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Revista do NUFEN

versão On-line ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.5 no.1 São Paulo  2013

 

ARTIGO

 

 

Reflexões sobre o conhecer si mesmo como acesso ao sentido

 

Meditations about self knoledge as acess to meaning

 

 

Vitor F. Sampaio

Universidade Paulista (UNIP)

 

 


RESUMO

Este artigo busca compreender o que significa conhecer si mesmo em uma perspectiva fenomenológica existencial. Para isto, utiliza como fio condutor uma visita a um local conhecido (universidade), realizada por duas pessoas (professor e aluno). A partir deste exemplo, apresentam-se as possíveis compreensões sobre o si mesmo e os caminhos para conhecer-se. Utiliza-se como fundamento a ontologia de Martin Heidegger. Desta forma, no decorrer do artigo, os desdobramentos da visita tomada como exemplo vão se mostrando na medida em que se explicita a existência humana como serno- mundo e seus existenciais. Ao final, pode-se perceber que o conhecer si mesmo se dá na totalidade do existir, e só se faz possível na medida em que se permite estar frente a existência tal qual esta se mostra.

Palavras-chave: fenomenologia existencial; psicologia existencial; ontologia; Martin Heidegger.


ABSTRACT

This article aims the understanding of self knoledge meanings on a existential phenomenological perspective. In order of that, it uses as a thread a visit to an well known place (the university) by two people (professor and student). From this example, the possible comprehensions about 'one´s self' and the ways to know it are shown. This article is grounded on Martin Heidegger´s ontology. Thus, along the article, the developments of the visit on the example, are shown according as it disclose the human existence as a being-in-the-world. At the end, it´s seen that the self knowledge appears only in the entire exist, and it´s only possible according as one allows itself to be facing one´s existence as it shows.

Keywords: existential phenomenology; existential psychology; ontology; Martin Heidegger


RESUMEN

Este artículo trata de comprender lo que significa conocerte a ti mismo en una perspectiva fenomenológica existencial. Para ello, utilice como hilo una visita a una ubicación conocida (universidad), celebrado por dos personas (profesores y estudiantes). A partir de este ejemplo, se presentan los posibles realizaciones acerca de ti mismo y de las formas de conocer a ti mismo. Se utiliza como base la ontologia de Martin Heidegger. Así, a lo largo del artículo, el desarrollo de la visita será tomado como un ejemplo que muestra la medida en que la existencia humana explícita como estar en el mundo y su existencial. Por último, se puede observar que el conocimiento de sí se produce en todo el existir y que sólo es posible en la medida en que permite que haya un frente tal que esto se muestra.

Palabras clave: fenomenología existencial; psicología existencial; ontología; Martin Heidegger.


 

 

O Dasein sempre dispõe de uma interpretação
variada de si mesmo, na medida em que uma
compreensão do ser não apenas lhe pertence como já
se formou ou deformou em cada um de seus modos de ser
(HEIDEGGER, 2004a, p. 43).

 

1. Introdução

Neste artigo buscamos traçar um caminho sincero de uma conversa com o próprio pesquisar, buscando o esclarecimento do que significa si mesmo e o conhecer si mesmo em uma perspectiva fenomenológica existencial.

Quando abordamos o tema do conhecimento de si mesmo, algumas perguntas se fazem presentes: O que significa "si mesmo"? Que "si mesmo" é esse do qual tentamos nos aproximar? Como podemos pensar, a partir da Fenomenologia Existencial, o que significa conhecer si mesmo?

Começaremos a delinear as respostas a estas perguntas a partir de um exemplo. Imagine que um professor convidasse um aluno a visitar um lugar, o campus da universidade em que leciona.

Consideramos que o aluno seja um veterano, já estuda na universidade há alguns anos. Após o convite do professor, o aluno poderia ter, de início, a perspectiva de que a visita seria a de um passeio a lugares conhecidos. Em uma reflexão mais apurada, no entanto, o aluno pode perceber que se trata de dois passeios, duas visitas, que já desde o começo nascem separadas e paralelas, porém caminhando sempre de mãos dadas. Vamos caminhar com eles.

