumas visões a cerca do julgado do STF e, em seguida, o resgate do debate ético sob perspectiva da filosofia de Kant, para tentar compreender, de forma dialética e crítica, a tensão entre sexualidades e legalidades.

 

Pontos de vista acerca da decisão do STF

O problema que temos diante de nós não é filosófico, mas jurídico e, num sentido mais amplo, político; não se trata de saber quais e quantos são os direitos, qual é sua natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los. (Bobbio, 2004, p.25)

Evidentemente, é uma tarefa hercúlea sintetizar as opiniões (convergentes e divergentes) que porventura possam se apresentar acerca de determinado fato, e certamente este não será nosso objetivo. Vou optar por selecionar posicionamentos de juízes a cerca da questão, o que restringe o campo de observação, sem, no entanto, afastar-me do objeto central do artigo. A fonte em que coletei esses difusos pontos de vista são basicamente artigos de jornais (veiculados na Internet) e obras acadêmicas lançadas após a decisão do STF, as quais discutem o tema.

É certo que se corre o risco de deixar de lado pontos de vistas medianos ou acentuadamente divergentes, os quais podem se revelar, inclusive, esclarecedores. Partiremos de 3 pontos de vista distintos. Como a ideia não é realizar tipologia, muito menos tecer considerações pessoais sobre determinados pontos de vista, dividimos as categorias em, simplesmente, pontos de vista 1, 2 e 3. O objetivo é apenas tentar clarear a visão do Judiciário (e, por extensão, do Direito), frente às questões aqui levantadas, uma vez que, como fora exposto, é o Judiciário que vem se posicionando de forma mais contundente sobre tais demandas.

a) Ponto de vista 1: Como exposto anteriormente, a questão da competência do Judiciário, já que não põe em risco a engenharia do Estado, quando evocada, o é meramente devido ao seu conteúdo. Logo, não impressiona perceber que a tese segundo a qual o Judiciário não tem competência para "criar direitos" é mais evocada pelos que discordam da extensão dos direitos de família a casais homossexuais, afinal, nesta perspectiva, "invalidando a forma se invalidaria o conteúdo". No mais, sua defesa estaria centrada muito mais em um discurso cuja linguagem e argumentação é eminentemente técnica, valendo-se de argumentos jurídicos específicos.

Além disso, após a histórica decisão do STF, os meios de comunicação (mídia impressa, sites, telejornais, blogs) não hesitavam em acentuar o caráter polêmico do julgado, e as posições contrárias, em geral, gravitavam em torno de um discurso religioso e moral. Não raro encontrar artigos de religiosos escrevendo sobre o tema.

Tomemos aqui o posicionamento do jurista Ives Gandra da Silva Martins, em artigo publicado na Folha de São Paulo9, em que apresenta argumentos que justamente trazem à tona a falta de competência do Judiciário, o qual estaria "tomando as vezes" do Legislativo, já que a Constituição traz expressamente o termo "homem e mulher" para definir a união estável. Nas palavras do próprio:

Sou contra o casamento entre homossexuais, não contra a união. A união pode ser feita e tem outros tipos de garantias, como as patrimoniais. Minha posição doutrinária, sem nenhum preconceito contra homossexuais, é que o casamento e a constituição de família só acontecem entre homem e mulher10.

Assim como ele, uma série de juristas e advogados defende a família como reduto exclusivo do homem e da mulher, especialmente aqueles ligados às Igrejas protestantes e ao catolicismo (como por exemplo, evidenciado em declarações de bispos da CNBB11).

O professor Paulo Gilberto Cogo Leivas, em artigo publicado numa coletânea lançada especialmente para discutir a decisão do STF, desconstrói12 o argumento a partir da argumentação jurídica de Robert Alexy, basicamente apontando os elementos doutrinários que os Ministros do STF usaram.

