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Revista do NUFEN

On-line version ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.6 no.1 Belém  2014

 

Artigo

 

O essencial é saber ver: a atitude fenomenológica revelada na poesia de Alberto Caieiro

 

Being able to see is essential: the phenomenological attitude revealed through the poetry of Alberto Caeiro

 

Es esencial saber ver: una actitude fenomenológica revelado en la poesia de Alberto Caeiro

O essencial é saber ver, saber ver sem estar a pensar, saber
ver quando se vê, e nem pensar quando se vê, nem ver
quando se pensa.
Alberto Caeiro

 

 

Jean Marlos Pinheiro Borba; Simone Batista de Souza,

 

 


RESUMO

Este artigo é resultado da leitura das poesias de Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa (1888-1935), à luz da Fenomenologia. A partir da análise de quatro poemas representativos da obra de Caeiro, buscou-se traçar pontos de aproximação e afastamento entre sua didática ou "ciência de ver" de inspiração filosófica e a proposta metodológica da fenomenologia de Edmund Husserl (1859-1938). É na radicalidade do olhar de Alberto Caeiro e na afirmação da liberdade do homem de acessar diretamente os fenômenos que se revela uma forma de viver plena de fenomenologia. Caeiro, em seu modo de fazer poesia, nos orienta a redescobrir o caminho que leva de "volta às coisas mesmas", enunciado por Edmund Husserl.

Palavras-chave: Alberto Caeiro; Fernando Pessoa; Poesia; Fenomenologia; Ver direto.


ABSTRACT

This article is the result from the readings of Alberto Caeiro's poems having the Phenomenology as the theoretical basis. Closer and farther links between Caeiro's Didactics or "Science of seeing" and the method of phenomenology proposed by Edmund Husserl (1859-1938) were drawn from the analysis of four representative poems selected from Caeiro's work. It is in the radical eyes of Alberto Caeiro and in the statement of man's freedom in directly access the phenomena that a way of life full of phenomenology is revealed. Caeiro in his way of making poetry guides us to rediscover the path that leads "back to things themselves", enunciated by Edmund Husserl.

Keywords: Alberto Caeiro, Fernando Pessoa; Poetry; Phenomenology; Direct view.


RESUMEN

Este artículo es el resultado de la lectura de los poemas de Alberto Caeiro, heterónimo de Fernando Pessoa (1888-1935), a la luz de la Fenomenología. A partir del análisis de cuatro poemas representativos de la obra de Caeiro, hemos intentado trazar puntos hacia y desde su didáctica o "ciencia de ver" la inspiración filosófica y aspectos metodológicos de la fenomenología de Edmund Husserl (1859 -1938). Es radical en los ojos de Alberto Caeiro y la afirmación de la libertad del hombre para acceder directamente a los fenómenos que revela un modo de vida completo de la fenomenología. Caeiro, en su forma de hacer poesía nos lleva a redescubrir el camino que lleva "de nuevo a las mismas cosas", enunciado por Edmund Husserl.

Palabras-clave: Alberto Caeiro; Fernando Pessoa; Poesía; Fenomenología; Ver recta.


 

 

INTRODUÇÃO

A crise experimentada na Europa e no mundo -preferencialmente pelas ciências do espírito4 - no final do século XIX, refletiu-se no campo da Psicologia exata moderna deflagrando as limitações metodológicas e as críticas tecidas por diversos intelectuais quanto à aplicação do método científico experimental na compreensão dos fenômenos humanos.

A transposição do método das ciências naturais para as ciências humanas desencadeou a separação consciência - mundo da vida, precipitando uma reação por parte da fenomenologia e, posteriormente, das filosofias da existência, que visava o rompimento com o paradigma positivista e a introdução de "um novo estilo no discurso filosófico" (DUFRENNE, 2008, p.187).

A fenomenologia pensada por Edmund Husserl (1859-1938) emerge nesse cenário assumindo uma posição contrária ao naturalismo5 e ao psicologismo6 . Sua intenção é apontar a possibilidade de construir um conhecimento científico de rigor que possa dar conta dos fenômenos humanos através da concessão de um lugar especial à subjetividade, à compreensão das vivências subjetivas.

O método fenomenológico criado por Husserl aborda a questão da subjetividade colocando-a como constituinte da forma humana de ser-no-mundo. Com isso, a fenomenologia relega o paradigma da neutralidade científica, pois "recusa a fazer da subjetividade uma instância separada" (DUFRENNE, 2008, p.188). Tal postura contrasta com o que a ciência aos moldes positivista determina em relação à subjetividade, isto é, que é necessário expurgá-la a todo custo da investigação científica, posto que seus vestígios ferem os ideais de imparcialidade e neutralidade que legitimam os resultados alcançados.

É com intuito de resgatar o mundo da vida e revelar que tudo que o homem descreve e produz está a ele misturado, ou seja, perpassado pela "subjetividade constituinte" (Ibid., p.187) que a fenomenologia se mobiliza. Assim, a atitude fenomenológica orientou essa análise à medida que permitiu ver diretamente na obra de Alberto Caeiro – enquanto revelação do ser-no-mundo de Fernando Pessoa – experiências vivenciais que possibilitaram a compreensão da atitude fenomenológica como a sabedoria do olhar que mira de forma direta os fenômenos humanos.

Perseguimos o objetivo proposto do seguinte modo: após a introdução, discorremos sobre os (des) caminhos da poesia de Alberto Caeiro e suas semelhanças com a atitude fenomenológica. Na seção seguinte, apresentamos o fenômeno da heteronímia pessoana, destacando a biografia de Alberto Caeiro e, finalmente, nos lançamos à leitura das poesias deste último, buscando possíveis aproximações e distanciamentos entre os modos de ver o mundo da vida adotados por Fernando Pessoa e pela fenomenologia.

