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Revista do NUFEN

versão On-line ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.6 no.2 Belém  2014

 

Artigo

 

A hora do intervalo na TV: marcadores de gênero e sexualidade na publicidade e produzida em Belém/PA

 

Time interval on TV: markers of gender and sexuality in advertising produced in Belém/PA

 

Intervalo del tiempo en la TV: marcadores de género y sexualidad en publicidad producida en Bélem/PA

 

 

Robson Cardoso de Oliveira

Grupo de Pesquisa Fisionomia Belém

 

 


RESUMO

Nesta investigação o objetivo é o de discutir sobre a recepção em torno de marcadores de Gênero e Sexualidade a partir de minha pesquisa de mestrado em Antropologia. Na ocasião, acompanhei dez consumidores/as da propaganda produzida na cidade de Belém (PA), tendo em vista como estes/as interlocutores/as elaboravam discursos a partir da temática de como são representados, nos anúncios, os marcadores de Gênero e Sexualidade. Para esta investigação, realizei um recorte em torno de peças publicitárias exibidas na TV aberta da capital paraense, aos quais assisti com os/as consumidores/as durante onze meses de pesquisa de campo. Dessas conversas, todos/as retrataram que as propagandas produzidas em Belém exibem uma hierarquia de gênero, atualizadas em representações de masculinidades dotadas de força, virilidade, dominação e feminilidades dóceis, associadas ao doméstico e às figurações de prazer. A partir dessas leituras, percebi que eram construídas por eles/as representações tais como papéis performatizados como a "mulher dona de casa", a "mulher-objeto" e o "homem viril". Então, esses marcadores sociais da diferença foram lidos através da hora do intervalo na TV, pelos/as consumidores/as, sempre observando as características predominantes apresentadas nos comerciais, assim como as que ficaram ausentes.

Palavras-chave: gênero; sexualidade; publicidade


ABSTRACT

In this research the goal is to discuss the reception around markers of Gender and Sexuality. On occasion, I accompanied ten consumers of advertising produced in the city of Belém (PA), considering how they worked speeches from the theme of how they are represented, in ads, markers of Gender and Sexuality. For this research, I conducted a cutout around advertisements displayed in TV, which assist with as consumers during the eleven months of field research. These conversations, they portrayed that advertisements produced in Belém exhibit a hierarchy of gender, updated representations of masculinities endowed with strength, virility, domination and docile femininity, associated with the household and the configurations of pleasure. From these readings, I realized that they were built, by consumers, representations such as roles as "wife housewife", "woman-object" and the "manly man". Then, these social markers were read in advertising always taking into account prevailing characteristics shown in commercial as well as those that were absent.

Keywords: gender; sexuality; advertising.


RESUMEN

En esta investigación el objetivo es discutir la intención de comprobar la recepción alrededor de marcadores de Género y Sexualidad. En la ocasión, acompañé a diez consumidores de la publicidad producida en la ciudad de Belém (PA), teniendo en cuenta cómo estos consumidores elaboran discursos de la cuestión de cómo se representan en los anuncios marcadores de Género y Sexualidad. Para esta investigación, llevé a cabo un recorte de alrededor de las publicidad que se muestran en la televisión, que ayudar a los consumidores durante once meses de investigación de campo. Estas conversaciones, todos los consumidores que retrataron los anuncios producidos en Belén exhiben una jerarquía de género, las representaciones actualizadas de las masculinidades dotados de la fuerza, la virilidad, la dominación y la feminidad dócil, asociados con la familia y las configuraciones de placer. A partir de estas lecturas, me di cuenta de que ellos fueron construidos por las representaciones tales como papeles como "mujer ama de casa", "mujer-objeto" y el "hombre viril". Entonces, estos marcadores sociales se leyeron utilizando el intervalo de tiempo de TV, por los consumidores, de observación siempre las características predominantes se muestran en comercial, así como los que estaban ausentes.

Palabras-clave: género; sexualidad; publicidad.


 

 

INTRODUÇÃO

Família reunida em frente à TV, pipoca e refrigerante à vontade, o filme predileto, um jogo de futebol ou o último capítulo da novela vai começar. No entanto, após alguns minutos de iniciado o programa predileto, a programação da TV é abruptamente interrompida. Surge em cena a "hora do intervalo", um momento tido como "indesejado" por muitos/as espectadores da televisão brasileira.

Durante onze meses de pesquisa de campo, ouvi referências à publicidade tida como indesejada pelos/as dez consumidores/as (Bradshaw, Caroline, Diego Aguiar, Girassol, José, Marta, Monalisa, Olga, Peter e Thiago) de anúncios publicitários, com os/as quais conversei. As conversas ocorreram nas casas dos/as interlocutores/as ou em outros espaços públicos indicados por eles/as, sendo essa uma tarefa previamente negociada. Nos primeiros diálogos, foram realizadas interações sem utilizar nenhuma espécie de imagem, na tentativa de buscar perceber as reais percepções que aqueles/as consumidores/as de anúncios possuíam ao assistir a hora do intervalo. Posteriormente, as conversas se deram na frente da TV, nas quais observei as reações e percepções dos/as interlocutores/as ao assistirem as peças publicitárias.

Nesta investigação, o objetivo é o de discutir sobre a recepção em torno de marcadores de Gênero e Sexualidade a partir de minha pesquisa de mestrado em Antropologia, tendo em vista como estes/as interlocutores/as elaboravam discursos a partir da temática de como são representados, nos anúncios, esses marcadores. Para esta investigação, houve um recorte em torno de peças publicitárias exibidas na TV aberta da capital paraense, as quais assisti com os/as consumidores/as.

