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Revista do NUFEN

On-line version ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.6 no.1 Belém  2014

 

Artigo

 

Beauvoir, o patriarcado e os mitos nas relações de poder entre homens e mulheres

 

Beauvoir, The patriarchate and myths of power in relations between men and women

 

Beauvoir, el patriarcado y miots de poder en las relaciones entre hombres y mujeres

 

 

Maria Luzia Miranda Álvares

Grupo de Estudos e Pesquisas Eneida de Moraes sobre Mulher e Gênero-GEPEM/Universidade Federal do Pará

 

 


RESUMO

ensaio que analisa a obra "O Segundo Sexo" de Simone de Beauvoir, enfatizando a reflexão do conceito de patriarcado sobre o problema da participação política formal das mulheres, e abordagem de alguns "fatos e mitos" que contribuem para o jugo das mulheres. A obra foi construída em uma perspectiva fenomenológica existencial de gênero, portanto ao mostrar a dinâmica das ações femininas focaliza o conceito de "experiência vivida", que contribui para compreensão e o "desalinhamento" da perspectiva do status quo. Tal perspectiva pode ser articulada as redes do conceito de gênero enquanto pauta de estudos das relações sociais hierarquizadas, conceito defendido por outra teórica, Joan Scott.

Palavras-chave: Beauvouir, gênero, mulheres, patriarcado, existencialismo.


ABSTRACT

essay that analyzes the book "The Second Sex" by Simone de Beauvoir, emphasizing reflection of the concept of patriarchy on the problem of formal political participation of women, and some "myths and facts" approach that contribute to the oppression of women . The project was built in an existential phenomenological perspective of gender, so to show the dynamics of women's actions focuses on the concept of "lived experience" that contributes to the understanding and "misalignment" of the perspective of the status quo. Such a perspective can be articulated networks of the concept of gender as a staff study of hierarchical social relations, defended by another theoretical concept, Joan Scott.

Keywords: Beauvouir, gender, women, patriarchy, existentialism.


RESUMEN

ensayo que analiza el libro "El segundo sexo" de Simone de Beauvoir, haciendo hincapié en la reflexión del concepto de patriarcado en el problema de la participación política formal de las mujeres, y un poco de enfoque "mitos y realidades" que contribuyen a la opresión de las mujeres . El proyecto fue construido en un punto de vista fenomenológico existencial de género, por lo que para mostrar la dinámica de las acciones de las mujeres se centra en el concepto de "experiencia vivida" que contribuye a la comprensión y la "desalineación" de la perspectiva de la situación actual. Esta perspectiva se puede articular redes del concepto de género como un estudio personal de las relaciones sociales jerárquicas, defendido por otro concepto teórico, Joan Scott.

Palabras-clave: Beauvouir, el género, las mujeres, el patriarcado, el existencialismo.


 

 

No século XXI são perceptíveis os avanços na participação das mulheres no mundo público, derivados de várias ações produzidas pelos diversos movimentos e cientistas sociais, e das áreas de humanidades.

Sobre as contribuições dos movimentos feministas temos a produção de teorias de gêneros, e no campo das legislações elaboradas no Brasil, e as que o país é signatário destacamos o II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, a Lei Nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, ou Maria da Penha, que asseguram os direitos de mulheres e propõem que práticas devem ser acionadas como mecanismos de garantia e proteção desses direitos.

A partir da conceituação das diferenças entre as mulheres, da III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, (em 2001), têm sido evidenciadas no debate sobre as opressões vividas pelas mulheres, à importância de se pensar e reconhecer práticas feministas transnacionais, de modo que possa ser garantida à mulher negra brasileira a condição de sujeito político e atuante na história do país. (Brah, 2006; Butler, 2003)

Os estudos feministas possuem diversos enfoques teóricos e metodológicos, assim, neste texto o foco é uma obra inserida nos estudos fenomenológicos existenciais de gênero.

Consideramos que a leitura sistemática de "O Segundo Sexo" (1967) de Simone de Beauvoir1 , instigou a reflexão do conceito de patriarcado sobre o problema da participação política formal das mulheres. Mas, no mesmo ritmo da escrita dessa autora que aponta "fatos e mitos" subjugando as mulheres e, ao mesmo tempo, interroga estes pontos construidos num processo de representação da tradição escrita (áreas de conhecimento, histórias etc), e mostra a dinâmica das ações femininas dentro da "experiência vivida", a provocação pautou não só a leitura do "desalinhamento" da perspectiva do status quo, mas se fortaleceu nas redes do conceito de gênero enquanto pauta de estudos das relações sociais hierarquizadas, conceito defendido por outra teórica, Joan Scott (1992)2 De Simone de Beauvoir é sugestivo o que ela observa na abertura do segundo volume do O Segundo Sexo quando, provocativamente, vai mostrar em que deu aquele emaranhado de "mitos" que levava as mulheres a submeter-se ao "eterno feminino":

Elas começam a afirmar sua independência ante o homem; não sem dificuldades e angústias porque, educadas por mulheres num gineceu socialmente admitido, seu destino normal seria o casamento que as transformaria em objeto da supremacia masculina. (Beauvoir, 1967, Abertura).

