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Revista do NUFEN

versão On-line ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.6 no.1 Belém  2014

 

Artigo

 

A discricionariedade policial e os estereótipos suspeitos

 

The police discretion and suspicious stereotypes

 

Policía y estereotipos suspects discreción

 

 

Jaime Luiz Cunha de Souza; João Francisco Garcia Reis

 

 


RESUMO

Este estudo investigará alguns fatores tomados como referência pelos policiais da Polícia Militar do Estado do Pará (PM/PA/Brasil), nos procedimentos de abordagens e buscas pessoais, durante os patrulhamentos realizados em bairros periféricos da cidade de Belém. A investigação centra-se na análise da percepção dos policiais na identificação de indivíduos que consideram suspeitos, bem como na maneira pela qual estes indivíduos experimentam e percebem a abordagem policial. A metodologia utilizada nesta pesquisa é de natureza quantitativa, composta pela aplicação de questionários a dois grupos: policiais e jovens da periferia. Com relação aos policiais, 335 aceitaram participar da pesquisa e responder aos questionários. Entre os jovens, o número de questionários respondidos foi de 403. O número total de questionários permitiu uma margem de erro estatístico menor que 5%. Com base nos apontamentos mais relevantes, as suspeitas que induzem à abordagem policial não apresentam claro respaldo legal, embora sua formulação seja corriqueira nas atividades de policiamento ostensivo. Como esses procedimentos utilizam marcadores pessoais estereotipados, geram, entre os jovens dos bairros da periferia de Belém, avaliações profundamente negativas do trabalho policial.

Palavras-chave: Abordagem policial. Suspeito. Estereótipo.


ABSTRACT

This study will investigate some factors taken as reference by the officers of the military police of the State of Para in the northern region (PMPA Brasil), in the procedures and approaches of personal searches, during the patrols carried out in peripheral neighbourhoods of the city of Belem. The research focuses on the analysis of perception of the policeman in the identification of individuals who are considered suspects, as well as the manner in which these individuals experience and perceive the police approach. The methodology used in this research is quantitative, composed by applying questionnaires to two groups: police and youths of the peripheral neighbourhoods. With respect to cops, 335 research and participate accepted replying to questionnaires. Among young people, the number of questionnaires returned was 403. The total number of questionnaires allowed a statistical margin of error smaller than 5%. On the basis of the most relevant notes, suspicions that induce the police approach do not have clear legal backing, although its formulation is commonplace in the ostensive policing activities. As these procedures utilize personal markers stereotyped, generate, among young people, deeply negative assessments of police work.

Keywords: police Approach. Suspect. Stereotype


RESUMEN

Este estudio investigará algunos de los factores que se toman como referencia por los agentes de la Policía Militar del Estado de Pará (PM / PA / Brasil), procedimientos y enfoques búsquedas personales durante los patrullajes realizados en las zonas periféricas de la ciudad de Belén La investigación se centra. en el análisis de la percepción de la policía en la identificación de las personas que consideran sospechosas, y la manera en que estos individuos experimentan y perciben el enfoque policial. La metodología utilizada en esta investigación es de carácter cuantitativo, que consiste en cuestionarios a dos grupos: la policía y los jóvenes de la periferia. Con respecto a la policía, 335 aceptaron participar y responder a los cuestionarios. Entre los jóvenes, el número de cuestionarios completados fue 403. El número total de cuestionarios permitió un margen de menos del 5% de error estadístico. Sobre la base de las citas más relevantes, las sospechas que inducen el enfoque policial no tiene respaldo legal claro, aunque su formulación es un lugar común en las actividades policiales ostentosos. A medida que estos procedimientos utilizan estereotipada marcadores personales generan entre los jóvenes de los barrios de las afueras de Belén, profundamente evaluaciones negativas de la labor policial.

Palabras-clave: acercamiento de la policía. Sospechoso. Estereotipo.


 

 

1. INTRODUÇÃO

Este artigo tem como escopo analisar os fatores tomados como referência pelos policiais da Polícia Militar do Estado do Pará (PM/PA/Brasil), nos procedimentos de abordagens e buscas pessoais, durante os patrulhamentos realizados em bairros periféricos da cidade de Belém. A investigação centra-se na análise da percepção dos policiais no que se refere à identificação de indivíduos que consideram suspeitos, bem como na maneira pela qual estes indivíduos experimentam e percebem a abordagem policial. Entre as prioridades fundamentais da pesquisa, destacamos a coleta e a análise de dados sobre a forma como os policiais constroem a figura do suspeito, bem como o papel da discricionariedade em suas atividades de policiamento ostensivo. Buscamos, assim, explicitar os estereótipos cultivados de maneira informal pela instituição PM e a influência que tais estereótipos exercem na tomada de decisão dos policiais em sua atuação na cidade de Belém.

Entre os objetivos que norteiam este trabalho estão: o esclarecimento acerca das implicações práticas e legais da discricionariedade dos policiais; a identificação dos indícios que mobilizam os policiais na atribuição da condição de suspeito a alguém; e a percepção dos jovens das comunidades periféricas da cidade de Belém a respeito de seus encontros com a polícia. O artigo está dividido em seis seções. Inicialmente, abordamos a construção da condição de suspeito. Em seguida, discutimos a discricionariedade enquanto condição intrínseca ao trabalho policial. A seção seguinte está reservada à descrição da metodologia utilizada na pesquisa. Prosseguimos o trabalho com a apresentação dos resultados coletados, na qual enfocamos, primeiramente, os percentuais indicativos da forma como os policiais percebem certas características com base nas quais eles atribuem a condição de suspeição a uma pessoa. Posteriormente, apresentamos os dados relativos à percepção dos jovens moradores dos bairros periféricos de Belém acerca do trabalho dos policiais. Por último, apresentamos as inferências extraídas dos dados apresentados.

