SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.5 número2Aportes de la obra de Luis Martins-Santos para la psicoterapía y psychopatologíaInformes de experiencia en la historia de la psicología: conexiones Brasil y los Estados Unidos de America índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Revista do NUFEN

versión On-line ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.5 no.2 São Paulo  2013

 

Artigo

 

Compreendendo casal e grupo no filme "Bob, Carol, Ted e Alice" a partir de Rogers

 

Comprehending couple and group in the film "Bob, Carol, Ted e Alice" from a Rogerian approach

 

Comprediendo pareja y grupo en la película "Bob, Carol, Ted e Alice" por medio de Rogers

 

Renner de Almeida Bernardes Mariano

Universidade Federal de Uberlândia Brasil

 

 


RESUMO

O objetivo geral deste trabalho é vincular o filme "Bob, Carol, Ted e Alice" (EUA, 1969) com as concepções de Carl Rogers sobre grupos e relacionamentos conjugais. Busca-se explicitar a abordagem rogeriana e compreender o modo como as relações interpessoais se dão no filme, identificando o "plano de fundo" histórico-cultural do filme que apresenta exatamente os mesmos temas desenvolvidos por Rogers. Além disso, busca-se as conexões e as idéias do autor presentes, tais como: as concepções de atuação segundo aquilo que se sente; de confrontação e de feedback; de insight; e de organismo auto-realizador. E por fim, são apresentadas algumas questões sobre os relacionamento s humanos na contemporaneidade. Pode-se, com isso, compreender que a transparência e a comunicação sincera sobre os sentimentos em cada contexto possibilita uma abertura do outro ao mesmo processo, promovendo autenticidade e possibilidades de crescimento conjunto.

Palavras-chave: Carl Rogers; cinema; relacionamentos conjugais; teoria de grupos.


ABSTRACT

The general objective of this work is to relate the film " Bob & Carol & Ted & Alice" (USA, 1969) with the conceptions of group and conjugal relationships of Carl Rogers. It's described through the work the rogerian theoretical approach and we try to comprehend how the interpersonal relationships occurs through the film, identifying the cultural-historical background of it that presents the same themes developed by Rogers. Besides that, the ideas and connections created by the author that are present in the movie are described though this paper, such as; the conceptions of acting by what it's felt; of confrontation and feedback; of insight; and of self-producing organism. At last, issues of human relationship are presented in contemporary times. It can be understood that transparency and sincere communication about the own feelings in each context can make it happen an opening of the other to the same process, promoting authenticity and opportunity of development with the other.

Keywords: Carl Rogers; cinema; conjugal relationship; group theory.


RESUMEN

El objetivo general de este trabajo es hacer un enlace de la película "Bob, Carol, Ted y Alice" (EUA, 1969) con las concepciones de Carl Rogers sobre grupos y relaciones entre parejas. Intentase explicitar el enfoque de Rogers y comprender como las relaciones interpersonales se hacen en la película, identificando el "último plano" histórico - cultural de la película que presenta exactamente los mismos temas desarrollados por Rogers. Además, se busca las conexiones y las ideas del autor presentes, tales como: las concepciones de actuación según lo que se siente; de confrontación y de feedback; de insight; y del organismo auto-realizador. Para concluir, son presentadas algunas cuestiones sobre las relaciones humanas en la contemporaneidad. Es posible, con eso, comprender que la transparencia y la comunicación sincera sobre los sentimientos en cada contexto posibilita una abertura del otro al mismo proceso, promoviendo la autenticidad y posibilidades de crecimiento juntos.

Palabras-clave: Carl Rogers; cinema; relaciones maritales; teoría de los grupos.


 

 

O presente trabalho busca proporcionar um diálogo entre o filme "Bob, Carol, Ted e Alice" e as contribuições de Carl R. Rogers (1902-1987) sobre as relações conjugais e o processo grupal, tendo a multitarefa de tentar compreender como cada um desses elementos pode ajudar a compreender os outros dois. Nesse sentido, o texto se justifica por auxiliar na compreensão do modo como Rogers concebia o ser humano, as relações interpessoais e os grupos, possibilitando-nos avançar no entendimento dos elementos que favorecem as relações interpessoais. E, tal como costumava fazer Rogers, talvez possamos começar esse texto perguntando: Será possível que possamos compreender melhor as idéias desenvolvidas por Carl Rogers utilizando uma obra fictícia como modelo formativo? Frequentemente, Rogers utilizou de detalhados e sinceros relatos pessoais em suas obras que instigavam sua reflexão e aperfeiçoamento de suas ideias. De modo análogo, buscamos encontrar no filme, entendido como laboratório de experiências, expressões que nos ajude a compreender o universo das relações humanas.

