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Revista do NUFEN

versão On-line ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.4 no.2 São Paulo dez. 2012

 

ARTIGO

 

 

Revisão dos aspectos monadológicos da teoria de Carl Rogers à luz da fenomenologia social

 

Review the monadology aspects in Carl Rogers' theory in the light of a social phenomenology

 

 

Paulo Coelho Castelo Branco

Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

 

 


RESUMO

Revisam-se os aspectos monadológicos da teoria de Carl Rogers, com base em uma leitura crítica inspirada pela fenomenologia social de Alfred Schutz. O termo mônada alude à existência de uma subjetividade encerrada em si mesma, distinta do mundo e capaz de representar a realidade em suas convicções. O diálogo entre Rogers e Schutz ocorre pelo fato de ambos abordarem, com desdobramentos provenientes do pragmatismo, os assuntos da consciência, da realidade e do acesso delas via compreensão empática. Evidenciam-se: (1) distintas concepções de consciência, funcional em Rogers e intencional em Schutz; (2) diferentes entendimentos de realidade, constituída de modo intrasubjetivo em Rogers e intersubjetivo em Schutz; (3) díspares modelos de empatia, em Rogers, orientada para a compreensão dos conteúdos da personalidade, em Schutz, direcionada para as estruturas da consciência em interação com o mundo-da-vida. O estudo, finalmente, aponta para o desenvolvimento de uma perspectiva pósrogeriana de abordagem descentrada da pessoa.

Palavras-chave: fenomenologia; Rogers; Schutz; terapia centrada no cliente.


ABSTRACT

This article reviews monadology aspects in Carl Rogers's theory, based on a critical reading about phenomenological sociology by Alfred Schutz. The term monad alludes to the existence of a closed subjectivity itself, distinct from world and able to represent reality in their own convictions. The dialogue between Rogers and Schutz is because both address the issues of consciousness, reality and access them via empathic understanding, with developments from the pragmatism. This study evidences: (1) different conceptions of consciousness, functional in Rogers and intentional in Schutz, (2) different understandings of reality, intra-subjective in Rogers and inter-subjective in Schutz, (3) dissimilar models of empathy, in Rogers focused on understanding the contents of personality, in Schutz directed to the structures of the consciousness in interaction with the lifeworld. The study finally points to develop a post-rogerian perspective of person decentered approach.

Keywords: phenomenology; Rogers; Schutz,; client-centered-therapy.


Resumen

Revisar los aspectos monadológicos de la teoría de Carl Rogers, basada en una lectura critica inspirada en la fenomenología social de Alfred Schutz. La denominación mônada alude a la existencia de una subjetividad cerrada en sí, distinta del mundo y capaz de representar la realidade en sus convicciones. El dialogo entre Rogers y Schutz ocurre porque los dos hablan, , con la dirección de la evolución del pragmatismo, las cuestiones de conciencia, de la realidad y acceder a ellos a través de la comprensión empática. Es evidente: (1) distintos conceptos de conciencia, funcional en Rogers y intencional en Schutz; (2) diferentes compreensiones de realidad; Em Rogers ella es intrasubjetiva, mientras en Schutz es intersubjetiva; (3) distintos modelos de empatía, en Rogers es la comprensión de los contenidos de la personalidad; en Schutz, dirigida a las estructuras de interacción de la conciencia con el mundo de la vida. El estudo, finalmente, apunta para el desarrollo de una perspectiva pos-rogeriana de enfoque descentrado en la persona.

Palabras clave: fenomenología; Rogers; Schutz; terapia centrado en el cliente.


 

 

Introdução

Este trabalho recapitula os principais conceitos da teoria de Carl Rogers, de modo a verificar como ocorre a relação entre consciência e realidade, assim como acontece o acesso dessas instâncias via compreensão empática. Tal relação é analisada mediante a querela de que o pensamento rogeriano é monadológico e que a fenomenologia social de Alfred Schutz proporciona alguns argumentos que permitem repensar isso.

O termo mônada se refere ao pensamento de Gottfried Leibniz e denota a existência de uma substância enclausurada em si própria, distinta do mundo, mas constituidora dele. Nesse pensamento, tal substância é a consciência, a qual possui idiossincrasias próprias que lhe permitem se diferenciar de outras consciências e reduzir as influências exteriores ao seu modo de perceber o mundo. Cada mônada é capaz de representar a realidade nas próprias convicções (Japiassu & Marcondes, 2001). Logo,

As mônadas são fechadas 'sem portas nem janelas', mas podem coexistir segundo uma 'harmonia preestabelecida': (...) cada mônada é um universo do qual está parcial-mente consciente, todas sendo como pontos de vista sobre a mesma paisagem. A combinação de ideias que dá origem ao universo é uma combinação entre uma infinidade de possíveis (p. 116).

Acessar uma consciência (mônada) é adentrar o elemento de todas as coisas, de modo que o universo é constituído por uma conjunção de mônadas distintas umas das outras, cada qual representativa dele (Japiassu & Marcondes, 2001).

No Brasil, Virgínia Moreira (2007), pioneiramente, mencionou o caráter monadológico de Rogers, com suporte em uma revisão das noções de pessoa e indivíduo na cultura ocidental. A autora sublinha a discussão segundo a qual a teoria rogeriana é limitada por ser individualizante e dicotômica, por questões históricas ao capitalismo. Com a finalidade de superar essa limitação, a autora recorre à Fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty para propor uma perspectiva de psicoterapia humanista descentrada da pessoa.

Concorda-se com o pensamento de Moreira (2007), no entanto, propõe-se outra pauta de debate sobre o caráter monadológico de Rogers, com o apoio da fenomenologia social de Schutz e do pragmatismo de William James. Infere-se a noção de que, por uma questão epistemológica de vinculação ao pragmatismo, vernáculos ao Zeitgeist psicológico estadunidense (Castelo Branco, 2011), a elaboração teórica de Rogers é monadológica, pois entende a consciência como uma função do organismo, que alude a uma subjetividade encarcerada. Disso, repercute a concepção de uma realidade igualmente monadológica, que implica uma abordagem a acessar empaticamente os conteúdos da experiência de um indivíduo1, de modo a compreender sua percepção de si (self) e de realidade, para intervir com o intento de modificá-las (Rogers, 1954/1969).