 

OS (DES) CAMINHOS DA POESIA COMO PROPOSTA METODOLÓGICA

A proposta metodológica adotada nessa investigação é na verdade um caminho no qual convergiram à intuição, o acesso à literatura fenomenológica e às obras do poeta Fernando Pessoa. Esses elementos nos permitiram enxergar nas vivências poéticas de Alberto Caeiro momentos de sintonia com o "ver direto da fenomenologia" (GUIMARÃES, 2010, p.16).

A poesia de Alberto Caeiro se apresenta como reduto da construção e desconstrução de olhares através da palavra e se converte em terreno fértil à compreensão do movimento levantado pela fenomenologia que nos incita a buscar um conhecimento válido e evidente acerca do mundo, retornando ao imediato da experiência, desnaturalizando7 a forma humana de olhar aquilo que está à volta.

"É que a poesia é espanto, admiração, como de um ser tombado dos céus, a tomar plena consciência de sua queda, atônito diante das coisas" (PESSOA, 1990, p.20). No poema não há lugar para um saber constituído, dogmático ou hermético. Nele dormita uma forma de comunicação plural e multiforme.

Por essa razão, admite-se que ler um poema não é só decodificar as palavras que lhe dão corpo. "A comunicação com um poema pertence mais à ressonância, à cumplicidade, à atenção empática, à lenta maturação ou a fulgurante evidência. Em suma, ao existencial" (JOLIBERT, 1994, p.195).

A linguagem poética adotada por Caeiro noticia um mundo atravessado pela experiência subjetiva. Um mundo sentido, experimentado, cheirado, tateado, ouvido, falado e saboreado. Assim é o mundo em que vivemos e no qual construímos diariamente nossa forma de existir. É essa valorização do colorido íntimo que damos as coisas que fundamenta a fenomenologia e a escrita poética. Ambas nos permitem clarificar a visão turva que tomamos como referência no cotidiano.

Todo o potencial da poesia explorado por Fernando Pessoa através do heterônimo Alberto Caeiro – aqui representado a partir de quatro poemas selecionados da obra Poesia Completa de Alberto Caeiro, publicada pela Companhia das Letras - tem como fim último nos fazer voltar a enxergar que a experiência vivencial é uma forma legitima e autêntica de conhecer o mundo. O essencial é saber ver, nos ensina Caeiro em um de seus poemas.

Para compreender a atitude fenomenológica, a epoché tão discutida por Husserl, dentre outros conceitos relevantes ao estudo da fenomenologia, nos dispomos a apresentar em cada um dos quatro poemas selecionados, versos que descrevem com riqueza o que significa viver fenomenologicamente a partir da perspectiva de Alberto Caeiro.

O enlace da poesia de Caeiro à fenomenologia foi pensado como uma forma vívida, didática e não apenas retórica de abordar o referencial fenomenológico enquanto método e atitude filosófica. Assim, admitimos que:

(...) compreender fenomenologia apenas explicitando seus conceitos básicos sem se dispor a mudar a forma de olhar o mundo, sem de fato praticá-la, seja tão difícil quanto conhecer o sabor de um bolo a partir das informações contidas na receita, a respeito dos seus ingredientes e da forma de misturá-los. (...) É obviamente muito importante entender todos esses conceitos, mas de pouco adianta saber tudo isso, e não compreender de fato o que significa viver fenomenologicamente. (STRUCHINER, 2007, p.243)

"Munidos" da ausência de pressupostos e saberes dominantes, enfim, libertos pela poesia, podemos agora buscar compreender como Fernando Pessoa por meio dos heterônimos expressou seu modo de ver o mundo.

HETERÔNIMOS: "amigos que ouço,sinto, vejo8"

Ao referir-se ao poeta Fernando (António Nogueira) Pessoa, Saraiva (1999, p.141) o coloca como um "gênio que a si próprio definia como indisciplinador de almas e que exerceu sobre os que dele se aproximavam uma fascinação quase sobrenatural". A obra de Fernando Pessoa (1888-1935) inscreveu-se na literatura portuguesa e mundial de forma única, sendo fortemente marcada pelo fenômeno da heteronímia9 . Saraiva (Ibid., p.142) considera a obra de Fernando Pessoa como uma "literatura inteira, isto é, um conjunto de autores a quem ele chamou os seus heterônimos, cada um dos quais com um estilo e atitude que os distingue dos demais". Na carta endereçada ao amigo Adolfo Casais Monteiro10 Pessoa revela que desde criança teve a tendência para criar em seu entorno um mundo fictício, de se cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram. Dentre os "amigos" que criou para acompanhá-lo em vida, destacamos nesse trabalho Alberto Caeiro da Silva.

O sentimento de multiplicidade experimentado intimamente por Pessoa externou-se através de cada heterônimo criado. O primeiro deles, emergindo ainda na meninice – seis anos de idade, – chamava-se Chevalier de Pas. Na carta a Casais Monteiro, consta que o poeta e seu heterônimo dialogavam através de correspondências. Nas palavras do próprio Pessoa, registra-se: "escrevia cartas dele a mim mesmo". (PESSOA, 1990, p.51)

Na referida carta de janeiro de 1935, Pessoa atribui a origem dos heterônimos a um "fundo traço de histeria" presente em sua personalidade. Assim, temos:

Começo pela parte psiquiátrica. A origem dos meus heterônimos é o fundo traço de histeria que existe em mim [...]. A origem mental dos meus heterônimos está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação. Estes fenómenos – felizmente para mim e para os outros - mentalizaram-se em mim; quero dizer, não se manifestam na minha vida prática, exterior e de contato com outros; fazem explosão para dentro e vivo-os eu a sós comigo. (Ibid., p. 51)

Possivelmente, pelas razões acima expostas, justifiquem-se as palavras de Álvaro de Campos11 ao considerar Fernando Pessoa "um novelo embrulhado para o lado de dentro" (Ibid., p.62).