 

CARL ROGERS E SUAS CONCEPÇÕES

Rogers foi um grande expoente da psicologia norte-americana e exerceu influencia em vários países, principalmente na expansão de sua psicologia denominada "Abordagem Centrada na Pessoa (ACP)", e na poderosa configuração dos grupos de encontros, das organizações e da educação promovidas por essa psicologia.

Em especial os grupos de encontros, desenvolvidos e expandidos por Rogers, podemos dizer que pretendiam "acentuar o crescimento pessoal e o desenvolvimento e aperfeiçoamento da comunicação e relações interpessoais, através de um processo experiencial" (Rogers, 1974, p. 16), ajudando os indivíduos a desmontarem suas resistências e suas reações defensivas. Contudo, esse desmonte só pode se dar se houver sido criado um "clima de facilitação" em que o "facilitador" ou líder do grupo aja "empaticamente" e "aceite incondicionalmente" como verdade vivida tudo aquilo que as pessoas trazem.

Rogers (1974) acredita fortemente que os grupos nessa condição possuem potentes recursos e mecanismos de auto-regulação no ser humano que faz com que o grupo espontaneamente se encaminhe para um desenvolvimento saudável tanto enquanto grupo, como enquanto indivíduo. Desse modo, ele acredita que o facilitador deve assumir uma atitude permissiva e "não-diretiva" para que possibilite ao grupo seguir seu próprio caminho, ao invés de seguir algo previamente planejado e programado pelo líder.

Nesse sentido, trata-se de um encontro "não-estruturado" em que o grupo, utilizando da própria sabedoria e do tempo disponível, busca atingir as metas possíveis dentro dos limites estipulados. Assim, é possível que o indivíduo descubra, diante de situações difíceis, novas maneiras de encarar tais momentos, utilizando de insights que promovem crescimento interno (Rogers, 1983).

Sendo assim, o grupo facilita o desenvolvimento de um eu (self) autêntico e que esteja capacitado a se relacionar de forma honesta e íntima com outras pessoas (Morato & Mosqueira, 2010). Na acepção de Rogers, o eu é "uma auto-imagem ou uma conscientização do eu" (Marx & Hillix, 2007, p. 528), uma estrutura carregada de experiências a qual o indivíduo atribui ao seu próprio corpo ou às consequências do próprio comportamento. Os autores ainda complementam que, para Rogers, essa auto-imagem não é estática. Certamente possui alguma estabilidade, mas que é flexível também, podendo assimilar novas experiências e modificar a própria estrutura, de modo que um eu se torna rígido e intolerante quando ameaçado mas que pode se encontrar fluido e tolerante quando seguro, sendo que para ele, "ser transparentemente aberto é muito mais gratificante do que ser defendido" (Rogers, 1977, p. 208).

Rosenberg (1977) afirma que uma arrojada consequência do pensamento rogeriano na psicologia é a devolução que ele faz ao ser humano do poder de escolher, atribuindo a este a liberdade e a responsabilidade de suas opções. Rogers identifica, tanto no indivíduo quanto no grupo, algo como que uma "força interior" que o impele em direção à liberdade de crescimento pessoal e coletivo e a consolidação de relações saudáveis. Contudo, isso não refere-se a uma regra incondicional, pois Rogers (1977) também considera que o grupo possui tanto possibilidades construtivas quanto destrutivas e, que sendo assim, deve-se promover ambientalmente uma condição que não iniba essa "tendência à auto-realização", mas que, pelo contrário, favoreça ao máximo um clima acolhedor e de franqueza, como já mencionado.

Estas aprendizagens tidas nas experiências de grupo, como afirma Rogers (1974), tendem a se ampliarem e se transportarem para outros âmbitos de relações interpessoais, como por exemplo, para a relação conjugal. Nos grupos de encontro, as pessoas podem encontrar uma nova chance de realizar uma partilha sincera de todo o seu eu. Para o psicólogo, isso leva, quase sempre, a um crescimento pessoal em que, muito raramente, uma pessoa que tenha conhecido esse modo de viver, prefira à fachada/máscara, como frequentemente utilizada pela maioria das pessoas (Rogers, 1977). Isso é exatamente o que acontece na situação do filme escolhido, ou seja, a expansão das aprendizagens do grupo para outros contextos e para o interior dos casamentos.

