SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.6 número1A discricionariedade policial e os estereótipos suspeitosDe Fritz Perls ao VI Encontro Norte-Nordeste de Gestalt-Terapia em Belém do Pará índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Revista do NUFEN

versão On-line ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.6 no.1 Belém  2014

 

Resenha

 

 

Livro "Queering: problematizações e insurgências na Psicologia Contemporânea" Teixeira Filho, F. S. et al (2013). Cuiabá: EDFMT

 

 

Aline da Costa Jerônimo; Henrique Cesar Cardoso do Couto

Universidade Federal do Pará

 

O Livro "Queering e as práticas psi" traz reflexões acerca das práticas do psicólogo enquanto agente de transformação social. Este pode se posicionar em contraposição aos binarismos, heteronormatividade, normas sociais arcaicas vigentes, tomando como referencial o queer, o qual se posiciona enquanto resistência a tais discursos, subvertendo os estigmas sociais. Assim, a proposta de uma psicologia queer romperá com proposições estáticas e totalizadoras, o que favoreceria um estado de construção permanente.

Teixeira-Filho, Longo e Souza no texto "Gênero e suas expressões em um contexto educacional e de atendimento à infância e à adolescência em uma cidade do interior paulista", relatam a pesquisa que buscou averiguar como as representações de gênero influenciam nos cuidados com crianças e adolescentes de uma instituição assistencial filantrópica no interior de São Paulo. Tal posicionamento dos cuidadores se demonstrou como uma forma de manutenção dos essencialismos e geradora de violência de gênero.

Assim, em um sistema estruturado a partir das relações de poder, as identidades são forjadas numa lógica estável, fixa e imutável. São produzidas ideais do que é ser um homem ou uma mulher. Na pesquisa, foram entrevistados os funcionários da instituição, e foi constatada essa posição pautada no binarismo e diferenças biológicas entre homens e mulheres. Mulheres estariam ligadas à fragilidade, à emoção enquanto os homens estariam do lado da razão.

Tais práticas reiteram os ideais falocêntricos de sociedade. Enquanto a mulher é vista em termos biológicos e lhe é delegado os ideais da maternidade, ao homem é atribuída uma postura agressiva, de dominação. Essas concepções reverberam nos modos de relação e na maneira como esse discurso circula na instituição, sacramentando esse tipo de pensamento, fomentando hierarquização e desigualdade. Os autores vislumbram como via de solução a essas questões a educação, a partir de práticas que desconstruam e desnaturalizem tais constructos sociais.

Pensando nessas desconstruções, a autora Galindo em seu texto "Quem se importa com experimentos? Ontologias variáveis, inquietações queer" mergulha no universo queer e afirma que as ontologias do contemporâneo não podem ser homogeneizadas. O queer, subverte, ironiza, se opõe aos códigos. Assim, a autora propõe uma queerização da compreensão do gênero, bem como da normatividade. Deste modo, as figurações deslizariam entre o literal e o fictício, sem fixidez.

Pensando a questão queer e sua interface com a psicanálise, as autoras Zordan e Porchat discorrem sobre o sujeito enquanto causado pelo inconsciente. Patrícia Porchat nos traz o texto "Tópicos e desafios para uma psicanálise Queer", expõe pontos essenciais para o debate e mesmo uma eventual aproximação da psicanálise e a teoria queer. Segundo a autora, o termo queer diz de um campo de sexualidade e gênero não convencionais, tradicionalmente excluídos, rechaçados. Assim, enquanto seres atravessados pela pulsão e pelo inconsciente, algo sempre irá escapar à norma e à regra, cavando um furo de onde surgem os lapsos, excessos.

A noção de pulsão subverte os ditames biológicos, o corpo se constitui de maneira singular. Porchat traz a teoria lacaniana dos registros real, simbólico e imaginário para tratar da irredutibilidade do corpo ao instinto e localiza a sexualidade no campo da linguagem, e o sujeito enquanto agente de construção de gênero.

Assim, queer só pode se referir ao singular, às construções simbólicas do sujeito que não coincidem com as leis instituídas, binarismos, determinismo de qualquer ordem. A pulsão, embora universal, se diferencia nos destinos a serem traçados pelo sujeito, construindo uma história singular.

Zordan considera o corpo enquanto irredutível às classificações binárias, num eterno devir. Considera a política como agenciadora dos corpos, as revoluções territoriais na cartografia corporal acontecem no que a autora denomina de agenciamentos coletivos de enunciação.

Em consonância com estas questões discursivas e dispositivos de poder propostas por Zordan, a autora Cristiane Silva no texto "Biopolítica, Subjetivação e Saúde" traz a noção de biopolítica, entendendo-a como um elemento fundamental na produção de subjetividade. Os sujeitos se inserem em determinados contextos, permeados pelos discursos ali estabelecidos, com seus poderes e normas vigentes. Deste modo a ação da biopolítica se estende aos modos de atuação em saúde ao exercer controle sobre dimensões íntimas da vida das pessoas.

A moralidade sobre a sexualidade se apresenta por diferentes discursos e condutas, seja por intermédio da moral cristã ou mesmo nas práticas médicas higienistas. Porém, novos sujeitos sustentaram sua diferença, garantindo visibilidade ao que a autora chama de "orientações sexuais não hegemônicas". Tal fato garantiu avanços políticos e reconhecimento do movimento LGBT no Conselho Nacional de Saúde, por exemplo.

Neste sentido, o autor Wiliam Siqueira apresenta em seu texto "Psicologia e Políticas Queer" a emergência de novos discursos e figurações que produzem subjetividades, levando ao surgimento de novos atores lutando por seus direitos. Porém, as relações, bem como os modos de produção, saberes podem estar a serviço da reprodução de dispositivos disciplinadores e totalizantes, impondo normas universais de pensamento.