O intuito de utilizar um pensador vinculado à fenomenologia social é alvitrar uma nova pauta de entendimento para a teoria de Rogers quanto à relação da consciência com a realidade. Isso ocorre pelos seguintes motivos.

(1) A discussão epistemológica e ontológica sobre o acesso da consciência e da realidade é de ampla produção na Filosofia. Especificamente, a Fenomenologia entende que o conhecimento de mundo acontece por meios perceptivos, os quais admitem a existência simultânea dos mundos privados e do mundo social, que se comunicam e interconstituem. Há uma vida intersubjetiva em que os fenômenos emergem como experiências possíveis e introduzem uma percepção de realidade compartilhada e vivida na pluralidade de mundos privados, onde o uno e o múltiplo coabitam (Ales Bello, 2006).

(2) Fundamentados e inspirados por esse legado, alguns pensadores entenderam que o método fenomenológico constitui rigor de acesso às vivências mencionadas, e que cada tipo de redução fenomenológica adentra um polo de conhecimento do mundo. Por exemplo, Edith Stein e Merleau-Ponty (Ales Bello, 2006), filósofos de formação, acessam fenomenologicamente a relação sujeitomundo com base no polo da subjetividade. Por outra via, Schutz (1970/2012), Peter Berger e Thomas Luckmann (1966/2004), sociólogos de formação, buscam compreender a aludida relação com esteio em descrições fenomenológicas do que acontece no polo do mundo social em seu cotidiano. Tais aportes servem para tornar mais complexo o entendimento das psicologias e psicoterapias e possibilitam novas pautas de entendimento sobre o legado de Rogers.

(3) Filiadas a uma leitura fenomenológica de Rogers, apontam-se diversas produções nacionais (Moreira, 2007, 2009; Bezerra, 2007; Vieira & Freire, 2006; Amatuzzi & Carpes, 2011; Miranda & Freire, 2012) que utilizaram os referenciais de Edmund Husserl, Maurice Merleau-Ponty, Martin Heidegger, Emanuel Lévinas e Hans- Georg Gadamer. Todos esses trabalhos repensaram alguns aspectos teóricos e práticos de Rogers, com base em aportes advindos de fundamentações externas ao psicólogo. Entende-se que essas produções configuram-se como vertentes epistemológicas metacientíficas ao pensamento de Rogers, pois elas identificam problemas de ordem teórica ao psicólogo e buscam uma resolução disso fora das cercanias do conhecimento dele (Castelo Branco & Barrocas, 2012).

(4) No Brasil, as citadas produções culminam numa abordagem centrada na pessoa pós-rogeriana, enquadrada numa linha fenomenológica e existencial (Moreira, 2010). Trabalhos que se utilizam do referencial sociológico da Fenomenologia para repensar Rogers continuam, no entanto, inéditos. Infere-se que isso ocorra em decorrência da escassez de traduções e comentários da obra de Schutz no Brasil, bem como da pouca divulgação dessa perspectiva nos cursos de Psicologia.

Apresentados os motivos para a elaboração deste estudo, frisa-se que ele aborda uma investigação metacientífica sobre a questão da consciência, da realidade e da empatia no pensamento de Rogers, dado que esse autor não menciona em nenhuma de suas obras qualquer incursão ao pensamento sociofenomenológico. Ambos os pensamentos, contudo, possuem em comum uma fonte de inspiração no entendimento que James teceu sobre a questão da consciência e do estabelecimento da realidade. O pragmatismo jamesiano é, então, um ponto de mediação fundamental para o diálogo entre Rogers e Schutz.

Destarte, procede-se da seguinte lógica. Recapitula-se a teoria de Rogers com o apoio da leitura direta das principais obras que abordaram os assuntos da consciência, da realidade e do acesso dessas instâncias pelo alicerce da empatia. Tal leitura demonstra, também, os aspectos monadológicos da referida teoria. Em seguida, mostra-se sucintamente a fenomenologia social de Schutz. Finalmente, confrontam-se, por intermédio de James, os argumentos rogerianos com os Schutzianos, para indicar alguns pontos de entendimento além do que o humanista situou como consciência, realidade e empatia.

 

Recapitulação da teoria de Rogers: aspectos monadológicos

Os fundamentos rogerianos se encontram em quatro teorias compreendidas na terapia centrada no cliente (TCC). São elas as teorias da personalidade e do comportamento, da psicoterapia, do funcionamento pleno e das relações humanas (Rogers, 1951/1992, 1959/1977a, 1961/1997). Após a elaboração desses fundamentos, na abordagem centrada na pessoa (ACP), Rogers (1977b, 1977/2001, 1983) realizou algumas atualizações teóricas. A teoria da personalidade e do comportamento, a teoria da psicoterapia e as mencionadas atualizações constituem o foco de reflexão deste artigo.

No período de desenvolvimento das teorias aludidas, que compreende os anos de 1945 a 1964, Rogers exerceu atividades acadêmicas na Universidade de Chicago, uma importante instituição estadunidense cujo Zeitgeist era funcionalista e pragmatista, em razão das fundações de John Dewey, James Angell e Harvey Carr (Castelo Branco, 2011). Foi no período aludido que Rogers desenvolveu a TCC e chancelou, acadêmica e politicamente, perante a Associação Americana de Psicologia, a possibilidade do exercício da psicoterapia ao psicólogo. Em razão de tais circunstâncias apresenta-se a teoria de Rogers.

A noção basilar da teoria rogeriana é a de organismo (Rogers, 1951/1992). Por este o indivíduo relaciona-se com o mundo e elabora uma experiência. O organismo é a totalidade de vivências (movimentos viscerais, sensações, emoções e percepções) relacionadas a um determinado ambiente. Nessa interação, existem impulsos básicos e inerentes ao organismo. Eis a tendência à realização, uma força vital que impulsiona o organismo a realizar suas potencialidades, mantê-las em homeostasia e ampliá-las (Rogers, 1951/1992).

Denota a ideia de que o organismo possui alento próprio para se estabelecer e desenvolver-se em relação ao ambiente em que está inserido. Nessa autorrealização, ele pode atingir um estado de equilíbrio consigo e com o ambiente, de modo a manter um funcionamento que lhe é satisfatório. Tão logo, entretanto, atinge esse estado homeostático de preservação, o organismo busca mais tensão, de maneira que ele pode transcender a si em suas limitações e acomodações, bem como pode fazer o mesmo com o ambiente.