 

2 A CONSTRUÇÃO DA CONDIÇÃO DE SUSPEITO

Um dos componentes fundamentais do policiamento ostensivo é a possibilidade de uma ação preventiva que permita a antecipação dos policiais à prática da atividade criminosa. A identificação e a neutralização preventiva dos "delinquentes", eventualmente, presentes em determinada área, constituem alguns dos objetivos principais dessa estratégia. Todavia, essa é uma atividade extremamente complexa e sujeita a constantes mal-entendidos, pois não existem parâmetros inequivocamente claros, seja na legislação, seja na formação dos policiais, para orientá-los a identificar as características de um suspeito. Pelo menos em termos formais, não existem, atualmente, marcas distintivas capazes de assegurar aos policiais que determinados grupos ou indivíduos são criminosos ou apresentam potencial para sê-los.

A história evidencia que, em diversos períodos, marcas distintivas foram explícitas e estavam visíveis à sociedade como uma forma de identificação de elementos considerados potencialmente nocivos, dos quais a coletividade como um todo, e cada cidadão em particular, deveria se proteger. Acerca desta questão, Goffman (1980) relata que os gregos tinham grande conhecimento, pois costumavam fazer recorrente utilização de recursos visuais. Eles, inclusive, criaram o termo estigma para se referirem aos sinais corporais com base nos quais procuravam evidenciar alguma coisa extraordinária ou má relacionada ao status moral de quem as exibia. Tais sinais, segundo Goffman, eram feitos no corpo de determinados indivíduos, com cortes ou fogo, para identificá-los publicamente. Dessa forma, o portador das marcas ou sinais era reconhecido, pela sociedade, como um escravo, um criminoso ou um traidor, ou seja, como uma pessoa que deveria ser evitada.

Marcas feitas de forma diferente, mas com intenção semelhante à relatada por Goffman, são indicadas por Williams (1989) ao descrever a forma como, na Europa do século XVII, eram identificadas as pessoas pobres que recebiam auxílios públicos para sobreviver. De acordo com o autor, desde o ano de 1693, o auxílio aos velhos residentes nas aldeias era submetido à autoridade de um juiz. Assim, os beneficiários ficavam impedidos de se ausentar da sua comarca sem a devida autorização do magistrado responsável, e tinham seus nomes registrados em livro checado anualmente. Conforme Williams, uma lei inglesa, homologada no ano de 1697, estipulou que essas pessoas deveriam usar, em seu casaco, a letra "P", na cor vermelha ou azul, para que fossem facilmente identificadas pelos demais membros da sociedadei . Atualmente, as sociedades em geral não mais utilizam esses tipos de identificação como forma legitimada de estabelecer o status moral dos indivíduos transgressores. Contudo, existem outras formas não legitimadas juridicamente, mas, em certo sentido, sancionadas culturalmente, capazes de marcar indivíduos ou grupos tendo como base suas características específicas, independentemente de serem eles delinquentes ou não. A constatação da existência dessas marcações culturais pode ser observada, por exemplo, nas atitudes dos policiais que trabalham no policiamento ostensivo, os quais são constantemente solicitados a avaliar a condição de suspeição e eventual periculosidade de grupos e indivíduos. Dessa avaliação, depende sua decisão de realizar ou não medidas de contenção, de busca ou de revista pessoal.

De acordo com Reis (2002), as circunstâncias mais comuns de suspeição policial são definidas com base em três elementos principais: o lugar suspeito, a situação suspeita e a característica suspeita. O primeiro elemento estaria centrado na concepção de que o lugar é um fator preponderante na possibilidade de que determinados tipos de delitos sejam cometidos; o segundo estaria ligado às situações passíveis de suscitar o cometimento de crimes; e o terceiro estaria relacionado a determinadas características do indivíduo, segundo as quais ele possa ser considerado um delinquente em potencial. No entanto, como não existem parâmetros legais para uma definição precisa do que seja um suspeito, tudo com que os policiais contam para nortear seu trabalho são perfis arbitrariamente construídos, resultantes da sua experiência profissional. Dessa forma, sinais subjetivamente forjados em suas mentes durante o cotidiano de sua experiência de policial são infligidas a determinados indivíduos ou grupos.

A arbitrária adjetivação negativa de certos usos sociais, tais como tatuagens, modo de se vestir, tipo de corte e coloração de cabelos, para incutir a condição de suspeito, constitui um fenômeno recorrente nas polícias do Brasil, especialmente na polícia paraense (ver Figura 02). A partir desse precário referencial, qualquer pessoa que não se enquadre na concepção de normalidade concebida pelo policial e seja considerada, por ele, em desconformidade com a paisagem na qual se encontra, poderá ser considerada suspeita e, nessa condição, passar pelos constrangimentos de uma busca pessoal em público.

 

 

A estratégia de tentar detectar supostos indícios de anormalidade, seja nos lugares, nas situações ou nas pessoas, como forma de evitar a prática de delitos, apoia-se em pressupostos subjetivos e absolutamente questionáveis, porquanto anormalidade ou diferença são noções imprecisas, e não necessariamente sinônimas de criminalidade ou de delinquência. É conveniente ressaltar que a noção de normalidade é ideológica e culturalmente condicionada, pois comporta uma multiplicidade infindável de nuances (Foucault, 1987, 1994). Assim, a construção da suspeição constitui um processo gestado fundamentalmente na mente daquele que suspeita e naquilo que considera ser seu conhecimento, não tendo, portanto, respaldo seguro na realidade. De acordo com Reis (2002), a suspeita surge como uma espécie de intuição baseada na experiência prática do policial, e varia de acordo com suas vivências pessoais e profissionais, o que, evidentemente, a torna impregnada de seus valores e pré-conceitos (ver Figura 01).