Este artigo encontra-se dividido da seguinte maneira: primeiramente, comento sobre o quanto a temática de gênero e sexualidade era um assunto "delicado" a ser tocado nos diálogos com os/as interlocutores/as. Na sequência, apresento as percepções observadas para a representação de mulheres na publicidade produzida em Belém. Posteriormente, os homens entram em cena, assim como as leituras que os/as consumidores/as tiveram sobre as representações de masculinidades.

 

TOCANDO EM UM ASSUNTO "DELICADO"

Quando realizava um contato, via Facebook ou Twitter, com algum/a interlocutor/a, não comentava diretamente sobre a temática da pesquisa, apenas perguntava se a pessoa assistia/gostava de comerciais produzidos em Belém e se sentia à vontade para dialogar sobre isso.

No mês de novembro de 2012, foi iniciada a procura pelos/as interlocutores/as por meio de conversas com amigos/as e, a partir disso, realizei as primeiras abordagens em redes sociais do ciberespaço, tendo os primeiros diálogos agendados para aquele mês. As conversas, sobretudo, eram uma forma de iniciação, sendo essa duplamente necessária:

1) Primeiramente, precisava perceber se o roteiro, que havia elaborado, estava de acordo com a finalidade de permitir diálogos, cujos resultados fossem satisfatórios para a investigação;

2) Precisava começar, mesmo com receios e inseguranças, a minha iniciação em pesquisas de campo na Antropologia, afinal as dinâmicas em entrevistas de Administração e Antropologia são bem diferentes. Então, essas primeiras conversas serviram, também, para que eu pudesse observar meus comportamentos e maneiras de agir durante os diálogos. Os resultados com essas primeiras conversas? O roteiro, embora significativo como um instrumento metodológico, foi quase desnecessário. Cada diálogo se dava com uma dinâmica diferente, cada interlocutor/a ditava um ritmo para o "bate-papo" e o roteiro acabou se tornando mero coadjuvante.

uanto à iniciação em entrevistas na Antropologia, essa não ocorreu apenas na primeira conversa, mas sim durante todas as que aconteceram nos onze meses de campo: a cada novo diálogo era um novo aprendizado, extremamente valioso e significativo. Era como se entrasse em um processo ritual a cada "bate-papo": deixava de ser o administrador para assumir cada vez mais o papel de "aprendiz de antropólogo".

O segundo momento das conversas ocorreu entre dezembro de 2012 e março de 2013. Esses diálogos, geralmente, eram iniciados falando de publicidade e consumo, como uma forma de não constranger alguns/mas interlocutores/as (detalharei mais a frente sobre esse contexto).

O terceiro momento da pesquisa de campo iniciou em maio de 2013 e durou até outubro do mesmo ano. Aqui, estava um dos momentos mais esperados pelos/as interlocutores/as e também por mim. Começava, então, os encontros para assistir aos comerciais produzidos na cidade de Belém.

O terceiro momento, da pesquisa de campo que realizei, estava mais próximo a uma etnografia de audiência (Leal, 1990; Almeida, 2003; Rial, 2004; Assunção, 2007), como uma ação de assistir aos anúncios publicitários junto aos consumidores/as e por meio desse ato realizava-se observações de gestos, emoções e discursos produzidos enquanto assistiam aos comerciais. Cada interlocutor/a ditava um ritmo: uns/umas preferiam assistir a blocos de três propagandas e comentá-los na sequência, já outros/as optavam por comentar cada anúncio que viam.

Essa era uma tática para evitar com que os/as consumidores/as se intimidassem com o assunto sobre sexualidade, ou mesmo fossem buscar "informação", supostamente mais correta na internet, ou demais veículos de comunicação. Afinal, não se tratava de examinar se as respostas às indagações estavam certas ou erradas, mas sim suas visões de verdades (Silva, 2006). Muitos/as interlocutores/as se cobravam, durante as conversas, em responder "de maneira correta", como se estivessem realizando uma prova oral e eu fosse o professor ou estivessem em uma entrevista de emprego. Quando percebia essa situação, procurava deixa-los/as tranquilos/as, afirmando que aquele diálogo não era uma prova e que aquela não era uma entrevista formal, mas apenas uma conversa entre duas pessoas sobre propagandas.

Os diálogos, geralmente, eram iniciados falando de publicidade e consumo, como uma forma de não constranger alguns/mas interlocutores/as. Explico: quando inseria as temáticas de gênero e sexualidade, percebia que estava tocando em um assunto "delicado" com alguns/mas interlocutores/as, portanto iniciava as abordagens com propaganda e consumo.

Nesse sentido, o assunto também se tornava "delicado" para mim. Afinal, estava diante, em sua maioria, de pessoas que nunca havia visto, não os/as conhecia, o que ocasionava na dificuldade em dialogar sobre as temáticas de sexualidade e gênero. No entanto, o rompimento de um possível constrangimento, de minha parte, era necessário ser quebrado. A cada nova conversa, como um processo ritual, eu tocava no assunto sem os receios anteriores. O mesmo aconteceu com os/as interlocutores/as, com o andamento da pesquisa de campo, eles/as passaram a comentar sobre gênero e sexualidade de modo mais espontâneo.