São mecanismos sutis de biopoder como citou a autora Zordan, que institui relações de causa e efeito, ligadas aos aspectos biológicos e deterministas. Segundo o autor, isto resulta em indivíduos, dóceis, disciplinados, reprodutores da ordem vigente. Tal posicionamento estaria arraigado à psicologia, que em suas práticas reproduz tal discurso da normatividade, ao que o autor denomina de policiais do psiquismo.

Assim, segundo Siqueira, o sujeito não é determinado pela ordem biológica, é tributário de uma construção processual. Deste modo a identidade seria forjada por intermédio das relações "saber-poder-fazer".

Porém, esse caminho a ser percorrido em busca da afirmação da diferença e produções singulares pode gerar sofrimento. Patrícia Zordan considera que as normas sociais podem gerar mal estar no sujeito, sofrimento pela rejeição, preconceito e não reconhecimento social. Nas palavras da autora, a psicanálise deveria se engajar na tarefa de não permitir que as formas de manifestação da sexualidade humana seja alvo de práticas de controle e normatização por parte da sociedade.

Como forma de desconstruir tais normatizações, Sandra Azeredo, em seu texto "Em defesa do posicionamento na pesquisa em Psicologia", traz a noção de posicionamento na pesquisa, enquanto prática que objetiva a contestação, desconstrução. Para a autora, tal posicionamento crítico produz a ciência ao introduzir o político nas práticas de pesquisa, e tal posicionamento pode ser incluído na metodologia de pesquisa da psicologia. Portanto, a psicologia afinada à política queer, desconstruiria paradigmas binários, facilitando o surgimento de sujeitos autônomos. Desta forma, atuaria em prol do compromisso com a transformação social.

A série de questões e desafios à Psicologia segue presente na segunda seção do livro, intitulada "Queering e as práticas psi". Iniciamos nossa compreensão sobre esta segunda parte citando três trabalhos: O de Juliana Faria, sobre o entendimento de gênero, relacionando-o com a violência e as políticas públicas, desenvolvido a partir de sua experiência enquanto psicóloga do CREAS. O de Cíntia Santos, nas questões emergentes do contexto penitenciário, também campo de atuação da autora e, principalmente, o texto de Elcio Nogueira, intitulado "Vapores etnografados" no qual o pesquisador, a partir da aparente irrelevância sobre as suas vestimentas para a execução da pesquisa, se vê na necessidade de problematizar-se enquanto um agente que pode exercer uma relação de poder sobre os seus entrevistados.

A análise desenvolvida nos trabalhos citados e em outros, como "Corporalidades fora dos eixos", de Márcio Nascimento, "Educação sexual nas escolas", de Rondini, Teixeira Filho e Toledo convocam a uma reflexão sobre a dinâmica do poder, através dos argumentos de (des)construção histórica, como por exemplo, sobre o ideal de família, no trabalho de Juliana Faria, a partir das elaborações teóricas de grandes autores como Ariès e Foucault. Sem dúvida, a seção II do livro Queering contribui substancialmente por questionar as aparentes essências: a de família ideal, dos constructos sociais de homem, mulher e criança, das práticas psi. Todos os artigos são permeados por este questionamento.

Todos os autores, em diferentes níveis, procuram demonstrar nos contextos e instituições, como a escola, a família, o Estado, a universidade e os fazeres da Psicologia refletem a amplitude que os discursos normatizadores possuem. Neste ponto, como forma de ilustrar, destacamos o trabalho de Tânia Pifani, intitulado "Dentre o anômalo e o mais-do-mesmo", por abordar a complexidade existente na busca de militantes do Movimento LGBT em um Estado que, ao passo que através de ações governamentais cede a atender algumas reivindicações, entretanto, mantem-se rígido em outras, citando como exemplo citando como exemplo a alteração do registro civil após a cirurgia de transgenitalização (p.151).

Inicialmente, pareceu-nos desafiador encontrar um norte, um ponto em comum que fizessem da obra muito mais que a mera reunião de artigos. Tal ponto, pareceu-nos evidenciado na inquietação. Inquietante, pois convoca a assumir um posicionamento, a reconhecer-se como sujeito que impacta e é impactado no interjogo das relações de poder. Neste sentido, o texto "'Pesquisa-aquendação': derivas de uma epistemologia libertina", de Fernando Pocahy, o qual propõe que a pesquisa, em Psicologia, "escarnifique" (p. 169) as normas e padrões vigentes e estruturadas sob a lógica do poder, ou seja, incisiva provocação ao enfrentamento das normas sociais construídas com aparência de naturalidade imutável.

Podemos afirmar que os artigos são uma denúncia à manutenção de uma norma vigente, baseada em jogos de poder, que muitas vezes manifestam-se veladas, disfarçadas, através de instituições e do discurso. Porém, não se resume a isto. É também e principalmente uma proposta de combate a este panorama. O caminho pode ser longo rumo à quebra de uma lógica binária do gênero, rumo a equidade de direitos e, se por um lado a crítica e o enfrentamento à tais manutenções de heteronormas não são suficientes para eliminá-las, por outro, a recusa a submeter-se a esta lógica reflete um posicionamento político que procura a quebra desta dominação e, sobretudo, de sua legitimação, através dos mais diversos dispositivos. Desta maneira, à Psicologia cabe a reflexão constante de suas práticas, para que não se torne mais uma promotora da norma cristalizada, mas sim, uma enfrentadora desta.

 

 

Sobre o autor:
Aline da Costa Jerônimo
acadêmica de Psicologia na UFPA, bolsista de Iniciação científica

Henrique Cesar Cardoso do Couto
acadêmico de Psicologia na UFPA