O sentimento de inadequação social, a incompatibilidade profunda com os outros, a introspecção e a dramaticidade são características que marcam a forma de ser de Pessoa. Destaca o poeta, em um prefácio para a edição projetada de suas obras12 , que os heterônimos serão sempre bem vindos à sua vida interior, onde convivem melhor com ele do que o próprio consegue conviver com a realidade externa.

Ainda nas reflexões contidas no suposto prefácio, Pessoa expressa, em tom de fino gracejo, o fenômeno da heteronímia como saída para a falta de uma literatura bem composta em sua época, tendo ele, portanto, que converter-se por si só em uma literatura inteira. Diante do sentimento de intensa inadequação social e falta de pessoas "coexistíveis", pergunta-se: o que pode um homem fazer se não criar seus próprios amigos?

Tamanhas são a genialidade e a complexidade psíquica de Fernando Pessoa que conseguiu delinear para cada heterônimo linhas fisionômicas, traços de caráter, a vida, a ascendência, em outros casos até mesmo as circunstâncias da morte. Todo "personagem" era visualizado, ouvido, sentido, em outras palavras, intensamente vivenciado. Possivelmente, por essa razão, Pessoa em vários momentos duvidou de sua personalidade, enquanto algo uno e coeso.

Os heterônimos são fruto de uma escrita intuitiva e dramática, posto que o próprio Pessoa dizia-se essencialmente um dramaturgo. Referindo-se ao fato de valer-se do recurso da heteronímia, Pessoa (1990, p.42), assume:

(..) que essa qualidade no escritor seja uma forma da histeria, ou da chamada dissociação da personalidade, o autor desses livros nem o contesta, nem o apoia. De nada lhe serviriam escravo como é da multiplicidade de si próprio.

ALBERTO CAEIRO: uma das faces de Fernando Pessoa

Os primeiros poemas em que Fernando Pessoa dá voz a Alberto Caeiro datam de março do ano de 1914. Zenith 13 nos traz que Pessoa se refere ao dia em que Caeiro veio ao mundo como um "dia de revelação e revolução", posto que, como justifica Teresa Rita Lopes, "no universo de Pessoa o tempo se dividiu em duas eras: Antes de Caeiro e Depois de Caeiro" (apud ZENITH, 2005, p.212)14 . Assim, tem-se que Alberto Caeiro tornou-se na vida e obra de Fernando Pessoa um divisor de águas.

O "nascimento" de Caeiro foi um dia único na vida de Pessoa, no qual aquele que posteriormente designaria como o seu mestre revelou-se em um estado de êxtase. Arrebatou-lhe uma febre criativa da qual resultaram trinta e poucos poemas escritos seguidamente. Nesse dia triunfal, de pé – a acolher solenemente a visita do novo amigo - escrevia Pessoa o que ditava Caeiro. Pessoa narra o acontecido na carta a Casais Monteiro:

Lembrei-me um dia de fazer uma partida ao Sá-Carneiro – de inventar um poeta bucólico, de espécie complicada, e apresentar-lho, já me não lembro como, em qualquer espécie de realidade. Levei uns dias a elaborar o poeta, mas nada consegui. Num dia em que finalmente desistira – foi em 8 de março de 1914 – acerquei-me de uma cômoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. (PESSOA, 1990, p. 52)

Descobridor da natureza, Colombo das sensações verdadeiras e revelador da realidade. Essas são algumas das alcunhas conferidas a Alberto Caeiro que, na biografia traçada por Fernando Pessoa, é louro sem cor, olhos azuis, natural de Lisboa, tendo nascido em 16 de abril de 1889 e falecido em 1915, acometido por tuberculose, na mesma cidade. Mais informações constam na carta a Casais Monteiro:

Caeiro viveu quase toda sua vida no campo, numa quinta do Ribatejo. Não teve profissão, nem educação quase alguma – só instrução primária; morreram-lhe cedo o pai e a mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo de uns pequenos rendimentos. Vivia com uma tia velha, uma tia-avó (Ibid., p.54).

Acerca da obra de Alberto Caeiro, Ricardo Reis15 a define como "um progresso de sensações, ou, antes, de maneiras de as ter, e uma evolução íntima de pensamentos derivados de tais sensações progressivas" (Ibid., p.65).

Em relação aos aspectos formais de sua poesia, Caeiro distancia-se dos cânones. Utiliza-se largamente do verso-livre, sem rimas, e de uma linguagem simples e fluida, em tom prosaico, para apresentar-nos o real através da paisagem natural que conclama a ação dos sentidos. Zenith16 considera que em sua poesia se destaca a valorização da "estética baseada na força íntima, de um novo olhar diante da simplicidade complexa da natureza, (...) e do sensacionismo, entendido como a percepção direta e imediata da realidade". Adianta-se que alguns desses elementos nos permitirão traçar pontos de aproximação clara com os aspectos filosóficos que embasam a proposta fenomenológica.

 

UM ENCONTRO ENTRE O MUNDO DA VIDA E A POESIA: possíveis aproximações entre a obra de Alberto Caeiro e a fenomenologia

POEMA IX

Sou um guardador de rebanhos. O rebanho é os meus pensamentos E os meus pensamentos são todos sensações. Penso com os olhos e com os ouvidos E com as mãos e os pés E com o nariz e a boca.

Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

Por isso quando num dia de calor Me sinto triste de gozá-lo tanto, E me deito ao comprido na erva, E fecho os olhos quentes, Sinto com todo o meu corpo deitado na realidade, Sei a verdade e sou feliz.

