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Revista do NUFEN

versão On-line ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.6 no.2 Belém  2014

 

Resenha

 

 

BEAUVOIR, Simone de. (1970) O Segundo Sexo – Livro 1: Fatos e Mitos. 4ª Edição. São Paulo: Difusão Europeia do Livro.

 

 

Celeste Chaves Barra; Denise Raissa Lobato Chaves; Raissa Cruz dos Santos

 

 

Para introduzir o sua obra, a autora inicia a discussão sobre a definição de gênero e a sua associação intrínseca ao sexo, e também questiona a concepção do "ser mulher"cuja construção é determinada a partir da relação de alteridade com o "ser homem”, ou seja, um se define apenas com relação ao outro. Isto se dá devido ao fato da alteridade ser parte do conhecer e do classificar, ambos intrínsecos na cultura e na consciência humana. E, a partir desta perspectiva, a autora apresenta o dualismo do Outro - do estrangeiro e do diferente - associado à construção da mulher a partir do que se concebe como homem, e que, portanto, ela deva ser o seu contrário (oposição e simetria). Questiona-se então o reconhecimento deste Outro com base neste Um, na qual um depende do outro para se estruturar e se configurar, sendo o Outro submisso a este Um.

Após isto, é apresentada a questão principal a ser tratada no livro: De onde vem a submissão da mulher?. Para iniciar esta discussão, a autora realiza um paralelo entre a submissão das minorias étnicas e a submissão da mulher e apresenta o seguinte contraponto: as ditas "minorias"(judeus, negros, etc.) foram consideradas inferiores devido a acontecimentos históricos (diáspora, escravidão africana, etc.), porém, no caso das mulheres, não houve um evento e nem consequências dele. Sendo assim, a condição de subjugação é similar, no entanto, não se trata do mesmo fenômeno, visto que a mulher compõe a humanidade e sua relação com o homem é de extrema importância, pois "mas mesmo em sonho a mulher não pode exterminar os homens. O laço que as une a seus opressores não é comparável a nenhum outro."(p. 13).

Para encerrar a parte introdutória, a autora expõe que a supremacia do homem fora colocada como um direito no decorrer da história da humanidade e, tal condição continua se perpetuando com o passar dos séculos apesar do avanço das lutas feministas. Então, para a autora, o problema se encontra na busca pela interrupção deste processo, uma vez que os homens continuam a se beneficiar do direito de subjugar que lhe fora concedido. Sendo assim, com base na explanação feita, a autora se propõe a discutir neste livro os pontos de vista da biologia, da Psicanálise e do materialismo histórico acerca da mulher; será apresentada como a mulher foi definida como o Outro e quais foram as consequências do ponto de vista masculino; e então, para concluir será descrito o mundo que é proposto à mulher, a partir do seu ponto de vista.

 

Parte I: Destino

Capítulo I – Os dados da Biologia

Neste capítulo a autora apresenta, a partir do ponto de vista biológico, a reprodução como base da separação e diferenciação das espécies em machos e fêmeas. Com relação a isto, a autora argumenta que as especificações biológicas reprodutivas não justificam a subjugação do homem sobre a mulher, uma vez que os seus respectivos gametas são complementares e interdependentes, e assim se apresenta uma relação de igualdade e cooperação entre ambos os sexos. Para a autora, a redução dos sujeitos em papéis reprodutivos se mostra irredutível uma vez que:

"É exercendo a atividade sexual que os homens definem os sexos e suas relações, como criam o sentido e o valor de todas as funções que cumprem: mas ela não está necessariamente implicada na natureza do ser humano."(p. 28)

A autora apresenta as diferenças fisiológicas entre a mulher e o homem, nas quais o corpo feminino se mostra com força muscular inferior, capacidade respiratória inferior e dentre outras características (peso, tamanho do cérebro, comprimento dos órgãos, etc.) que se mostram menores se comparados ao corpo masculino. Tais fatos, na perspectiva da autora, não podem ser negados, porém, a autora ressalta que estes dados não têm sentido por si só, uma vez que:

"(...) no momento em que o dado fisiológico (inferioridade muscular) assume uma significação, esta surge desde logo como dependente de todo um contexto; a "fraqueza" só se revela como tal à luz dos fins que o homem se propõe, dos instrumentos de que dispõe, das leis que se impõe.”(p.55)

Para concluir, a autora argumenta que os dados biológicos não sustentam e/ou justificam a supremacia masculina, uma vez que as diferenças biológicas em si se mostram apenas como fatos. Para ela, o que realmente importa é a significação destes fatos, pois são necessárias referências econômicas e sociais para que a noção de "fraqueza"e "inferioridade"sejam construídas e associadas à mulher: "o corpo da mulher é um dos elementos essenciais da situação que ela ocupa neste mundo. Mas não é ele tampouco que basta para a definir"(p. 57). Sendo assim, a autora defende que os papéis destinados a cada sexo são construídos socialmente e são desprovidos de fundamento científico, ou seja, a subjugação é construída socialmente e não apresenta justificativa biológica.