Como a proposta deste trabalho não é aprofundar a discussão jurídica a cerca da fundamentação do julgado, e sim perceber a sua relação com o dispositivo da sexualidade, interessa-nos apontar o elemento justificador para este discurso anti-homossexualidade centrado na família. O antropólogo e historiador Luiz Mott13 analisa a influência do discurso judaico-cristão na formação de um ethos de família que exclui as práticas nãoprocriativas. Neste sentido, oferece um elemento importante para compreendermos a fundamentação religiosa: a quebra da hegemonia. Luiz Mott (2001) tenta reconstruir este medo a partir de vários exemplos históricos, que envolvem a quebra de continuidade do modelo de família tradicional judaico-cristão:

Também no Novo Mundo, como sucedeu na Idade Média, o amor homossexual foi duramente reprimido por constituir deletéria ameaça à estabilidade da família tradicional, na medida em que minava perigosamente a autoridade patriarcal no tocante ao controle das estratégias de aproximação dos sexos e a constituição de novas unidades familiares. Na América portuguesa, assim como na Espanhola, a endogamia das famílias de origem européia foi a estratégia oficial, abençoada pela Igreja, instaurada a fim de evitar que "cristãos-novos" e "gente de sangue impuro" se unissem e infectassem as "famílias limpas". A endogamia da oligarquia colonial, evitando a mistura de seus descendentes com a raia miúda e sobretudo com a gentalha não-branca, tornou-se uma obsessão das elites fundiárias, optando muitas famílias, às vezes, pelo enclausuramento forçado de suas filhas donzelas, evitando assim uniões com indivíduos considerados de condição social ou racial inferior. Os famigerados processos de "qualificação de pureza de sangue", indispensáveis para admissão na clericatura e nas altas funções governamentais, visavam exatamente manter na elite tão-somente os cristãosvelhos (p.52).

Em pleno século XXI, portanto, é possível perceber que certos setores ainda tem dificuldade em conceber a família para além da ótica heterossexista. Reifica-se o estágio jurídico corrente como forma de preservação legítima. Mais adiante, ao discutir o pensamento kantiano, traremos uma resposta mais estruturada a esta visão que se pretende hegemônica.

b) Ponto de vista 2 O presidente nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, o advogado Rodrigo da Cunha Pereira, publicou, no começo de 2012, a obra intitulada "Princípios Fundamentais Norteadores do Direito de Família", indispensável para compreender a fundamentação jurídica contemporânea que se pode utilizar para decidir acerca dos problemas reais envolvendo o Direito de Família.

O autor utiliza-se de uma visão que privilegia a família plural, se baseando em uma série de acontecimentos pontilhados, os quais formam o grande mosaico da configuração familiar atual: a família deixou de ser essencialmente um núcleo econômico e de reprodução; os filhos estarão melhores com pais juntos ou separados; a Lei do Divórcio acentuou a liberdade dos sujeitos; diversos tipos de família (entre as quais as formadas por casais homoafetivos) são uma realidade; deve-se compreender o indivíduo como um sujeito de desejo (influência da psicanálise) etc. Ou seja, destaca os movimentos da própria realidade como precedentes a um estudo sistemático dos princípios jurídicos.

Tal como Bobbio14 aponta, Pereira (2012) sustenta a passagem do dever para o direito, sendo que esta relação ocorre quando também se desloca o ponto de vista: da sociedade ao indivíduo. Há, portanto, uma exigência dos cidadãos por terem seus direitos atendidos, caracterizando exigências dos chamados direitos naturais ou morais, construídos não a partir de uma sequência lógico-racional, mas historicamente.

Deste modo, Pereira ressalta que a compreensão e aplicação de uma principiologia no Direito contemporâneo pressupõe a quebra e mudança de uma concepção jurídica preponderantemente positivista, uma vez que muitos dos casos reais, tomando sempre como análise as diligências no Brasil, ainda não estão positivados na norma jurídica, sendo resolvidos pelos princípios, permitido até mesmo pela própria Lei de introdução às Normas do Direito Brasileiro (art.4º) e pelo Código Processual Civil (art. 126), que preconizam o uso dos princípios na ausência de Lei regulamentadora.