A primeira visita, guiada pelo professor, apresenta uma universidade que o aluno nunca havia visto. Apresenta corredores novos, salas novas, cheiros novos. O novo, aqui, não diz respeito ao que acabou de ser criado, como cadeiras recém-compradas que se destacam por sua limpeza e beleza dentro de uma sala. O novo, aqui, não diz de um "acabou de ser conhecido", no sentido de algo que era desconhecido, algo que nunca havia sido mostrado. Não é disso que se trata. O aluno tem a certeza de que já havia visitado todos os lugares que agora visita com o professor. Não há nesses lugares cadeiras novas, luminárias novas, portas novas. O novo, aqui, diz de um reapresentar, de um recorte totalmente diferente. Os lugares visitados na universidade tornam-se novos por ganharem histórias diferentes, contornos diferentes.

Não demora para que o aluno perceba que o professor mostrava-lhe não um lugar qualquer, mas o seu lugar. O lugar onde ele, o professor, também estudou, com risadas e choros. Um corredor que antes aparecia pequeno e desimportante descobre-se cenário de fuga em um momento político de opressão e repressão. O pátio da universidade, na narrativa do professor, perde seus objetos mais palpáveis e observáveis e ganha o sentido das manifestações que lá ocorreram, sob luzes outras, que não são aquelas que hoje o iluminam. O anfiteatro deixa de ser um simples teatro e converte-se em lugar acolhedor de assembléias, em centro cultural, em motivação de união por sua recuperação, e em local de reunião e agrupamento de pensamentos e eventos marcantes. Assim, o aluno percebe que ali visita, pelo professor, outra universidade, uma que nunca havia sido mostrada a ele, que se abre diante de seus olhos. Uma universidade histórica, politicamente ativa, relevante no peso de sua própria existência.

Ao mesmo tempo, totalmente desconectada da primeira visita, mas também conectada de forma inexplicável, a segunda visita é experimentada apenas pelo aluno. A segunda visita toma-o sem permissão, enquanto ouve o professor narrar os fatos que marcaram a sua passagem na universidade, transforma-o de ouvinte para, ele mesmo, narrador de uma história, podendo experimentar um amálgama de ouvinte-narrador. A sua universidade o abraçava enquanto ouvia o professor. Sem perceber, ele mesmo revisitava a universidade, mas esta era diferente. Lembra que ali, no longo corredor do térreo, um corredor sem portas, escuro ao anoitecer, muitos haviam se beijado, incluindo o próprio aluno, escondendo seus romances dos ávidos olhares fofoqueiros; Havia uma sala pela qual passaram na visita sem que o professor nada comentasse, que tinha um apelido peculiar dado pelos alunos, em função de suas janelas e seu desenho único; outro peculiar corredor era sempre um bom lugar para as indispensáveis e urgentes conversas entre amigos; o pátio – que na narrativa do professor era palco de manifestações – para o aluno já havia sido palco de festas, discussões, choros e fotos. Assim, em contato com a universidade que habitava, o aluno descobre que ainda a habita, e que o professor também ainda habita sua própria universidade. Observamos aqui que este habitar enuncia o mundo de significados no qual se habita. O conhecimento não está se referindo a uma precisão, a uma verdade absoluta, como se aluno e professor buscassem chegar em um denominador comum sobre a verdade daquela universidade. Conhecimento se refere ao experimentado, cada um experimenta e conhece da maneira que lhe é possível, com suas próprias marcas de caminho. Conhecer si mesmo é também conhecer este mundo no qual habitamos. Heidegger, em Ser e Tempo, concebe a existência humana como uma estrutura caracterizada por ser-no-mundo. O ser que se caracteriza por ser-no-mundo, é o ser que já está, de início, "aí" lançado no mundo, portanto o filósofo nomeia a existência humana de Dasein (Ser-aí)1. Desta forma, o filósofo ressalta a condição mais própria do existir humano, a existência como abertura para o mundo – a clareira da existência, onde o mundo aparece. O Dasein existe sempre em relação ao mundo que se apresenta. Mas, o que é ser-no-mundo? Ser-em um mundo não nos diz respeito à relação recíproca de dois entes simplesmente dados (homem e mundo); tampouco nos diz de um corpo localizado fisicamente dentro de um espaço determinado (como uma cadeira em uma sala). Ser-em um mundo é ter seu ser inserido em um mundo de significações compartilhadas. Ser-em um mundo nos remete ao modo como o homem ocupa seu espaço, como estabelece suas relações com os outros entes do mundo. "O Ser-em é, pois, a expressão formal e existencial do ser do Dasein que possui a constituição essencial de ser-no-mundo." (HEIDEGGER, 2004a, p. 92, grifo do autor).