Capítulo II - O ponto de vista Psicanalítico

Neste capítulo a autora teve com objetivo a contribuição da Psicanálise para o estudo da mulher, e assim, é apresentada a perspectiva psicanalítica de Freud e Adler sobre a sexualidade masculina e menina por meio do Complexo de Édipo. Em tal explanação, a autora evidencia a falta de ênfase acerca de sexualidade feminina no corpo teórico da psicanálise freudiana, na qual a libido é pensada como energia sexual de essência masculina, mas que atua da mesma maneira em ambos os sexos, deixando claro também que: "Esta [a libido[ desenvolve-se (...) de maneira idêntica nos dois sexos: todas as crianças atravessam uma fase oral que as fixa ao seio materno, em seguida uma fase anal e atingem finalmente a fase genital: é então que se diferenciam"(p. 60).

No entanto, a partir desta perspectiva, a autora afirma que a menina apresenta um complexo de Édipo e de castração mais complexo que do menino, devido a menina se identificar primeiro com o pai e posteriormente rivalize e se aliene ao modelo da mãe. Após isto, a autora retoma a construção do falo e afirma que a superioridade e autoridade masculina, no viés psicanalítico, não é conferido ao falo em si, mas ao construto simbólico em volta daquele que o possui: o homem. Sendo assim, a autora argumenta que há toda uma construção simbólica acerca do homem e seu falo, para além de um olhar apenas sexual:

"Assim também, antes de indagar se o macho se orgulha de ter um pênis ou se seu orgulho se exprime pelo pênis, cumpre saber o que é o orgulho e como a pretensão do sujeito pode encarnar-se em um objeto. Não se deve encarar a sexualidade como um dado irredutível; há, no existente, uma "procura do ser" mais original; a sexualidade é apenas um de seus aspectos."(p. 66).

E assim, a autora argumenta novamente que o constructo simbólico foi elaborado em um contexto e o método psicanalítico é forçado a admiti-lo em sua construção teórica. Sendo assim, o falo é tido como muito importante por simbolizar uma soberania em diversos campos, e a mulher, necessita buscar outros meios de ganhar equivalentes a este falo de modo a sublimar os desejos provenientes do status de não possuí-lo.

Neste ponto, a autora retoma a pergunta realizada no final do primeiro capítulo: "Por que a mulher é o Outro?”. E, para tentar responder a essa pergunta, a autora expõe que a situação apresentada à mulher no Complexo de Édipo na qual a condição para a dissolução é alienar-se ao modelo do pai ou da mãe. E assim, tal postura de alienação coloca mulher na condição de objeto, pois se entende que todas as atividades que a mulher pode realizar são associadas à sublimação e à busca de um substituto para o falo perdido. Sendo assim,

"Quando uma menina sobe a uma árvore é, a seu ver [da psicanálise[, para igualar-se aos meninos: não imagina que subir numa árvore lhe agrade; para a mãe, a criança é algo diferente do "equivalente do pênis"; pintar, escrever, fazer política não são apenas "boas sublimações". Há, nessas atividades, fins que são desejados em si: negá-lo é falsear toda a história humana."(p. 71-72).

Para concluir, a autora afirma considerar algumas perspectivas psicanalíticas, no entanto, a própria Psicanálise contribuiu para o pensamento de subjugação da mulher por estar inserida em um contexto cuja significação do homem se dá desta forma. Por fim, a autora considera que a mulher se encontra inserida num mundo de valores no qual a estrutura econômica e social é indispensável para pensar a sua existência.

Capítulo III – O ponto de vista do materialismo histórico

Neste capítulo, a autora se utiliza da perspectiva do materialismo histórico marxista e, para realizar uma análise acerca da condição da mulher, ela utiliza especificamente A Origem da Família de Friedrich Engels. Neste livro, é analisada a ascensão da técnica e da relação de poder do homem por meio da propriedade privada. No processo de fixação da propriedade privada, o homem assume domínio de outros homens (escravidão) e também se torna proprietário da mulher. E esta por sua vez é confinada a trabalhos domésticos que também são desvalorizados, e assim: "a opressão social que sofre é a conseqüência de uma opressão econômica."(p. 75). Sendo assim, para Engels, a mulher se igualará ao homem quando ambos obtiverem direitos jurídicos iguais e, para isto, a mulher necessita se envolver com a atividade pública. Então, mostra-se o destino da mulher estreitamente associado ao próprio socialismo, pois na sociedade socialista não haverá divisão entre homens e mulheres, existirão apenas trabalhadores iguais entre si.

Apesar de considerar a análise de Engels, a autora afirma que tal constructo não foi capaz de deduzir a opressão da mulher por meio da ascensão da propriedade privada, uma vez que a divisão sexual do trabalho não explica a opressão da mulher. Para a autora, a oposição dos sexos vista como um conflito de classes não é uma tese totalmente sustentável, devido ao fato de haver pontos congruentes como a opressão, porém não há na cisão de classes nenhuma base biológica. Sendo assim, o materialismo histórico deixa de fora questões singulares que envolvem a mulher, a relação dela com o homem e as condições sociais que lhe são impostas:

"Não seria possível obrigar diretamente uma mulher a parir: tudo o que se pode fazer é encerrá-la dentro de situações em que a maternidade é a única saída; a lei ou os costumes impõem-lhe o casamento, proíbem as medidas anticoncepcionais, o aborto e o divórcio. (...) É impossível, vê-se por esse exemplo, encarar a mulher unicamente como força produtora; ela é para o homem uma parceira sexual, uma reprodutora, um objeto erótico, um Outro através do qual ele se busca a si próprio."(p. 79)

Para finalizar, a autora afirma que, para descobrir a mulher, é necessário utilizar as contribuições da biologia, da Psicanálise e do materialismo histórico, e também é preciso considerar o corpo, a vida sexual e as técnicas numa perspectiva global existencialista. Tal perspectiva é apresentada e discutida nas partes posteriores do livro.