 

O poema IX de O Guardador de Rebanhos apresenta como figura central o pastor e mestre Alberto Caeiro que está a tanger com o cajado um rebanho que não é legitimamente de ovelhas, mas que é todo de pensamentos e sensações. O pastor, em sua serenidade, está a cumprir a missão que traçou para si enquanto em vida: conduzir sua percepção/olhar a um refinamento; e ensinar a seus discípulos – os outros heterônimos – uma nova forma de se relacionar com o mundo.

A posição peculiar deste guardador de rebanhos é a de "recusa a uma longa tradição de topoi que levam os poetas a enquadrar a natureza de uma forma já codificada" (MARTINS, 2010, p.318). Seu desejo é poder vê-la com um olhar novo.

A natureza, representada no poema pela flor, o fruto, as ervas do campo, é descrita a partir das sensações que desperta em seu observador. Essa natureza instigante, provocativa, incita o pastor a desvendá-la através da visão (olhos), da audição (ouvidos), do tato (mãos e pés), do olfato (cheiro) e do paladar (sabor). As informações captadas pelos sentidos, afirma Caeiro, é que são a matéria do pensamento. Assim, pensamento e sensação estão intimamente relacionados em sua forma de compreender o mundo.

Como Caeiro pensa uma flor? A partir das impressões visuais e olfativas relacionadas à experiência proveniente do contato com ela. O cheiro característico da flor, o colorido exuberante de suas pétalas é que lhe caracterizam enquanto fenômeno.

E o que a composição poética de Alberto Caeiro quer nos mostrar com isso? Que o conhecimento traz como componente estruturante, o resgate do colorido das vivências. Cada experiência que guardamos está fundada em elementos objetivos e subjetivos que compõem um todo e nos permitem diferenciá-la das demais. Isto é, Caeiro compreende que é a experiência que o autoriza a falar com propriedade e riqueza de cada fenômeno sobre o qual lança seu olhar. É esse recurso em especial, utilizado para construir seus poemas, que nos permite buscar uma conexão com a proposta da fenomenologia.

A fenomenologia pensada por Husserl se coloca como uma ciência que busca o conhecimento das essências, compreendendo os "fenômenos humanos em seu teor vivido" (ZILLES, p.29). Seguindo o raciocínio de Goto,(2008), a tarefa a qual a fenomenologia se propõe é, pois, estudar a significação das vivências da consciência.

A fenomenologia surge mostrando efetivamente que o ponto de partida para o conhecimento não são os fatos objetivos em sua pureza e integralidade, mas a experiência vivencial pré-reflexiva do sujeito. Poderíamos buscar compreender, por exemplo, o sentido de uma flor, como propõe Caeiro. Esse sentido não vem prontamente delimitado em um conceito científico atribuído a flor, mas é algo que se constrói a partir da depuração das vivências de cada sujeito.

Este aspecto é o cerne da questão em que Husserl (2002; 2006; 2012) enaltece o que antes fora negligenciado pela investigação científica: a vivência subjetiva, o mundo da vida. A proposta husserliana é resgatar "a noção de que o mundo científico é secundário – ele é produzido a partir de impressões e vivências subjetivas dos próprios cientistas" (STRUCHINER, 2007, p.243).

Assim, tal qual Alberto Caeiro, a fenomenologia nos ensina a exercitar uma nova forma de pensamento e percepção, como afirma Struchiner (Ibid., p.244), fala-se de "percepção num sentido amplo, englobando todos os seus modos: visual, auditivo, tátil, etc". A percepção e a consciência são indissociáveis numa perspectiva fenomenológica e ambas não se referem apenas aos sentidos, mas aos atos perceptivos e reflexivos que ocorrem simultaneamente. "Consciência significa que, enquanto nós olhamos, nos damos conta de que estamos vendo, ou que, enquanto tocamos, nos damos conta de tocar" (ALES BELLO, 2006, p.32-33).

Retomando o poema, Caeiro nos mostra ainda nos primeiros versos que pensamento e sensação são indissociáveis chegando à igualdade: pensar é sentir (pensar = sentir). Pensar na visão de Caeiro é abertura de sentido, é deixar-se afetar pelos estímulos que os sentidos captam, por aquilo que a consciência enquanto "fluxo de vivências intencionais" visa (GOTO, 2008, p.68).

Saraiva (1999, p.143) esclarece que o verso "o que em mim sente está pensando" é uma das chaves para compreender Alberto Caeiro. Também nos alerta para a ocorrência de que "o pensar é já a forma que toma o sentir".

A sensação e a intuição são recursos de que se vale o pastor para compreender o que se mostra a sua volta. Essa forma de apreciar o mundo o conduz a um conhecimento verdadeiro que pouco necessita recorrer ao plano das abstrações para ser comprovado, posto que repousa seu alicerce na evidência da experiência.

Como ilustra o penúltimo verso, Caeiro sente essa verdade de que fala com o corpo todo deitado na realidade, imerso no real. Esse é também o caráter do saber almejado pela fenomenologia, um saber integrado ao mundo da vida (Lebensvelt) e não apenas teorizado, abstrato.

Por isso, é que ao final de um dia de calor, ao deitar o corpo sobre a relva e fechar os olhos quentes, Caeiro diz sentir-se triste. Essa tristeza não é melancolia, pelo contrário, é sossego, é natural e justa, posto que aproveitou o aqui-agora, o presente, da melhor forma que lhe foi possível, olhando tudo nitidamente e captando a cada momento aquilo que nunca antes tinha visto. Isso é viver fenomenologicamente.

 

POEMA II

O meu olhar é nítido como um girassol. Tenho o costume de andar pelas estradas Olhando para a direita e para a esquerda, E de vez em quando olhando para trás... E o que vejo a cada momento É aquilo que nunca antes eu tinha visto, E eu sei dar por isso muito bem... Sei ter o pasmo comigo Que tem uma criança se, ao nascer, Reparasse que nascera deveras... Sinto-me nascido a cada momento Para a eterna novidade do mundo...