 

 

Um dos fatores responsáveis pelo aumento da complexidade e das ambiguidades envolvidas com a referida questão está relacionado ao fato de que esse procedimento não está totalmente desprovido de fundamento legal, apesar do caráter essencialmente individual e arbitrário da atribuição de suspeição. O próprio Código de Processo Penal (CPP), em seu Artigo 244, admite essa possibilidade ao estabelecer que a busca pessoal independe de mandado quando houver "fundada suspeita" de que a pessoa esteja na posse de arma proibida, de objetos ou de papeis que constituam corpo de delito. Assim, ao mencionar a expressão "fundada suspeita", o ordenamento jurídico brasileiro admite a utilização de tal elaboração pelos operadores da segurança pública como parâmetro para tomadas de decisão durante as atividades de policiamento ostensivo. Todavia, não existe uma definição exata e explícita do que seja a "fundada suspeita" e, em consequência, há uma enorme lacuna entre essa imprecisa noção prevista em lei e o procedimento adequado no cotidiano do trabalho policial, deixando-se por conta deste profissional a tarefa de encontrar elementos, em sua opinião, claramente discerníveis do que vem a ser uma situação ou um indivíduo suspeito.

Discussões sobre as possibilidades e os limites legais da utilização da concepção de "fundada suspeita" para justificar a abordagem policial e a busca pessoal já foram objeto de apreciação do Supremo Tribunal Federal (STF), em mais de uma oportunidade. Quando solicitado a se manifestar a respeito da questão, esse Tribunal se pronunciou defendendo que a "fundada suspeita" não deve estar alicerçada em parâmetros meramente subjetivos do agente público, pois, se utilizada dessa maneira, causará constrangimento e revolta desnecessária às pessoas submetidas a esse tipo de situação. Ainda de acordo com o STF, a legitimação da "fundada suspeita" exige a presença de elementos concretos que indiquem a suspeita, porque a abordagem de um cidadão, tendo como parâmetro a condição de suspeição, pode facilmente levar a situações vexatórias e arbitrárias. Contudo, mesmo no pronunciamento do Tribunal, não estão absolutamente claros quais são os mencionados "elementos concretos" capazes de indicar inequívoca e legitimamente a condição de suspeição (Supremo Tribunal Federal, 2002).

Nucci (2007), ao discorrer sobre as condições em que a suspeita pode ser legitimamente utilizada para justificar a abordagem pessoal, chama a atenção para a necessidade de que a abordagem seja fruto de uma fundamentação concreta, pautada, principalmente, em fatos e em testemunhas, e não apenas em mera dedução subjetiva do agente público. Segundo o autor, embora o agente do Estado possa abordar uma pessoa sob a justificativa da objetivação de um interesse público maior, sua conduta deve ser escrupulosamente balizada, não podendo causar sofrimento desnecessário, caso contrário, a pessoa constrangida poderá ensejar a responsabilização do agente, por sua atuação abusiva, e da instituição a qual ele pertence. No entanto, se consideramos que a suspeita, conforme propugna o autor, somente é legítima quando há fatos e testemunhos, podemos inferir que ela somente seria concebida após a prática de algum delito presenciado por testemunhas. Tal situação, se tomada ao "pé da letra", praticamente inviabilizaria o policiamento ostensivo de caráter preventivo, pois ninguém seria considerado suspeito antes de ter, efetivamente, cometido uma transgressão; logo, nenhuma pessoa poderia ser legítima e legalmente abordada para verificação.

As controvérsias a respeito da condição de suspeito e da conveniência dos procedimentos adotados pelos policiais durante as abordagens de rotina não são exclusividades das instituições policiais brasileiras. Há pouco tempo, uma decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos da América criou uma série de polêmicas a respeito dos limites da busca pessoal, principalmente quando esse procedimento se estende à busca no interior do veículo de um possível suspeito.Tradicionalmente, as autoridades judiciais dos EUA consideram legítima a extensão da busca pessoal para além da própria pessoa do suspeito. De acordo com Smith e Hester (2011), o entendimento inicial era de que a polícia cumpre ampla gama de funções e cuidados com o objetivo de manter a sociedade em ordem, o que inclui a possibilidade de apreensão e remoção de pessoas e veículos, os quais possam comprometer a segurança pública. Historicamente, são permitidas buscas expansivas a apartamentos inteiros e, principalmente, a veículos que estejam sob o controle da pessoa suspeita durante a abordagem policial. Há poucos anos esta percepção foi alterada. Smith e Hester (2011) relatam que, no ano de 2009, a Suprema Corte considerou que a polícia poderá revistar um veículo, para prender os seus ocupantes, apenas se a pessoa detida for justificadamente considerada perigosa e estiver a curta distância desse veículo quando a abordagem ocorrer, ou quando for razoável acreditar na possibilidade de os policiais encontrarem provas, no veículo, relativas ao delito pelo qual a pessoa foi abordada. De acordo com os autores, essa nova regra coloca limitações significativas ao trabalho da polícia, que antes tinha ampla autoridade para revistar totalmente um veículo quando o condutor ou seu ocupante fosse preso. Acrescentemos a isso o fato de que as provas, eventualmente, encontradas eram totalmente acatadas nos tribunais. Mas, com a nova regra, os policiais não podem realizar buscas em locais móveis ou imóveis onde não exista fundamento razoável para acreditarem que haja elementos de prova relevantes para o delito pelo qual os suspeitos foram inicialmente abordadosii.