 

Parte II: História

Nas civilizações mais primitivas, cuja história ainda possui controvérsias antropológicas, a mulher desempenhava papel estreitamente relacionado à maternidade. Suas ocupações estavam relacionadas principalmente com o cuidado dos filhos e, devido a possuir especificidades biológicas (ciclo menstrual, gravidez), a mulher realizava trabalhos ditos domésticos e relacionados à manutenção da família e da comunidade. Dada situação, as mulheres davam à luz a muitos filhos, visto que, diferentemente dos animais, a mulher não possui períodos de esterilidade, então tal fato impedia a mulher de participar de continuamente em atividades que exigissem esforço físico, como pescar, colher e caçar. Em tal realidade, o homem assegurava a reprodução e a produção da comunidade, desempenhando um papel importante na permanência da espécie e, sem ele, a mulher não cumpria o esforço de dar à luz e cuidar de crianças.

No entanto, apesar do papel da maternidade se revelar importante para a espécie humana, tal fato não levou importância à mulher, uma vez que a espécie humana não procura se preservar e se manter, mas elevar-se. Além disso, as funções naturais de engendrar e aleitar que a mulher realiza não são atividades,

"Eis por que nelas a mulher não encontra motivo para uma afirmação altiva de sua existência: ela suporta passivamente seu destino biológico. Os trabalhos domésticos a que está votada, porque só eles são conciliáveis com os encargos da maternidade, encerram-na na repetição e na imanência."(p. 83).

Além disso, a valorização do homem se dá pelo seu esforço físico e ao fato de arriscar sua vida ao executar as funções que lhe são atribuídas, como proteger a comunidade arriscando a sua vida. E assim, na humanidade, a superioridade é dada àquele que mata e não ao que dá a vida. Os valores criados pelos homens então transcenderam visando manter as prerrogativas masculinas e então fora criado um campo de domínio feminino no qual a mulher foi encerrada:

"(...) pela invenção da ferramenta, a manutenção da vida tornou-se para o homem atividade e projeto, ao passo que na maternidade a mulher continua amarrada a seu corpo como animal. (...)Foi a atividade do macho que, criando valores, constituiu a existência, ela própria, como valor: venceu as forças confusas da vida, escravizou a Natureza e a Mulher."(p. 86-87)

Para a autora, tal perspectiva existencialista foi capaz de compreender como dados biológicos e econômicos acarretaram na supremacia do macho nas comunidades primitivas. Porém, mais adiante, a autora afirma que a mulher adquire importância em algumas comunidades devido à valorização da prole e do desenvolvimento da criança, e, associada à composição da indústria doméstica e ao comércio, a mulher passar a apresentar um papel de primordial importância. Tal fato, segundo a autora, reflete nos homens um misto de respeito e terror. Retomando a ideia de que o homem se pensa pensando no Outro, o que é diferente do homem é colocado na categoria de Outro, e assim a mulher é incluída: "Quando o papel da mulher se torna mais importante, absorve ela, em quase sua totalidade, a região do Outro."(p. 90).

Por ser encaixada na categoria do Outro, a mulher é associada às características da Natureza e serve de subsídio para diversas representações mitológicas. Tais fatos sugerem que houve uma supremacia da mulher, porém a autora considera que tal fato não tem essência de verdade, pois:

"Dizer que a mulher era o Outro equivale a dizer que não existia entre os sexos uma relação de reciprocidade: Terra, Mãe, Deusa, não era ela para o homem um semelhante: era além do reino humano que seu domínio se afirmava: estava portanto fora desse reino. A sociedade sempre foi masculina; o poder político sempre esteve nas mãos dos homens."(p.91)

Sendo assim, as mulheres nunca obtiveram uma relação autônoma e direta com os homens, uma vez que serviam de mediadoras para os direitos dos mesmos por meio de contratos sociais, como o casamento. Por fim, a autora defende que as características biológicas permitiram que o homem se firmasse soberano, privilégio este que nunca fora abdicado apesar de alienar sua existência à Natureza e à mulher. Esta, por sua vez, fora condenada a desempenhar o papel do Outro e a não escolher o próprio destino, uma vez que o lugar da mulher sempre fora estabelecido pelo homem e suas leis.

O homem nunca reconheceu a mulher como semelhante a ele por não partilhar as mesmas maneiras de pensar e agir, uma vez que a mulher fora conservada na perspectiva do Outro, permanecendo submissa à vontade do homem. E esta categoria do Outro se revela ambivalente, pois é dito inferior e ao mesmo tempo necessário. A vontade masculina se releva ambígua, pois exige que a mulher exerça o papel de "serva"e "companheira"ao mesmo tempo: "(...) o Mal é necessário ao Bem, a matéria à idéia, a noite à luz. O homem sabe que para saciar seus desejos, para perpetuar sua existência, a mulher lhe é indispensável.” (p. 101). Devido à mulher ser este Outro, tal fato se reflete na sua história, proporcionando mudanças em seu destino no decorrer das eras.