Creio no mundo como num malmequer, Porque o vejo. Mas não penso nele Porque pensar é não compreender... O mundo não se fez para pensarmos nele (Pensar é estar doente dos olhos) Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo.

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos... [...]

O poema II de O Guardador de Rebanhos apresenta logo no verso inicial uma comparação bastante significativa. Em "o meu olhar é nítido como um girassol", Caeiro faz menção a essa vistosa flor amarela que acompanha o movimento do astro-rei, com o intuito de representar sua forma de ver o mundo que é dinâmica e capaz de capturar as transformações do real. Caeiro é como essa flor que com seus grandes olhos naturais percebe a luz do mundo. Sua relação com a natureza é tão profunda que essa aparece nos poemas não como cenário ou uma paisagem bucólica a ser contemplada, mas como figura introjetada, incorporada e estruturante do próprio pensamento.

Percebe-se no poema, que o pastor Alberto Caeiro, por mais que se habitue a andar pelas estradas mantém o frescor da visão, a nitidez. Seu olhar é sempre de um viajante, ou seja, de alguém que está em contato com o desconhecido, e guarda em si o desejo da descoberta. Seu olhar não é o de constatação mecânica do real, mas nele há sempre certo estranhamento que lhe impede de passar indiferente em relação às variações da paisagem e dos fenômenos.

Essa é, pois, a maior lição que temos a aprender com Caeiro. Seu olhar sabe voltar-se para o que se revela a cada momento. Não é "cansado", costumeiro, apesar de o caminho às vezes o ser. Como ilustra o oitavo verso, o poeta sabe ter o pasmo consigo, e o que vê a cada momento, é aquilo que nunca antes tinha visto. É outra nuance revelada.

Talvez sejamos nós todos míopes, em nosso modo de ser cotidiano. E devamos aprender com Caeiro e com a fenomenologia a retomar o pasmo infantil através de uma nova forma de posicionamento, uma nova atitude diante do mundo.

A fenomenologia admite que orientado pela atitude natural o homem perceba o mundo como algo dado, fadado à repetição. Como afirma Goto (2008, p.77), "na atitude natural permanecemos presos em uma atitude dogmática". A atitude fenomenológica nos permite suspender juízos de valor e pré-conceitos, dando liberdade aos fenômenos para apresentarem-se em seus diversos aspectos. Permitindo que algo original possa nos surpreender.

Assim, a forma de olhar do fenomenólogo é o seu diferencial. Sendo por essa razão o que há de mais desafiante no seu fazer. Conservar o olhar de descoberta, de estreia, de surpresa, é essencial para que se possa enxergar as singularidades e movimentos sutis dos fenômenos, buscando seus possíveis significados.

O olhar é importante, pois capta o mundo ao redor e capta também as incessantes mutações pelas quai s passa esse mundo. A essência do sol continuará a mesma, as percepções desse mesmo sol variarão para sempre, apesar das "verdades" apregoadas por filósofos e poetas. Caeiro busca alcançar uma objetividade absoluta, num processo de constante depuração das variações, tentando livrar a essência das coisas de suas variantes imaginativas (SANTOS, 2004, p.10).

Mas, surge o questionamento: como manter o olhar casto, puro, "inocente"? Ao que Caeiro responde: "a única inocência é não pensar". Na segunda estrofe, Caeiro mostra sua voracidade ao afirmar que "pensar é não compreender". Tal é a radicalidade de seu olhar, que chega a afirmar que "pensar é estar doente dos olhos". Como compreender essa afirmação categórica?

Uma possível leitura seria a de que não há a necessidade de buscar explicações ou fundamentos científicos acerca de um fenômeno quando esse pode ser diretamente acessado. Está ao alcance. Por essa razão, Caeiro (tal qual Husserl) nos propõe retornar ao pensar não científico, a vivência pré-reflexiva do sujeito, "às coisas mesmas", para compreender os fenômenos.

Antes de trazer um arcabouço teórico que enviesa e direciona o olhar, melhor é preservar a limpidez da visão e observar seguidamente o fenômeno em suas nuances. É nesse sentido, que pensar é fechar os olhos diante do que se tem à vista e turvar a visão embriagando-a com o que foi percebido no passado.

A quarta estrofe do poema iniciada com o verso "eu não tenho filosofia: tenho sentidos", corrobora o que foi exposto acima, enaltecendo a negação de Caeiro a qualquer pensamento deveras sistematizante, organizativo e abstracionista. Assim, "aos olhos de Caeiro, o mundo é como é; os olhos enxergam o que é e não o que deveria ser" (SANTOS, 2004, p.10). O olhar alcança o mundo, antes mesmo das páginas lidas.

A fórmula inicial da fenomenologia não tem a pretensão de negar o conhecimento construído na ciência e na filosofia, apenas requer para si o direito de excluir qualquer perspectiva teórica sobre as coisas para que se possa ir espontânea e livremente até elas, i.e., deixar aparecer à coisa mesma. (GOTO, 2008, p.74)

Por isso é que, "olhando para direita e para a esquerda, e de vez em quando olhando para trás", para o conhecimento estabelecido, para as referências que antecederam e orientaram seu caminhar, é que o pastor segue a vida. Assim como o fenomenólogo.

 

POEMAS INCONJUNTOS

Mas para quê me comparar com uma flor, se eu sou eu E a flor é a flor?

Ah, não comparemos coisa nenhuma; olhemos. Deixemos analogias, metáforas, símiles. Comparar uma coisa com outra é esquecer essa coisa. Nenhuma coisa lembra outra se repararmos para ela. Cada coisa só lembra o que é E só é o que nada mais é. Separa-a de todas as outras o abismo de ser ela (E as outras não serem ela). Tudo é nada sem outra coisa que não é. (...)