A recomendação relatada por Smith e Hester representa uma virada completa na interpretação daquilo que, até então, era a prática corriqueira dos policias dos Estados Unidos da América pois quando um policial abordava um veículo e detinha seus ocupantes, ele costumava realizar buscas no interior desse veículo e apresentar os ilícitos encontrados como prova do envolvimento do suspeito com as atividades ilícitas a ele atribuídas.

Quanto ao Brasil, mesmo considerando que o ordenamento jurídico trate de maneira diferente uma questão dessa natureza, e embora, no País, ainda se admita que policiais vasculharem um veículo para deter um suspeito por acreditarem que pode haver provas do delito em razão do qual a abordagem foi feita, resta sempre por definir a condição objetiva que torna um veículo, os indivíduos em seu interior ou alguém que simplesmente caminha pela rua, um suspeito em vias de praticar algum delito. Ou seja, a possibilidade de identificar se um veículo é suspeito e, portanto, passível de ser revistado pela polícia, e de estender a busca pessoal ao(s) passageiro(s) ou ao condutor, novamente requer uma definição clara referente ao perfil da pessoa ou do veículo considerados suspeitos. Como tais perfis não estão estabelecidos pela legislação, nem fazem parte do currículo das academias de polícia, novamente se recai no arbítrio do policial, o qual, a partir de seus conceitos e pré-conceitos, estabelece, sem nenhum parâmetro legalmente definido, o que seja o indivíduo, o veículo ou a situação suspeitos (ver Figura 03).

 

 

Consoante Andrade (2009), embora, no Brasil, alguns processos que colocavam em questão os procedimentos policiais realizados sob a perspectiva da suspeita, fundada ou não, já tenham chegado às instâncias judiciais, o número de casos levados ao judiciário ainda é ínfimo se comparado aos problemas ocorridos diariamente relacionados direta ou indiretamente com esse tipo de assunto. Ainda de acordo com este autor, é comum que, tanto o imaginário social, quanto a cultura organizacional das instituições policiais coloquem na condição de suspeitos pessoas que, pela forma como se vestem ou pelos adereços que utilizam, estejam fora do padrão estético oficialmente reconhecido como bom e adequado (ver Figura 01). Em consequência, a suspeição é direcionada, frequentemente, àqueles que se encontram em condição social desprivilegiada ou pertençam às diferentes "tribos urbanas", em decorrência de seu comportamento, em certo sentido, não convencional (ver Figuras 02 e 06).

Essa espécie de respaldo informal da qual o policial se utilizada para a construção do suspeito contribui para que, embora a instituição policial não admita formalmente os estereótipos que compõem o referido perfil, informalmente os aceite e os permita fazer parte de sua cultura interna. Os estereótipos envolvidos nesse processo são sistematicamente utilizados como marcadores estigmatizantes e, por isso, produzem alvos preferenciais para as ações da polícia (ver Figuras 01, 02 e 03). Dessa forma, a questão da suspeição se torna terreno fértil para interpretações preconceituosas e racistas, embora, na maioria dos casos, tais estereótipos apenas expressem a condição socioeconômica ou o estilo de vida adotado por algumas pessoas, sem que nada de criminoso ou perigoso se lhes possa atribuir (ver Figura 06).

De acordo com Reis (2002), quanto mais "populares" ou precárias as características do bairro, maior a probabilidade de se encontrar indivíduos suspeitos. Por esse motivo, geralmente as comunidades das periferias das grandes cidades são apontadas como o locus privilegiado das ações da polícia. Nesses locais, segundo Reis, a polícia está sempre em atitude defensiva, pois todos são suspeitos até que provem o contrário. Na prática, esclarece a autora, essa inversão de valores tem norteado a ação policial em bairros onde as características físicas dos moradores, referidas anteriormente, são associadas a estilos de vida supostamente delinquentes (ver Figura 02). De forma acurada, a autora conclui que, em consequência dessa interpretação preconceituosa, a segregação espacial dos bairros periféricos torna todos os seus moradores marginais potenciais, quando estão no seu próprio bairro, e "suspeitos óbvios", quando estão em outras partes da cidade.

 

3 O PROBLEMA DA DISCRICIONARIEDADE

A construção da condição de suspeito está diretamente conectada à discricionariedade do policial em sua atividade profissional cotidiana. Em consequência, a análise desse arbítrio passa, inevitavelmente, pela discussão dos limites e das possibilidades do chamado "poder de polícia". Tradicionalmente, o teor dos debates sobre essa temática centrou-se na necessidade de se impor limites ao comportamento discricionário dos policiais e de se enfatizar os procedimentos realizados de acordo com as políticas previamente estabelecidas pelos departamentos de polícia ou, quando essas políticas não existem de forma explícita, de se assentar o comportamento discricionário conforme preceitua o Estado Democrático de Direito.

A discricionariedade policial tem sido um dos fatores de interesse central do Estado, nos últimos, anos devido ao impacto significativo que as decisões dos policiais podem ter sobre a vida e os interesses dos cidadãos e sobre a credibilidade das instituições policiais. Embora algumas pesquisas tentem medir as atitudes que revelam o arbítrio policial (Alpert & Dunhan, 1999; Webb & Marshall, 1995; Cihan & Wells, 2011), pouco sabemos sobre a opinião dos cidadãos acerca do poder discricionário da polícia, assim como ainda são reduzidos os trabalhos alusivos à discricionariedade sob a perspectiva dos policiais (Cihan & Wells, 2011).