Segundo a autora, a história da mulher se confunde com a história da herança, uma vez que a propriedade privada esteve sempre no poderio do homem e a mulher se apresentava apenas como parte dos bens ou como intermediadora, nunca como detentora. Devido a isto, em uma sociedade cujas bases são a família e a propriedade privada, a mulher permanece alienada, submissa e confinada aos espaços e ocupações que lhe foram designados.

Apesar disto, a autora expõe que em diversas culturas o patriarcado se mostrou de maneira radical e, em outras, de maneira moderada. No caso da antiga Babilônia, a mulher possuía o status de "esposa privilegiada”, podendo garantir a tutela dos filhos e administrar os bens do marido sob algumas condições específicas. No antigo Egito a mulher possuía domínio de sua herança, de seus filhos e até mesmo podia divorciar-se, uma vez que o casamento era tratado como um contrato, podendo ser um casamento servil ou não.

Apesar desse estatuto privilegiado, a mulher não possuía direitos sociais e políticos iguais aos homens: elas interferiam na vida pública de modo secundário e na vida privada, eram exigidas de uma fidelidade unilateral, além disso, o casamento se mostra estreitamente relacionado à herança. E, em outras sociedades no Período Clássico, a mulher é dependente de seu tutor (pai, marido, irmão, etc.) que deve reger os bens a ela associados, assim como a herança é passada apenas para os filhos. Quando a mulher detém algum direito sob a herança, o casamento já é visto como um fardo para o homem, pois não o beneficia. Diante disto, a autora afirma:

"Já que a opressão da mulher tem sua causa na vontade de perpetuara família e manter intato o patrimônio, ela se liberta também dessa dependência absoluta na medida em que escapa da família. Se a sociedade, negando a propriedade privada, recusa a família, a sorte da mulher melhora consideravelmente."(p. 109).

Algumas mulheres que não eram associadas à família e à herança, obtinham um considerável estilo de liberdade, dentre elas as prostitutas gregas. Estas mulheres recebiam considerável respeito e podia expressar-se mais livremente que as demais mulheres, porém tal situação se mostrava ambivalente, pois por escaparem da família, situavam-se à margem da sociedade e, ao mesmo tempo, escapam da tutela do homem, podendo ser apresentada como semelhante e quase igual a ele. A autora argumenta que tal representatividade que o casamento ocupa fora construída para beneficiar os tutores e apresenta-se como centro de interesses entre os homens, devido justamente à herança e à propriedade privada.

Algumas mudanças desse cenário ocorrem no Estado Romano e sua política republicana, na qual a mulher já obtém direitos sobre o seus filhos e possui considerável autonomia com relação ao seu casamento e suas posses. O que se observa neste contexto é um afastamento do papel mais familiar que a mulher detinha em outras civilizações, porém ela continua na condição de tutelada devido estar sujeita a inúmeras incapacidades legais. Para a autora, no momento em que a mulher alcança um status mais emancipado e potencialmente igualitário, o processo de justificação da supremacia masculina ocorre novamente, buscando um pretexto para manter a mulher na condição de submissa.

A evolução da condição feminina prosseguiu desde o Estado Romano, apresentando influências do Cristianismo e das culturas dos povos ditos "bárbaros”, e então mudanças sociais, políticas e econômicas ocorreram repercutindo na situação da mulher. Com o advindo do Cristianismo pela via da Igreja Católica no período da Idade Média, a mulher assume se apresenta como tentação da carne e ao mesmo tempo possui autonomia no casamento e sobre os filhos. Os povos "bárbaros"concediam direitos à mulher apesar de sua fraqueza física, esta incapacidade não significava uma inferioridade moral ou social.

No regime econômico do feudalismo, a mulher continua com pequena autonomia e principalmente vista como parte dos bens, e é protegida pelas leis, mas somente na condição de esposa e mãe. Ao fim da Idade Média, o destino da mulher se faz incerto devido à desvalorização do feudo com a ascensão da burguesia e do modelo capitalista. Apesar de tais elementos convergirem para a emancipação da mulher, mas a subordinação feminina permanece por meio do casamento até mesmo no modo de vida burguês:

"Vê-se afirmar o paradoxo que se perpetua até hoje: a mulher mais plenamente integrada na sociedade é a que possui menor número de privilégios; na feudalidade civil, o casamento conserva o mesmo aspecto que tinha na feudalidade militar; o esposo permanece tutor da esposa. Quando a burguesia se constitui, ela observa as mesmas leis."(p.124).

A autora argumenta que o interesse exige de burgueses e senhores feudais o controle e administração do patrimônio, não por julgarem a mulher como incapaz de fazê-lo, porém apenas quando nada se opõe aos interesses masculinos são reconhecidas as capacidades femininas. Dentre as consequências da escravização da mulher pelo casamento - a dita "mulher honesta"- , surge a prostituição. De maneira hipócrita, as prostitutas eram condenadas à margem da sociedade, mas ocupavam um papel importante para os homens uma vez que a monogamia tornou-se rigorosa.