Mas por que as temáticas de gênero e sexualidade despertam um constrangimento ao falar sobre esses temas? Qual o problema em argumentar sobre como feminilidades e masculinidades são representados/as na propaganda produzida em Belém? Será esse um assunto desinteressante? Ou tudo que envolve a publicidade torna-se abjeto? 32

É significativo ressaltar que o "assunto delicado" estava relacionado às categorias de gênero e sexualidade. Raça, classe e geração eram comentadas com muito mais naturalidade e sem qualquer estranhamento, em outras palavras, surgiam nas narrativas dos/as consumidores/as de modo espontâneo, o que não ocorria com os marcadores de sexualidade e gênero.

Nesse contexto, a sexualidade era um assunto ainda mais "delicado" do que gênero. Vance (1995) argumenta o quanto "a sexualidade é marginal" (Vance, 1995, p.08), e que estudantes de pós-graduação que despertavam para o tema, eram aconselhados por seus orientadores a mudar a pesquisa, terminar o doutorado, construírem uma carreira acadêmica e somente após essa trilha consolidada, poderiam iniciar pesquisas na área da sexualidade. Bom, falar dessa temática ainda é problemático, porém, nos últimos anos, houve um crescimento significativo em investigações que tem a sexualidade como foco, não só realizadas por pesquisadores/as com carreiras consolidadas, mas também por estudantes de pós-graduação e porque não dizer por alunos/as de graduação. Vale ressaltar que Vance (1995) apresenta esta discussão com um argumento sustentado em um período entre as décadas de 1980 e 1990, no qual as investigações em torno da sexualidade eram desaconselhadas por parte de professores/as.

Thiago demonstrou um constrangimento ao longo de nossa primeira conversa, principalmente, quando o diálogo ia ao encontro das temáticas de gênero e sexualidades. Sua timidez, sobretudo, contribuía ainda mais em sua dificuldade em dialogar sobre o assunto. Na segunda conversa, esse interlocutor encarou esses debates de modo mais relaxado, mas ainda assim era um assunto delicado a ser tocado.

Após comentar sobre o quanto as temáticas de sexualidade e gênero eram lidas como delicadas pelos/as consumidores/as, informo a você, leitor/a, que as discussões em torno dos papéis desempenhados por homens e mulheres na publicidade produzida em Belém entram em cena nas próximas páginas.

 

NÃO MUDE DE CANAL: FEMINILIDADES NA HORA DO INTERVALO

As representações de feminilidades e de masculinidades estão inscritas, em algumas sociedades/culturas, em uma hierarquia que engendra assimetrias de poder, situação essa reproduzida nos comerciais de TV aberta da cidade de Belém, segundo alguns/mas consumidores/as.

Bradshaw observou a criação de "rótulos" de como eram apresentados os papéis de mulheres e homens nos anúncios produzidos na cidade de Belém. Identificou-se que esse discurso não se limitava aos comerciais locais, mas essa leitura de Bradshaw também ocorria para peças publicitárias nacionais. Esses papéis são aqueles recorrentes não somente quando dialoga com a mídia, mas em vários processos sociais: a leitura realizada, aqui, é a de masculinidades viris e feminilidades fracas e delicadas. Esses modelos de construídos estiveram presentes não apenas nas falas de Bradshaw, mas apareceram, também, nos discursos de Olga, Peter, Diego Aguiar, Caroline e José.

Esse estabelecimento de rótulos de feminilidades e masculinidades é operado pela sociedade, segundo Bradshaw, e a mídia apenas reproduz esses rótulos construídos: "A sociedade cria rótulos, estigmatiza tudo. E tudo que foge daquilo que ela coloca assusta, sabe? A sociedade impõe as coisas" (Bradshaw).

Monalisa afirmou que a sociedade cria "rótulos" de feminilidades e masculinidades e que esses papéis são acionados dependendo do perfil do anúncio: "na realidade cada produto tem um perfil... raramente você vai ver um comercial de cerveja que tenha outra pegada da mulher" (Monalisa). A fala de Monalisa está relacionada às apresentações de estereótipos como a mulher dona de casa em comerciais de produtos voltados ao lar, a mulher independente que trabalha, sustenta a família e consome produtos semi-prontos (Almeida 2002; 2007); e a mulher-objeto dos anúncios de cerveja (Bento 2007).

[Monalisa]: Pois é, na realidade, eu acho que é um reflexo do que a sociedade quer, por exemplo, tem a mulher que é a dona de casa, tem a mulher que é a periguete, tem a menina doidinha, adolescente não sei o quê. Então, pra cada produto, eles pegam um estereótipo desses de mulher.

Grossi (1998) conceitua papéis de gênero como representações cotidianas de ser mulher e ser homem, baseadas em determinada cultura. Entretanto, esses papéis podem ser modificados de uma cultura para outra. A pesquisa engendrada por Margaret Mead (1986) mostra essa mudança de papéis em determinadas culturas.

Linda Nicholson (2000) relata, por exemplo, que um "feminismo da diferença" pode ser um "feminismo da uniformidade", no qual se revela que mulheres são diferentes de homens por conta de certas características, mas essas características acabam particularizando as representações de feminilidades, passando a ser semelhantes entre si e engendrando generalizações, produzindo rótulos de "ser mulher". Para Heleieth Saffioti4 as representações de mulheres são tão plurais que a palavra não deve ser usada no singular. Ora, por que estabelecer rótulos únicos de "ser mulher"? Por que visualizá‐las sempre como frágeis, cuidadoras e emotivas? Grossi (1998) afirma que não há uma condição feminina, haja vista as diferenças de classes, nacionalidades, sexualidades, cor/raça, faixas etárias etc. No entanto, os rótulos uniformes de "ser mulher" e "ser homem" estão presentes nos discursos e apareceram nas representações dos/as interlocutores/as.