No caso das relações homoafetivas, o princípio da dignidade da pessoa humana é retomado como forte argumento para legitimidade de tais relações. Todavia, pretende-se aqui chamar a atenção para um ponto citado por Pereira que merece um destaque maior: o autor pretende separar, de um lado, a objetividade de certas interpretações e, de outro, a "confusão" dos elementos subjetivos, e este percurso só pode ser percorrido se houver o resgate aos princípios fundamentais. Pereira, portanto, chama a atenção para a subjetividade no Direito frente à objetividade da realidade. Esse posicionamento dicotômico o leva a uma distinção entre ética e moral: neste sentido, põe em evidência a valorização do sujeito ético, o qual deve preponderar sobre valores morais. Por exemplo, e aqui é o mais importante: nos casos em que casais homossexuais tentam o reconhecimento como entes familiares ou mesmo a adoção, julgar a homossexualidade estaria no campo da moral, ao passo que compreender a questão no campo ético é tentar certo grau de imparcialidade. Pode-se mesmo afirmar que o autor toma a moral como elemento centrado no indivíduo, e a ética como elemento privilegiado para compreender o bem social (não recai em relativismos). A ética seria, então, um campo de conhecimento que se permite à avaliação e à reflexão, daí a importância (e um acerto apelo), para o autor, em se retomar o estudo da ética. Ao passo que a moral levaria inevitavelmente a posicionamentos individuais.

Neste caso, adotar uma postura contrária ao reconhecimento da homossexualidade seria completamente moral, mas não seria ético, no entanto, os operadores do Direito devem se portar a partir de princípios éticos.

Este tipo de argumento, embora favorável à homossexualidade, revela um perigo iminente de justificar a homossexualidade pelas garantias previdenciárias, materiais ou quaisquer outras garantias que não sejam a própria homossexualidade tomada por si. Nessa abordagem, privilegia-se o status social e a insituição família, mesmo que seja formada por casais de gays ou lésbicas.

c) Ponto de vista 3 A argumentação desenvolvida neste trabalho relaciona-se fortemente a este ponto, desenvolvendo um direcionamento crítico. Toma-se como ponto analítico o artigo de Roger Raupp Rios sobre as uniões homossexuais e a decisão do Supremo Tribunal Federal15.

Rios reconhece o avanço da questão, explicitando os fundamentos dos Direitos Humanos e os princípios normalmente evocados na questão: privacidade, liberdade, igualdade, dignidade humana, nãodiscriminação, pluralismo e diversidade. Entretanto, Rios aponta o seguinte questionamento: "o reconhecimento civil dessas uniões não seria uma oportunidade de acrescentar novos ingredientes ao direito de família, ao invés de uma mera repetição dos modos tradicionais de pensar e de viver casamento e união estável?" (RIOS, 2011).

Rios está preocupado com uma certa "naturalização do modelo de família heterossexual", expressa inclusive pelo termo "homoafetividade", o qual "propõe a aceitação da homossexualidade sem qualquer questionamento mais intenso dos padrões sexuais hegemônicos" (p.109). Isto é, há uma assimilação de práticas afetivas semelhantes aos padrões heterossexistas que acabam por diluir o vigor e o discurso das relações sexuais heterodoxas.

Neste sentido, o autor utiliza o termo "assimilacionismo familista", como se o grupo mais fraco na relação assimilasse os padrões do grupo mais forte como estratégia para o reconhecimento, isto é, "a homossexualidade é aceita desde que nada acrescente ou questione aos padrões heterossexuais hegemônicos, desde que anule qualquer pretensão de originalidade, transformação ou subversão do padrão heteronormativo" (p.108). Seria, portanto, salutar se questionar porque o reconhecimento de direitos avança mais na questão do direito de família, quando se sabe que há uma série de demandas que, inclusive, expõe mais abertamente a sexualidade, como os direitos trânsgeneros e o reconhecimento da criminalização da homofobia (este último afetando e punindo mais diretamente os discursos hegemônicos homofóbicos).

Esta crítica se compartilha a uma série de pesquisadores e militantes, o próprio Foucualt já chamava a atenção para o perigo das normatizações que ele enxergava a partir das demandas do movimento gay.

De fato, este ponto de vista, para o movimento LGBT, parece ser o mais provocador, a julgar pelas palavras da socióloga Maria Betânia Ávila:

O legal deve ser compreendido como um instrumento para transformação que, em um determinado momento, pode ser revolucionário. Mas nós temos que querer isso como uma possibilidade cambiante, e não como uma determinação. O que quero dizer com isso? Que não podemos tratar essa possibilidade nos moldes da tradição conservadora que instituiu a legalidade que prevalece atualmente; isto é, não podemos propor uma legalidade como uma forma de nos enquadrarmos nessa lógica. A busca pela legalidade, sobretudo no caso da união civil, deve ser de fato um processo de trasnformação da lógica do legal que prevalece até agora, e não um enquadramento nosso a essa lógica dominante16. (ÁVILA, 2005, p.21)

O principal objetivo deste trabalho, portanto, é oferecer pistas para avançar na discussão provocada por esse movimento de tensão entre liberdade, sexualidades e legalidades, que está inserido no debate crítico do movimento LGBT, seja de militantes em geral ou mesmo de proeminetes juristas que defendem e tratam o tema.