O poema acima compõe a terceira parte da obra de Alberto Caeiro, denominada Poemas Inconjuntos. Logo no primeiro verso, mas também nos seguintes, é clara a rejeição do poeta a articulação de comparações. Caeiro nos questiona a razão de traçarmos analogias entre as coisas, se o que as identifica são exatamente seus aspectos díspares ou dissimiles, e não as semelhanças. Admite que na autenticidade de cada coisa, é que repousa sua essência. Por isso, nos propõe abandonar as analogias, metáforas e símiles, visto serem elementos dispensáveis a revelação do que simplesmente é – a essência.

Se observados atentamente os aspectos formais da poesia de Alberto Caeiro, vê-se que o uso de recursos estilísticos como as figuras de linguagens, por exemplo, são pouco recorrentes. O que demonstra que o próprio Caeiro evitou fazer comparações desnecessárias ou criar metáforas que ampliassem os verdadeiros traços do real. Além disso, sua educação apenas elementar, o impedia de empreender certas ousadias linguísticas.

As comparações, analogias, e no caso do texto, as figuras de linguagem são artifícios, floreios, de que nos valemos para mediar o que sentimos ou expressamos em situações comunicativas. E como o que Caeiro deseja alcançar é a simplicidade das coisas, a intuição livre e espontânea que fazemos delas, não lhe cabe encobrir os elementos essenciais com um véu qualquer, quando o que se quer é retirar o véu que encobre as coisas no cotidiano, para que então possamos descobrir sua "espantosa realidade" (CAEIRO, 2005, p.91).

Observemos, pois, e suspendamos17 as comparações, analogias, metáforas e símiles que nos distanciam do que se revela e nos conduzem a abstrações aprisionantes. Libertemos nosso olhar, e nos contentemos em "ver com os olhos e não com as páginas lidas" (Ibid., p.145) , diz ele em outro poema. Voltemos "às coisas mesmas" como propõe Husserl.

O imperativo exposto no poema é a máxima husserliana, qual seja: "voltar às coisas mesmas". Husserl chama atenção para "a necessidade de voltar às coisas mesmas no sentido de deixar ver, por si mesmo, o que aparece na experiência" (GOTO, 2008, p.74). Assim, percebe-se que o método fenomenológico criado por Husserl, pode ser compreendido de forma coerente, a partir das diretrizes contidas no poema de Caeiro.

A intenção de Husserl (2002) ao propor o método fenomenológico é pensar um novo caminho para orientar as ciências na busca de um conhecimento válido e evidente. A fenomenologia se constitui como ciência da essência do conhecimento, exatamente por buscar os fundamentos primeiros das coisas.

Nesse sentido, a volta às coisas mesmas, consiste no retorno não aos "objetos que estão externa ou internamente em nosso conhecimento, e sim, tudo aquilo que podemos intuir de forma livre e espontânea, ou seja, aquilo que é intuído diretamente da experiência" (ibid., p.74-75). A intenção de Husserl é mostrar que as vivências são o fundamento das coisas objetivas e subjetivas.

Nas vivências, encontram-se as essências intuídas, isto é, a matéria que nos permite identificar cada coisa pelo que é. A essência seria, nas palavras de Caeiro, aquilo que separa uma coisa de todas as outras, e a define enquanto fenômeno único e distinto dos demais que se apresentam. A essência é sempre idêntica a si própria, não importando as contingências em que possa a vir manifestar-se.

Portanto, como nos coloca Caeiro, não se faz necessário que comparemos coisa alguma para chegar às essências. Lembremos que quando um fato se revela a consciência, juntamente com ele captamos a sua essência. Nesse sentido, Zilles nos ensina (2002, p.19): "as essências são as maneiras características do aparecer dos fenômenos. Não são resultados de uma abstração ou comparação de vários fatos".

Sintetizando o exposto, temos que a fenomenologia ocupa-se da busca pelas essências intuídas que são os fundamentos do conhecimento. Mas, em que consiste o caminho – método -apontado por Husserl para chegar às essências? Ou ainda, como funciona a nova forma de ver o mundo ensinada por Caeiro? A apreciação do poema seguinte nos permitirá buscar possíveis respostas a esses questionamentos.

 

POEMA XXIV

O que nós vemos das cousas são as cousas. Por que veríamos nós uma cousa se houvesse outra? Por que é que ver e ouvir seriam iludirmo-nos Se ver e ouvir são ver e ouvir?

O essencial é saber ver, Saber ver sem estar a pensar, Saber ver quando se vê, E nem pensar quando se vê Nem ver quando se pensa.

Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida!), Isso exige um estudo profundo, Uma aprendizagem de desaprender E uma sequestração na liberdade daquele convento De que os poetas dizem que as estrelas são freiras eternas E as flores penitentes convictas de um só dia, Mas onde afinal as estrelas não são senão estrelas Nem as flores senão flores, Sendo por isso que lhes chamamos estrelas e flores.

 

Nos versos iniciais do poema XXIV de O Guardador de Rebanhos, Alberto Caeiro nos estimula a pensar sobre qual seria a verdadeira função dos sentidos: comunicar-nos a realidade ou iludir-nos? Desenvolvendo seu pensamento, Caeiro nos orienta a recuperar a confiança nos sentidos, visto serem capazes de apreender a realidade imediata das coisas.

É no imediato do real que captamos intuitivamente as essências dos fenômenos. E se entendemos por fenômeno aquilo que aparece e que se revela, e se deixa conhecer como é, principalmente pelo olhar – acredita Caeiro – então, "não precisamos duvidar dos nossos sentidos, embora saibamos que as coisas não se mostram por completo" (STRUCHINER, 2007, p.245).