Nesse aspecto, Rogers (1951/1992) concebe que a noção de que o organismo não é uma entidade submissa às determinações ambientais e intrínsecas a ele próprio, pois tende à autonomia e à unidade em relação a si e ao ambiente. Eis que o organismo pode ser entendido como uma Gestalt manifesta em uma totalidade.

No organismo reina a experiência, que é

(...) tudo que se passa no organismo em qualquer momento e que está potencialmente disponível à consciência; em outras palavras, tudo o que é suscetível de ser apreendido pela consciência. A noção de experiência engloba, pois, tanto os acontecimentos de que o indivíduo é consciente quanto os fenômenos de que é inconsciente (Rogers, 1959/1977a, p. 161).

Quando o organismo vivencia seus estímulos internos (sensoriais e viscerais), ocorre um ato de experimentar, todavia esses não são, só eles, acontecimentos passiveis de se sentir, pois emoções ou memórias também acometem o organismo. Quando esses eventos aparecem como dados imediatos da vivência do organismo, surge a consciência como função simbolizadora do que é vivenciado (Rogers, 1951/1992).

Conforme ensina Rogers (1959/1977a), a simbolização do vivido varia em intensidade, desde a percepção mais vaga de um objeto até a mais concentrada e atenta. As formas vagas de acontecimentos que perpassam as vivências do organismo são entendidas, gestalticamente, como fundo (inconsciente), enquanto as formas perceptíveis são figuras (conscientes). O que está submetido ao fundo potencialmente pode se tornar figura.

Rogers (1959/1977a) entende, ainda, o termo percepção como sinônimo de consciência. Esta aparece em detrimento da relação do organismo com objetos (excitantes) internos e externos.

Experiência e consciência relacionam-se e interagem com o ambiente, que inclui outras experiências e a tendência à realização. Nessa totalidade, o organismo reage as suas vivências e ao ambiente, de acordo com o que ele experimenta e percebe. Segundo Rogers (1951/1992, 1959/1977a), essa reação ao que é experimentado e percebido constitui o campo fenomenológico do indivíduo. Assim, a realidade é constituída com base no que o indivíduo experimenta, percebe e reage conforme o seu campo fenomenológico.

Essa concepção teórica demarca uma posição característica do pensamento de Rogers: o personalismo centrado explicitado a seguir.

Rogers (1951/1992) demarca a ideação de que: "Todo indivíduo existe num mundo de experiências em constante mutação, do qual ele é o centro" (p. 549, grifos do autor). Esse indivíduo "(...) reage ao campo da maneira como este é experimentado e percebido. O campo perceptivo é, para o indivíduo, 'realidade'" (p. 551, grifos do autor), de modo que essa reação ao campo fenomenológico funciona como um todo organizado. Nesses pressupostos, assume-se uma posição centralizada no indivíduo em relação ao mundo.

Ora, os aportes teóricos apresentados culminam numa posição monadológica. A realidade é uma reação do indivíduo ao que é percebido e vivido do mundo, de acordo com as experiências, experimentos, consciência, percepção e campo fenomenológico. O comportamento do indivíduo consiste, pois, numa reação ao que é percebido como realidade. Embora Rogers (1951/1992) assuma explicitamente que, por uma questão científica, evita adentrar discussões filosóficas como "O que é realidade?", pondera-se, numa vertente metacientífica a esse autor, que ele recaiu em uma posição monadológica.

A TCC vinculou-se à Psicologia personalista estadunidense, a qual postula a personalidade como o elemento organizador do comportamento e da experiência do indivíduo (Castelo Branco, 2011). Por isso, Rogers (1954/1969) define a mudança da personalidade como objeto de estudo e fator definidor do sucesso psicoterapêutico.

Continuando as definições teóricas expostas, Rogers (1951/1992) entende o eu (self) como um campo fenomenológico em que o indivíduo organiza uma percepção e conceito de si mesmo. O eu (self) constitui encontro entre as demandas internas do organismo e as demandas externas (valores sociais etc.) a ele. Ainda que seja um setor funcional da experiência, o eu (self) não é sinônimo de organismo, pois possui organizações autoconceituais que podem restringir o funcionamento do organismo e deste se diferenciar.

A seguinte citação, embora extensa, fazse necessária para aprofundar a relação do eu (self) com o organismo e, por conseguinte, com a tendencia à realização.

(...) a noção do 'eu' – elemento importante a nossa teoria – não é um 'agente especializado' que funcionaria em conjunção com a tendência atualizante [à realização]. O 'eu' nada faz; representa simplesmente uma expressão de tendência geral do organismo para funcionar de maneira a se preservar e se valorizar (p. 160). Considerando-se que a tendência atualizante [à realização] rege todo o organismo, ela se exprime igualmente no setor da experiência que corresponde à estrutura do 'eu' – estrutura que se desenvolve à medida que o organismo se diferencia. Quando há acordo entre o 'eu' e o 'organismo', isto é, entre a experiência do 'eu' e a experiência do organismo', na sua totalidade, a tendência atualizante [à realização] funciona de maneira relativamente unificada. Ao contrário, se existe conflito entre os dados experienciais relativos ao 'eu' e os relativos ao 'organismo', a tendência à atualização [realização] do organismo pode ser contrária à tendência à atualização do 'eu' (Rogers, 1951/1992, p.161).

Tanto em condições favoráveis quanto inóspitas, o organismo se orienta por buscas autorrealizadoras de metas e reações totais, tanto no contexto fisiológico quanto psicológico (Rogers, 1951/1992). A dimensão do eu (self), contudo, também influi nessa busca.

Quando ocorre uma simbolização coerente da experiência do organismo com o conceito organizado que se tem de si mesmo, o eu (self) torna-se organizado com base na consciência da vivência da experiência organísmica direta. Não obstante existam valores e percepções, introjetados cultural e socialmente, o organismo, com apoio da consciência, consegue simbolizar essas experiências conforme efetivamente experimenta em suas vivências. Essa simbolização acontece no organismo de forma coerente ao eu (self), e, congruentemente, permite uma regulação amparada por essa organização (Rogers, 1951/1992).