Dasein é-em-um-mundo e "mundo" é um caráter do próprio Dasein. Cardinalli (2004) esclarece que mundo é uma totalidade das relações significativas, é o "aí" em que Dasein se encontra lançado. O mundo é o horizonte das possibilidades de realização do existir humano, onde aparece o sentido do que pode vir a ser.

Assim, é necessário que tenhamos como fundamental a compreensão de Dasein como ser-no-mundo, pois é neste ser-nomundo que Dasein se constitui em seus modos de ser. A partir desta construção Heidegger explicita as dimensões do modo de existir humano, que constituem o ser-nomundo do Dasein. Estas dimensões do existir humano não são categorias e sim 1 Denominação que caracteriza "esse ente que cada um de nós é e que, entre outras, possui em seu ser a possibilidade de questionar, nós o designamos com o termo Dasein" (Heidegger, 2004a, p. 33). Sua tradução literal seria "ser-aí", mas opta-se neste trabalho pela utilização da forma original Dasein, marcando sua explicitação de acordo com a caracterização da ontologia fundamental, de M. Heidegger. características que constituem o ser do Dasein, como nos lembra o filósofo, "são sempre modos possíveis de ser" (Heidegger, 2004a, p.78). A explicitação das dimensões do modo de existir humano é denominada "existenciália" ou "existencial", como por exemplo: temporalidade, ser-com, afinação, espacialidade, cuidado e corporeidade. Isto significa que Dasein é cada uma das características constitutivas de seu ser, pois Dasein é caracterizado como ser-no-mundo. Cabe enfatizar, uma vez mais, que ser-nomundo não é uma qualidade de Dasein e os existenciais não são propriedades que Dasein às vezes apresenta e outras não.

 

2. O conhecimento de si mesmo nas dimensões da existência

A análise de nosso exemplo sobre a visita do professor e do aluno abre espaço para a reflexão sobre o habitar, sobre o serem, como um aspecto do conhecer si mesmo. Dado que, para Heidegger, o Dasein conhece o mundo de imediato, ao entrar em contato com o mundo que o cerca, justamente por essa abertura de mundo se dar em conjunto, em todas as dimensões do existir humano, os lugares nos quais habitamos, nos quais existimos, somos, estes lugares, nós mesmos.

Por isso mesmo que habitar é o "no", de ser-no-mundo, o próprio ser do Dasein. Dasein habita, existe no mundo que o cerca, que a ele se apresenta. Assim, habitando, Dasein pode conhecer-se. Nas palavras de Heidegger:

De acordo com um modo de ser que lhe é constitutivo, o Dasein tem a tendência de compreender seu próprio ser a partir daquele ente com quem ele se relaciona e se comporta de modo essencial, primeira e continuamente, a saber, a partir do mundo (Heidegger, 2004a p. 43).

Em nosso exemplo, durante a visita, o aluno percebe que há algo mais do que um passeio pelos espaços físicos da universidade. Há uma visita ao próprio habitar de ambos os personagens, há um retorno a si mesmo.

Este "retorno a si mesmo" é o movimento que fazemos no decorrer de uma pesquisa fenomenológica. Não buscamos a caracterização de "o que é" conhecer si mesmo, ou seja, uma definição categorial e classificatória. Buscamos o "como" conhecer, o modo como se conhece, como cada Dasein dispõe-se frente a si mesmo. Não poderíamos desenvolver uma pesquisa partindo de perguntas que buscassem o significado formal do "si mesmo", ainda que estas sejam relevantes para tal desenvolvimento. Relevantes, mas não dão o tom. O mais importante no conhecer si mesmo mostra-se, com nosso exemplo, é a própria aproximação, o caminho em direção ao si mesmo.

Ao trilhar este caminho através de uma pesquisa em fenomenologia, é possível "deixar e fazer ver por si mesmo aquilo que se mostra, tal como se mostra a partir de si mesmo. É este o sentido formal da pesquisa que traz o nome de fenomenologia." (Heidegger, 2004a, p.65).

Ao descrevermos nosso exemplo da visita, pudemos explicitar o caráter fundamental de Dasein como ser-no-mundo. Em seguida, mostramos o "habitar o mundo" como primeiro contato de significações, como abertura para conhecer si mesmo. Habitar o mundo é sempre habitar um mundo de significados. E só habitando em um mundo de significados é que podemos construir um caminho enquanto caminhamos. Construir um caminho significa habitar em um tempo, onde cada passo dado está identificado com o caminho já percorrido e as possibilidades de direções dos passos futuros. Da mesma forma se dá o caminho do "conhecer si mesmo": A abertura existencial para que se dê o conhecimento de si mesmo é a possibilidade de ao mesmo tempo olhar para o passado e abrir-se ao futuro.

