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Revista do NUFEN

versão On-line ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.5 no.1 São Paulo  2013

 

Artigo

 

Avaliação ludoterápica centrada na criança surda

 

Psychological eavalutaion centered on the deaf children

 

 

Caroline Schmidt

Serviço de Acolhimento Institucional João e Maria do município de Itapema/SC

 

 


RESUMO

O presente artigo enquadra-se como um relato de experiência, onde descreve os desafios e as dificuldades enfrentadas no trabalho de avaliação psicológica realizado com crianças surdas dentro do contexto educacional, referente ao período de 2010-2012. Apresenta também as bases utilizadas para a sua concretização, tendo estas se dado a partir dos pressupostos rogerianos. Do ponto de vista metodológico, classifica-se como exploratório e qualitativo, pois de acordo com Gil (1991) e Minayo e Minayo (2001), visa uma maior familiaridade com o problema, na medida em que busca a compreensão do significado das relações que se estabelecem. Espera-se que este relato de experiência possa auxiliar a todos os profissionais envolvidos com a criança surda a olharem para a particularidade da existência e da experiência desta criança, valorizando assim, a capacidade que todo organismo vivo tem de tender a sua atualização (Rogers, 1997).

Palavras-chave: avaliação psicológica; desenvolvimento infantil; comunicação intercultural; surdo.


ABSTRACT

The following article fits as an account of experience, where describes the challenges and difficulties faced in the work of the psychological evaluation conducted inside the educational context with deaf children in the period 2010-2012. Also present the bases used for its implementation from the assumptions rogerian. From the methodological point of view, classifies as exploratory and qualitative, because, according to Gil (1991) and Minayo and Minayo (2001), seeks a greater familiarity with the problem, as it seeks to understand the meaning the relationships that are established. It is hoped that this experience report could help all professionals involved with the deaf child to look to the particularity of existence and experience of this child, thus valuing the capacity that every living organism has of tend to its actualization (Rogers, 1997).

Keywords: psychological evaluation; child development; communication between cultures; deaf.


RESUMEN

En este artículo se clasifica a sí mismo como un relato de experiencia, que describe los retos y las dificultades que enfrentan en el trabajo de evaluación psicológica llevada a cabo con los niños sordos en el contexto educativo, para el período 2010-2012. También se presentan las bases utilizadas para su realización, y éstos se dan a partir de los supuestos rogerianos. Desde el punto de vista metodológico, se clasifica como exploratorio y cualitativo, ya que según Gil (1991) y Minayo y MINAYO (2001), busca una mayor familiaridad con el problema, ya que trata de comprender la importancia de las relaciones se establecen. Se espera que este informe experiencia puede ayudar a todos los profesionales que intervienen en el niño sordo a mirar la particularidad de la existencia y la experiencia de este niño, aumentando así la posibilidad de que cada organismo vivo tiene que atender a su actualización (Rogers, 1997).

Palabras-clave: evaluación psicológica, el desarrollo del niño, la comunicación intercultural, sordos.


 

 

1. Introdução

É fato que o ser humano não se expressa apenas por meio de palavras. Quem nunca leu ou ouviu alguém falar que o nosso "corpo fala"? A importância das palavras em uma interação entre pessoas é apenas indireta. Como Mesquita (1997) refere, resultados de diversos estudos demonstram que as relações interpessoais são mais influenciadas por canais de comunicação nãoverbais do que verbais. Mas e quando levamos este tipo de comunicação a um patamar superior e nos atemos à população surda e a sua língua natural, a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS)?

Como podemos fazer parte de uma relação que é corporalmente tão complexa de um modo que possamos nos tornar seguros de que a comunicação estabelecida está proporcionando, a ambas as partes, um real entendimento da interação social que ocorre no momento? É claro que nem mesmo com o uso das palavras podemos ter esta garantia de segurança, mas ao entrarmos no terreno da comunicação não verbal a possibilidade de equívocos torna-se maior. Como Mesquita (1997) bem afirma, "um gesto vale mais do que 1000 palavras, mas são necessárias mais que 1000 palavras para abordar um assunto tão amplo que contemple o gesto e seu possível significado".