Esse tipo de funcionamento implica que organismo e o eu (self) se tornam mais coerentes e espontâneos, favorecendo ao indivíduo aceitar suas atitudes e comportamentos como partes de si, desencadeado, portanto, uma mudança (reorganização) de personalidade e do comportamento (Rogers, 1954/1969).

Quando ocorre, porém, uma tensão entre o que se experimenta e o que o eu (self) elabora em termos de autoconceito, percepção e campo fenomenológico, podem ocorrer simbolizações distorcidas, intercepções ou negações do vivido. Advém, pois, uma autorregulação incongruente com a experiência organísmica direta. Nela não sucede uma simbolização adequada da experiência, pois o eu (self) se baseia em avaliações provenientes de experiências alheias ao organismo (Rogers, 1951/1992).

Rogers (1959/1977a) considera, ainda, que o eu (self) é um estado de fluxo continuo disponível para a consciência. O eu (self) pode ser ideal (quando o indivíduo tem uma percepção e conceito do que ele gostaria de ser) ou real (quando de fato ele vivencia um estado de acordo interno entre o sentido e o simbolizado).

Destarte, quando as simbolizações – mediadas pela consciência – entre a experiência e o eu (self) estão consoantes, de modo que o indivíduo é capaz de examinar e reagir à realidade numa atitude mais apropriada e condizente com os seus atributos pessoais2, incorre-se em um estado de congruência. Quando, todavia, as relações entre experiência e eu (self) são destoantes, incide-se em um estado de incongruência. Esta pode, ainda, acontecer quando o indivíduo funciona mediante outras experiências e constitui um eu (self) não condizente com as próprias percepções e simbolizações.

Rogers (1957/2008, 1959/1977a), em sua teoria da psicoterapia, entende que existem seis condições necessárias e suficientes para desencadear a mudança de personalidade.

(1) Que o psicoterapeuta e cliente estejam em contato. Esta é uma condição mínima de relação em que um indivíduo percebe ou sente a presença do outro.

(2) Que o cliente esteja vivenciando um estado de incongruência, de modo que, de modo perceptível ou subperceptivo, ele sinta que está vulnerável a algo que possa desorganizá-lo psiquicamente. Por exemplo, um estado de angústia em que se sente um mal-estar, mas não se tem a consciência de qual é o objeto disso.

(3) Que o psicoterapeuta esteja congruente, presente e disponível para se relacionar com o cliente.

(4) Que o psicoterapeuta permaneça aberto à experiência de consideração positiva incondicional, que significa uma atitude de apreciação da experiência do outro conforme ela se manifesta no momento clínico. Apreciar é um ato de evitar impor preço (julgamentos) ao que o cliente traz na relação.

(5) Que o psicoterapeuta se esforce para compreender empaticamente o campo fenomenológico do cliente, pois isso constitui a forma como ele vivencia, percebe e reage a uma realidade. A empatia trata-se de "Sentir o mundo privado do cliente como se ele fosse o seu, mas sem perder a qualidade 'como se'" (Rogers, 1957/2008, p. 151).

6) Que o cliente sinta e/ou perceba minimamente que o psicoterapeuta esteja sustentando as condições 3, 4 e 5. Se estas não forem efetivadas, poderá haver falhas no processo psicoterapêutico.

A sistematização teórica de Rogers (1951/1992) objetiva entender como a personalidade se organiza, desorganiza e reorganiza. A teoria da psicoterapia é, portanto, uma operacionalização de como procede à reorganização da personalidade, objetivo da TCC (Rogers, 1954/1969). Assim exposto, aponta-se outra vez o aspecto monadológico do pensamento rogeriano.

Rogers não desconsidera a existência de um mundo exterior à subjetividade do indivíduo, porém deixa claro que esse não é o foco de sua teoria. Alude-se a ideia de que o cumprimento desse desígnio é necessário o psicoterapeuta ter em vista que o cliente possui uma elaboração particular de mundo, que será a sua realidade privada e exporá muito a respeito de sua personalidade e comportamento. Por causa disso, a operacionalização de atitudes que favorecem o acesso de uma subjetividade particularmente vinculada ao campo fenomenológico, à experiência, à consciência e o entendimento perceptual e conceitual que o indivíduo elabora de si.

A noção de empatia descrita anteriormente representa a posição monadológica rogeriana para acessar a centralidade do indivíduo. O psicoterapeuta centrado no cliente busca perceber e compreender o mundo subjetivo do outro, sem se esquecer de que essa vivência pertence ao cliente e não a ele; caso contrário, sucederia uma simpatia.

Entende-se que o vinculo relacional psicoterapeuta-cliente ocorre mediante uma comunicação intrassubjetiva de mônadas, em que se alvitra adentrar empaticamente uma subjetividade enclausurada, com uma fundamentação própria de mundo em que ela é o centro, para aderir aos seus referenciais internos, conferir se o entendimento deles foi acurado e, com suporte nisso, exercer compreensivamente uma série de intervenções. Toda evidência clínica acontece mediante o foro interno do indivíduo, em que há o idealismo de um sujeito absoluto e autossuficiente em sua proeminência de realidade.

No período de 1964 a 1977, após se aposentar da Academia, Rogers se dedica a reflexões sobre aprendizagem, grupos, relações matrimoniais e perspectivas alternativas às ciências do comportamento. Podem ser encontradas muitas reflexões e aplicações da teoria centrada no cliente nesses contextos (Castelo Branco, 2011).

Em consequência desses trabalhos, Rogers (1977/2001) percebe que a sua teoria possui alcance maior do que o contexto clínico. Por não mais aventar um procedimento psicoterapêutico, mas refinar um jeito de abordar a pessoa em diversas situações (grupo, casamento, escola, organizações administrativas, relacionamento inter-raciais e interculturais), Rogers, em 1977, abandona a expressão terapia centrada no cliente (TCC) e passa a utilizar uma nomenclatura mais ampla para o seu trabalho. Eis a abordagem centrada na pessoa (ACP), baseada

(...) na premissa de que o ser humano é basicamente um organismo digno de confiança, capaz de avaliar a situação externa e interna, compreendendo a si mesmo no seu contexto, fazendo escolhas construtivas quanto aos próximos passos na vida e agindo a partir dessas escolhas (...) descobre-se que, com o tempo, as escolhas feitas, as direções seguidas, as ações empreendidas são pessoalmente cada vez mais construtivas e tendem para uma harmonia social mais realística com os outros (Rogers, 1977/2001, p. 16-17).