Boivin e Cordeau (2011) esclarecem que a discricionariedade da polícia refere-se ao poder de decisão assegurado aos policiais como parte de seu trabalho, especificamente à sua capacidade de identificar e documentar certos eventos criminais em detrimento de outros. No Brasil, o marco legal que norteia as discussões sobre "poder de polícia" e "discricionariedade" está vinculado, inicialmente, ao Art. 78, do Código Tributário Nacional (CNT). Segundo reza o artigo,

Considera-se poder de polícia a atividade da Administração Pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos. Parágrafo único: Considera-se regular o exercício do poder de polícia quando desempenhado pelo órgão competente nos limites da lei aplicável, com observância do processo legal e, tratando-se de atividade que a lei tenha como discricionária, sem abuso ou desvio de poder iii . Em sua redação atualizada, o mencionado artigo representa a tentativa de encontrar uma melhor adequação à previsão legal relativa ao poder de polícia, uma vez que a concepção clássica, de formato liberal, define a noção de "poder de polícia" essencialmente como uma atividade que consiste em demarcar o exercício dos direitos individuais em benefício da segurança. Na atual definição, essa previsão tem um caráter bem mais abrangente que diz respeito à atividade do Estado relacionada à fixação dos limites ao exercício dos direitos individuais em favor do interesse público.

De forma mais precisa ao que o citado artigo inicialmente propunha, Cunha (2012) esclarece que "poder de polícia" é a faculdade discricionária de que dispõem os agentes públicos para condicionar e restringir o uso e o gozo de bens ou direitos individuais em benefício da coletividade. Nesse sentido, bens e direito da coletividade correspondem não apenas aos valores materiais, mas também ao patrimônio moral e espiritual cultivado pela sociedade para a contenção de atividades particulares antissociais ou prejudiciais à segurança. Dessa maneira, a noção de "poder de polícia" pode assumir tanto o caráter preventivo quanto repressivo, sempre com o intuito de alcançar os infratores da lei penal.

Ainda de acordo com Cunha, a discricionariedade é expressa de maneira mais evidente no poder do policial, enquanto indivíduo, e da polícia, enquanto instituição, de condicionar a liberdade e a propriedade, ajustando-a, assim, aos interesses coletivos. O autor comenta que, em sentido estrito, a discricionariedade abrange as intervenções destinadas a alcançar o fim de prevenir e impedir o desenvolvimento de atividades particulares contrárias aos interesses sociais.

É interessante ressaltar que, embora extraída do Código Tributário, a definição de discricionariedade compreende amplo leque de aplicabilidade e pode, inclusive, ser tomada como referência para discussões sobre essa questão, nas instituições policiais civis e militares. Ao analisar as dificuldades na administração equilibrada da discricionariedade que acompanha o "poder de polícia", Almeida (2007) esclarece que uma das maiores dificuldades para quem exerce atividades de gestão em uma instituição policial, provavelmente, é a de zelar para que o policial e, consequentemente, a polícia enquanto instituição, não resvale da discricionariedade para a arbitrariedade. Para o autor, essa tarefa envolve a tentativa da instituição policial no sentido de produzir a uniformidade de comportamentos dos subordinados em uma atividade permeada de subjetividade e que, em geral, ocorre essencialmente distante da observação direta do gestor.

Autores como Almeida (2007), Phillips e Sobol (2012) e Souza e Reis (2012) chegaram a constatações semelhantes quanto às dificuldades da administração de tal problema. Eles enfatizam o imenso esforço que as instituições policiais de sociedades democráticas têm empreendido para que seus agentes mantenham-se no estrito respeito à lei. Tais dificuldades, conforme os autores, são extremamente desgastantes, na medida em que expõem constantemente a polícia e seus gestores à crítica generalizada, de um lado, e à utilização política de suas falhas, de outro.

De acordo com Almeida (2007), quando acionada para atender uma ocorrência, ou em deslocamento de rotina, a polícia pensa ter certeza de pelo menos uma coisa: de que pode e deve abordar qualquer pessoa que se encontre em "fundada suspeita" de autoria criminal. Portanto, pelo menos em tese, está respaldada para proceder a busca pessoal ou a chamada "revista". Consoante o autor, essa medida é considerada policial-discricionária na seleção do eventual delinquente a ser abordado, e segue um rito no qual o policial, idealmente se utilizando da máxima discrição, deve efetuar a "revista" no corpo e nas vestimentas da pessoa suspeita, que não poderá impor resistência, mas que também não poderá ou não deverá ser submetida a constrangimento público. Por esse motivo, segundo Tillyer e Klahm IV (2011), a busca (ou revista) pessoal precisa envolver alguns critérios básicos, quais sejam: a identificação de uma causa provável e o consentimento daquele que é revistado.

Na opinião de Klinger (1997 citado por Boivin & Cordeau, 2011), além dos fatores mencionados, as ações da polícia (discricionárias ou não) são também influenciadas pelas taxas de criminalidade, pela desconfiança e pela carga de trabalho do policial. Ele argumenta que os policiais podem considerar algumas infrações como normais, em determinados contextos, e julgarem certos tipos de vítimas menos merecedoras de atenção em relação a outras. Além disso, podem estar inclinados a utilizar alternativas de respostas formais e não formais para determinados delitos, conforme considerem mais apropriado em uma situação específica. Ainda segundo o autor, as taxas de registro de ocorrência policial variam de acordo com as características do bairro.