Muitos elementos descritos por Rogers e que são essenciais no desenvolvimento pessoal e grupal, são também igualmente desenvolvedores em outros contextos, tais como: em empresas, igrejas, penitenciárias, comunidades alternativas e no próprio casamento. Quanto a esse último contexto, Rogers dedicou o livro "Novas formas do amor: O Casamento e suas alternativas" (publicado originalmente com o título de Becoming Partners: Marriage and its Alternatives), em que apresenta diversos relatos íntimos de pessoas dispostas a compartilharem suas experiências. Nele, Rogers buscou elementos que favoreçam e/ou prejudicam as relações conjugais. Nessa análise, Rogers (1977) identificou pelo menos quatro elementos fundamentais às relações conjugais, sejam eles: o "compromisso com o processo de relacionamento"; a comunicação efetiva e mútua dos sentimentos e impressões persistentes; "o repúdio da existência pautada pelas expectativas alheias"; e o "descobrimento e a partilha da personalidade própria e separada de cada um" (p. 208).

 

BOB, CAROL, TED E ALICE: CASAIS (DE AMIGOS) EM CRESCIMENTO

A escolha do filme "Bob, Carol, Ted e Alice" (EUA), produzido em 1969 pelo diretor Paul Mazursky, se deu pela grande interlocução possível com a teoria psicológica do Rogers, visto que se trata de uma influência direta e de que compartilham do mesmo contexto histórico-cultural.

Vale destacar que houve nos Estados Unidos, a partir da segunda metade da década de 40, o surgimento de modalidades grupais que visavam uma experiência intensiva e coletiva, na qual geralmente se tratava um grupo pequeno, relativamente não estruturado, e com certa liberdade do grupo quanto ao direcionamento. Assim também foram os grupos elaborados por Rogers, mas que teve como destaque a presença do facilitador, cuja responsabilidade era a de tornar mais fácil a expressão franca dos sentimentos e pensamentos dos integrantes do grupo, dando atenção também às interações interpessoais (Rogers, 1974).

Essas atividades grupais se expandiram rapidamente pelos Estados Unidos e também pelo mundo, mesmo sendo criticado pela cultura vigente. Disso, o próprio Rogers (1974) reconhece sua grande influência, afirmando que "os alicerces conceptuais de todo este movimento foram inicialmente, por um lado, o pensamento lewiniano e a psicologia gestaltista e, por outro, a terapia centrada no cliente [criada por ele mesmo]" (p. 16).

Voltando ao filme, temos dois momentos principais quanto ao seu roteiro, sendo que, no primeiro, um casal californiano (Bob e Carol) participa de um grupo de encontro na zona rural num lugar chamado "O Instituto", com várias atividades excêntricas e que possibilitam os participantes conhecerem melhor uns aos outros e a si mesmos. Dentre essas atividades destaca-se um momento que um grupo passará 24 horas, ininterruptas, fechados num mesmo ambiente e convivendo de forma intensa. Também há varias dinâmicas de interação com outras pessoas e consigo mesmo, que são incentivados pelo "guia" para se comunicarem efetivamente de forma sincera e de acordo com o que sentem, sob a única regra de não haver violência física.

Numa das atividades, os participantes são solicitados a caminharem e se olharem, buscando fazer contatos, conhecerem uns aos outros, mostrarem como se sentem e quem realmente são. Já em outra atividade, cada pessoa deve bater bastante em almofadas, enquanto gritam e pensam em algo que não gostam, promovendo uma espécie de catarse. O casal Bob e Carol se envolve numa conversa sobre eles próprios e desenvolvem diálogos expressivos e que os ajudam a melhorar suas relações.

O segundo momento do filme mostra o casal depois do retorno para Los Angeles e para proximidade de um casal de amigos (Ted e Alice), que se encontra constrangido e influenciado por essas novas posturas do primeiro casal. O filme, então, se focaliza agora mais nos relacionamentos internos dos casais, e nos (multi)ângulos amorosos que vão se insinuando, de forma que o primeiro casal continua sempre a tentar replicar no seu cotidiano presente aquele modo de ser desenvolvido no grupo de encontro.