 

A ética em Kant e sua relação com a ética das minorias

Ora, até aqui vimos posicionamentos divergentes e até mesmo contrários entre si, os quais se inserem em uma arena política de discussão que só poderia ser viável num Estado democrático pluralista17. Ocorre que, para além de uma defesa do indivíduo ou de princípios, a hipótese defendida neste artigo é que se está diante da defesa de um pluralismo democrático concorrente a uma visão cosmopolita de mundo, tal qual prenunciava Kant. Contemporaneamente, uma série de estudos referentes ao direito de minoria e sua base em identidades plurais, contingentes e precárias vem sendo discutida, em especial a partir da Teoria do Discurso promovida por Chantal Mouffe e Ernest Laclau18.

O Estado democrático pluralista é muito bem descrito por Mouffe, que passa a valorizar a disputa política promovida por discursos aparentemente antagônicos:

Numa relação antagônica entre dois elementos não existe possibilidade de se estabelecer medida comum entre eles: discursos antagônicos representam, assim, a luta entre inimigos. Já em relação ao agonismo, apesar da disputa entre diferentes formações discursivas, existe uma medida comum entre elas, um universal mínimo, que é o reconhecimento da legitimidade da existência do discurso concorrente. Além disso, em termos políticos, na relação agônica, a categoria de inimigo – presente na disputa antagônica – é substituída pela de adversário, uma vez que o espaço comum entre adversários reside justamente na aceitação da disputa política num espaço discursivo democrático pluralista. Não há, portanto, por que se falar em relação antagônica quando estamos diante de um Estado Democrático de Direito cujas regras são inicialmente partilhadas pelos grupos sociais. Aliás, esse é o projeto político defendido por Chantal Mouffe: a transformação de relações antagônicas em agônicas e a superação da relação entre inimigos (antagonismo) para uma relação entre adversários (agonismo), já que as relações de poder são inerentes e constituidoras da política. (MENDONÇA, 2003, p.140-141, grifo meu)

Em termos práticos, o reconhecimento de casais homossexuais como ente familiar, revela que:

1) Este grupo pode muito bem ser inserido a partir de um contexto assimilacionista ou com base em princípios universais, como descrito na análise dos juristas;

2) O conceito de família, neste sentido, preserva-se, porém, é ampliado: abre-se a disputa para inserir direitos de homossexuais, e não restringir direitos de heterossexuais;

3) Tal reconhecimento se dá num Estado Democrático de Direito Pluralista;

4) O sentimento plural coaduna-se com um sentimento cosmopolita, uma vez que este se difere de um mero sentimento Universal (como nos princípios);

5) Logo, ao tomar como base o pensamento Kantiano, dá-se um salto qualitativo ao dispositivo da sexualidade.

É neste sentido que podemos resgatar o Kant tanto de Ideia de Uma história de um ponto de vista cosmopolita quanto de Fundamentação da Metafísica dos Costumes, isto por diversos motivos, sendo os mais relevantes o fato de que a ótica cosmopolita preserva as particularidades do indivíduo (em especial a noção clássica de liberdade e igualdade) a partir de uma perspectiva jurídica, o que vai além do alcance impresso pelo princípio da dignidade da pessoa humana: trata-se de um ponto na história que apenas nos dá pista (não é, de todo, conclusivo), tal qual o entendimento de Bobbio sobre a Declaração Universal dos Direitos dos Homens; no caso específico dos direitos homoafetivos, assenta-se na premissa de que o reconhecimento como ente familiar de casais homossexuais representa um importante progresso para se pensar a liberdade sexual de modo geral.

Kant formula seu pensamento a partir de uma perspectiva de racionalidade moderna, sendo de principal importância seu fim teleológico. Esse entendimento é proveniente das duas primeiras proposições desenvolvidas na Idéia de uma história Universal, quais sejam: a) todas as disposições naturais de uma criatura estão destinadas a um dia se desenvolver completamente e conforme um fim, e b) no homem (única criatura racional sobre a Terra) aquelas disposições naturais que estão voltadas para o uso de sua razão devem desenvolver-se completamente apenas na espécie e não no indivíduo.