Boivin e Cordeau (2011) esclarecem que as taxas de depuração oscilam muito com relação aos tipos de crime, havendo maior possibilidade de serem apuradas no caso de assaltos e menor possibilidade em outros tipos de crimes, considerados de menor potencial ofensivo. Ao lidar com assaltos, segundo os autores, os policiais muitas vezes conseguem intervir junto à vítima e ao infrator, o que, pelo menos em tese, aumenta, consideravelmente, as chances de resolução do caso.Além dos aspectos puramente operacionais, a tomada de decisão de um policial em operação pode ser influenciada por uma série de fatores legais e extralegais, como a gravidade do delito, a presença da vítima e a existência de registros anteriores relacionados ao delito. As buscas discricionárias são, em grande parte, produto da experiência do policial, a qual, por sua vez, pode ser influenciada pela sua exposição repetida a uma variedade de situações que, em última análise, o ajudam no desenvolvimento de um conjunto de regras de ordenação e interpretação com as quais procura identificar indivíduos, lugares e comportamentos considerados suspeitos.

Os policiais, em geral, desenvolvem seu trabalho nos mesmos lugares. O fato de se depararem, em tais locais, com indivíduos semelhantes contribui para que desenvolvam pistas para apontar um suspeito. Dessa forma, sua experiência com os cidadãos, em contextos específicos, pode aguçar a sua capacidade de precisão num momento de tomada de decisão. Em outras palavras, é possível que policiais desenvolvam uma concepção pessoal sobre as características do suspeito durante suas várias interações com os cidadãos, seja em abordagens, seja em resposta às chamadas. Assim, eles conseguem formatar modelos subjetivos de uma variedade de tipos de encontros entre a polícia e o cidadão. Isso, aparentemente, facilita uma construção pessoal daquilo que consideram ser um suspeito (Boivin & Cardeau, 2011; Tillyer & Klahm IV, 2011). Contudo, essa elaboração de características, que, inevitavelmente, fundamenta a sua tomada de decisão, gera uma grande preocupação entre as minorias étnicas e os grupos socialmente desprivilegiados, os quais podem ser tratados de maneira desigual e injusta durante seus encontros com a polícia (ver Figura 06).

A questão da discricionariedade aflige tanto a sociedade quanto os gestores das instituições policiais, porque, se for restringida com a adoção de critérios excessivamente rígidos, pode desencadear problema igualmente preocupante relativo à limitação da capacidade dos policiais para realizar um trabalho eficaz, principalmente no policiamento ostensivo de rotina. De acordo com Klinger (1997 citado por Tillyer & Klahm IV, 2011), levar o policial a se basear unicamente em determinado conjunto de orientações oriundo de regras estipuladas pela Secretaria de Segurança Pública (SSP) sugere, implicitamente, uma diminuição proporcional da influência de sua experiência pessoal para decidir pela abordagem ou não de uma pessoa que considere suspeita. O autor assevera que, em lugares onde a experiência do policial é limitada pela implantação de políticas restritivas em relação à sua discricionariedade, pode ocorrer a inibição de sua capacidade de usar as informações decorrentes de suas experiências sobre as áreas geográficas e os indivíduos locais. Esta situação parece ser particularmente relevante para o policiamento das áreas urbanas.

O grau de liberdade dos policiais para a tomada de decisões discricionárias constitui um papel importante no controle da criminalidade e no processo legal dos sistemas de justiça criminal. Nesses contextos, um modelo de controle do crime que valoriza a eficiência no ato de prender e punir transgressores deve ser capaz de operar rapidamente, sem a carga de formalidade e rituais demorados, em cada momento de decisão. Nas palavras de Packer (1968 citado por Cihan & Wells, 2011), um dos elementos fundamentais para o bom funcionamento do controle da criminalidade consiste na possibilidade de o policial proceder uma rápida tomada de decisão, bem como na identificação de criminosos e na coleta de fatos acerca de determinado caso. Aos policiais é confiada a tarefa de identificar e processar informações sobre os supostos culpados. Daí a crença de que eles são capazes de identificar um suspeito. Ou seja, é concedida uma grande dose de discricionariedade aos policiais na abordagem de suspeitos porque o controle da criminalidade não pode ser efetivamente conseguido por meio da simples promulgação de leis penais (Goldstein, 2003; Cihan & Wells, 2011).

Em última análise, a eficácia da atividade da polícia em condições de discricionariedade é uma questão que apresenta profundas implicações práticas, pois as decisões tomadas discricionariamente, apesar potencialmente problemáticas (ver Figuras 07 e 08), são, todavia, componentes absolutamente importantes nas atuais estratégias de enfrentamento da criminalidade.

 

4 METODOLOGIA

Este trabalho aborda a percepção de policiais da PM/PA sobre os jovens da periferia de Belém, bem como a percepção desses jovens com relação aos policiais. O objetivo é avaliar os estereótipos que um grupo constrói a respeito do outro, tendo como referência a situação extremamente tensa para ambos, estabelecida os encontros não voluntários que ocorrem durante as abordagens policiais de rotina, para revista pessoal. Os dados expostos neste artigo foram extraídos de uma investigação mais ampla, que se encontra em andamento, apoiada pelo CNPq. As inferências e implicações apresentadas refletem apenas uma parte dos resultados já obtidos. A abordagem utilizada nesta investigação é de natureza, exclusivamente, quantitativa e foi operacionalizada a partir da aplicação de dois tipos de questionários fechados. O primeiro, composto por 13 perguntas, com a opção de marcar apenas uma resposta entre as opções disponíveis, foi respondido por policiais que desenvolvem atividades de policiamento ostensivo na Região Metropolitana de Belém (RMB). Sobre esse contingente, extraímos amostra significativa com margem de erro máxima de 5%, chegando-se, por meio desse procedimento, a um total de 335 questionários respondidos.