Mas completa em outro parágrafo inicial:

NINGUÉM nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino. Somente a mediação de outrem pode constituir um indivíduo como um Outro.(idem, p. 9)

Na quarta parte do segundo volume – A caminho da Libertação – A mulher Independente (pags. 449- 500) - Beauvoir evidencia alguns marcos de mudanças na situação das mulheres, em foco, as francesas:

O CÓDIGO francês não mais inclui a obediência entre os deveres da esposa, e toda cidadã tornou-se eleitora; essas liberdades cívicas permanecem abstratas quando não se acompanham de uma autonomia econômica. (...) Não se deve, entretanto acreditar que a simples justaposição do direito de voto a um ofício constitua uma perfeita libertação: hoje o trabalho não é a liberdade.

Dois outros excertos desse capítulo apontam para a assimilação dos atributos simbólicos que caracterizaram a vivência feminina, condicionados como resultado do longo processo de submissão a que este gênero foi submetido.

Por outro lado, a estrutura social não foi profundamente modificada pela evolução da condição feminina; este mundo, que sempre pertenceu aos homens, conserva ainda a forma que eles lhe imprimiram. É preciso não perder de vista esses fatos, dos quais a questão do trabalho feminino tira sua complexidade.

No excerto seguinte a autora aponta para a própria realidade de seu tempo (o livro foi escrito no final da década de 1940 e publicado em 1949) em que o grande mote da realização das mulheres estava na cultura do trabalho profissional fora do espaço doméstico:

A mulher que se liberta economicamente do homem nem por isso alcança uma situação moral, social e psicológica idêntica à do homem. A maneira por que se empenha em sua profissão e a ela se dedica depende do contexto constituído pela forma global de sua vida.

No Volume I do livro aponta para dois fatores que convergiram para a atualização da condição da mulher e a conquista total de sua pessoa: a participação no processo produtivo e a libertação da escravidão da reprodução o que quer dizer: a mulher liberta-se de uma concepção de "Natureza" imposta, durante o Século XIX, pelas tecnologias que se inscrevem no controle da função reprodutora.

Quanto aos direitos políticos, diz:

"...não foi sem dificuldade que se conquistaram na França, na Inglaterra, nos Estados Unidos. Em 1867, Stuart Mill fazia, perante o Parlamento, a primeira defesa oficialmente pronunciada do voto feminino. Reclamava imperiosamente, em seus escritos, a igualdade da mulher e do homem no seio da família e da sociedade [dizendo]. "Estou convencido de que as relações sociais dos dois sexos, que subordinam um sexo a outro em nome da lei, são más em si mesmas e constituem um dos principais obstáculos que se opuseram ao progresso da humanidade; estou convencido de que devem ser substituídas por uma igualdade perfeita." (O Segundo Sexo _Vol. I, p. 158)

Mas a política não se fazia apenas nesse âmbito, pois a luta sufragista ou pelo direito do voto da mulher se inscrevia na agenda mundial. Em 1945, as francesas estavam negociando com o Primeiro Ministro Charles de Gaulle (1944-1946) uma "saída" para garantirem o seu estatuto de cidadania pelo voto que só será assinado um ano depois. Esse aspecto é um dos itens que Simone trata desde o primeiro volume de seu livro, quando recupera a presença de Stuart Mil, de Mary Wollstonecraft, na Inglaterra, e de Condorcet, na França, pioneiros em torno da questão, e aponta para os avanços do movimento feminista no Século XX. Ao se deter no caso da França de negar o direito do voto às francesas diz: "Mais gravemente objeta-se com o interesse da família: o lugar da mulher é em casa; as discussões políticas provocariam a discórdia no lar". E observa: "A despeito da pobreza de todas essas objeções, foi preciso esperar até 1945 para que a francesa conquistasse todas as suas capacidades políticas" (p. 160, vol. I).

Essa ênfase na participação política feminina inclui também as críticas ao feminismo, não sem antes Simone demonstrar que assumira a filosofia desse movimento ao constatar: "...toda a história das mulheres foi feita pelos homens (....) eles é que sempre tiveram a sorte da mulher nas mãos; dela não decidiram em função do interesse feminino(...) foi o conflito entre a família e o Estado que então definiu o estatuto da mulher (...). E segue avaliando a história de lutas e de conquistas que esse gênero empreendeu num mundo marcado pelas leis e pelos costumes que excluíam as mulheres do estatuto de direitos da pessoa humana.