Quando conversávamos sobre os anúncios de lojas de departamentos e eletrodomésticos, Bradshaw também observou que a presença de mulheres era mais acionada, porém disse que essa associação não está relacionada ao imaginário da mulher dona de casa, devido ao fato de elas ganharem cada vez mais espaços no mercado de trabalho. Mas Bradshaw afirmou que se os/as publicitários/as e anunciantes tivessem que escolher entre homens e mulheres, para esse tipo de anúncio, ficariam com a segunda opção, por conta disso, segundo Bradshaw, assistimos a essa "realidade" nas propagandas de Belém.

Os/as interlocutores/as não utilizaram, em seus discursos, a palavra "imaginário", mas a ideia passada por suas falas me fez interpretar dessa maneira. Explico. As imagens da "mulher dona de casa", a "mulher-objeto, o "homem viril" foram bastante acionadas e elas partiam de um campo simbólico bem definido: a primeira personagem era sempre descrita como a mulher que ficava em casa, com uma vassoura e bobes nos cabelos; a segunda relacionada a figuração de prazer, presente nos comerciais de cervejas; o terceiro é apresentado em vários anúncios com a finalidade de mostrar a virilidade masculina heterossexual. Ou seja, essas e outras personagens presentes nos discursos dos/as consumidores/as estavam inscritas em uma estrutura de imaginário (Durand, 2011), sendo que as performances de gênero são construídas e operadas a partir do acionamento do imaginário de certas representações. "As tecnologias do imaginário bebem em fontes imaginárias para alimentar imaginários" (Maffesoli, 2001, p. 81).

Maffesoli (2001) comenta sobre o imaginário que se tem da cidade de Paris com seus jardins públicos, restaurantes, arquitetura e outros elementos, todos esses que acionam imagens particulares da capital francesa. Então, se é possível construir imaginário de cidades, será que o mesmo pode ser feito para a publicidade?

De algum modo podemos inferir que o imaginário construído nos discursos dos/as interlocutores/as sobre a mulher dona de casa e/ou a mulher-objeto são resultados de imagens/leituras de performances do que se entende por construções de imaginário? 36

Com relação a essa noção de imaginário, Durand (2011) classifica-a como um conjunto de múltiplas imagens acionadas pelos indivíduos em seus discursos: "o ‘museu' – que denominamos o imaginário – de todas as imagens passadas, possíveis, produzidas e a serem produzidas" (Durand, 2011, p. 06).

O imaginário é visto por Maffesoli (2001) como coletivo, por mais que os sujeitos utilizem, em seus discursos, frases como "o meu imaginário", essa, provavelmente, será a mesma noção de imaginário de outras pessoas inscritas nos seus grupos sociais, pois é operado dentro e para além da cultura.

Então, a definição de imaginário de Maffesoli (2001) converge com a de Durand (2011) no sentido de visualizarem esse conceito como um conjunto de imagens. Veja bem, a imagem não cria imaginário, entretanto, o imaginário permite a produção de diversas representações imagéticas.

Em nossa primeira conversa, Thiago observou que, nos anúncios, a imagem das mulheres é bem mais utilizada do que a dos homens. Porém, quando o questionei o porquê dessa situação, ele não teve resposta. No segundo encontro, Thiago voltou a comentar sobre essa questão. Dessa vez, apresentou uma resposta: afirmando que as mulheres sabem se expressar muito mais do que os homens. "A mulher tem o dom de ser mais explicativa do que os homens, entendeu?" (Thiago).

Thiago, também, não viu relação entre a utilização da figura das mulheres em comerciais e o fato de elas serem o público mais numeroso que assiste à televisão, aquele imaginário da mulher dona de casa, que passa mais tempo em seu lar, assistindo a TV, do que fora dele. A relação da utilização de mais mulheres nos anúncios, para Thiago, deve-se mesmo a sua interpretação de que elas têm mais desenvoltura do que os homens e não pelo possível entendimento, por parte de os/as publicitários/as e anunciantes, de que são as mulheres as maiores telespectadoras de programas de TV, e consequentemente das propagandas.

Durante alguns anos, acreditava-se que o público que estava "na frente da TV" era mais feminino do que masculino, haja vista os grandes investimentos em telenovelas no Brasil, uma programação pensada como para as mulheres. Contudo, esse discurso precisa ser matizado, pois cada vez mais os homens declaram assistir às mais diversas programações da televisão, inclusive às novelas (Oliveira Jr, 2011).

Heloisa Buarque de Almeida (2007) conversou com alguns/mas publicitários/as e esses/as argumentaram que as "donas de casas", das pesquisas de mercado/audiência, visualizadas como um público consumidor não possuem "sexo", tanto homens quanto mulheres fariam parte desse grupo. Mas, esses/as mesmos/as publicitários/as afirmaram que o consumo de produtos é mais realizado por mulheres do que por homens, em outras palavras, a figura de "donas de casa", como um público consumidor, ainda é vista como feminina, a despeito de homens e mulheres assistirem aos mais diferentes programas de televisão. A imagem da mulher foi visualizada, durante as conversas com os/as interlocutores/as, como ligada aos produtos de eletrodomésticos. A partir da narrativa de Peter podemos observar que esse interlocutor percebe, na propaganda, a associação das mulheres com os eletrodomésticos, atualizando, em sua fala, aquilo que vínhamos abordando sobre a relação entre feminilidade e domesticidade nos anúncios:

[Peter]: Tem uma coisa que eu tinha até te falado que as mulheres sempre aparecem assim em comerciais de eletrodomésticos, cama, mesa e banho, tu vê aquela imagem de mulher dona de casa e tal. [Robson]: E o que tu achas disso?