A situação da mulher se modificou entre os séculos XV ao XIX, mas principalmente nas classes privilegiadas. Nos séculos XV e XVI a instrução das mulheres ainda é baixa, mas há a preocupação com a educação destas por parte de seu meio familiar, no século XVII elas passam a se distinguir e ganhar espaço no meio intelectual e na arte. Graças a isto, elas passam a imergir aos poucos no universo masculino, apesar de ainda sofrerem repúdio dos homens. No século XVIII, a independência da mulher aumenta mais ainda, apesar da imposição pelo casamento, a burguesia concede às mulheres maiores licenças para atuar no mundo.

No seio da revolução Burguesa veio uma tímida promessa de libertação da condição feminina, as mulheres finalmente conseguiram chegar à vida pública através do mercado de trabalho. Entretanto a entrada da mulher no espaço público não se deu de forma pacífica, elas eram vistas como uma mão de obra menos valorizada que a do homem, coisa que acontece até nossos dias, além de desvalorizada ela tinha que se submeter às explorações do mundo capitalista sendo menos valorizada ganhava menos, trabalhava mais horas, sofriam das mais variadas violências (assédio, estupro, assassinato) e ainda eram acusadas pelos homens de roubarem seus postos de trabalho, já que em algumas empresas eles preferiam a mão de obra feminina por ser mais barata.

A exploração perpassa pela condição feminina independente da classe social ou status, enquanto a maiorias das mulheres solteiras e viúvas do século XVIII eram oprimidas e lutavam para conquistar um espaço digno no mercado de trabalho, as mulheres casadas tinham um restrito espaço na vida social: elas tinham um marido, isto implica em carregar o sobrenome do mesmo, ter um lar. Momento na qual ela pode finalmente colocar em prática todos os ensinamentos a qual foi submetida repetidamente e exaustivamente quando criança, agora ela estava pronta para ser uma boa esposa, uma boa mãe, papéis para qual naquela época já estava predestinada.

Para mulher, o status de casada ao mesmo tempo representa ascensão e limitação, o lar implicava num papel social a qual ela estava mergulhada em regras e com a liberdade cerceada, sua vida só existia ao lado do marido, geralmente cercada de presentes, de elogios e de mimos, enquanto os maridos estavam na vida pública aguentando os "fardos"do trabalho, fardos que o caracterizavam como um ser inteligente, trabalhador, capaz e viril. A mulher por sua vez só precisava ser bonita, era um troféu a ser mostrado e erguido pelo homem. Poucas vezes ela poderia ser reconhecida como uma pessoa inteligente por que nem direito à educação tinha, quase nunca poderia ser reconhecida como trabalhadora por que o trabalho doméstico era desvalorizado e ainda era encarado como uma responsabilidade que tinha de carregar por ter um lar e pra quê reconhecê-la como uma mulher capaz e viril já que ela tinha crescido e se desenvolvido para este destino?

Assim a mulher era desobrigada das tarefas da vida pública, mas com isso também era apagada da glória que traziam, de um espaço conquistado por si e não pelo nome do marido. O destino da mulher desde criança era aprender tarefas domésticas e etiquetas para arranjar um bom marido, ser boa esposa e boa mãe, entretanto o homem não crescia destinado a aprender a ser um bom marido, mas sim a se desenvolver para enfrentar o mundo hostil que lhe espera, o mundo dos negócios, se preparar para ser um bom herdeiro, seguir o nome da família, em momento algum faço juízo de valor e estou afirmando que o destino do homem é mais glorioso que o da mulher, mas é nítido que e o destino feminino é muito mais limitante que o dos homens. As possibilidades dadas a eles nessa época eram maiores, eles não eram limitados a encontrar uma princesa encantada para poderem ser felizes para sempre, mas sim a conhecer um mundo conquistar um lugar nele e por fim quem sabe encontrar uma boa esposa para cuidar do seu lar nos momentos em que não se encontrava.

 

Parte III: Os Mitos

Na história da humanidade é evidenciada a construção de como o homem e a mulher são vistos na sociedade, seus papéis e suas vivências. Desde o patriarcado, o homem é constituído como o ser dominador de forma que a mulher é o Outro derivada do homem e para o homem. Um exemplo dessa formação da mulher como o Outro é a estória de Gênesis, onde a mulher não foi criada no mesmo período que o homem, primeiramente Deus cria o homem e depois, de sua costela, cria a mulher para matar sua solidão e ser companheira desse homem.

Dessa forma, na sociedade, a mulher se torna dispensável e não exige reciprocidade em relação ao homem, tendo como papéis de mãe, amante e cuidadora do lar, sempre atendendo às demandas do homem, em uma natureza submissa. Entretanto, em algumas sociedades, como na sociedade de Marx, não existe lugar para o Outro, pois é defendida autenticamente a democracia. Porém, a mulher não encontra um lugar próprio no qual ela seja autônoma na história, por exemplo: não há poesia ou religião que pertença exclusivamente à mulher, são através dos sonhos dos homens que as mulheres sonham. Dessa forma, a mulher se encontra reduzidamente definida em relação ao homem.