A citada harmonia social, segundo Rogers (1977/2001), implica uma democracia reconhecida como um estado de amadurecimento psíquico que atenta para os princípios autorreguladores da interioridade dos indivíduos em sua relação com a tendência à realização. Com base nisso, percebe-se o reflexo social do que acontece numa interioridade, pois qualquer ponto de vista político sobre as relações humanas "(...) precisa apoiar-se basicamente na concepção do organismo humano e no que o faz funcionar – a natureza a e motivação desse organismo" (p. 267).

Rogers (1977/2001) postula a ideia de que o organismo é autocontrolado e tende a se desenvolver, via condições propícias à autorrealização, para uma independência em relação aos controles externos. Compreendese, então, que a ACP inaugura uma posição menos personalista em relação à TCC, e mais radical no concernente à compreensão do funcionamento do organismo em sua relação com a sociedade. Esse posicionamento, contudo, não torna a ACP menos monadológica do que a TCC.

Observa-se, também, na ACP uma atualização sobre a gênese da consciência. Fruto da tensão entre o organismo e o ambiente, a consciência emerge como função que visa a eliminar esse estado, seja por via da modificação do ambiente ou por uma alteração do comportamento. A consciência surge como função autorreguladora do organismo para reconhecer e eliminar os fatores que a provocam (Rogers, 1977/2001). Assim, a consciência é uma função epistêmica do organismo, que é mais sábio do que o intelecto, pois boa parte de sua manifestação não é simbolizada, mas dotada de sabedoria em seu funcionamento.

Ainda sob esse ponto de vista, Rogers (1977/2001) concebe a noção de que, assim como a consciência emerge de uma tensão entre o organismo e o ambiente, o mesmo ocorre com o estado de incongruência, fonte de várias desorganizações psíquicas. Segundo o pensamento do autor, pela incongruência, a função da consciência fica impedida de examinar e avaliar as próprias experiências, distorcendo-as e se dissociando delas; esse funcionamento canaliza uma autorregulação para comportamentos não realizadores e destrutivos. Estes não fazem parte da tendência à realização e se configuram como base para diversas patologias psicológicas e sociais.

Não obstante a aludida atualização teórica sobre a consciência, Rogers (1977b) aprofunda sua concepção sobre a realidade. Em referência a James, o criador da ACP reconhece, mais uma vez, a existência de um mundo constituído por múltiplas realidades, ou seja, diferentes tipos de consciência. Esta consciência de vigília, todavia, constituidora da realidade, é apenas um tipo especial de consciência inserida numa rede maior que liga a todos. Conforme Rogers (1977b), essa rede é uma realidade cujo "(...) tempo e espaço desapareceram, um mundo em que não podemos viver mas cujas leis podemos aprender e perceber, e uma realidade que se baseia em nossas percepções internas e não em nossos sentidos, são aspectos comuns a todos eles" (p. 179).

A via de acesso ao conhecimento da mencionada realidade é tácita, pois suas faculdades simbolizadoras da consciência são insuficientes para tal propósito. Essa realidade, concebida como uma teia que liga todos os seres vivos, explica, por exemplo, fenômenos de sincronismo, clarividência, cognições prévias ou simultâneas e comunicações telepáticas (Rogers, 1977b).

Entende-se que a aludida realidade tácita que afeta os seres vivos se aproxima do que Rogers (1983) referiu como tendência formativa, uma orientação evolutiva e direcional presente no universo, perpassando todos os elementos orgânicos (animais), inorgânicos (pedras) e anorgânicos (magnetismo, raios solares etc.), favorecendo maior complexidade e mais inter-relação. Pela tendência formativa, a vida pode se expressar, tecer e criar formas de funcionamentos em uma rede de elementos intrincados.

Nesse raciocínio, Rogers (1983) reconhece que o organismo é guiado pelo fluxo evolutivo das tendências à realização e formativa, e que, sem dúvida, a consciência surge como uma das funções humanas mais desenvolvidas.

Ainda que Rogers (1977b) aceite as bases biológicas da tendência à realização e os baldrames cosmológicos da tendência formativa, predomina em seu pensamento a concepção pragmatista da existência de múltiplas realidades, pois, segundo o autor, A única realidade que me é possível conhecer é a do mundo e universo como eu o percebo e vivencio neste momento.

A única realidade que é possível você conhecer é a do mundo e universo como você o percebe e vivencia deste momento. E a única certeza é a de estas realidades percebidas são diferentes uma da outra. Os 'mundos reais' são tantos quanto às pessoas! (p. 189, grifos do autor).

Percebe-se, nessa citação, que a ACP possui ainda uma concepção monadológica, em que a relação entre subjetividades ocorre de forma intrassubjetiva, pois a comunicação sucede de uma interioridade (mônada) para outra.

Rogers (1977b), portanto, enfatiza uma teleologia para a ACP. Para ele a existência de uma realidade para todos é algo impossível de ser mantido. Todas as vezes que a humanidade funcionou mediante uma única realidade, a exemplo do nazismo de Adolf Hitler, incorreu em aniquilações da espécie. Conforme o autor, o reconhecimento da existência de realidades múltiplas aumenta a consideração da diversidade humana, dado que a aceitação disso incorre numa abertura maior para explorar a alteridade alheia. A base da comunidade advém, então, de um compromisso assumido de cada um para com o outro.

 

A fenomenologia social de Alfred Schutz

A fenomenologia social é uma abordagem fenomenológica da Sociologia, desenvolvida por Alfred Schutz, um pensador austríaco que utilizou a Fenomenologia como método para as Ciências Sociais. A proposta de Schutz (1970/2012) consiste em investigar a intersubjetividade como fonte das relações sociais. Segundo ele, os fundamentos da fenomenologia social residem nos pensamentos de Max Weber e Husserl.

A Sociologia weberiana, por um lado, postula a noção de que a compreensão da ação social deve considerar a existência de um componente subjetivo em sua significação, no entanto Weber não fundamenta o que significa esse componente. A Fenomenologia husserliana, por outro lado, embasa bem a dimensão da experiência subjetiva, mas tem problemas em pensar o mundo social. Weber possibilita subsídios para a Fenomenologia pensar e descrever o mundo social, enquanto Husserl oferece elementos à Sociologia para entender e descrever a dimensão subjetiva. Ambos os pensadores partem da experiência cotidiana no mundo para pensar o humano em seus atos de significação (Schutz, 1970/2012).