Numa viagem a trabalho em São Francisco, por exemplo, Bob se relaciona sexualmente com uma mulher, o que, contudo, é bem superado pelo casal quando revela à Carol. Sentindo-se cada vez mais abertos, desta vez, Carol leva à sua casa o seu professor de tênis e são surpreendidos pela chegada inesperada de Bob. Novamente, tal situação é bem encarada e superada, fortalecendo o casal. Nesse momento, o filme foca na interação desses casais entre si, sendo que no final, há uma grande conversa em que vão investigando os desejos uns dos outros e de si próprios sobre eles mesmos a despeito da possibilidade de realizarem uma troca, entre si, de parceiros sexuais.

 

A TEORIA EM-CENA

Um aspecto de destaque nas reflexões de Rogers (1974, 1983) é a importância da transparência nas relações, uma "autenticidade" em que cada um deve comunicar a si mesmo e ao outro os seus próprios pensamentos e sentimentos, tal como os vivenciam, caracterizando aquilo que Rogers denomina de atuar segundo aquilo que sinto. Trata-se da busca de uma autenticidade nas relações, mostrando quem se é verdadeiramente, o que só é possível na medida em que se busca ser ativamente sincero na comunicação, resultando necessariamente numa "congruência" e integração de si para si e para o meio social.

Podemos perceber isso numa das atividades ocorridas no grupo de encontro do filme, onde há uma pequena roda interna, com o restante das pessoas por fora. No grupo, o guia promoveu um espaço em que compartilhassem experiências próprias, no trecho a seguir do filme de Mazursky (1969) encontramos Roger e Carol: Roger: Não sei por quê... Nunca consegui fazer nada por mim mesmo. Carol: Eu acho que a razão por que se sente tão indefeso,

Roger... é porque gosta. Guia: Carol... não diga a Roger o que pensa, diga-lhe como se sente a respeito dele, diga-lhe o que sente por ele. Carol: Eu sinto pena dele. Roger: Obrigado.

Nesse trecho, vemos que deveriam ser evitados comentários interpretativos e hipotéticos, buscando uma comunicação clara daqueles sentimentos que se fazem presentes e dos quais cada um pode falar com toda propriedade, atentando-se somente para aquilo que se manifesta naquele momento. Rogers (1974) acredita que o importante para as relações é que se focalize o significado que cada experiência tem para cada sujeito, e que para isso necessita-se de uma comunicação dos sentimentos, positivos ou negativos, que se façam persistentes.

Num outro momento, ainda no grupo d'O Instituto, Carol e Bob se encontram num canto da sala, abraçados, agachados, emocionados e enquanto são assistidos pelos outros participantes, desenrolam o seguinte diálogo:

Bob: Eu sinto... que você não compartilha... você poderia olhar para mim?... Por favor! Carol: Você está me pressionando novamente!... está me obrigando a fazer algo. Bob: Desculpe. Guia: Bob, quero que expresse como se sente agora. Bob: Sinto-me culpado. Sinto confuso... Guia: Então expresse isso. Bob: Eu gostaria que Carol se abrisse mais comigo...mas faço com que se feche...ao forçá-la a se abrir. Sinto muito. Eu escondo meus sentimentos, mas você esconde os seus. Carol: É verdade, eu os escondo... Eu tenho medo de você. Guia: Bob, diga a Carol como se sente neste momento. Diga-lhe agora. Bob: Eu a amo... Eu te Amo. Carol: Eu sei... Bob: Eu quero que me ajude. Desde que te conheço... sempre tive medo de pedir sua ajuda. Carol: Eu não sabia. Bob: Me ajude!

A partir de suas experiências, Rogers pensa que, para o desenvolvimento saudável dos grupos e dos casais, é imprescindível a franqueza dos sentimentos, pois tal como acabamos de ver nesse diálogo do filme, "a partilha dos sentimentos mais profundos que alguém descobre em si mesmo provoca uma partilha semelhante do outro" (Rogers, 1977, p. 203). Assim, ao estar mais próximo dos próprios sentimentos, o indivíduo começa a constituir a base necessária para mudanças, não tendo mais os próprios sentimentos como algo rigidamente organizado.