Conferindo um lugar privilegiado ao sentido da visão no verso "o essencial é saber ver", o mestre Caeiro anuncia a lição fundamental que tem a compartilhar com os heterônimos e com os demais leitores de sua poesia: que o segredo da felicidade está em saber ver as coisas. Às coisas, basta-nos:

Apenas vê-las;

Vê-las até não poder pensar nelas; Vê-las sem tempo, nem espaço, Ver podendo dispensar tudo menos o que se vê. É esta a ciência de ver, que não é nenhuma. (CAEIRO apud MARTINS, 2010, p.879).

A "ciência do olhar" enunciada na segunda estrofe do poema XXIV aproxima-se da fenomenologia à medida que nos oferece uma descrição bastante contundente, embora genérica, dos elementos constitutivos do método fenomenológico husserliano, conforme referidos por San Martín (1986 apud GOTO, 2008).

O primeiro elemento constituinte do método fenomenológico é a epoché. A palavra grega epoché significa "ter sobre", e pode ser compreendida como o momento em ocorre a suspensão, a colocação entre parênteses, a abstenção dos juízos, pré-conceitos e filosofias para que seja possível acessar o fenômeno em absoluta integridade e pureza. A epoché seria a "desconexão com a atitude natural" (GOTO, 2008, p.77) que abre o caminho para que possamos "ver sem estar a pensar", tornando possível o encontro com as coisas mesmas. Porém, isso não é o bastante para se chegar ao conhecimento das essências (eidos), presentes nas vivências.

É necessário também que se faça uso de outro elemento: a redução eidética -redução às essências - como orienta San Martín (1986 apud GOTO, 2008), ou melhor, sucessivas reduções para que os elementos das vivências sejam "filtrados", restando apenas aquilo que é visado no contato imediato com o fenômeno.

O último elemento a compor o método, seria a redução fenomenológica ou transcendental que nos permite chegar ao que se mostra comum, invariável, universal em cada fenômeno. Assim, com a redução transcendental, Husserl conseguiu acessar "uma nova camada nas vivências, ou seja, possibilitou-lhe alcançar o centro sintetizador (ego) que vai além das nossas vivências individuais ou particulares, o centro egóico que se funda em um saber válido para todos" (GOTO, 2008, p. 84).

A "ciência do olhar" enunciada no verso "o essencial é saber ver" ou mesmo o fascínio pela visão e pelas imagens captadas pelos olhos que marcam a poética de Caeiro, nos mostram que "imagem não é apenas presença das coisas de que se dá conta, mas também da presença de quem as vê"18 . Isto é, a imagem visada é prova de um fundamento subjetivo que caracteriza a forma humana de conhecer.

Tudo se funda, portanto, na experiência subjetiva, ou seja, no movimento intencional que a consciência tem em direção às coisas. A fenomenologia nos aponta que a consciência intencional nada mais é que um fluxo que coloca em relação sujeito e objeto do conhecimento, possibilitando assim, a produção de sentidos.

A consciência seria, em outras palavras, nossos olhos. A lente através da qual enxergamos e significamos o mundo. Ela está sempre voltada a um objeto, sendo por essa razão adjetivada intencional. A intencionalidade da consciência nos ensina a "retornar às coisas mesmas" para melhor compreendê-las, vê-las, senti-las, antes mesmo de pensá-las ou tentar aprisioná-las em qualquer sistema filosófico, paradigma, teoria ou modelo explicativo.

Para "retornar as coisas mesmas", nos apoiamos no método fenomenológico que objetiva através de seus elementos despir "a alma que trazemos tristemente vestida", posto estar encoberta por juízos, crenças e pré-conceitos. A tristeza da alma está em permitir que o pensamento, representado pela atitude natural, alcance as coisas antes mesmo do olhar. E paralise-as como em uma fotografia.

Por isso, a lucidez para Caeiro está radicalmente associada a não pensar. E não pensar, fenomenologicamente seria equivalente a: suspender temporariamente o pensamento organizador antes que ele se ocupe de enquadrar as coisas. Essa tarefa é a que no exige árduo empenho na aprendizagem em desaprender.

Desaprender a aceitar o mundo como algo dado, como uma realidade que nos é imposta. Aprendendo, por outra via, a transitar da atitude natural para a atitude fenomenológica que implica em considerar o mundo sob o signo da mudança, do dinamismo, da transformação. Não ser mais penitente de um só dia, como as flores e as estrelas, sempre vistas de forma canônica no discurso poético.

A fenomenologia, assim como Alberto Caeiro, deseja nos trazer de volta a liberdade de olhar que fora sequestrada pela ciência natural. Ambos querem livrar-nos do pesado fardo de dimensionar o presente somente a partir do que foi experimentado no passado, na lembrança, e nos convidar a despertar os sentidos para o que se revela na paradoxal novidade cotidiana.

Porém, é evidente que a proposta de Husserl vai além do que Caeiro formula como a ciência de ver (que não é ciência nenhuma). Primeiro, porque Husserl deseja delinear as bases para o alcance de um conhecimento de rigor e enxerga a necessidade de "buscar fundamentos não somente para a filosofia, mas também para todos os saberes do domínio científico em geral, incluindo aí as então recentemente denominadas 'ciências do espírito' ou da cultura" (GUIMARÃES, 2010, p.17). Já Alberto Caeiro, rejeita completamente a ideia de formular um sistema filosófico qualquer e de interpretar o real pelo viés da ciência e da razão. Sua poesia configura-se como sendo, antes de tudo, anti-filosófica e não há interesse de sua parte em dar qualquer contributo ao progresso das ciências, sejam elas naturais ou do espírito. "Se pensasse nessas cousas, deixava de ver as árvores e as plantas e deixava de ver a Terra, pra ver só meus pensamentos...Entristecia e ficava às escuras" (CAEIRO, 2005, p.60).