No ano de 1939, foragido do regime nazista, Schutz migrou para os EUA. Em Nova Iorque, ele exerceu atividades acadêmicas na New School for Social Research, local onde conheceu o Pragmatismo, via John Dewey, e trabalhou com Peter Berger. Segundo Schutz (1970/2012), todas as experiências estão imersas num mundo social cujas condutas humanas o constituem e são constituídas por ele. Essas condutas são investidas de significados e possuem uma dimensão subjetiva que todo momento é posta em interação com o mundo e com os seus fenômenos (pessoas, objetos, ideias e acontecimentos). Figuram como interesses da fenomenologia social a descrição do modo como os indivíduos agem no cotidiano, a maneira como ocorre a manipulação de fenômenos compartilhados e como incide a significação dos interesses pessoais e orientações sociais.

Destarte, Schutz (1970/2012) explora as ações que acontecem no mundo-da-vida em seus aspectos dinâmicos e ativos. O mundo-da- vida é o lugar onde as relações sociais se sucedem. São qualidades dele já existir antes de nós e servir de cenário para todas as experiências e todos os seus objetos. Nele ocupa-se um ambiente físico e sociocultural, em que se exprime um substrato pessoal vivenciado biograficamente.

A fenomenologia social entende que primeiro é necessário conhecer e descrever os elementos do e no mundo-da-vida que compõem o cotidiano da experiência humana e das relações sociais, para em seguida adentrar a esfera subjetiva desses fenômenos.

Schutz (1970/2012) investiga basicamente a intersubjetividade presente no mundo-da-vida. O autor considera inicialmente que o mundo já é algo existente, organizado e dado para a experiência. A compreensão e a interpretação desse mundo sempre são baseadas num estoque de experiências, transmitidas socioculturalmente. Por isso, a intersubjetividade não constitui um problema, pois os indivíduos de uma sociedade já se mostram em seus corpos e percebem a existência de outros indivíduos, e ambos se relacionam por meio de fenômenos comuns (por exemplo, a linguagem ou religião). Esse quadro é a base para a compreensão das ações humanas e, fenomenologicamente, é fundamental tanto para a Psicologia quanto para a Sociologia.

O mundo-da-vida em seu cotidiano é composto por diversos reinos da experiência, que são domínios de realidade em que os indivíduos interagem com fenômenos. Embora a obra de Schutz (1970/2012) aprofunde diversos domínios, interessam aos propósitos deste artigo as dimensões da consciência, da realidade e da compreensão empática.

Ressalta-se que o legado de Schutz se concentra mais no âmbito sociológico do que psicológico. É possível encontrar aportes desse pensador na obra de Berger e Luckmann (1966/2004), os quais desenvolvem a disciplina Sociologia do Conhecimento, e na teoria dos atos significativos, de Jürgen Habermas (1997), outro docente da New School.

 

Repensamento dos aportes de Rogers à luz da fenomenologia social

Assim como Rogers, Schutz (1970/2012) considera o entendimento jamesiano da consciência como uma função epistêmica do organismo que emerge de uma tensão com o ambiente (James, 1912/1979a). Na análise do sociofenomenólogo, todavia, a consciência é composta por atos intencionais. Essa transição ocorre mediante ao seguinte argumento.

A Psicologia dos EUA, de base funcionalista, roga um rigor científico que busca fundamentações nas Ciências Biológicas e inspiração nas Ciências Sociais. Na perspectiva de Antônio Gomes Penna (2006), essa Psicologia possui a tese de "(...) que qualquer fenômeno de natureza psíquica deveria expressar a simultânea presença de determinantes biológicos e sociais" (p. 26). A Fenomenologia, entretanto, estabelece outra lógica, ao considerar que as dimensões biológicas e sociais, sob o esteio da redução fenomenológica, possuem elementos de ordem psíquica (Penna, 2006). A atitude fenomenológica retira os mencionados determinantes de uma atitude natural, a qual pondera que as coisas existem por si, independentes da consciência, e passa a concebê-las como fenômenos do mundo-davida. Esses fenômenos aparecem para a consciência, que é intencional em seus atos, e não é funcional a uma tensão do organismo com o ambiente.

Eis por que a fenomenologia social de Schutz (1970/2012) aborda os fenômenos biológicos e sociais sobre outro viés, que reduz fenomenologicamente essas influências, de modo a apreender suas relações essenciais com o psiquismo e com o mundo-da-vida.

James (1890/1979b) reconhece que a consciência, quando surge, parece lidar com objetos externos e independentes dela. Rogers (1977/2001) reconhece essa posição e concentra seus estudos na capacidade de o organismo relacionar-se com o mundo, pois entende que a consciência, ainda que seja uma função evoluída, advém da mesma fonte das incongruências. Schutz (1970/2012) também reconhece o pensamento jamesiano, mas o compreende como uma atitude natural que se manifesta cotidianamente no mundo e constitui uma realidade em comum, que merece ser investigada.

Schutz (1970/2012) concorda com a noção de que a consciência serve como operação de reconhecimento e interação com o mundo. A consciência é entendida, no entanto, como ato de significação dos fenômenos do mundo-da-vida.

A consciência é a manifestação própria da intersubjetividade, pois contém um polo intencional próprio do sujeito e possui outro polo intencionado adequado aos fenômenos percebidos e experienciados por esse sujeito e outros indivíduos. Ressalta-se que ambos os polos possuem elementos do mundo-da-vida e relacionam-se com ele/nele. A consciência, portanto, não está enclausurada em um organismo, pois ela é uma conjunção entre as manifestações intencionais dos atos corpóreos (sensações, instintos e respostas motoras), psíquicos (reações sentimentais) e espirituais (faculdades de reflexões, avaliações, decisões e controle) do indivíduo (Ales Bello, 2006). Este está em constante interação com as manifestações dos fenômenos circundantes no mundo-da-vida, que igualmente são dotados de significados e percepções compartilhadas (Schutz, 1970/2012).