A partir disso, transcorrem-se a seguir, de modo breve, algumas considerações sobre a história e formação da cultura surda e os princípios fundamentais para o entendimento da comunicação humana em um nível não verbal, bem como suas implicações para o processo de avaliação psicológica.

 

2. Um breve histórico da cultura surda

A comunicação é uma característica inerente ao ser humano e uma necessidade social fundamental. Aprendemos a nos comunicar a partir de nossa exposição à língua natural de nosso meio. Desta forma, para pessoas que não apresentam dificuldades auditivas, o aprendizado de um idioma ocorre a partir da exposição auditiva ao mesmo, tendo como expressão deste a fala.

As pessoas surdas apresentam como qualquer ser humano a necessidade de comunicar-se. A partir disso, as Línguas de Sinais são constantemente desenvolvidas, possibilitando assim, o aprendizado de uma língua pela visão. Este processo é fruto da habilidade humana de adaptar-se frente às especificidades do meio, o que mais a frente será explicado pela tendência atualizante do individuo e pela tendência formativa do meio.

A grande dificuldade encontrada na história surda até a atualidade é o preconceito ou até mesmo o desconhecimento da importância da exposição da criança surda a língua de sinais desde a tenra idade, possibilitando assim um desenvolvimento psicológico saudável. A Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (Feneis), afirma ainda que inúmeros centros educativos para crianças surdas constataram que utilizar a Língua de Sinais desde cedo beneficia o desenvolvimento linguístico da criança, dando ainda base para um melhor desempenho acadêmico e social, facilitando inclusive o aprendizado de uma língua escrita.

Por serem consideradas essenciais, estas reflexões vêm aparecendo constantemente no meio jurídico em busca de seu devido reconhecimento. É valido citar o Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005 que regulamenta a Libras como língua oficial da população surda brasileira, bem como as constantes lutas no âmbito da educação em busca de uma proposta de ensino bilíngue. O compromisso de uma educação bilíngue é o ensino da Língua de Sinais como língua principal, seguido pela compreensão da língua portuguesa escrita, caracterizando-se esta então como a segunda língua da criança surda [Pereira & Vieira, 2009]. O Projeto de Lei 725/2012, do Deputado Wellington Luiz, que visa a criação de uma Escola Pública Bilíngue no Distrito Federal aparece como ultima conquista neste contexto.

Apesar destes avanços é necessário entender que a historia da cultura surda nem sempre foi assim. Estas lutas vistas nos dias de hoje, são reflexo da necessidade do grupo se afirmar socialmente e culturalmente frente a uma historia marcada por perseguições e represálias. Quadros (2006) coloca como exemplo que na Antiguidade os surdos não eram considerados seres humanos competentes. Acreditava-se que pelo fato do surdo não ouvir e não falar, ele não pensava. Os sinais não eram considerados uma língua, mas sim gestos primitivos.

Santana e Bergamo (2005) também afirmam a situação de marginalidade social vivida pelo grupo surdo. Afirmam que sempre houve a estigmatização e a menor valia dos surdos. Por muito tempo o grupo surdo foi compreendido como inferior, pois se acreditava que o desenvolvimento da cognição não era possível sem a presença de uma língua oral. É fato que muitas foram as represálias sofridas pelo grupo surdo, mas Strobel (2008) coloca como maior evento de preconceito e repressão contra pessoas surdas o Congresso de Milão (1880). Nesta conferencia internacional apresentou-se como deliberação a superioridade da comunicação de base oralista e a proibição do uso da língua de sinais, sendo inclusive adotadas medidas que impedissem o uso desta língua, como por exemplo, o ato de amarrar as mãos dos alunos.

De acordo com Moura (2000), a Língua de Sinais apenas volta a ganhar força social em 1981 com a criação pela Organização das Nações Unidas (ONU) do Ano Internacional da Pessoa Portadora de Deficiência. Apesar disso, Strobel (2008), lembra que isso não significa o desaparecimento do método oralista. Apesar dos avanços em busca de reconhecimento da cultura surda ser enorme, muitas barreiras ainda necessitam ser transpostas.