Essas proposições mostram que o filósofo está preocupado com uma perspectiva de longo prazo, em que o casual e contingente, no máximo, pode servir de indicativos para um futuro longo. Isso quer dizer que seus questionamentos morais estão longe de serem conceitos fechados e acabados, tal como preconiza Mouffe em relação à política de identidade, para quem o indivíduo se constitui de forma precária e contingente.

O que vale notar aqui é o fato de Kant abstrair a moral para a espécie humana, ao passo que Mouffe, evidentemente, fala de um sujeito político real. Parecem discursos deslocados, mas a aproximação pode ser feita se levarmos em conta alguns pressupostos da Teoria de Mouffe. Segundo Mendonça (2009), tais são as características da Teoria do Discurso, em relação às disputas políticas contemporâneas sob a ótica dos grupos minoritários, elaboradas por Mouffe:

- o social é discursivamente significado;

- a teoria do discurso é uma teoria das diferenças;

- toda construção discursiva é contingente e precária;

- toda constituição discursiva é antagônica;

- o discurso é efeito, ou resultado, de uma prática articulatória;

- por fim, a teoria do discurso é uma teoria da hegemonia.

Percebe-se semelhança com a quarta preposição de Kant: "o meio de que a natureza se serve para realizar o desenvolvimento de todas as suas disposições é o antagonismo delas na sociedade, na medida em que ele se torna ao fim a causa de uma ordem regulada por leis desta sociedade". Isto é, do próprio antagonismo inerente à natureza humana, Kant faz surgir a necessidade de leis, as quais são eminentemente sociais. Esse jogo de antagonismos, na visão filosófica de Kant, o fez cunhar o termo "insaciável sociabilidade", isto é, forças atrativas e repulsivas, o jogo do isolar-se e associar-se. Kant, assim, atribui ao direito a perspectiva de equilíbrio entre tais forças e, diga-se, para ele, era um desafio incomensurável. A partir deste ponto, Kant centrará em desenvolver o seu pensamento na relação entre Estados e não mais a partir de uma natureza humana, desenvolvendo a ideia de um sentimento cosmopolita, isto é, a importância da manutenção do todo, preservando a faculdade racional e a liberdade individual.

É este o cerne essencial que é preciso resgatar: a importância da preservação do todo é intrínseca a preservação da moral do indivíduo. J. S. Mill, sob uma ótica liberal, já chamava a atenção para o perigo da democracia da maioria esmagar o interesse da minoria em nome da representação. Por sua vez, o que Kant traz é um elemento agregador interessante, pois o todo não se dissocia das suas partes e do dever moral desejado pelo homem, como o fim absoluto de todas suas aspirações. Quando Kant formula a questão, "o que devo fazer?" ele fundamenta o conceito da moral relacionado a um valor de vontade humana autônoma, ora, uma ética do indivíduo responsável pela humanidade.

Em outras palavras, o filósofo pretendia preservar a autonomia do sujeito frente a um mundo de disputas (a tensão entre isolar-se e associar-se). Essa construção trazia ao campo moral e ao Direito novas amplitudes, uma vez que, para o sujeito político, o exercício da cidadania carrega o peso de sua consciência: é um homem moral e social, em essência.

Como Kant se volta para o exercício da racionalidade, segundo ele, as leis não podem ser extraídas da experiência, devem ser alcançadas a partir de um exercício racional, isto é, a priori. Pode parecer abstrato (e verdadeiramente o é), mas é o cerne da filosofia kantiana, e o que está sendo resgatado é justamente o corolário deste seu pensamento: sendo o homem um ser racional, ele deve ser visto como um fim em si mesmo, dotado de valor absoluto, isto é, dotado de dignidade. Segundo Bobbio (2004), a partir daí compreendemos melhor as duas máximas kantianas: a primeira afirma que nosso comportamento deve tanger a uma ação que se transfigure em lei universal que vai guiar o comportamento de todos; a segunda máxima diz que apenas isso não basta, porquanto seja necessário considerar o homem com uma finalidade em si mesma e não apenas um instrumento para nossas vontades.