Contudo, como atuar de acordo com aquilo que se sente não é a atitude preponderante em nossa sociedade, ao entrar em contato com pessoas que não agem assim, acabamos gerando inevitavelmente desconforto em situações sociais. Isso por sua vez pode encaminhar para um estranhamento e afastamento das pessoas, como pode também gerar abertura para que o outro também manifeste aquilo que sente. Ambas as opções ocorrem em certa cena do filme, em que os dois casais (que aqui vamos considerar como um verdadeiro grupo) estão em um restaurante. A primeira opção ocorreu quando Emílio, o garçom, ao terminar de servir os casais diz: "obrigado, espero que tudo tenha sido satisfatório"; e Carol, intrigada, pergunta a Emílio se "realmente espera e deseja que o serviço tenha sido satisfatório? É o que você sente realmente?"; e em Emílio, perplexo, só lhe passava pela mente perguntas sobre se havia algo de errado com o jantar ou o serviço.

Na situação anterior, numa tentativa de descortinar as convenções de cortesia, Carol acabou constrangendo o garçom, indo posteriormente se desculpar na cozinha com ele; contudo, isso só ocorreu pela não preponderância social de comunicações francas. É nesse sentido que Rogers defendia a importância dos processos de confrontação e feedback nos grupos, para o desmantelamento das máscaras sociais e a efetiva comunicação de si.

O feedback refere-se à comunicação ao outro de como o percebo e sou afetado por ele, possibilitando que ele tenha o conhecimento de como é visto pelos outros e que efeito produz nas relações interpessoais (Rogers, 1974). Assim, para Rogers, a confrontação passa a ser algo importante nas relações, porém não se trata de um ataque às defesas do outro, mas sim de um confronto utilizando dos próprios sentimentos, uma confrontação que pode se dar pelo próprio feedback, por exemplo, ao comunicar a alguém que se sente desconfortável em virtude de algum comportamento, pode levá-lo a repensar sua atitude.

Retomemos, então, a segunda opção de consequência quando há um confrontamento, que possibilita a abertura à expressão sincera. Na cena do restaurante, Bob e Carol, muito empolgados, contam ao casal amigo os aprendizados obtidos pela experiência da maratona no grupo do final de semana, até o momento em que Bob nota um mútuo olhar de desdém entre Ted e Alice. Esse olhar leva-o a questioná-los, fazendo-os entrar numa conversa sobre a expressão daquilo que se sente. Ted e Alice se dizem ser sinceros e nunca mentir e, em seguida, Bob passa a confrontá-los com sua impressão de falsidade. Bob, então, num exercício de teste, pergunta a Ted:

Bob: O que você sente sobre... meu cabelo? Ted: Seu cabelo? Eu não quero ofender você... mas não gasto a maior parte do dia pensando sobre seu cabelo. Carol: Seja sincero. Ted: Seu cabelo fica muito bem em você. Carol: Você está cheio de porcaria. Bob: Papo furado! Bob: Isso é o que chamamos de papo furado. Carol: Sim. Isso é papo furado.Bob: Não consegue sentir? Como você se sente sobre isso? Ted: Ok! Sinto que é um pouco comprido. Carol: Isso é lindo, Ted. Bob: Ótimo. Está começando. Está começando a se abrir. Assim que se começa a lidar com as coisas. O que sente mesmo é que meu cabelo é ridiculamente comprido! E que eu sou um sujeito de meia idade... tentando parecer um jovem hippie ou coisa parecida. Ted: OK, OK! Acho que seu cabelo parece ridículo. Que bobagem! Bob: Isso é lindo, cara. A verdade é sempre linda. Carol: Isso é ótimo! Ted: Isso é bom? Carol: Isso é lindo. Ted: Gostou disso? Bob: É lindo.

A partir desse momento, esse grupo de casais assume um novo sentido em comum, o da comunicação franca. Se, nesse processo grupal, "os sentimentos forem expressos e puderem ser aceitos numa relação, resultam em intimidade e sentimentos positivos" (Rogers, 1974, p. 46). Essa expressão de atitudes e sentimentos encorajados socialmente, possibilita que surja espontaneamente uma "intuição compreensiva", também chamada por Rogers de insight. A compreensão que Rogers (1997) dá ao insight é fundamental à sua teoria e implica na percepção do indivíduo de novos sentidos na própria experiência, na visualização de relações novas de causa e efeito, na identificação de novos sentidos aos sintomas de uma conduta, e ainda na constatação do próprio padrão de comportamento. O insight, na percepção da pessoa, é como que uma súbita compreensão de algo que parecia já estar aí, mas sem ser notado, ou como que uma súbita captação de um sentido que se agrega a um todo de experiências que se encontravam vazias de sentido e desligadas entre si.