[Peter]: É tipo, eles não vão colocar um homem de terno e gravata, aquela imagem de homem bem sucedido, não, eles colocam a mulher pra aproximar da imagem da mulher dona de casa, que administra o lar e ela vai saber qual é a melhor geladeira, fogão. Eles procuram justamente um público e é justamente voltado pras mulheres de classe média alta, que é a mulher que tem essa graninha que vai montar a casa do jeito que ela quer.

Almeida (2007) marca dois modelos de mulheres donas de casa: as tradicionais que são aquelas que dirigem um cuidado ao lar e a família, vistas ainda como "mais atrasadas" (Almeida, 2007, p.181); e as modernas, que trabalham fora, mas administram a casa ao lado das empregadas domésticas (quando tem), embora com ocupações fora do lar ou algo parecido, também possuem cuidado com família e com o espaço em que vivem.

Em uma peça publicitária do Magazan5: aparece uma mulher jovem, branca e bem vestida, circulando pelo espaço da loja mostrando os produtos que estão em oferta. Por meio desse anúncio, os/as consumidores/as leram como publicidade voltada para mulheres (os produtos eram eletrodomésticos), sendo anunciada por uma atriz jovem e que nada lembrava aquela tradicional dona de casa, conforme representada por Almeida (2007).

Entende-se certa contradição nos discursos de alguns/mas consumidores/as, quando assistiram aos comerciais comigo, em relação às conversas anteriores nas quais dialogávamos sem visualizar nenhuma espécie de imagem. Explico: nas primeiras conversas para a pesquisa, as descrições mais recorrentes eram da mulher dona de casa tradicional, mas quando assistimos os comerciais, o discurso mudou. Agora, a representação da dona de casa moderna era mais vista. Contudo, eles/as tinham um entendimento de que a maioria absoluta do público consumidor é constituída de mulheres tradicionais, ou seja, a propaganda produzida em Belém não estaria representando uma realidade da sociedade local.

Primeiramente, partiu-se de um imaginário que os comerciais que haviam sido selecionados não favoreceriam uma apresentação recorrente da mulher dona de casa tradicional, mas, ao longo da pesquisa de campo, percebeu-se que a distinção entre os modelos tradicionais e modernos eram operados pelos/as consumidores/as como uma linha tênue em que esses dois papéis de domesticidade se confundiam.

Ora, talvez, mesmo que essa dona de casa moderna tenha um emprego, ela ainda administre o lar, prepare as refeições, cuide da casa e dos/as filhos/as, ou seja, o fato de trabalhar, então, não a diferenciaria da tradicional, fazendo com que os/as consumidores/as não tenham observado grandes distinções entre esses dois modelos.

Esse imaginário da mulher dona de casa tradicional foi visualizado em apenas um anúncio do Carimbó dá Sorte6, no qual uma mulher, com lenço nos cabelos, aparentando ser de classe média ou classe média baixa (essa posição de camada social foi comentada pelos/as consumidores/as); está conversando com um senhor ao telefone. O marcador de classe, aqui, foi observado, nas conversas, como se as donas de casa tradicionais não pudessem ser ricas. No contexto do anúncio, essa personagem está avisando a um amigo sobre o prêmio principal de R$ 60.000,00 que seria sorteado pelo grupo anunciante.

O processo de conquista de poder de compra pelas mulheres foi também observado durante a pesquisa de campo. Esse consumo tem deixado de ser visto como supérfluo para cada vez mais se tornar uma conquista feminina. Weeks (2010) aponta que o crescimento do número de mulheres no mercado de trabalho contribuiu para um "aquecimento" de consumo. Com as mulheres recebendo salários por seus trabalhos, tornaram-se consumidoras (com poder de compra, podendo pagar pelo que consumiam), assim como os homens. Não quero dizer que não consumissem antes, mas agora podem gastar recursos financeiros oriundos de seus trabalhos e não mais dependerem, financeiramente, de seus maridos.

Um comercial que gerou grandes discussões foi o do Amazon Beer7, no qual iniciava com um homem, apontado pelos/as consumidores/as como branco, em um caiaque, percorrendo os rios da região amazônica. Ele parece perdido ou procurando alguma coisa, para tanto, se utiliza de mapas, bússola e binóculos. Quando, de repente, surge das águas uma mulher branca, algo que se assemelhava a representação imagética da Iara (mãe das águas e uma imagem bastante valorizada em algumas religiões).

O homem, então, começa a tocar a mulher e logo a cena muda, nesse momento surge um bar como cenário, e ele se espanta, pois a estava tocando e agora aparece com um copo de cerveja na mão (a mulher é substituída pela cerveja aqui). A moça, que surgiu das águas, reaparece utilizando um vestido sensual e segurando um copo de cerveja, porém em nenhum momento ela consome o líquido.

Girassol observa a mulher exibida como "objeto", principalmente em publicidades de cervejas e de carros. Os homens, para ela, são os "donos da casa", os protagonistas; a mulher cozinha, mas é o homem que aparece na propaganda comendo, consumindo. Na fala de Peter, assim como outros/as consumidores/as também podemos perceber a inferência a situações que nos permitem pensar a desigualdade de gênero, construída nos comerciais de cervejas, inserindo as mulheres como figuração do prazer:

[Peter]: Em propagandas de cervejas sempre é o homem que está bebendo e a mulher ou parece que alguém vai pagar pra ela beber ou é aquela visualizada no bar, chegou como aquela mulher espetacular e tal e tem toda aquela coisa da câmera que muda, efeitos de luz em cima dela. Digamos, é o colírio pros olhos na hora do comercial, mas quem tá bebendo são os homens.