Segundo, porque Husserl admite a realidade imediata como ponto de partida para a busca das essências transcendentais. Já Caeiro, não concebe nada além da realidade imediata das coisas. Isto é, sua visão de mundo se abstém da ideia de transcendência, fixando-se no que se vê em absoluto, no imanente. "Eu nunca passo além da realidade imediata. Para além da realidade imediata não há nada" (Ibid., p.101).

Consideramos relevante aproximar a "ciência do olhar" caeiriana ao "ver direto" proposto pela fenomenologia pela inspiração filosófica perceptível na poesia de Alberto Caeiro "tratar-se de uma postura epistemológica afim da redução eidética da fenomenologia husserliana" (MOISÉS, 2005, p.141). Porém, diferente de Husserl, Caeiro se atém somente a imanência das coisas e não à transcendência, o que o torna um poeta animado pela filosofia, e não um filósofo normativo ou fenomenólogo. Conclui-se, portanto, que a obra poética de Alberto Caeiro transita pela fenomenologia, tangenciando-a apenas.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Fernando Pessoa apresenta-nos em sua obra o heterônimo Alberto Caeiro, um pastor que se fez poeta ao expressar através de versos espontâneos uma forma particular de compreender o mundo. É na radicalidade do olhar de Alberto Caeiro e na afirmação da liberdade do homem de acessar diretamente os fenômenos, que se revela uma forma de viver plena de fenomenologia. Caeiro, em seu modo de fazer poesia, nos orienta a redescobrir o caminho que leva de "volta às coisas mesmas", enunciado por Edmund Husserl.

A sabedoria de Caeiro não provém do conhecimento de teorias ou de leituras de filósofos admiráveis, posto ser um homem de pouca instrução. Mas, daquilo que ficou marcado no campo da experiência vivencial. Caeiro é feliz por conhecer a verdade: sentir. São as sensações que falam do contato direto com o mundo caracterizado pelo signo da mudança. Elas são provas de que é possível construir um conhecimento válido e evidente sobre o mundo, partindo da experiência imediata pré-reflexiva do sujeito.

Os caminhos de Alberto Caeiro e Husserl se cruzam ao propor a retomada da subjetividade enquanto elemento constituinte da forma humana de ser-no-mundo. Assim, admite-se que ambos contribuam significativamente no que diz respeito: (1) Ao reposicionamento do homem frente ao mundo em que o conhecimento científico artificializou o seu modo de ver; (2) A desnaturalização do olhar humano, refém do mecanicismo cotidiano. Contudo, seus caminhos afastam-se à medida que Caeiro mantém preso ao imanente. E Husserl vislumbra o transcendente. Por meio do método fenomenológico, deseja alcançar o que há de universal nas vivências individuais, fundando um saber válido para todos.

Nasci sujeito como os outros a erros e a defeitos, Mas nunca ao erro de querer compreender demais, Nunca ao erro de querer compreender só com a inteligência, Nunca ao defeito de exigir do mundo Que fosse qualquer cousa que não fosse o mundo. (CAEIRO, 2005, p.118)

 

Referências

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Nota sobre os autores
Jean Marlos Pinheiro Borba:
Instituição/Afiliação: UFMA - Curso de Psicologia.
Professor Adjunto II do curso de Psicologia da UFMA.
Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Fenomenologia e Psicologia Fenomenológica.
Membro da Associação Brasileira de Psicologia Fenomenológica e colaborador do Círculo Latino Americano de Fenomenologia – CLAFEN.

 

Simone Batista de Souza:
Instituição/Afiliação: UFMA – Curso de Psicologia. Acadêmica do curso de Psicologia, 10° período.
Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Fenomenologia e Psicologia Fenomenológica.
E-mail: simoneufma@gmail.com

Recebido em março de 2014
Aceito em agosto de 2014

 

 

4 Termo utilizado por W. Dilthey (2008) para se referir as ciências humanas.
5 Visto como atitude natural ou ingênua por Husserl.
6 Absolutização do fato psicológico. Psique é a chave da decifração de todos os mistérios que envolvem a existência humana. (GUIMARÃES, 2012, p.30)
7 Desnaturalizar no sentido fenomenológico significa retirar aquilo que naturaliza, ou seja, aquilo que envolve e torna o olhar humano mecânico e naturalizado, fazendo o homem perceber dinâmica do fluxo da consciência e do movimento do homem no mundo.
8 A fala referida nesta nota encontra-se na carta de Fernando Pessoa endereçada ao amigo Adolfo Casais Monteiro a 13 de janeiro de 1935 (PESSOA, F.; Alguma prosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990).
9 O que Fernando Pessoa escreve pertence a duas categorias de obras, a que podemos chamar ortônimas e heterônimas. Não se poderá dizer que são anônimas e pseudônimas, porque deveras o não são. A obra pseudônima é do autor em sua pessoa, salvo no nome que assina; a heterônima é do autor fora de sua pessoa, é de uma individualidade completa fabricada por ele, como seriam os dizeres de qualquer personagem de qualquer drama seu (PESSOA, 1928 apud MARTINS, 2010).
10 PESSOA, 1990.
11 Heterônimo criado por Fernando Pessoa. Álvaro de Campos foi engenheiro naval, poeta urbano e futurista.
12 PESSOA, F.; Alguma prosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990
13 Escritos dos editores. CAEIRO, 2005.
14 Ibidem.
15 Heterônimo criado por Fernando Pessoa. Ricardo Reis foi médico e poeta. Sua poesia era marcada pelo tradicionalismo. Expatriou-se para o Brasil.
16 Escritos dos editores. CAEIRO, 2005.
17 Esta é a mesma proposta da epoché husserliana (Cf. Husserl, 2006).
18 Notas dos editores. CAEIRO, 2005.