A pratica profissional mostrou que muitos pais de crianças surdas ainda apresentam medo de expor seus filhos a Língua de Sinais e isto prejudicar seu treino auditivo e a sua capacidade de desenvolver a língua oral. Este pensamento é característico do Congresso de Milão, onde se alegava que a língua de sinais prejudicava a capacidade de fala das crianças. Argumentava-se que as "crianças são preguiçosas", por isso sempre que possível, mudariam do difícil método oral para a facilidade de comunicação da língua de sinais (Widell, 1992).

Ao privar a criança de sua comunicação natural, tem se como resultado atrasos no desenvolvimento acadêmico e até mesmo comprometimentos sociais, pois nestes casos o que se revela não são apenas crianças que não sabem a Libras, mas sim crianças que ainda não aprenderam nenhuma língua. Neste contexto cabe refletir com os pais destas crianças se realmente é válido comprometer o desenvolvimento psicológico de seus filhos pelo motivo de ensina-los a falar, em sua maioria das vezes, sem entendimento conceitual adequado do que se esta falando.

Moreira (2007) explica que esta dificuldade de aquisição de conceitos ocorre quando o sistema sensorial utilizado para a aquisição de linguagem está inadequado às particularidades do sujeito. Afirma que sem sua língua natural, os surdos encontram dificuldades para realizar abstrações, encerrando seu pensamento unicamente sobre suas experiências concretas. Reforça que o atraso na aquisição da linguagem acarreta problemas na aprendizagem e desenvolvimento, entretanto, salienta a capacidade do sujeito surdo desenvolver suas potencialidades mediante um ambiente linguístico apropriado.

 

3. A comunicação para além da língua

Após a exposição destas breves considerações sobre a história da cultura surda que visavam a contextualização do leitor neste universo, será proposto aqui reflexões mais amplas no que dizem respeito à comunicação humana e algumas de suas possíveis implicações para o processo de avaliação psicológica.

Como exposto anteriormente, considera-se o homem um ser social que se constitui a partir destas relações sociais, pois como Rogers (1997) coloca, apesar de o ser humano ser o protagonista de sua história e possuir de forma inata uma tendência à atualização de seu organismo, muitas pessoas tendem a se esconder atrás de fachadas afastando-se de seu referencial interno, visto as enormes pressões sociais em que vivem.

A tendência a atualização é um elemento natural de todos os organismos vivos, ela visa ao crescimento, independente das condições e adversidades. Procura constantemente desenvolver as potencialidades do individuo para assegurar sua conservação e seu enriquecimento, levando-se em conta as possibilidades e os limites do meio. (Rogers & Kinget, 1977; Cavalcante Junior & Feitosa de Sousa, 2008). Sabendo disso, e considerando-se a comunicação como um elemento primário de relação, podemos compreendê-la como um fator facilitador ou dificultador a tendência atualizante do organismo.

De acordo com Bordenave (1982), a comunicação é definida como um processo, como toda forma de nos comunicarmos consciente ou inconscientemente, seja através da linguagem verbal, gestual ou corporal. Salienta que é possível utilizar diferentes meios para auxiliar na compreensão da mensagem, podendo estas, exercer influências passíveis de modificar opiniões, ações e sentimentos em diferentes níveis. Justifica, desta forma, o receio que muitas vezes criamos tentando agradar aos outros enquanto vivemos limites que não nos permitem ser livres para sermos quem realmente somos (Rogers, 1997).