Este tempo, que existencialmente é temporalidade, trata-se do passado que se faz presente lançando-se ao futuro. No exemplo, fica claro que ali, naquele exato momento, o passado se presentificava, apontando para o horizonte de sentidos futuros, que diziam respeito ao que cada participante da visita faria com aquela experiência. Mas tal horizonte de sentidos só pode se abrir dentro do mundo de significados que havia na própria visita, no próprio estar-ali na universidade. Ou seja, só podemos ter sentido nos projetos que envolvem o "habitar", no caso, habitar naquele momento e daquela maneira a universidade, à luz do passado deste habitar.

Abrimos aqui espaço para a reflexão temporal-histórica, para a historicidade daquele que se conhece. Historicidade não está ligada a um tempo exato, a um "passado" encerrado em si. Historicidade diz que Dasein é ser-histórico.

Quando o professor mostra a universidade na qual habita, fala de sua história. Quando o aluno mostra a universidade na qual habita, fala de sua história. Ambos, ao mostrarem seus mundos, seus espaços, não "lembravam" de seus respectivos passados, mas se relacionavam com este passado naquele exato momento em que realizavam a visita.

O que foi certa vez presente na existência humana nunca é simplesmente passado, terminado, perdido. O que se foi, é captado na abertura do Dasein de tal modo, que permanece constantemente presente no presente, falando neste presente e codeterminando todas as condutas presentes da pessoa (Boss, 1994, p.118).

Relacionar-se com o passado é horizonte de possibilidades de ser do ser-nomundo do Dasein. Relacionar-se, estar-aí junto às coisas, é a abertura de mundo da existência humana, que permite a significação do mundo em que habita.

Voltamos nosso olhar agora ao "passado". Não a um passado cronológico, encerrado, mas a este ser-histórico, que existe neste momento, em seu modo de ser história. Falamos, assim, da importância da história pessoal para conhecer si mesmo. Sem a história, sem aquilo que já se passou, não se pode conhecer-se. Conhecer a própria biografia mostra-se um passo importante para conhecer si mesmo.

A contextualização do tempo vivido, para se realizar uma análise existencial é importante. A existência é o próprio tempo, projetado para futuro, passado e presente. Este projeto temporal se traduz no caminho da realização da própria existência. Na busca de conhecer si mesmo, a biografia não é um mero relato do passado, mas está presente neste momento e se faz presente no desdobrar futuro. Ou seja, a existência é passado, é presente e é futuro.

'A existência transcende' significa que na essência de seu ser configura o mundo e o 'configura' em um sentido múltiplo em que deixa que o mundo aconteça, se encontra com o mundo em um aspecto original (figura), no qual, não propriamente concebido, atua, não obstante, como pré-modelo para todas as manifestações dos entes (Binswanger, 1977, p.170).

Devemos entender este pré-modelo a partir do qual Dasein configura o mundo como o "mundo já dado" no qual Dasein é lançado. Podemos dizer, a partir desta concepção, que o caminho da existência já vem sendo trilhado antes mesmo do nascimento: tornando as histórias familiares histórias pertencentes ao próprio horizonte existencial do Dasein; esta história pertence ao desvelar do ser do Dasein, apresentandose como sua herança, e objeto de seu conhecer-se. A retomada da história, o ser-histórico, por tanto, não diz somente respeito a uma biografia pessoal que se faz presente no horizonte de significados daquele que está em busca de conhecer si mesmo.

A retomada histórica, o ser-histórico, diz de um aproximar-se do que já havia sido feito, do mundo já dado no qual Dasein é lançado.