No filme em questão, apareceram alguns insights de forma clara e outros nem tanto, mas antes de apresentarmos os trechos exatos, contextualizaremos o momento deles. Bob, enquanto esteve em São Francisco a trabalho, se relacionou sexualmente com uma outra mulher. Já em casa, num momento de carícias com Carol, Bob se mostra incomodado e, com certo receio, revela o que ocorreu à ela. Carol, perplexa, surpreendentemente se revela compreensiva e diz não estar com ciúmes. Essa atitude enfurece Bob, que se sente culpado, mesmo que esteja claro que tenha sido apenas sexo casual:

Bob: Eu sei o que é traição! É quando você transa com outra que não é sua mulher... isso é trair! Carol: (Expressando corporalmente sensação de grande revelação, ou insight) Eu me sinto... mais próxima de você do que nunca me senti em toda minha vida!... Sinto que... você está compartilhando uma coisa tão pessoal! Sinto-me muito comovida por você confiar em mim. Você não fez nada de errado. (Carol abraça Bob) Você é um homem muito atraente e bonito. Ama sua mulher, e ama seu filho. Querido, você não fez nada de errado. E eu te amo (A conversa continua mais um pouco e terminam transando).

Vemos aqui que, ao saber da notícia, Carol não se entregou ao cumprimento das expectativas sociais de reagir com um escândalo e brigas ou se mostrar enciumada e decepcionada, cedendo às provocação de Bob. Mas, por outro lado, Carol ouviu a si mesma e confiou no amor deles, compreendendo que aquilo não era um problema realmente significativo. Vemos aqui que a dita traição que tão facilmente abala os casamentos, neste caso, apenas serviu como disparador de um insight em Carol, ou seja, de que ele realmente confiava nela. Essa atitude acabou por fortalecer a relação entre eles, levando-a a comentar empolgadamente tal situação, como que um troféu de superação, ao casal de amigos, que se espantaram com a notícia.

Em outro momento no filme, Bob chega de viagem e, bem empolgado, conta à Carol de que desta vez não ficou com tal mulher, e ela constrangida, mas esperançosa que Bob compreenda, revela à ele que há um homem lá no quarto com quem ela está tendo um "caso". Bob, apesar de ter dito a Ted, em outro momento, que não se importaria com tal situação, neste momento, se revolta e se mostra incompreensível. Depois de uma breve conversa, Bob se desculpa pela reação, obtém um insight e se sente extremamente aliviado:

Carol: Eu nunca deveria tê-lo trazido aqui. Bob: Sim, deveria, fez a coisa certa, foi aberta. Carol: Não, não fiz. Fiz a coisa errada. Bob: Não, não fez. Carol: Você sabe, não deveria tê-lo trazido à nossa própria casa. Bob: Olha, eu não tive esse tipo de coragem (Bob abraça Carol). Tive que fazê-lo num quarto de hotel barato em São Francisco. Você o trouxe direto para sua própria casa. Você me faz sentir como uma criança, de 5 anos... que quer pegar seu bolo e comer... e não quer que mais ninguém pegue. Carol: Eu te amo. Bob: Oh, meu Deus. Insight... Oh, pelo amor de... Luzes estão acendendo, baby, em minha cabeça! Luzes estão acendendo! Insight! O que aconteceu? O que houve aqui? O que realmente aconteceu? Você teve algo com um homem. Carol: Sim. Bob: Quer dizer, você já fez, não é? Então, ninguém se machucou. Alguém está ferido? Carol: Não! Físico, foi algo apenas físico. Bob: Sem amor? Carol: Não, nada parecido. Bob: Será possível? Pelo amor de Deus!

Em suas antecipações mentais, Bob se imaginava preparado para tal situação, ou talvez realmente não acreditava na possibilidade de isso vir ocorrer, mas é subitamente surpreendido com a vivência real do caso extra-conjugal de Carol. No entanto, consegue olhar para si mesmo, para sua fúria e para seu desespero e identificar o que realmente sente e o que realmente se passa nessa situação, conseguindo tirar suas próprias lições e terminar a conversa tomando whisky com o tal homem lá no quarto.