Para além do exposto, se acreditarmos que para a comunicação humana ser mutuamente entendida e compartilhada bastar-se-ia o uso de signos e símbolos em comum, estaríamos cometendo um grande equivoco. Toda comunicação intercultural tem como maior desafio a expressão do que se deseja transmitir. As significações do transmissor e do receptor podem ser diferentes, especialmente quando o meio de comunicação utilizado não é o habitual de alguma das partes. Exemplo disso é o caso de um ouvinte que possui como primeira língua (L1) o português, uma língua de base oralauditiva, e um surdo que possui como L1 a LIBRAS, uma língua espacial-visual. Ao tentarem se comunicar, por mais que uso de símbolos e signos seja o adequado, eles não bastam por si só. Tal como o ouvinte utiliza a entonação adequada da voz para passar a intensidade desejada da mensagem, o uso da expressão corporal e facial na LIBRAS é usada pelo surdo como o recurso para transmitir a mensagem que deseja de forma eficaz. Natalie Rogers (1983) corrobora esta afirmação na medida em que apresenta o movimento como uma forma de facilitação da auto-expressão.

Certamente, uma barreira de comunicação comum encontrada entre um surdo e um ouvinte reside no fato de o ouvinte não dominar plenamente sua comunicação não-verbal. Mesquita (1997) afirma que algo comum de acontecer com as pessoas é elas transmitirem um mensagem verbal discordante do que o seu corpo e movimento estão expressando. Rogers & Stevens (1967) explicam que esta reação chama-se incongruência, a qual mais a frente será abordada.

 

4. O processo da avaliação ludoterápica centrada na criança surda

A avaliação psicológica de que trata este artigo configurava-se como uma avaliação com fins de encaminhamento da criança surda, pois tinha como objetivo identificar a possível existência de atrasos no desenvolvimento que poderiam ser trabalhados em serviços oferecidos pela rede de apoio que abrange a comunidade. Desta forma, fazia-se necessário atentar para as regras de cada serviço e qual o perfil de usuário atendido no mesmo, pois enquanto alguns serviços aceitavam um usuário com elevado grau de comprometimento, outros admitiam apenas a surdez por si só.

Cada serviço de atendimento especializado possui particularidades óbvias que devem observadas. Um serviço de treino auditivo por exemplo, naturalmente exige perfis mais rígidos de usuários do que um serviço de aprendizagem de Libras. Isso ocorre, por dois motivos. Primeiro, porque a Libras é regulamentada segundo o Decreto nº 5.626 de 22 de dezembro de 2005, como a língua oficial dos surdos, desta forma, seu acesso não deve ser negado, salvo em casos de comprometimentos físicos que impeçam o seu aprendizado, exigindo-se desta forma o uso de comunicação alternativa1. Segundo lugar porque apesar de ambos terem como princípio básico a capacidade de aprendizagem, o treino auditivo é muito mais cansativo a criança surda e exige maior nível de atenção concentrada/seletiva, memória de trabalho e capacidade de raciocínio, visto configurar-se como uma forma de comunicação que utiliza um sistema sensorial não conhecido pela criança surda.

Buscava-se analisar a atenção concentrada/seletiva, pois de acordo com Camilo (2012), ela caracteriza-se como a capacidade do indivíduo selecionar uma fonte de informação e manter foco sobre este estímulo ou tarefa, capacidade essa essencial ao processo de aprendizagem. Já a memória de trabalho era analisada, pois Montgomery apud Grivol e Hage (2011) explica que ela é responsável por manter o pensamento, a aprendizagem e a comunicação, mostrandose desta forma essencial a sua análise. Montgomery apud Grivol e Hage (2011) e Miller apud Grivol e Hage (2011), completam que a memória de trabalho configura-se como a capacidade do individuo processar e armazenar informações em curto prazo, mas que podem ser mantidas se ativadas pela repetição ou pela transferência a memória de longo prazo. Este mecanismo costuma ser trabalhado em atividades de busquem o aprendizado de uma língua.

Por fim, a capacidade de raciocínio era observada em consonância com os pressupostos da Associação Americana de Deficiência Intelectual e do Desenvolvimento – AAIDD. Esta Associação considera a inteligência como uma habilidade mental geral que inclui raciocínio, planejamento, resolução de problemas, pensamento abstrato, compreensão de ideias complexas, rápido aprendizado e a capacidade do sujeito aprender com a experiência.