Em outras palavras, a consciência não pertence, exclusivamente, nem ao polo individual (subjetivo), nem ao polo do mundo (objetivo). Ela é uma conjuntura deles, e só pode ser reconhecida pelos seus atos de apropriação e doação de significados. Todos os humanos possuem estruturas de consciência (atos corpóreos, psíquicos e espirituais) que são universais, ou seja, são comuns aos indivíduos em seus modos de ativação e são compartilhados por intermédio dos elementos do mundo-da-vida. Ocorre, no entanto, um caráter singular a cada experiência, pois os conteúdos do que foi intencionado e significado pela consciência possuem componentes sócio-históricos e culturais.

Rogers e Schutz buscam reduzir as determinações biológicas e sociais ao indivíduo. Rogers (1951/1992, 1977/2001), no entanto, reduz as aludidas determinações à revelia de um organismo e de uma personalidade que é perpassada pelas esferas das tendências à realização e formativa, e por elas pode, ou não, se tornar autônoma e autorregulada ao funcionamento próprio. Adotando a lógica schutziana, entende-se que as tendências mencionadas são fenômenos do mundo-da-vida, pois, ainda que elas sejam concebidas biologica e cosmologicamente como naturais, ambas possuem componentes subjetivos ao perpassar a dimensão do humano.

Sobre a posição da realidade, Schutz e Rogers concordam com o pensamento de James sobre a existência de um mundo constituído por múltiplas realidades. James (1902/1995) concebe a realidade como um "(...) sentimento de presença objetiva, uma percepção do que podemos chamar 'alguma coisa ali', mais profunda e mais geral do que qualquer um dos 'sentidos' especiais e particulares pelos quais a psicologia atual supõe que as realidades existentes são originalmente reveladas" (p. 47).

A realidade existe como fato composto por ideias abstratas que formam um manancial de todas as possibilidades conhecidas. O Filósofo pragmatista exprime que essa realidade só pode ser apreendida como uma realidade exterior quando duas ou mais consciências expressam um pensamento sobre o mesmo objeto. Existem, então, duas ordens de realidade (James, 1890/1979b): a inferior, possuidora de múltiplas realidades que variam de acordo com a pluralidade de consciências – há uma realidade para cada consciência; e a superior, em que as diversas consciências se relacionam com um só objeto percebido e pensado – várias consciências produzem uma realidade compartilhada. Ambas as realidades coexistem e interagem numa teia complexa de relações sociais.

Schutz (1970/2012) reconhece que James foi o primeiro a descrever as várias ordens da realidade vividas pelo homem. Conforme o sociofenomenólogo, cada experiência proporciona um horizonte de mundo, bem como o mundo-da-vida provém de uma vasta possibilidade de experiências. No alcance da consciência há objetos que podem ser manipulados e outros não manipuláveis. No mundo social, experimentase uma transcendência de sentidos, experienciados individual e coletivamente.

Por exemplo, o sentido de honestidade é um valor transcendente ao eu e ao outro eu (tu). Esse sentido pode não pertencer a nenhum dos dois, mas é um ponto onde cada indivíduo pode estabelecer uma relação de confiança com o outro. O sentido de honestidade transpõe a individualidade e serve como horizonte para múltiplas relações. Os conteúdos que significam a honestidade variam entre as vivências pessoais e os grupos sociais, mas há um sentido geral, disponível e circundante no mundo-da-vida, que faz os indivíduos reconhecerem e compartilharem um sentido de honestidade. O sentido social do que é honesto permite indivíduos se conectarem a esse valor, reconhecê-lo e se posicionarem diante dele. As relações sociais possibilitam a comunicação e o exercício desse valor.

Nesse aporte, Schutz (1970/2012) entende que os sentidos circulando no mundo-da-vida criam referências "apresentacionais" para ordens simbólicas de realidades. Deste modo, o tecido do mundoda- vida serve de apoio para diversas realidades, as quais se relacionarão distintamente com o mesmo fenômeno. Os conhecimentos popular, filosófico, religioso e científico, por exemplo, são produções culturais que abordam o mesmo fenômeno em perspectivas diferentes.

Schutz concorda com o entendimento de James de que cada realidade é verdadeira conforme experienciada, e Rogers (1977b) também perfilha tal convicção. Schutz (1970/2012), no entanto, prefere dissertar sobre províncias de significações finitas, no lugar de realidades múltiplas ou submundos. Conforme o autor, essa mudança terminológica refere-se a uma ênfase na experiência de relação com cada mundo vivido (por exemplo, teatro, trabalho e time de futebol), ao contrário de priorizar as estruturas ontológicas e ônticas do objeto.

O cotidiano individual e social é repleto de várias províncias de significados finitos. Nelas, sentidos são acessados e vividos pela consciência intencional, experiências são compartilhadas e, na transição de uma província para outra, a consciência tenciona agir de um modo diferente (Schutz, 1970/2012). O mundo do trabalho, por exemplo, oferece vários sentidos acessíveis à consciência intencional e que são diferentes do mundo do lazer. Evita-se cotidianamente misturá-los. Essa transição de mundos (realidades) não requer coerência, pois um cientista que segue a lógica positivista no laboratório pode em casa se debruçar sobre sua religião xamânica. No cotidiano, as províncias exemplificadas não são necessariamente compatíveis. Cada uma, porém, possui um estilo de significação e interação peculiar que podem ser vividas conforme os interesses e as condutas de cada um. Por isso as províncias são finitas e dificilmente podem ser transpostas uma para outra.

Nesse aspecto, redimensiona-se o entendimento da noção rogeriana de campo fenomenológico. Este constitui uma (re)ação a diversas províncias de significados. Por conta disso, e do mesmo modo, os eus (selves) reais ou ideais e os estados congruentes ou incongruentes, igualmente, estão circunscritos por essas províncias. Tal perspectiva evita que o psicoterapeuta recaia em moralismos sobre uma forma de ajustamento (funcionamento) ou personalidade exemplar. O reconhecimento e a descrição dessas províncias são úteis a uma compreensão empática mais acurada ao cliente.

Conforme exposto, o modelo de compreensão empática rogeriano foca a elucidação do referencial interno que o indivíduo tem de si e de sua situação. Esse referencial remete-se à formação de personalidade (self) que, juntamente com a experiência, é foco de compreensão do psicoterapeuta. Embora não vise diretamente à mudança de personalidade, a ACP igualmente adota a mesma lógica elucidativa.