Bob e Carol, depois da experiência de franqueza no grupo d'O Instituto, continuam a se expandirem e crescerem, tanto individualmente quanto como casal e grupo (formado com o outro casal). Essa é uma concepção importante de Rogers (1983), de que se pode confiar em cada ser humano e que há um fluxo em cada organismo (individual ou coletivo) que caminha para a "realização construtiva das possibilidades que lhe são inerentes" (p. 40). Algo como que uma "tendência realizadora", uma tendência natural à auto-realização; enfim, de que trata-se de um organismo auto-realizador. Para ele, o "organismo, em seu estado normal, busca a sua própria realização, a auto-regulação e a independência do controle externo" (Rogers, 1983, p. 41).

No filme, esse desenvolvimento organísmico se mostra de forma clara, tanto no grupo inicial, quanto nos casais e suas reverberações individuais. Bob e Carol, à medida que se aceitaram tal como são, puderam se abrir ao diálogo e, assim, respeitaram a liberdade um do outro, promovendo o crescimento individual e o fortalecimento do casal. Tudo isso passa a ser mantido mais fortemente pelos sentimentos autênticos do que pelas fachadas sociais do casamento. O mesmo ocorreu com o casal Ted e Alice, que inicialmente se mostrava escondido em expectativas, mas que logo se contaminou com a franqueza nas relações, abrindo as portas para a execução de suas potencialidades.

Na porção final do filme, em que estão juntos num apartamento de um hotel, ocorre um contágio progressivo de sinceridade, em que vão se revelando e explorando os sentimentos próprios e alheios, sobre a possibilidade de uma orgia. Bob revela que Carol teve um caso; Ted também revela que teve um caso, em Miami; Alice revela o desejo por uma orgia e troca de casal; Bob inicialmente nega seu desejo por Alice, mas confessa tê-lo; e Ted que, inicialmente, abomina a idéia de transar com Carol, acaba aceitando em si tal desejo.

Enfim, por meio de um clima permissivo e aberto, o grupo se auto-organiza para aquilo que parece ser o melhor para a situação e se encaminham para a cama, onde se acomodam e, sob um clima tenso, começam a se beijar. Contudo, novamente o grupo, sob a premissa da autenticidade, se descobre, pelos toques e por olhares que a orgia não vai funcionar, e que o melhor era parar por ali. Vemos com tudo isso, que o mais importante não é a consolidação de uma escolha rígida e eterna, mas a constante auto-regulação de acordo com o que o organismo sente a cada momento, podendo os indivíduos, nesse clima estimulante, escolher livremente pelos caminhos construtivos e positivos.

 

Um esboço sobre conjugalidade

Rogers (1977) afirma com veemência que é extremamente fraca a união conjugal pautada pelos compromissos sociais, e que toda vida fundada pelas expectativas de comportamento opõe-se fortemente a um casamento que se desenvolve efetivamente. É certo que Alice e Ted se escondiam no lugar cômodo de um casal tradicional, horrorizando-se com a sinceridade dos outros, e dizendo-se verdadeiros quanto mais sabiam não o serem. Alice achava um absurdo Bob ter um caso extra-conjugal, enquanto Ted, se reconfortando ao seu próprio caso, afirmava que a bobeira de Bob foi a de compartilhar tal segredo. Bob e Carol mostraram a eles que é possível desejar outras pessoas sem que isso implique a destruição do casamento, e que ao se revelar tais verdades, esses desejos ganham autenticidade e passam de sentimentos de culpa para aceitação de si e melhor julgamento sobre as próprias ações.

Assim, Rogers (1977) estabelece que toda união continuada e persistente precisa ser constantemente revigorada, trabalhada, transformada, construída e reconstruída, para que haja o crescimento dos dois cônjuges. A firmeza do relacionamento se encontra na mudança e no processo, e não na estrutura institucional do casamento, ou em qualquer outra coisa estática ou objetiva. É somente a partir disso que o indivíduo "se sente seguro para aventurar-se a um comportamento arrojado, inovador, desafiador, tentar livremente mudar o seu mundo, assumir riscos, porque sabe que pode voltar ao relacionamento seguro" (Rogers, 1977, p. 197).