Considera-se importante ter clara a necessidade desta análise como algo fundamental, pois somente a partir da compreensão dos fenômenos psicológicos a serem avaliados temos a possibilidade de visualizar as estratégias técnicas mais adequadas ao perfil do avaliando e a demanda da avaliação. É necessário lembrar aqui que apesar da teoria rogeriana trabalhar com o pressuposto de atitudes terapêuticas e não de técnicas previamente estipuladas ao encontro terapêutico (Rogers e Kinget, 1977), esta analise ainda assim torna-se necessária como recurso para guiar o terapeuta sobre quais fenômenos psicológicos ele deve estar atento após se permitir a experienciação no encontro com a pessoa a ser avaliada. Isto permite uma organização metodológica da avaliação, dando vez a experienciação e a analise desta em momentos distintos.

As funções mentais da criança necessitam estar operando em nível compatível com a exigência da atividade proposta, ou seja, com o serviço de apoio no qual ela será inserida, caso contrário um serviço mais adequado ao seu perfil deve ser buscado. O DSM-IV-TR (2002) reforça a importância de buscar esforços terapêuticos adequados, pois com eles os quadros de dificuldades de adaptação do sujeito/meio tendem a apresentar melhoras.

É necessário compreender que um atraso no desenvolvimento não significa uma incapacidade, mas sim apenas uma dificuldade de adaptação. Rogers apud Hipólito (1999) ao postular o nascimento da Terapia Centrada no Cliente em uma Conferência na Universidade de Minnesota (1940), afirma que nosso alvo deve estar em auxiliar a integração do individuo com base em sua tendência para o crescimento, a saúde e a adaptação. Compreende a experiência terapêutica como uma experiência de crescimento, onde a ênfase esta nos elementos tais como eles aparecem no presente.

Muitas vezes o que difere é apenas o tempo que levará para a adaptação ocorrer. Como vimos anteriormente, a maior dificuldade das pessoas surdas ao longo de toda história foi estarem inseridas em um ambiente linguístico inadequado as suas necessidades. O reflexo deste ambiente linguístico inadequado, até hoje muito presente em nossa sociedade, gerou uma das dificuldades encontradas no processo da avaliação ludoterápica.

Encontrou-se na relação com estas crianças surdas a aparente ausência de um meio de comunicação, seja pela nossa não apropriação plena da língua da outra pessoa, ou seja pelo fato de a mesma desconhecer qualquer tipo de língua, característica comumente encontrada em crianças surdas durante aproximadamente dois anos de trabalho neste campo. Ao realizar a avaliação psicológica destas crianças, foi possível encontrar este dado preocupante e alarmante. Crianças já em idade escolar, frequentando aulas e vivendo em suas famílias de modo segregado de entendimento. Com base nisso, pode-se perguntar de que forma tornou-se possível avaliar estas crianças sem uma língua estabelecida? A resposta está na teoria rogeriana: dando possibilidade à experienciação e deixando esta preocupação, ao menos momentaneamente, de lado.

Experienciar é estar disponível à experiência, é estar desprovido de uma atitude defensiva e analítica, é permitir o funcionamento do organismo a partir de nosso centro (Rogers & Kinget, 1977). Em uma consulta psicológica, o terapeuta é responsável por auxiliar o sujeito a experimentar a liberdade experiencial de si mesmo, podendo assim, perceber e integrar de forma mais clara seus fenômenos internos.

Foi a partir das três atitudes psicológicas facilitadoras da teoria rogeriana (congruência, aceitação incondicional e empatia) que se tornou possível enxergar de fato estas crianças, mesmo desprovidas de uma língua pré-estabelecida. Rogers & Stevens (1967), definiram congruência como a capacidade de uma pessoa agir a partir de seu referencial interno, exigindo desta forma, autenticidade. Quando uma pessoa é verdadeiramente congruente, ela torna-se capaz de auxiliar outras a sua volta comunicando, sempre que se faça adequado, os sentimentos que vivencia, possibilita no outro a busca da verdade no nível de sua própria experiência. O sujeito incongruente age de acordo com seu self ideal, ou seja, de acordo com uma construção perceptiva ideal de como ser e agir. Esta incongruência ocorre quando a pessoa se afasta de seu referencial interno, sua reação passa a estar desvinculada das sensações que experimenta. Como dito anteriormente, uma das causas disso está nas pressões sociais da atualidade, quando a pessoa sente algo que foge dos padrões sociais, tende a se camuflar e a não comunicar o seu self real.