O mesmo procedimento foi utilizado para extrairmos amostra no Guamá e na Terra Firme, no grupo constituído por jovens que estudam o Ensino Médio em escolas públicas localizadas nesses bairros e que tiveram ou presenciaram encontros não voluntários com a polícia, ao longo dos doze meses anteriores à data de aplicação do questionário. Os referidos bairros, nos quais realizamos a coleta de dados estão localizados na periferia de Belém e apresentam como característica comum, sérios problemas de infraestrutura, graves deficiências nos serviços públicos disponibilizados à população, altos índices de criminalidade e recorrentes reclamações com relação à atuação da polícia. Da mesma forma que no primeiro grupo pesquisado, neste grupo também extraímos amostra expressiva estratificada, resultante de aplicação de questionários aos alunos das três séries do ensino médio (1º, 2º e 3º ano), nos três turnos (manhã, tarde e noite). A margem de erro admitida foi de 5%, em um total de 403 questionários aplicados, cada um dos quais compostos de 13 perguntas, com opções de resposta em múltipla escolha, também com a opção de marcar apenas uma resposta.

Cada grupo respondeu a um conjunto de questões diferentes, cujas respostas estão registradas neste artigo sob a forma de estatística descritiva.

 

5 RESULTADOS

Os resultados obtidos, após a avaliação dos dados descritivos sobre a construção do suspeito na percepção dos policiais e a percepção dos jovens dos bairros do Guamá e da Terra Firme a respeito do trabalho da polícia, estão apresentados nas subseções a seguir.

5.1 Os suspeitos, segundo os policiais

A Figura 01 evidencia que, quando os Policiais Militares (PMs) constróem a condição de suspeição, tendo como referência determinados espaços urbanos, os indivíduos que estão em deslocamento pelas ruas ou que se encontrem no entorno de festas de aparelhagemiv estão mais suscetíveis a serem considerados suspeitos. Esses espaços aparecem na pesquisa com 30,5% (em deslocamento pelas ruas) e 29,7% (no entorno de festas de aparelhagem) das indicaçãoes de localização para um possível suspeito. A situação de encontrar-se parado nas esquinas das ruas também pode ser um forte sinal de suspeição, uma vez que os policiais indicam, em 22,2% dos casos, ser essa uma situação que tornaria, quem nela se enquadrasse, um suspeito.

É importante destacar que os referidos fatores podem ser combinados com outros, como os relacionados à forma de uma pessoa se vestir,e, assim, tornar a condição de suspeito, bem como a consequente abordagem, praticamente inevitáveis. Esse fato é observado ainda na Figura 01, na qual o uso de camisa larga (35,1%), seguido pelo uso de camisa de manga comprida (22,1%) e o não uso de camisa (16,8%) parecem constituir uma importante característica do suspeito.

Detalhe importante também na construção da condição de suspeito por parte do policial está relacionado ao tipo de vestimenta inferior dos indivíduos. Por exemplo, indivíduos que usam calças folgadas, com fundos grandes, deixando à mostra a cueca são apontados por 32,4% dos pesquisados como suspeitos. Da mesma forma, a utilização de bermudas caídas que deixam aparecer a cueca são fortes indicadores da condição de suspeição na opinião de 25,4% dos policiais pesquisados. Em síntese, se o indivíduo estiver transitando na via pública, trajando camisa larga, calça folgada e deixando à mostra sua cueca, terá grandes chances de ser considerado suspeito pelos PMs de Belém do Pará.

Interpretação semelhante a que ocorre com relação ao local e à vestimenta, o tipo de cabelo de uma pessoa constitui também forte indicador de um suspeito para os policiais. Na Figura 02, por exemplo, a maioria absoluta (79,5%) identifica os indivíduos que usam cabelos coloridos com "reflexos" lourosv como extremamente suspeitos. Na mesma Figura, o uso de tatuagem aparece como marca frequentemente associada à criminalidade para os policiais, pois 37,2% deles indicam esse tipo de fator como importante na identificação de um suspeito. O uso de boné também se destaca em condição muito parecida, porquanto 29,2% dos policiais indicam ser esta uma forma de identificar um suspeito.

Quanto aos fatores que induzem a abordarem em veículos, os dados da Figura 03 sugerem que 27,5% dos policiais apontam a presença de mais de um indivíduo no automóvel como um indicador importante. Acerca desta questão, os policiais afirmam que a presença de vários homens brancos, inclusive o motorista (25,5%), e/ou vários homens negros (19,6%), no automóvel, configuram uma situação suspeita, motivo pelo qual devem ser abordados para revista pessoal.

Com relação aos ciclistas, a suspeição recai em indivíduos que transitam com passageiros masculinos na garupa, com 73,4% das indicações na Figura 03. No caso de motociclistas, a suspeita recai sobre aqueles do sexo masculino que trafegam com passageiro também do sexo masculino. A condição de suspeito, neste caso, é apontada por 80,1% dos pesquisados, na mesma Figura.

A Figura 04, relativa ao grupo étnico predominante de suspeitos na percepção dos policiais, aponta que indivíduos designados como pardos/mestiços formam o maior contingente (75,7%) das indicações, estando as faixas etárias dos suspeitos situadas entre 17 a 20 anos, com 57,1% das indicações, e entre 13 a 16 anos, com 31,6%.

 

 

A Figura 05 ressalta como principal característica de um suspeito, na percepção dos policiais, o nervosismo (76,9%), o modo de falar utilizando gíria (40,7%) e a apresentação de dedos queimados e/ou amarelados (31,4%), características estas que completam o perfil do indivíduo que deve ser abordado, na opinião dos policiais.