Dentro desse imaginário da "mulher-objeto", outros anúncios de cervejas foram bastante comentados. Todos tendo as semelhanças e papéis desempenhados por mulheres, sempre observados e debatidos: ora sentimentos de indignação como os de Girassol e Olga, ora discursos como se aquela reprodução na hora do intervalo fosse "naturalizada", como afirmaram Monalisa, Caroline e Marta, que são publicitárias.

O comercial da cerveja Cerpa8 inicia com um homem andando por uma praia. A impressão que se tem é que ele está perdido, até que ele avista algumas pessoas. Ao chegar próximo, acaba desmaiando. Um homem, ao ver a cena, acaba pedindo uma Cerpa para dar de beber ao desmaiado. Então se aproxima, em câmera lenta, uma salva-vidas, loira, bonita, "corpo escultural", trajando uma blusa vermelha com o símbolo de salva-vidas e biquíni. A moça traz uma Cerpa e dá de beber ao desmaiado, que logo acorda e fica observando e admirando a mulher. Os outros homens na praia, ao verem a cena, fingem desmaiar também. É significativo observar que somente os homens desmaiam e as mulheres na praia ficam revoltadas. Ou seja, o desmaio não serve apenas para beber a Cerpa, mas sim para receberem, também, a atenção da salva-vidas.

Gregori (2003), dialogando com Bataille (2013), afirma que o desnudamento é uma ação do erotismo que leva ao prazer. Em comerciais de cerveja, por exemplo, pode-se observar essa associação com as apresentações de mulheres seminuas, praticamente, representações imagéticas erotizadas, permitindo o prazer de homens heterossexuais.

Durante a pesquisa de campo, identificaram-se discursos de indignações com essa erotização da mulher nos comerciais, principalmente nos de cervejas. Algumas peças publicitárias, no entanto, inverteram os papéis de desejo.

Em outra publicidade da Cerpa, ainda é apresentada a personagem "loira da Cerpa" como bonita, jovem e lida como uma "estrangeira" pelos/as interlocutores/as, devido não possuir características da região9. Mas, a personagem "loira da Cerpa" não foi o grande destaque dessa peça publicitária, para os/as interlocutores/as, e sim as quatro mulheres que estão em uma mesa no bar, cada uma delas com um copo de cerveja nas mãos, ou seja, atuando no papel de consumidoras.

Enquanto os homens no bar ficaram interessados pela "loira da Cerpa", as mulheres que estão no papel de consumidoras se interessam pelos piratas que aparecem no final do anúncio, para tanto elas falam: "agora sim a festa tá completa". Ou seja, além de assumirem o papel de consumidoras, elas se inscrevem em uma lógica do desejo pelos homens que interpretam os piratas no intervalo comercial.

Olga, Girassol, Diego Aguiar e Peter gostaram dessa nova abordagem de representação da mulher, bem como o desejo ali exposto pelos piratas. José, Caroline e Monalisa ressaltaram essa nova visão de consumo por parte de mulheres, inclusive de cervejas.

Então, no anúncio da Cerpa, as quatro mulheres aparecem na mesa de bar, cada uma segurando um copo de cerveja, entretanto elas não estavam bebendo o produto. Percebe-se essa situação se repetindo em anúncios locais, nacionais e internacionais: em alguns, a mulher aparecia como "consumidora", no entanto ela não bebia o líquido alcoólico em nenhum momento, mas os homens bebiam (Oliveira, 2010). O papel de consumidora foi lido por mim e pelos/as interlocutores/as devido ao fato de elas estarem sentadas no bar, os copos de cerveja em suas frentes sugerem o consumo, mesmo que não seja possível visualizar essa prática nos trinta segundos ou perto disso do comercial.

 

"E FALANDO DE HOMENS": MASCULINIDADES NA HORA DO INTERVALO

A masculinidade10 surgia, nos discursos dos/as interlocutores/as, desta pesquisa, fortemente marcada por uma virilidade, a partir das minhas indagações. Durante as conversas, o "sujeito viril" sempre era acionado nas falas. Quando passei a assistir aos anúncios junto a esses/as interlocutores/as, essa marcação de masculinidade relacionada à virilidade foi ainda mais presente. Peter, por exemplo, a observou, principalmente, nos anúncios de carros e de cervejas.

Esse "sujeito viril" surgiu com mais frequência em comerciais de cervejas. Em outros anúncios, a masculinidade era associada à força e ao poder de consumo. Cito como exemplo, o comercial da DiCasa Materiais de Construção11, que gerou grandes discussões. Faço, aqui, um panorama das falas de alguns/mas interlocutores/as construídas a partir de minhas provocações/indagações.

Bom, essa peça publicitária exibe o ator percorrendo o espaço da loja e mostrando os produtos em ofertas, sendo esses diferentes daqueles expostos nos comerciais do Magazan e que os/as consumidores/as leram como voltados para as donas de casa. No anúncio da Dicasa, são apresentados produtos como caixa d'água, bombas d'água, aparelhos de condicionador de ar, entre outros; lidos como destinados a homens e que, por conta disso, utilizaram, na peça publicitária, um ator. "Aí já é um homem porque tem produtos que (Risos) não tá vendo as associações? Em que precisam de um serviço masculino (Risos)" (Bradshaw).