Já, a aceitação incondicional, diferente do que o próprio nome possa sugerir, não é aprovar todas as atitudes de uma pessoa, mas acolher de forma incondicional a expressão das mesmas, é um processo que também exige autenticidade. Na incondicionalidade o que temos é um estado de mente sem dualismos, se aceita a experiência do sujeito da forma como ela se apresenta (Rogers & Kinget, 1977; Lee, 2010).

Por fim, a empatia foi apresentada por Rogers & Kinget, 1977, como a capacidade de apreender os aspectos tanto cognitivos quanto emocionais da experiência de outra pessoa, de se colocar verdadeiramente no lugar do outro, de ver o mundo como ele o vê, de assumir tanto quanto for possível a estrutura de referencia interna da outra pessoa. Imerge-se no seu mundo subjetivo e participa-se de sua experiência tanto quanto a comunicação verbal e não-verbal possa permitir.

Ao trabalhar com pessoas, devemos usar os recursos mais acessíveis às mesmas, no caso de surdos, a melhor via é a visual. Ao se fazer uso do corpo, do movimento e da expressão de forma integrada à mensagem a ser transmitida, possibilita-se não só uma via de comunicação natural e acessível, mas também a possibilidade da pessoa surda perceber a congruência do terapeuta. Estar verdadeiramente presente e atento a expressão do outro buscando a sua real compreensão para além do comportamento expresso por si só, demonstra ao outro um interesse genuíno em sua pessoa, valorizando-a pelo que ela é (Rogers, 1992). Esta forma de agir demonstra a aceitação positiva incondicional sem necessariamente fazer uso da língua oral, possibilita ainda o estabelecimento de uma relação verdadeiramente empática.

Tassinari (1997) coloca que a Psicoterapia Expressiva Centrada na Pessoa apresenta a possibilidade de abordar o ser humano a partir de suas formas emergentes de expressão. Esta forma de se relacionar apresenta a possibilidade de explorarmos a conexão entre a auto-expressão, o poder pessoal e o crescimento/cura sem necessariamente fazermos uso de uma língua. A atenção do terapeuta deve estar sobre a forma de expressão da criança surda, quais suas escolhas lúdicas e como ela as conduz. A partir disso torna-se possível a compreensão de quais as possíveis relações ou implicações são esperadas pelo mundo desta criança frente a sua forma de se expressar. Apenas a partir desta reflexão torna-se possível o estudo individualizado de cada caso, possibilitando assim orientações adequadas a família e aos outros profissionais envolvidos com esta criança.

Como dito anteriormente, os processos de expressão humana podem ser difíceis em um primeiro momento, mas tendem a ocorrer de forma natural no momento em que nos dedicamos ao seu aprendizado de forma experiencial. É por esta razão que os cursos de expressão corporal só se tornam eficazes para aquelas pessoas que se permitem mergulhar na experiência e se despir de suas partes autocríticas.