É isto que acontece em nosso exemplo. Quando o aluno escuta e visita a universidade do professor, percebemos que muito antes de o aluno entrar na universidade, e antes mesmo de seu nascimento de fato, aquela universidade já era experimentada, vivida, sentida. Quando o aluno entra na universidade, entra também em um espaço que já se apresenta carregado de sentidos e significados. Vemos que, de forma imediata e inegociável, o aluno se deparou com um "terque- lidar" com a história já construída e já dada. Tal qual uma criança em sua família, que será investida de histórias e acontecimentos dos quais nunca fez parte, mas nos quais está envolvida já a priori. Podemos até lembrar uma celebre passagem de Shakespeare, quando Romeu, tomado de fúria por não poder estar ao lado da amada Julieta, questiona o que afinal significaria ser Montecchio ou ser Capuleto. Seu questionamento é pelo sentido de sua própria biografia, daquela biografia da qual não foi herói, mas que foi imposta sobre si. Mostra-se aqui que aquele que busca conhecer si mesmo, deve também buscar a história da qual não foi herói, aquela história que lhe foi imposta. Esta biografia já escrita antes mesmo do nascimento também constitui a existência e se faz presente na busca pelo sentido de si mesmo.

Assim é a história que se faz presente no caminho de conhecer si mesmo. Quando retomamos aquela biografia que nos pertence, mas que não nos foi dada a possibilidade de escrever, facilitamos nosso entendimento sobre nós mesmos, aproximamo-nos e conhecemos mais sobre nós mesmos.

O próprio pesquisar se beneficia desta retomada e busca da biografia que nos é imposta, pois o pesquisar, ele próprio, conhece si mesmo olhando o passado que o precedeu. Afinal, é um movimento de conhecer aquele empregado em uma pesquisa, quando volta ao já dado, à história anterior a ela mesma. Ouvir o que os "pais", "tios" e "avós" da pesquisa atual têm a dizer sobre o tema pesquisado. Assim, não se trata o pesquisar, pois, de conversar com a herança deixada por aqueles que vieram anteriormente, apropriando-se de suas descobertas, lidando com suas frustrações, e trabalhando com o que aí já foi deixado?

Ressaltamos, aqui, a fala de Binswanger sobre a biografia:

A Biografia interior do homem não se compõe somente de conteúdos de desejo, como também se compõe, de uma maneira geral, da total plenitude de conteúdos espirituais possíveis de nossa vivência (Binswanger, 1973, p.49-50).

 

3. Apontamentos para o entendimento do que significa "si mesmo"

Começamos a configurar o conhecer si mesmo como um caminho de aproximação do olhar para esta infinidade de aspectos da existência humana. Talvez, aqui, seja o momento de dar uma forma, um colorido para este "si mesmo". Como caracterizar o si mesmo?

Voltando mais uma vez ao exemplo no qual estamos baseando este artigo. Na visita que professor e aluno realizam, aparece um aspecto simples e "fundante" desta experiência: poder-ser. O professor, no início do passeio, deixa de ser professor para tornar-se guia. Poucos momentos depois, deixa de ser guia para tornar-se parte integrante da universidade. O aluno naquele momento tornou-se visitante, logo depois de ter sido estudante. Estas possibilidades, estes modos de ser e se relacionar com o mundo, revelam o próprio da existência humana, a saber, que a existência humana não apenas é um infinito de possibilidades, mas também este infinito de possibilidades, de poder-ser, é seu próprio ser. Isto significa que a existência humana é esta existência que pode se apresentar nas diversas possibilidades de ser.

Isto significa dizer que a existência humana é "transcendental", no sentido de transcender os entes e possibilitar que os entes apareçam em seus múltiplos modos de ser. Como professor, o mundo se abre em ensinamentos. Como aluno, o mundo se abre para aprendizagem.

Como parte da universidade, o mundo se abre como história. São todas possibilidades de ser-no-mundo, e possibilidade de ser si mesmo e descobrir-se sendo si mesmo. Si mesmo, portanto, fala deste infinito de possibilidades. Em outras palavras, si mesmo é este movimento de poder-ser do Dasein, que aparece na temporalidade, na historicidade, no ser-com, na corporeidade, em ser-no-mundo, onde passado se presentifica voltado para o futuro. Si mesmo é sempre vir-a-ser.

Neste ponto, ao retomarmos o exemplo que nos tem servido como "caso" neste artigo, percebemos que, seja olhando para o passado histórico herdado, para o passado histórico percorrido (biografia), para o espaço experimentado e habitado, para as relações estabelecidas neste espaço, ou para o próprio poder-ser, se está olhando para si mesmo. De toda forma, ao olhar para uma, entre quaisquer possibilidades de ser, olha-se para o mundo de significados no qual o Dasein está inserido.