A mulher também ganha o simbolismo de nascimento e morte: de lá veio, para lá irá voltar. O parto é algo exclusivo da mulher, o que também a associa à morte como na expressão: "a terra-mãe encerra em seu seio as ossadas de seus filhos”, pois na cultura grega são as mulheres Parcas e Moiras que tecem o destino humano, mas são elas que igualmente cortam os fios. Porém a ambivalência funciona novamente aqui: se a germinação sempre se associa à morte, esta também se associa à fecundidade, a morte detestada apresenta-se como novo nascimento e ei-la bendita.

Em muitas sociedades primitivas, o sexo da mulher é considerado inocente, o que difunde que a mulher precisa se conservar pura e após sua menstruação deve ter um tratamento diferenciado, no sentido de quando ela perde a virgindade ela se torna impura e perde a inocência. A despeito disso o homem nunca possui esse tabu de pureza e impureza, ele simplesmente se torna impuro quando entra em contato com a mulher menstruada, por exemplo, essa crença está presente na cultura do Egito onde a mulher no período da menstruação deveria se manter isolada.

Essa cultura de mulher menstruada ser sinônimo de impureza ainda perdurou em alguns países onde as mulheres não podiam trabalhar na confecção de alguns alimentos no período das regras, pois iriam azedar ou estragar as colheitas, por exemplo. No ato sexual o homem não busca somente sentir prazer, e sim dominar e explorar o corpo feminino de certa forma que a mulher é vista como a terra que o homem ara, planta e semeia, e após esses atos ele a domina a prendendo como sua propriedade.

Assim, podemos ver como começa a ser construído o tabu da virgindade, tal coisa é temida, desejada e até exigida pelos homens e se apresenta como a forma mais acabada do mistério feminino, é o aspecto mais inquietante deste e ao mesmo tempo o mais fascinante. Em sociedades mais primitivas, onde o poder da mulher é exaltado, o medo do defloramento fala mais alto para os homens, eles exigiam que as mulheres tivessem sido defloradas antes de se relacionarem sexualmente com elas. Como exemplos têm os tibetanos que não desejavam mulheres que ainda não tivessem suscitado desejos masculinos e em outras sociedades o sangue do defloramento era ligado ao sangue da menstruação vista como impura, como já dito anteriormente.

Nas sociedades menos primitivas o defloramento era visto como algo bom se realizado pelo marido, por exemplo, em comunidades na França o sangue do defloramento manchado no lençol era exibido aos pais e amigos um dia depois do casamento. É que no regime patriarcal o homem se tornou senhor da mulher e cabe a ele dominá-la da mesma forma que domina a natureza e os animais, ele assim cria um sentimento de posse pela mulher e a única forma de provar que é seu dono é assegurando que a mulher nunca teve relações com outros homens.

Dessa forma, o que o homem ama e detesta antes de tudo na mulher, amante ou mãe, é a imagem imortal de seu destino animal, é a vida necessária à sua existência, mas que a condena à finidade e à morte. Desde o dia em que nasce, o homem começa morrer: é a verdade que a mãe encarna. Embora tente distingui-las, encontra numa e noutra, amante e mãe, uma só evidência: a de sua condição carnal. Ao mesmo tempo deseja realiza-la, venera a mãe, deseja a amante; ao mesmo tempo rebela-se contra elas na aversão e no terror.

Na idade média, ergue-se a imagem mais acabada da mulher propícia aos homens: a figura da Virgem Maria cerca-se de glória. É a imagem invertida de Eva, e pecadora; esmaga a serpente sob o pé; é a mediadora da salvação como Eva o foi da danação. É como mãe que a mulher é temível; é na maternidade que é preciso transfigurá-la e escraviza-la, a virgindade de Maria tem principalmente um valor negativo: não é carnal aquela por quem a carne foi resgatada; não foi tocada e nem possuída, Maria não conheceu a mácula que a sexualidade implica. Pela primeira vez na história da humanidade a mãe se ajoelha diante do filho e reconhece livremente a própria inferioridade: é a suprema vitória masculina que se consuma no culto de Maria, é a reabilitação da mulher pela realização da sua derrota.

A mulher também é a própria substância das atividades poéticas dos homens, compreende-se que a mulher se apresente como sua inspiradora: as Musas são mulheres. A Musa é mediadora entre o criador e as fontes naturais em que deve haurir. É através da mulher, cujo espírito se acha ligado profundamente à natureza, que o homem sondará os abismos do silêncio e da noite fecunda. A Musa não cria nada por si mesma, é uma Sibila ajuizada que docemente se fez serva de um senhor, e mesmo nos domínios concretos e práticos, seus conselhos serão úteis.

O homem conseguiu escravizar a mulher, mas desse modo despojou-a do que lhe tornava a posse desejável. Integrada na família e na sociedade, a magia da mulher dissipa-se em vez de se transfigurar, reduzida à condição de serva, ela não é mais a presa indomada em que se encarnavam todos os tesouros da natureza. Desde o aparecimento do amor cortês, é lugar-comum dizer que o casamento mata o amor. Os ritos do casamento destinam-se primitivamente a defender o homem contra a mulher; ela torna-se sua propriedade; o casamento também é uma servidão para o homem, é então que ele se vê preso na armadilha da natureza.