Mas em seu estatuto vivenciado de marxista existencialista, o ponto final de sua ênfase sobre o sistema patriarcal dominante na vida das mulheres é dando a ideia a Marx, no último parágrafo do livro:

"A relação imediata, natural, necessária do homem com o homem é a relação do homem com a mulher", disse Marx". "Do caráter dessa relação decorre até que ponto o homem se comprometeu como ser genérico, como homem; a relação do homem com a mulher é a relação mais natural do ser humano com o ser humano. Nela se mostra portanto até que ponto o comportamento natural do homem se tornou humano ou até que ponto o ser humano se tornou seu ser natural, até que ponto sua natureza humana se tornou sua natureza".3 E Simone conclui:

Não há como dizer melhor. É dentro de um mundo dado que cabe ao homem fazer triunfar o reino da liberdade; para alcançar essa suprema vitória é, entre outras coisas, necessário que, para além de suas diferenciações naturais, homens e mulheres afirmem sem equívoco sua fraternidade (idem, p. 500).

O que parece importante destacar é que ao procedimento metodológico intercorrente emergem as evidências de todas as situações vividas nessa experiência, apontando para comportamentos múltiplos de homens e mulheres, fugindo ao poder naturalizado que se tornou submisso aos mitos e se tornou prevalecente secularmente na vida das mulheres e dos homens. É o que mais tarde, no final do século XX, será tratado pela teoria do gênero, como categoria de análise mostrando que as atitudes/comportamentos entre os sexos são relacionais construídas nas bases das relações de poder.

Como se traduz essa afinidade precoce entre a construção argumentativa beauvoiriana e a teoria de gênero? Apesar das críticas recebidas por essa obra reflexiva e analítica em torno da situação (circunstanciada) da mulher (cf. Chaperon, Sylvie, 1999) críticas proferidas por intelectuais (esquerdistas, direitistas), além de grupos de feministas franceses de sua época, a precedência das argumentações que o livro revela ao favorecer a leitura abrangente das situações enunciadas entre os dois sexos, demonstra a intenção da escritora em apontar a complexidade de vivências de homens e mulheres, nunca admitindo o essencialismo, embora uma das críticas que o livro recebeu seja sobre o centramento de Simone ao termo "mulher". Seus críticos deixaram de referir, contudo (caso tenham lido integralmente a obra), que logo ao iniciar suas alegações sobre as "experiências vividas", a autora registra não incorrer no fatalismo essencialista de empregar as palavras "mulher" ou "feminino" com a dimensão arquetípica ou a se restringir a "nenhuma essência imutável; (...), posto que não espera enunciar "verdades eternas", mas descreve "o fundo comum sobre o qual se desenvolve toda a existência feminina singular (p.7, v.II).

Ao observarmos a 'retradução cultural do biológico' deslocada para o uso analítico da categoria gênero problematizada como uma construção social – e, consequentemente, histórica vê-se esse estatuto dimensionado através da obra de Beauvoir para analisar a situação da mulher. Essa nova vertente será favorecida pelas análises de outras intelectuais e teóricas mundiais, das várias áreas do conhecimento (sociologia, antropologia, filosofia política, psicanalistas etc.) algumas com base nas grandes teorias, para esquadrinhar o sistema social e identificar em que medida as relações de gênero hierarquizadas interferem nos costumes e nas regras sociais e eliminam as mulheres da cidadania que lhes é devida como indivíduo. A teoria feminista será o grande legado que essas incansáveis teóricas deixam ao paradigma das Ciências Humanas, ao tratarem das relações sociais no trabalho, no lar, na participação política e pública, nas decisões pessoais ou coletivas entre os gêneros.

Nesse particular, ou seja, pensando na reconfiguração da tão explorada "condição feminina", o feminismo contraiu dívidas pela ousadia intelectual e política de Simone de Beauvoir.

 

Referências

BEAUVOIR, Simone. (1967) O Segundo Sexo, Volume 2. Difusão Européia do Livro, 2ª Edição, 1970.         [ Links ]

BRAH, Avtar. Diferença, diversidade, diferenciação. Cadernos Pagu. nº26, 2006. pág. 329-376         [ Links ]

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003        [ Links ]

 

 

Notas sobre a autora
Doutorado em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro.
Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Eneida de Moraes sobre Mulher e Gênero-GEPEM/UFPA, desde 1994.
luzia@ufpa.br

Recebido em março de 2014
Aprovado em junho de 2014

 

 

1 Simone de Beauvoir (1908-1986) foi escritora, filósofa existencialista e feminista francesa. Era parceira de Jean-Paul Sartre, também filósofo existencialista que com ela e Maurice Merlau-Ponty criou a célebre Revue Les Temps Modernes. Para a teoria feminista "O Segundo Sexo" (1949) se torna um dos bastiões da crítica à condição de opressão das mulheres.. "O Segundo Sexo", Difusão Eusopéia do Livro, 2ª Edição, 1970, volumes 1 e 2,, 1967.
2 Joan W. Scott é uma historiadora norte-americana cuja atividade intelectual foi direcionada na, década de 1980, para a "história das mulheres", a partir da perspectiva de gênero. Ocupa a cadeira Harold F. Linder do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de Princeton (EUA).
3
Cf. Oeuvres philosophiques; tomo VI, segundo Beauvoir