A partir da incorporação das atitudes psicológicas facilitadoras apresentadas a forma de comunicação não verbal, foi possível olhar estas crianças enquanto pessoas, seres em desenvolvimento fazendo o possível para viver da melhor forma, muitas vezes em um ambiente um tanto quanto desmotivador de estímulos. Apesar das dificuldades provenientes das diferenças linguísticas entre a criança e seus pais, viu-se que a sua adaptação ao ambiente ocorria de forma tão rica quanto à de uma criança ouvinte. Diz-se isso porque se via claramente o proveito que tantas crianças tomavam da imagem que lhes atribuíam. Como exemplo elucidativo desta questão, foram muitas vezes observados pais e mães que colocavam em seus filhos a imagem de "coitados" e "bebês" chegando com queixas de atraso no desenvolvimento, manhas e rebeldias em casa. Estas famílias precisaram ser instruídas no manejo da relação com esta criança, pois ao observá-las em diferentes ambientes, pode-se ver que se tornavam extremamente espertas e ágeis, mostrando assim que apesar do seu desenvolvimento estar comprometido pela falta de comunicação com os demais, continuaram se desenvolvendo a seu modo. Entretanto, era claro a existência de consequências diferentes para cada criança. Foi possível ver que a falta de um domínio linguístico prejudicava as áreas acadêmica, social, afetiva, e até mesmo prejudicaria a área ocupacional em seu futuro.

O exposto mostra, que ao buscarmos tanto quanto possível, proporcionar um clima baseado nas atitudes facilitadoras de Rogers, mais teremos a possibilidade de enxergar verdadeiramente uma pessoa. Ao fazer isso em um processo de avaliação ludoterápica, teremos a possibilidade de enxergar o nível de desenvolvimento em que a criança se encontra.

Como podemos ver, é fato que o desenvolvimento não fica estagnado, mesmo com a falta de algo tão essencial como a comunicação. Isso acontece graças a Tendência Formativa, a qual diz que todo organismo vivo tende ao crescimento. É a forma pela qual as forças atualizantes de todos os organismos se estabelecem, dando coerência e sentido, formando assim um conjunto. A atualização ocorre de acordo com a formação apresentada por este conjunto, é a capacidade auto-reguladora do organismo que se manifesta (Cavalcante Junior & Feitosa de Sousa, 2008).

A experiência mostrou que mesmo sem uma língua temos a possibilidade de estarmos juntos do ser2 da criança, entretanto, como profissionais da área da educação, temos o dever de auxiliá-la e dar suporte ao desenvolvimento de uma interação para além da experienciação. É preciso, em parceria com os outros profissionais, buscar a cognição, a análise e a crítica tomando o cuidado de não perder a essência desta criança, o seu centro, o seu experienciar. É ir além da simples repetição da escrita, dos sons e gestos, é dar sentido e vida a eles.

As pessoas são tão belas quanto um pôr do sol, quando as deixamos ser. De fato, talvez possamos apreciar um pôr do sol justamente pelo fato de não o podermos controlar. Quando aprecio um pôr do sol não me ponho a dizer: Diminua um pouco o tom de laranja no canto direito, ponha um pouco mais de vermelho púrpura na base e use mais um pouco de rosa naquela nuvem. Não faço isso. Não tento controlar um pôr do sol. Olho com admiração a sua evolução (Rogers, 1983).

 

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Nota sobre a autora

Caroline Schmidt: Psicóloga, Especialista em Avaliação Psicológica Psicoshop (em andamento). Formação em Psicoterapia na Abordagem Centrada na Pessoa Espaço Viver (2011). Especialista em Psicologia Jurídica - ICPG (2009). E-mail: krolschmidt@hotmail.com.

 

Recebido em: 10/04/2013
Aceito em: 19/07/2013

 

 

1 É conceituada pela ASHA apud Cesa (2009) como uma área que busca compensar e facilitar, temporária ou permanentemente, os prejuízos e incapacidades de indivíduos com dificuldades na comunicação expressiva e/ou em sua compreensão. Pode ser necessária para indivíduos que tenham prejuízos nos modos de comunicação gestual, falado e/ou escrito. Johnson apud Cesa (2009) completa que refere-se ao recurso, estratégias e técnicas que complementam modos de comunicação existentes ou substituem as habilidades de comunicação inexistentes.
2 O Ser é o denominador comum de todo humano, não existiríamos sem ele. Quando nos permitirmos Ser não pensamos, apenas somos. Este estado nos desperta para a nossa potencialidade e libertação de um estado de mente condicional (Lee, 2010).