Para arrancar a mulher à Natureza, para escraviza-la ao homem mediante cerimônias e contratos, elevaram-na à dignidade de pessoa humana, deram-lhe liberdade. Mas a liberdade é precisamente o que escapa a toda a servidão e se concede a um ser originalmente habitado por forças maléficas, ela se torna perigosa. E dessa forma o homem só aceitou a mulher no mundo masculino fazendo dela uma serva, frustrando-a de sua transcendência; a liberdade que lhe outorgaram só podia ser de uso negativo, ela empenha-se a recusar. A mulher só se tornou livre tornando-se cativa, renuncia a esse privilégio humano para encontrar de novo sua força de objeto natural.

É também, interessante observar o "complexo de Édipo”, consideram-no muito frequentemente como produzido por uma luta entre as tendências instintivas e as imposições sociais, mas é antes de tudo um conflito interior do próprio sujeito. O apego do filho ao seio materno é principalmente o apego à vida em sua forma imediata, em sua generalidade e em sua imanência, a recusa à desmama é a recusa ao abandono a que o indivíduo é condenado desde que se separe do todo, é a partir de então que se pode qualificar como "sexual"o gosto que conserva pela carne materna doravante destacada da sua.

Eis, portanto, porque a mulher tem um duplo e decepcionante aspecto: ela é tudo a que o homem aspira e tudo o que não alcança. Ela é a sábia mediadora entre a Natureza propícia e o homem: é a tentação da natureza indomada contra toda sabedoria. Do bem ao mal ela encarna carnalmente todos os valores morais e seus contrários; é a substância da ação e o que se lhe opõe, o domínio do homem sobre o mundo e seu malogro. Só que ela é Tudo à maneira do não essencial: é todo o Outro. Enquanto outro, ela é também outra e não ela mesma, outra e não o que dela é esperado. Sendo tudo, ela nunca é isso justamente que deveria ser; ela é perpétua decepção, a própria decepção da existência que não consegue nunca se atingir nem se reconciliar com a totalidade dos existentes.

Montherland inscreve-se dentro da longa tradição dos homens que retomaram, por sua conta, o maniqueísmo orgulhoso de Pitágoras. Ele estima, depois de Nietzsche, que somente as épocas de fraqueza exaltaram o eterno feminino e que herói deve insurgir-se contra a Magna Mater. Especialista do heroísmo, empenha-se em destrona-la. A mulher é a noite, a desordem, a imanência.

Lawrence situa-se nos antípodas de um Montherland. Não se trata pare ele de definir as relações singulares da mulher com o homem, mas sim de recoloca-los ambos dentro da verdade da vida, ela envolve a animalidade em que o ser humano mergulha suas raízes. Lawrence recusa com paixão a antítese sexo-cérebro, há nele um otimismo cósmico que se opõe radicalmente ao pessimismo de Shopenhauer, o simples ciclo sexual é insuficiente porque recai na imanência: é sinônimo de morte, porém vale mais ainda essa realidade mutilada: sexo e morte, do que uma existência desligada do humo carnal.

A originalidade do catolicismo de Claudel está num otimismo tão obstinado que o próprio mal retorna ao bem. Claudel adere a toda criação; sem o inferno e o pecado, não haveria nem liberdade e nem salvação. Quando fez surgir este mundo do nada, Deus premeditou a queda e a redenção, aos olhos dos judeus e dos cristãos, a desobediência de Eva colocara as mulheres em má situação: sabe-se quanto os padres da Igreja desprezaram a mulher.

Apesar do abismo que separa o mundo religioso de Claudel do universo poético de Breton, há uma analogia no papel que designam à mulher: ela é um elemento de perturbação; ela arranca do homem o sono da imanência, boca, chave, porta, ponte, é Beatriz iniciando Dante no além. A mulher é enigma e põe enigmas; suas múltiplas caras, em se adicionando e é por isso que ela é revelação.

Stendhal, desde infância, amou as mulheres sensualmente; projetou nelas as aspirações de sua adolescência; imaginava-se de bom grado salvando de um perigo uma bela desconhecida e conquistando-lhe o amor. Stendhal pede às mulheres, primeiramente, não se deixarem cair nas armadilhas da gravidade; pelo fato de as coisas pretensamente importantes encontrarem-se fora de seu alcance, correm menos do que os homens, o risco de se alienarem a elas; têm maiores possibilidades de preservar essa naturalidade, essa ingenuidade, essa generosidade que Stendhal coloca mais alto do que qualquer outro mérito; o que ele aprecia nelas é o que chamamos hoje de autenticidade: é o traço comum a todas as mulheres que ele amou ou inventou com amor.

Evidencia-se por esses exemplos que, em cada escritor singular, se refletem os grandes mitos coletivos: a mulher foi-nos apresentada como carne; a carne do homem é engendrada pelo ventre materno e recriada nos amplexos da amante. Por esse aspecto a mulher apresenta-se à natureza. Porém, esses mitos orquestram-se para cada um de maneira diferente: o Outro é singularmente definido segundo o modo singular que Um escolhe para se pôr. Para cada um deles, a mulher ideal será a que encarnar mais exatamente o Outro capaz de o revelar a si mesmo.