Há, no entanto, um último aspecto sobre o si mesmo que deve ser abordado e conhecido. Até aqui traduzimos si mesmo por poder-ser-si-mesmo. Mas para, de fato, explicitarmos a totalidade do fenômeno de conhecer si mesmo devemos considerar que o Dasein ao mesmo tempo em que busca a si, foge de si, como movimento autêntico do próprio poder-ser (Heidegger, 2004a). Ou seja, apresentar o si mesmo como vir-a-ser não é garantia de que Dasein está sempre disponível para conhecer si mesmo, ao contrário, como nos diz o filósofo, "Somente na medida em que, através de sua abertura constitutiva, o Dasein se coloca essencialmente diante de si mesmo é que ele pode fugir de si mesmo" (Heidegger, 2004a, p.248, grifo do autor).

Considerando isso, estamos finalmente prontos para pensar na importância do conhecer, e o que significa conhecer si mesmo.

A princípio, Heidegger (2004a) fala que "conhecer é um modo de ser do Dasein enquanto ser-no-mundo" (p.100), o que significa que o conhecer fundamenta-se no fato de que o Dasein já está junto-ao-mundo, e que o conhecimento se dá levando-se em conta o modo de ser de quem conhece.

O conhecimento, para o filósofo, se dá em um "direcionamento para", ou seja, um encarar e deixar ser o ente simplesmente dado. Neste direcionamento, o Dasein não sai de uma esfera interna onde se encontra encapsulado e acessa o objeto a ser conhecido. O modo de ser originário do Dasein (ser-no-mundo) é um já estar fora, junto-às-coisas.

Com isto, podemos dizer que conhecer não é uma ação "cognitiva", mas um "já estar em uso e no uso". Conhecer si mesmo não trata de uma "pesquisa racional e explicativa", onde o Dasein "pondera" e "reflete" a seu respeito. Conhecer si mesmo fica aqui caracterizado como um modo de estar junto de si mesmo, um deter-se diante do vir-a-ser do próprio poder-ser do Dasein.

Por esta mesma razão, é importante lembrar que faz parte do estar diante si mesmo o fugir de si e o "de-cair no impessoal". Daí a importância de uma constante reflexão profunda e atenção sobre a apropriação de si mesmo.

Deste modo, podemos traduzir o conhecer si mesmo em nosso exemplo por passear pela universidade. Mas não um passear qualquer. Conhecer si mesmo é um passear e um deter-se diante do próprio espanto da existência. Mas deter-se diante do espanto da existência, não é um olhar descompromissado, ao contrário, é uma tarefa do Dasein, que para conhecer si mesmo, deve estar diante de si mesmo e deter-se diante de si mesmo.

 

Referências

Binswanger, L (1973). Artícolos y conferencias escogidas. Madrid: Gredos S.A.         [ Links ]

_______________ (1977). La escuela de pensamiento de análisis existencial. Existencia. Madrid: Gredos S.A.         [ Links ]

Boss, M (1994). Existential Foundations of Medicine and Psychology. New York: Jason Aronson.         [ Links ]

Cardinalli, I (2004). Daseinsanalyse e Esquizofrenia. São Paulo: Educ.         [ Links ]

_______________ (2004a). Ser e Tempo. Parte I. Tradução de Márcia de Sá Cavalcanti. Petrópolis: Vozes.         [ Links ]

_______________ (2004b). Ser e Tempo. Parte II. Tradução de Márcia de Sá Cavalcanti. Petrópolis: Vozes.         [ Links ]

_______________ (2006). Ensaios e Conferências. Petrópolis: Vozes.         [ Links ]

_______________ (2012). Ser e Tempo. Tradução Fausto Castilho. Petrópolis: Vozes.         [ Links ]

Stein, E (1998). Seis estudos sobre "Ser e Tempo". Petrópolis: Vozes.         [ Links ]

 

 

Nota sobre os autores
Vitor F. Sampaio.
Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP.
Professor de Fenomenologia e Psicologia, e Abordagens Humanistas e Psicologia na Universidade Paulista – UNIP.
e-mail: vfsampaio@hotmail.com.

 

Recebido em: 05/02/2013
Aceito em: 30/06/2013

 

 

1Denominação que caracteriza “esse ente que cada um de nós é e que, entre outras, possui em seu ser a possibilidade de questionar, nós o designamos com o termo Dasein” (Heidegger, 2004a, p. 33). Sua tradução literal seria “ser-aí”, mas opta-se neste trabalho pela utilização da forma original Dasein, marcando sua explicitação de acordo com a caracterização da ontologia fundamental, de M. Heidegger.