 

 

5.2 Os Policiais, segundo os jovens da periferia de Belém

A Figura 06 apresenta dados relativos às indagações feitas aos jovens da periferia de Belém, mais precisamente dos bairros do Guamá e Terra Firme, a respeito do trabalho da polícia. Quando questionados sobre a forma como a polícia age ao atender determinados grupos as respostas foram as seguintes: com relação ao tratamento dispensado aos homossexuais masculinos, cerca de 50,3% apontam como "ruim" e 35,1% o consideram "regular". Da mesma forma, 79,6% consideram o tratamento dispensado aos homossexuais do sexo feminino "ruim" ou "regular". No que se refere à abordagem aos pobres, 78,3% dos entrevistados a consideram "ruim" ou "regular". Eles também consideram o tratamento que os negros recebem da polícia como "ruim" ou "regular", em 80,6% das abordagens.

 

 

A Figura 07 indica as avaliações dos entrevistados com relação ao comportamento dos policiais quando da realização de uma prisão, à maneira de lidarem com as pessoas, ao seu desempenho no combate ao crime e ao emprego da força ou de armas. Entre os entrevistados, 73,7% consideram que o comportamento da polícia, ao efetuar prisões, não é adequado, atribuindo-lhe os conceitos "ruim" ou "regular"; 83,5% dizem que o tratamento dispensado pelos policiais às pessoas residentes nos bairros da periferia de Belém é "regular" ou "ruim"; 59,7% consideram pouco eficiente o trabalho na polícia no combate ao crime, atribuindo-lhe os conceitos "ruim" ou "regular"; 66,8% indicam acreditar que a polícia não faz uso da força física e de armas de maneira adequada, atribuindo-lhe, também neste caso, os conceitos "ruim" ou 'regular".

 

 

A Figura 08 apresenta uma avaliação acerca da percepção dos jovens da periferia de Belém sobre a educação (cortesia) dos policiais durante suas abordagens. Neste caso, 75,9% consideram que os policiais não são corteses com as pessoas, atribuindo-lhes, neste item, os conceitos "ruim" ou "regular", e 74,8% consideram que, em geral, o comportamento dos policiais ao fazerem policiamento na periferia é "ruim" ou "regular".

 

 

A Figura 09 ressalta a opinião dos pesquisados sobre a sensação que experimentam quando deles se aproxima uma viatura policial ou um grupo de policiais. Entre esses, 55,7% afirmam ter uma sensação "excelente" ou "boa", e 44,3% dizem ter uma sensação "ruim" ou "regular". Além disso, 74,5% dos pesquisados afirmam não confiar na polícia e 47,4% dizem que formaram sua opinião a respeito da polícia pelo que souberam através da imprensa.

 

6 CONCLUSÃO

Os apontamentos mais relevantes desta pesquisa indicam que a questão da condição de suspeição, que induz a abordagem policial, se desloca numa fronteira não claramente demarcada entre a obrigação legal de prover a segurança da sociedade, tendo como balizamento o respeito aos direitos humanos e a necessidade de realizar essa atividade dentro de parâmetros que possam ser considerados operacionalmente eficientes. Os dados analisados evidenciam, também, a ausência de elementos norteadores clara e legalmente sancionados para a identificação de suspeitos, embora os policiais que trabalham no policiamento ostensivo necessitem, a todo momento, identificar indícios dessa condição.

Com base nos dados analisados, observamos que a busca da eficiência do trabalho policial nas ações preventivas e o risco de o seu trabalho incorrer em violações aos direitos humanos caminham, frequentemente, lado a lado. A pesquisa evidencia a violação aos de direitos como um dos mais recorrentes nos bairros da periferia das grandes cidades, uma vez que os estereótipos suspeitos, cultivados pelos policiais, podem facilmente estar presentes na maioria da população que nelas habita. Desse modo, a população passa a ter uma relação de estranhamento e de insatisfação justamente em relação à instituição que deveria protegê-los.

Ao colocar em evidência o arbítrio policial e seu impacto sobre a percepção da comunidade, acreditamos que os resultados desta pesquisa poderão fornecer subsídios importantes para a redefinição dos processos de formação, acompanhamento e avaliação do trabalho dos PMs da RMB.

 

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Nota sobre os autores
Jaime Luiz Cunha de Souza
Doutor em Ciências Sociais, Professor da Faculdade de Ciências Sociais do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UFPA (FCS/IFCH/UFPA)
e do Programa de Pós-Graduação em Defesa Social e Mediação de Conflitos, da UFPA (MPDSMC/UFPA).
Contato: jaimecunha@ufpa.br

João Francisco Garcia Reis:
Mestre em Defesa Social e Mediação de Conflitos, pela Universidade Federal do Pará (MPDSMC/UFPA).
Contato: garcia36911@gmail.com.

Recebido em maio 2014
Aceito em outubro de 2014

 

 

i A presença dessa letra os identificava simultaneamente como pobres e como recebedores de auxílio do Poder Público.
ii Isso significa que se um policial abordar um veículo por excesso de velocidade não poderá realizar a busca pessoal no motorista ou busca no veículo à procura de drogas ou armas, porque o motivo pelo qual ele foi parado pela polícia (um problema de trânsito) não permite supor a existência de drogas ou armas que justifique a busca.
iii Redação deste artigo e do parágrafo que o acompanha dada pelo Ato Complementar nº 31, de 28.12.1966 disponível em http://www.jusbrasil.com. br/legislacao/anotada/2337078/ art-78-do-codigotri butario-nacional-lei-5172-66. Acesso no dia 20 de junho de 2013.
iv Nas festas de aparelhagem, são utilizados gigantescos equipamentos sonoros. Elas são a principal fonte de lazer das comunidades da periferia.
v Esses indivíduos são apelidados, pelos policiais, de "pica-pau" em alusão ao pássaro cuja plumagem apresenta coloração semelhante aos cabelos com reflexos louros.