A família, portanto, deixa de ter uma finalidade, abrigando indivíduos que estão longe de representar o cerne procriativo. A hegemonia cristã, portanto, com o ideal de família como meio, sofre um golpe, mesmo que valores como monogamia e família nuclear ainda apareçam. Mas vale reiterar: quando afirmamos que a família deve ter um sentido apenas reprodutivo, estamos tomando o indivíduo como um meio, e não como fim em si. Aos poucos se abre a possibilidade da homossexualidade e de sua autonomia. Isto é apenas o começo.

Temos a plena consciência que, mesmo quando determinadas configurações familiares sejam arranjadas de forma a apenas garantir o fim reprodutivo, o fato do conceito de família estender-se a casais homossexuais em nada excluiria tal arranjo. É neste sentido que é preciso distinguir o discurso proferido pelas minorias como se fosse algo de anulação hegemônica: em tese, os casais heterossexuais em nada seriam afetados, a não ser que seja considerada uma pretensa lógica de hegemonia e de exclusão baseada no universalismo.

Isso quer dizer que o outro é posto a todo instante nesta relação. A defesa de uma nova ordem jurídica não é apenas a defesa de seus direitos, mas também uma projeção em direção ao outro, cuja construção mais exemplar é o "Princípio da Dignidade Humana". Neste caso, a homossexualidade não aparece mais como discurso antagônico, mas agônico (para usar as definições de Mouffe), isto é, se inscrevermos a homossexualidade como qualquer outra relação, como qualquer outra família, não se está reivindicando o desprezo pelo até então hegemônico, mas a extensão dessa mesma dignidade a um outro diferente. Não há incompatibilidade. Como bem afirma Bobbio ao discutir a tolerância:

Uma coisa é o problema da tolerância de crenças e opiniões diversas, que implica um discurso sobre a verdade e a compatibilidade teórica ou prática de verdades até mesmo contrapostas; outra é o problema da tolerância em face de quem é diverso por motivos físicos ou sociais, um problema que põe em primeiro plano a questão do preconceito e da consequente discriminação (BOBBIO, 2004, p.186)

O pensamento mais radical e de certos setores do movimento corroboram para a ênfase na sexualidade como movimento transgressor, como se houvesse discrepância de valores. Mas aqui voltamos ao início da nossa discussão, já com os elementos da filosofia kantiana: o diverso, a natureza humana singular, pode ser preservada, pois como vimos a lógica cosmopolita é aquela que preserva o todo não no indivíduo, mas na espécie, sendo que o elemento moral na filosofia Kantiana nos fornece a pista para preservar a liberdade e a autonomia do indivíduo (e por consequência sua dignidade).

Achar que a extensão dos Direitos de Família a casais homossexuais é um passo para ruir o alicerce moral da sociedade (no argumento conservador), ou que este passo seria um retrocesso para as demandas do movimento LGBT (no argumento mais radical da militância), é não perceber que tal fato se insere em uma perspectiva de futuro, a qual Kant já se referia: de forma progressiva, se vai construindo a liberdade e tecendo as noções de autonomia por meio do direito, sendo que o fim último da espécie humana é a verdadeira instituição do direito cosmopolita, cuja violação não apenas seria sentida em todos os países, mas também na consciência de todos os indivíduos. É pensar o plural e inseri-lo em uma nova moral: quem sabe uma moral que acampe de forma menos problemática a questão da diversidade, para além da família.

 

Conclusões

A grande chave para entendermos a argumentação aqui apresentada, de que o reconhecimento da união estável para casais do mesmo sexo representa um progresso para a sexualidade de um modo geral, já que a perspectiva é de uma moral a longo prazo, de aperfeiçoamentos, onde o direito não é o fim, mas apenas o meio pelo qual vão se construindo as vontades humanas.

O debate atual gira em torno de compreendermos a tensão entre diversidade e hegemonia. Como neste trabalho a ideia foi apresentar o problema e resgatar o pensamento kantiano, a não conceituação de ambos os termos pode ter provocado uma justa lacuna. Contudo, é possível perceber que a visão cosmopolita de Kant, ao centrar na projeção da espécie, nos garante um passo além das justificativas centradas no imediatismo do sujeito, o que é suficiente para os propósitos deste trabalho.