Em um primeiro momento, ao assistirem a esse comercial, a presença de um ator nesse modelo de anúncios gerou uma surpresa nos/as consumidores/as que já estavam habituados de observarem as mulheres nesse papel de percorrer a loja e mostrando os produtos. Entretanto, nessa publicidade da Dicasa, o que estava sendo anunciado lembrava itens pertencentes a um imaginário masculino. Esse comercial tinha um contexto adicional por ter sido exibido em um período de verão na cidade de Belém e os produtos ali anunciados tinham alguma relação com a estação do ano em evidência nessa propaganda. Olga foi à única que ressaltou esse contexto, ela se lembrou de outros anúncios de verão que sempre mostravam os atores/atrizes com peças de roupas de banho, porém a mesma situação não ocorria na publicidade da Dicasa: "Mas por que ele não apareceu de sunga, deveria já que é um anúncio de verão. Deveriam ter explorado o corpinho dele que é tão bonito (Risos)" (Olga).

O comercial da Marmobraz12 também apresentou um ator percorrendo o espaço da loja e mostrando os produtos de acabamento e decorações em ofertas. Esse anúncio tinha a temática de "show de ofertas", no qual o ambiente e o ator estavam caracterizados muito próximos a um espetáculo de rock, segundo os/as consumidores/as, interpretação esta alcançada a partir da posição final do ator simulando como se estivesse tocando uma guitarra, além da maneira na qual estava vestido.

Olga disse que o rapaz na peça lembrava o ator norte-americano James Dean13. Os/as interlocutores/as tiveram dificuldades em entender esse anúncio, mas, mesmo não o compreendendo, a leitura sobre o papel de masculinidade representado pelo ator foi facilmente identificável nos discursos: um homem jovem, alto, de boa aparência, lido como heterossexual, forte e viril. Em outras palavras, as mesmas interpretações dessa virilidade ligada à masculinidade ativada em outros anúncios.

A caracterização do espaço lembrava a de um show, com luzes coloridas especiais e o ator vestido com jaqueta de couro e um penteado lido por Olga como peculiar da década de 1960 e usando óculos escuros. 45

Assim como o comercial da Dicasa, esse da Marmobraz também faz parte do contexto de uma loja de material de construção, no entanto os/as consumidores/as disseram que há um diferencial entre essas duas lojas: a primeira possui diversos itens em seu mix de produtos (extensão de itens que uma loja possui) – da construção ao acabamento – enquanto a segunda está mais restrita a parte de acabamento e decoração do lar.

Nesse aspecto, Peter, em nossa primeira conversa, lembrou-se dos comerciais nacionais da Tigre e disse que aqueles anúncios, de algum modo, se comunicavam tanto com homens quanto mulheres, sendo elas as responsáveis pelas decisões finais quanto ao acabamento e decoração do lar. Ao assistir ao anúncio da Marmobraz, Peter lembrou-se de seu comentário anterior e passou a dialogar sobre esse contexto comigo. Em sua leitura, a utilização de um homem tinha a mesma intenção desejada pelo comercial da DiCasa, ou seja, os produtos anunciados ali eram voltados para materiais de construção.

Porém, como a Marmobraz possui a especialidade em acabamento e decoração, apresentou no anúncio um ator jovem, bonito, bem vestido, mas com a camisa por baixo da jaqueta meio aberta; tudo isso para que houvesse uma comunicação também com as mulheres. Elas também são vistas como um público alvo a partir da utilização de um ator com esse estereótipo apresentado, segundo Peter.

[Peter]: Esse aí, a gente pega pra prestar atenção, a parte da construção que é o homem que fica responsável, só que aí é a parte da construção entre aspas, porque tem papel de parede e outras coisas, que ele não escolhe sozinho, ele vai sempre negociar com a mulher dele pra escolher. Aí, porra, tu não vai botar o cara sério, tu põe o cara todo descolado, óculos escuros, jaqueta, então será que é pra agradar os dois? (Risos).

Será que é pra agradar os dois, parafraseando Peter: no comercial da Marmobraz, o ator apresenta tanto produtos como cabo elétrico, lidos pelos/as consumidores/as, destinados para homens; quanto papéis de parede pensados como próprios à decisão/escolha de mulheres.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tentei mostrar a recepção que os/as consumidores/as tiveram ao assistir aos anúncios publicitários e como eles liam as representações de feminilidades e de masculinidades na hora do intervalo. Das conversas com os/as dez consumidores/as, para esta pesquisa, todos/as retrataram que as propagandas produzidas em Belém exibem uma hierarquia de gênero, atualizadas em representações de masculinidades dotadas de força, virilidade, dominação, e feminilidades dóceis, associadas ao doméstico e às figurações de prazer.

A partir dessas leituras, identificou-se que eram construídas por eles/as representações tais como papéis performatizados como a "mulher dona de casa", a "mulher-objeto" e o "homem viril". Esse binarismo (homem/mulher) era sempre acionado pelos/as interlocutores/as, bem como a marcação da heterossexualidade como um modelo apresentado nas propagandas. Anúncios que "fugiam" desse contexto eram quase que imperceptíveis em seus discursos. A utilização da construção binária era sempre acompanhada na exposição de uma assimetria de poder com uma masculinidade valorizada bem mais do que representações de feminilidades.