 

Reflexões finais

O presente texto buscou reafirmar algumas reflexões de Rogers, desenvolvidas há mais de 30 anos, utilizando de um filme produzido em 1969. Será que esses dois elementos possuem algo referente à nossa contemporaneidade? Rogers foi desafiado a descrever como seriam as relações humanas no ano 2000, décadas à frente de seu tempo, e mais de uma década atrás do presente, que podemos conferir nos excertos a seguir:

(...) é provável que continue a tendência para uma liberdade maior nas relações sexuais, em adolescentes e adultos. (...) a relação entre o homem e a mulher só terá permanência na medida em que satisfazer às necessidades emocionais, psicológicas, intelectuais e físicas dos Parceiros. (...) Poderá haver um assentimento mútuo quanto à necessidade ou não de fidelidade sexual no casamento. (...) um contínuo de relações (...) desde o encontro mais fortuito (...) até uma união rica e satisfatória, em que a comunicação é franca e real, em que cada qual se empenha em promover o desenvolvimento pessoal do outro, e em que existe um entranhado apego mútuo, base sólida para a geração e a educação de filhos num ambiente de amor. (...) A dissolução da união, embora penosa, não será uma catástrofe social, e a experiência talvez seja um passo necessário ao desenvolvimento pessoal dos dois indivíduos em sua marcha para a plena maturidade (Rogers, 1974, p. 15-17).

Passado tanto tempo, será que temos nos aproximado da consolidação dessa descrição de atitudes de Rogers? Será que nossa sociedade e nossa cultura têm privilegiado o desenvolvimento das relações humanas, da franqueza, da liberdade, da abertura à potencialidade, do crescimento pessoal e coletivo? Ou será que a sociedade tem se perdido em meio ao desenvolvimento tecnológico e econômico que busca a todo momento a dispensa dos contatos humanos, em prol do crescimento financeiro e de bens materiais? Será que as corporações, os contratos e as associações com metas comuns são uma boa substituição aos grupos de encontros e às comunas (ou comunidade alternativas), que promoviam/promovem o crescimento humano e a transcendência de si? Será que hoje, com o enfraquecimento do controle externo das instituições tradicionais de organização social, os casais se encontram mais livres para a consolidação das relações a partir dos verdadeiros sentimentos? Ou será que novas ideologias e instituições (predominantemente privadas) têm assumido tal controle social, cerceando novamente o livre desenvolvimento pessoal e social? Será que nós mesmos assumimos atitudes de crescimento em relação a nós mesmos e aos outros?

Obviamente que algumas dessas perguntas insinuam certas respostas, mas é claro também que talvez precisemos mais nos questionar sobre o que se passa no organismo de cada um, nos atentarmos para o que nossos organismos, nossos sentimentos mais profundos e autênticos e nossa potencialidade nos impelem, do que mais uma vez querer atribuir respostas simples e gratuitas a situações de grande complexidade.

 

Referências

Marx, M. H., & Hillix, W. A. (2007). Variedades da Teoria da Personalidade. Em M. H. Marx, & W. A. Hillix, Sistemas e teorias em Psicologia (16a ed., pp. 479-576). São Paulo: Cultrix         [ Links ]

Mazursky, P. (Diretor). (1969). Bob, Carol, Ted e Alice [Filme Cinematográfico]. EUA: Columbia & Frankovich.         [ Links ]

Morato, H. T. P., & Mosqueira, S. M. (2010). Abordagem Centrada na Pessoa: Rogers (Série Psicoterapias, Revista Mente & Cérebro, 4, 66-105). São Paulo: Duetto.         [ Links ]

Rosenberg, R. L. (1977). Introdução. Em C. R. Rogers & R. L. Rosenberg, A Pessoa como Centro. São Paulo: EPU.         [ Links ]

Rogers, C. R. (1974). Grupos de encontros. Lisboa: Livraria Martins Fontes         [ Links ]

Rogers, C. R. (1977). Novas Formas do Amor (4a ed.). Rio de Janeiro: Livraria José Olympio.         [ Links ]

Rogers, C. R. (1983). Um Jeito de Ser. São Paulo: EPU.         [ Links ]

Rogers, C. R. (1997). Alcançar o Insight. Em C. R. Rogers, Psicoterapia e Consulta Psicológica (1a ed., pp. 175-220). São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

 

 

Notas sobre o autor
Renner de Almeida Bernardes Mariano

Graduando em Psicologia pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU).
Email: rennergt@hotmail.com.

 

Recebido em janeiro de 2014
Aceito em agosto de 2014