Ora, a característica inerente ao indivíduo, corretamente expressa em sua orientação sexual, é apenas um acidente numa série de direitos a serem reivindicados, como a própria constituição de uma família, como a livre expressão, como a manifestação livre de gênero e tantos outros. Kant, portanto, nos fornece elementos chaves para não subjetivarmos e delimitarmos a busca por direitos, mesmo quando essa delimitação é historicamente necessária e, portanto, apenas contingente.

Esta conquista do movimento, se olhada num percurso histórico de longo prazo, deve ser comemorada, e tão somente por ser pontual e precária. Não é, nem pode ser, a construção final dos seus agentes. Afinal, ainda é preciso preservar a liberdade e a autonomia, princípios caros ao movimento LGBT e de importância incalculável, já que não encerra a possibilidade de novas demandas e de contestação crítica do presente. De fato, ao conformar a homossexualidade ao modelo de família tradicional, corre-se o risco do "assimilacionismo", mas risco altamente altruísta, na medida em que é acompanhado da quebra da hegemonia heterossexista, do prolongamento de direitos e de uma visão holística mais próxima à moral Kantiana. Neste sentido, a autonomia, tão propalada pelos defensores de uma sexualidade libertária, tem um terreno muito mais fértil do que em um ambiente familiar dominado pelo sexismo e pela heterossexualidade compulsória.

 

Referências

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Sobre obre os autores:

Alan Michel Santiago Nina
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ciências Políticas (UFPA)
e graduando do curso de Ciências Econômicas (UFPA).
Formado em Ciências Sociais pela UFPA
e membro do Movimento em
Defesa da Diversidade Sexual - Grupo Orquídeas.
e-mail: alanpotter17@hotmail.com

Carlos Augusto da Silva Souza
Professor do programa de Pós-Graduação em Ciências Políticas (UFPA).
Possui mestrado e doutorado em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do RJ/TEC.
(Conceito CAPES 7), atuando principalmente nos seguintes temas:
democracia, geografia eleitoral, representação territorial, partidos políticos,
competição política e eleições,
desenvolvimento da Amazônia e urbanização na Amazônia.
e-mail: carlossouza@ufpa.br.

Recebido em: 13/04/2012
Aceito para publicação: 17/11/2012

 

 

1.Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132 e Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4277.
2
. Tomo o termo "dispositivo" a partir da ótica de Foucault (1979).
3
. Bobbio (2004).
4
Na obra "Do espírito das Leis" (1973).

5
Ver SIMÕES & FACCHINI (2009)
6
RIOS, Roger Raupp; GOLIN, Célio & LEIVAS, Paulo Gilberto Logo. Homossexualidade e direitos sexuais: reflexões a partir da decisão do STF. Porto Alegre: Sulina, 2011.
7 Foucault (1993)
8 Ver o compêndio "ÁVILA, Maria Betânia; PORTELLA, Ana Paula & FERREIRA, Verônica (org.) Novas legalidades e democratização da vida social: família, sexualidade e aborto. Rio de Janeiro: Garamond, 2005".
9
A Constituição "conforme" o STF. Folha de São Paulo. São Paulo. 20 de maio 2011. HTTP://www1.folha.uol.com.br/fsp/opinião/fz2005201 107.htm, acessado em 20 de junho de 2012.
10 Idem.
11 Idem.
12 Ver "Análise argumentativa dos votos proferidos pelos ministros do Supremo Tribunal Federal no julgamento que estendeu o regime jurídico da união estável às uniões entre pessoas do mesmo sexo", in: RIOS, Roger Raupp; GOLIN, Célio & LEIVAS, Paulo Gilberto Logo. Homossexualidade e direitos sexuais: reflexões a partir da decisão do STF. Porto Alegre: Sulina, 2011
13
Ver "Mott (2001)".
14
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Nova Ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
15
Os autores, Fry (1982) e Perlongher (1987) ilustram as performances de gênero presentes nestas duas categorias, indicando que a presença dos traços de masculinidades estão presentes para que se faça existir esses sujeitos.
16 Ver "ÁVILA, Maria Betânia. Prefácio: Liberdade e Legalidade, uma relação dialética. In: ÁVILA, Maria Betânia; PORTELLA, Ana Paula & FERREIRA, Verônica (org.) Novas legalidades e democratização da vida social: família, sexualidade e aborto. Rio de Janeiro: Garamond, 2005.
17 Ver Mendonça (2009)
18
Idem.