A questão da assimetria de poder exposta pelos/as consumidores/as ajuda a entender o processo de formação de como eles/as (re) constroem masculinidades, feminilidades, e performances sexuais, muitas vezes marcadas por hierarquias de gênero, atualizadas em representações de masculinidades dotadas de força, virilidade, dominação, e feminilidades dóceis, associadas ao doméstico, às figurações de prazer e à sensualidade. E esse discurso não está limitado ao que se percebe nas propagandas produzidas em Belém, mas a partir dos contextos vivenciados por esses/as interlocutores/as, o que os subsidia a edificar essas "falas". 47

Alguns/mas publicitários/as apresentam discursos nos quais expressam que a publicidade reproduz ações e contextos sociais (Almeida, 2002; Beleli, 2005). No entanto, esses/as profissionais de marketing, além de manterem uma construção de gênero já estabelecida, também procuram construir hábitos e valores sociais, assim como (re) atualizações de performances de feminilidades e masculinidades, entendidas como inteligíveis e coerentes (Butler 2002); associações de mulheres ao ambiente doméstico e as práticas de consumo, bem como os homens em esferas públicas.

Apesar da tentativa, por meio de alguns estudos, em desmontar essas associações de mulheres/doméstico/privado e homens/público, concordo com Almeida (2002), ao afirmar que na publicidade as esferas de privado e público estão relacionadas, respectivamente, a mulheres e homens, salvo algumas exceções de campanhas publicitárias que apresentam uma desconstrução dessa lógica, bem como a introdução de outras práticas afetivas distintas à heterossexualidade.

Entretanto, essas leituras produzidas, pelos/as interlocutores/as, deve-se a reprodução inscrita na hora do intervalo. As hierarquias de poder entre os marcadores de gênero e sexualidade são mais fortes na publicidade do que o observado, por eles/as, na sociedade. Então, a partir disso, a construção de discursos na qual evidenciavam essas hierarquias, muito mais pelo que assistiam. Uma pesquisa pode até se propor em desconstruir esses discursos, mas, quando estamos em campo, nos deparamos no quanto esses discursos estão "enraizados", permeados por perspectivas ditas tradicionais. Ao assistirem a hora do intervalo, estavam em cena as reproduções de mulheres como donas de casa ou como objetos nos anúncios de cerveja; homens circulando por espaços públicos, a heterossexualidade predominando, exibição de pessoas, em sua maioria, brancas, jovens e pertencentes a uma elite citadina (Cardoso de Oliveira 2014).

 

Referências

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Recebido em março de 2014
Aprovado em setembro de 2014

 

Notas sobre a autor
Mestre em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA) da Universidade Federal do Pará (UFPA) e Graduado em Administração pela mesma instituição,
com Pós-Graduação em Marketing na Prática pela Escola de Propaganda & Marketing. Atualmente, participa como pesquisador do Grupo de Pesquisa Fisionomia Belém e atua em
estudos de marcadores sociais da diferença na publicidade produzida em Belém. e-mail: robson.cardosodeoliveira@gmail.com

 

 

4 Ouvi esse argumento de Heleieth Saffioti durante a 8ª edição do "Seminário Internacional Fazendo Gênero" na cidade de Florianópolis, no representações de mulheres são tão plurais que a palavra não deve ser usada no singular. Ora, por que estabelecer rótulos únicos de "ser mulher"? Por que visualizá-las sempre como frágeis, cuidadoras e emotivas? Grossi (1998)

5 Empresa que comercializa produtos como eletrodomésticos, roupas, artigos de cama, mesa e banho; bem como livros, DVDs, CDs, dentre outros. Possui várias lojas nas cidades que compõe a Região Metropolitana de Belém e algumas no interior do estado do Pará.

6 Prêmio sorteado semanalmente na cidade de Belém. Entre as premiações estão valores em dinheiro, carros e motos. Os comerciais do Carimbó dá Sorte costumam ter um apelo popular e mostrando sempre uma tentativa de ascensão social de pessoas com condições menos favorecidas.

7 Cerveja comercializada na Estação das Docas, que possui, como um diferencial, sabores exóticos, tais como açaí, tapereba, bacuri, laranja e outros paladares. Recentemente, a Amazon Beer passou a ser comercializada, também, em grandes supermercados da cidade de Belém e distribuída para outros estados do país.

8 Cerveja cuja fábrica localiza-se na cidade de Belém, com distribuição nacional. A cerveja Cerpa possui uma marca forte no estado do Pará, sendo bastante consumida pelo público paraense.

9 Os/as interlocutores/as relacionavam como características da região a questão da cor morena, uma representação da morenice, da cabocla; imaginário esse distante da personagem "loira da Cerpa" lida, por eles/as, como branca e loira, sendo, então, associada a uma "estrangeira".

10 Masculinidades é um conceito socialmente construído e varia de acordo com cada cultura. Sendo, socialmente construído, a partir das relações homem e mulher (baseado em uma desigualdade de gênero) e de homens com homens (com base em desigualdades de raça, etnia, sexualidade, geração, religiosidade, nacionalidade, regionalidade e outros marcadores sociais da diferença). A masculinidade, então, é construída não só pelos contrastes entre homens e mulheres, mas também entre homens com outros homens por meio de características demarcadas e negociadas como masculino (Jardim 2001).

11 Uma das principais empresas da cidade no ramo de materiais de construção e acabamentos. Possui algumas lojas na Região Metropolitana de Belém e investe bastante em anúncios publicitários na TV.

12 Empresa comercial da área de acabamentos e decorações de espaços residenciais e de escritórios. Mantém lojas na cidade de Belém.

13 Ator norte-americano nascido em 08/09/1931 no estado de Indiana. Conhecido como "Golden boy" e representou um ícone de masculinidade no cinema, assim como de juventude rebelde e transgressora, tal qual mostrado no anúncio da Marmobraz. James Dean faleceu vítima de um acidente de carro com apenas 24 anos.