Schutz (1970/2012) oferece uma crítica ao problema da compreensão empática dos conteúdos da experiência. Em sua uma intelecção, a compreensão empática se refere aos atos de imaginar ou recordar a significação da experiência do outro, como se ela fosse a nossa. A base geral da empatia é reconhecer "(...) o Tu como 'outro Eu', aquele cujas experiências são constituídas do mesmo modo que as minhas" (p. 193). Aqui se encontra um ponto comum entre o pensamento de Schutz e o de Rogers.

Distingui-se na teoria de Schutz, entretanto, uma possível crítica ao modelo de compreensão empática rogeriano. Utilizando a perspectiva da fenomenologia social, considera-se que o limite da compreensão empática de Rogers – que, conforme o elucidado, é monadológica – consiste em tentar recriar os conteúdos (referenciais internos) da consciência do outro, de modo a reconstituir sua personalidade, sem atentar para os elementos estruturais que ligam o Eu ao outro Eu (Tu). Esse enfoque restringe a compreensão do horizonte dessas estruturas universais a Nós, o que pode incorrer em descrições que perdem o movimento da consciência em seus atos, nos quais os conteúdos são elaborações posteriores que adornam esse movimento.

Não se prender aos conteúdos da experiência alheia, mas ao seu movimento estrutural, é estabelecer a noção de que compreender é descobrir o Eu no Tu, pois ambos são expressões do mesmo horizonte hermenêutico, o que torna possível a expressão de um mundo. Esse é o elemento comum compreendido mediante a empatia, e permite adentrar uma unidade na diversidade.

Compreender não é descrever, traduzir ou replicar os conteúdos que o outro expressa. É, neste ponto, que uma retomada as concepções fenomenológicas de compreensão e empatia se tornam úteis para superar o paradigma conteudista de Rogers.

Schutz (1970/2012), embasado por Wilhelm Dilthey e Edmund Husserl, entende o ato compreensivo como uma re-vivência (Nacherlebnis) da vivência (Erlebnis) alheia. Isto ocorre por meio de uma transposição empática que capta as expressões do vivido. Para que ocorra a compreensão empática, é necessário primariamente um exercício de autocompreensão em face das realizações culturais que revelam as semelhanças, distinções variações, invariações, universalidades e particularidades das relações sociais.

A compreensão empática, portanto, contém um elemento imaginativo que permite a re-vivência da experiência alheia e transcende a individualidade para implicações que fazem o Eu se (re)descobrir no Tu numa interposição de mundos (com)partilhados.

Para isso, urge pensar como os aportes aludidos permitem adentrar esse horizonte comum em que as experiências são estruturadas e compartilhadas. Eis por que a inclusão das concepções de mundo-da-vida e cultura é importante a uma releitura fenomenológica de Rogers. Para Schutz (1970/2012), a cultura é um mundo-da-vida regional que produz fenômenos materiais (uma cruz), ideais (cristianismo), tipológicos (cristão) e eventuais (páscoa). Essa produção humana possui diversas províncias de significação, nas quais é possível identificar as expressões humanas.

A compreensão dessas províncias permite conhecer e examinar que manifestações subjetivas individuais interagem, por atos sociais, com outras subjetividades. Esses atos sociais tem relação com um posicionamento que a pessoa toma em sua realidade vivida.

Essa lógica considera, portanto, que os sintomas apresentados por uma pessoa não são expressões singulares de uma subjetividade enclausurada, mas sim de um dado circulante no mundo-da-vida, compartilhado intersubjetivamente. Um sintoma de anorexia, por exemplo, não existe somente como um conteúdo interno da experiência vivida de uma pessoa, pois se trata de um fenômeno cultural que circunscreve o mundo-da-vida de muitos.

 

Considerações finais

Rogers foi um psicoterapeuta e pesquisador atento às querelas científicas de sua época. Longe de desmerecer a contribuição que esse Psicólogo trouxe para as esferas acadêmicas e profissionais, este artigo intencionou recapitular e repensar determinadas concepções rogerianas consideradas monadológicas, de modo a exibir alguns pontos de entendimento que as transcendam, pelo viés sociofenomenológico de Schutz.

Embora possuam diversos elementos conexos, as noções de consciência, realidade e empatia representaram a referida concepção. Os pontos expressos entre Rogers e Schutz focaram as articulações e confrontos entre a consciência funcional-intencional, realidade intrassubjetiva-intersubjetiva e empatia conteudista-estrutural. Essas pautas de entendimento, além de problematizarem a TCC e a ACP, se propuseram implicar o pensamento rogeriano numa vertente sociofenomenológica.

Ressalta-se que o fato de apontar as limitações de Rogers, de modo a repensá-las numa epistemologia metacientífica, não o torna mais intersubjetivo e menos monadológico. Contribui, todavia, para o desenvolvimento de uma ACP pós-rogeriana atualizada à perspectiva brasileira de uma abordagem descentrada da pessoa (Moreira, 2010).

Para finalizar, convém destacar a ideia de que se valer do entendimento de Leibniz sobre mônada para revisitar uma abordagem psicológica, com intento de verificar o quão monadológica é sua concepção de subjetividade, trata-se de um exercício profícuo de debate teórico. Sugere-se que tal exercício possa ser empregado no entendimento de outras abordagens, como a Gestalt-Terapia, a Logoterapia, a Daseinanálise e o Psicodrama.

 

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Sobre os autores

Paulo Coelho Castelo Branco
Doutorando em Psicologia Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Mestre em Psicologia, concentração em Psicanálise, Práticas Clínicas e
Epistemologia das Psicologias, pela Universidade Federal do Ceará (UFC).
Graduado em Psicologia pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR).
e-mail: pauloccbranco@gmail.com

 

Recebido em: 28/08/2012
Aceito em: 30/11/2012

 

 

1 Neste artigo, utiliza-se o termo indivíduo de forma abundante e indiscriminada aos termos pessoa, cliente e sujeito. Consideram-se todos esses termos sob a denominação comum da existência de um humano dotado de subjetividade (consciência).
2 Os desdobramentos dessa premissa podem ser aprofundados na teoria da pessoa em funcionamento pleno (Rogers, 1961/1997) e na teoria das relações humanas (Rogers, 1959/1977a).