Finalmente, a autora conclui afirmando que atualmente é muito difícil às mulheres assumirem concomitantemente sua condição de indivíduo autônomo e seu destino feminino, e sem dúvida, é mais confortável suportar uma escravidão cega que trabalhar para se libertar: os mortos também estão mais bem adaptados à terra do que os vivos. Então, o que se deve esperar é que os homens assumam sem reserva a situação que se vem criando, somente então a mulher poderá viver sem tragédia. Assim ela será plenamente um ser humano "quando se quebrar a escravidão infinita da mulher, quando ela viver por ela e para ela, o homem- até hoje abominável – tendo lhe dado a alforria”. (p. 309).

 

BEAUVOIR, Simone de. (1967). O Segundo Sexo – Livro 2: Experiência vivida. 2ª Edição. São Paulo: Difusão Europeia do Livro.

O livro segundo sexo está localizado no panorama político-social do século XX, este período é caracterizado por uma crescente mudança na postura e condição social da mulher, esta nova realidade pode ser observada em alguns momentos históricos como em 1917, Alexandra Kollontai torna-se a primeira mulher a integrar um governo; em 1955, a norte americana negra Rosa Parks, recusa-se a ceder o lugar a um branco no ônibus; Djamila Boupacha é considerada heroína de guerra da independência da Argelina. Logo o contexto social do século XX reivindicava novas abordagens sobre temas vinculados à exclusão social, seja de gênero, geração raça ou religião. Na introdução do volume 2 do livro, Simone discute a condição feminina situada nesse momento histórico marcado por grandes conquistas, mas que carrega fortemente o ranço do passado dominador. Isto pode ser observado no trecho:

"As mulheres de hoje estão destronando o mito da feminilidade; começam a afirmar concretamente sua independência; mas não é sem dificuldade que conseguem viver integralmente sua condição de ser humano. Educadas por mulheres, no seio de um mundo feminino, seu destino normal é o casamento que ainda as subordina praticamente ao homem."(p.7).

Depois de destronada a inferioridade feminina justificada através da biologia, agora no segundo volume a autora discute quais são as condições políticas, psicológicas e sócias que submetem a mulher a esse tipo de situação, ou seja, a grande questão torna-se: Quais são as condições sociais e psicológicas que impostas á mulher que sustentam sua submissão ao outro? E quais as formas de enfrentamento desenvolvidas por ela? A autora ressalta que não pretende encontrar verdades absolutas nem explicações mágicas sobre a condição feminina, entretanto busca descrever como se desenvolve a situação feminina "no estado atual da educação e dos costumes"(p.7).

 

Parte I: Formação

Capítulo I – Infância

Neste capítulo Simone discute a diferença de tratamento dos gêneros durante o desenvolvimento infantil, segundo a autora inicialmente os dois sexos são tratados igualmente, com os mesmos anseios e receios infantis. Em síntese a autora afirma que como todo ser humano "de maneira imediata a criança de peito vive o drama original de todo existente, que é o drama de sua relação com o Outro."(p.10).

Entretanto ao longo dos anos ocorre uma diferenciação no tratamento do menino e da menina, enquanto para o menino é exigido muito cedo maturidade, e uma contenção nos episódios de birras e demonstração de afeto. Para as meninas esse momento se mantém e até se prolonga, o que á primeira vista é considerado um privilégio, futuramente se tornará um ônus no sentido de impossibilitar o desenvolvimento da autonomia, autoconfiança e condenando-a a existir através do sentido dado pelo outro.

Segundo Simone, a "desmama precoce"do menino é compensada e justificada por uma superioridade adquirida posteriormente, desta forma o contexto social nega-lhe afetos e superestima o sexo através da figura do pênis, sustentada através de:

"um sentimento de superioridade, sua valorização surge, ao contrário, como uma compensação — inventada pelos adultos e ardorosamente aceita pela criança — para as durezas da última desmama; deste modo, ela se acha defendida contra a saudade de não ser mais uma criança de peito, de não ser uma menina. Posteriormente, o menino encarnará em seu sexo sua transcendência e sua soberania orgulhosa"(p.14).

Desta forma é imposto ao menino a autoridade, ele é criado pra ser o homem da casa, o senhor de negócios e para alcançar isso precisa passar pela privação, assim ele ouve várias vezes "homem não faz birra”, "homem não chora”, "homem não brinca de coisas de menina”.

A menina, por sua vez, já é estimulada a ser carinhosa, afetuosa, prendada, para futuramente tornar-se uma dama respeitável e bonita. A mulher não tem nada a oferecer além de sua beleza e castidade, portanto para ser uma boa menina ela precisa obedecer ordens como: "não discuta”, "comporte-se como mocinha”, "não se meta nessas brincadeiras agressivas dos meninos”. Assim ela aprende que para ser amada precisa estar voltado ás necessidades e satisfação do outro. Simone representa esta ideia nos trechos:

"Todas as crianças tentam compensar a separação da desmama através de condutas de sedução e de parada; ao menino obrigam a ultrapassar essa fase, libertam-no de seu narcisismo fixando-o no pênis; ao passo que a menina é confirmada na tendência de se fazer objeto, que é comum a todas as crianças."(p.22). "[...[ na mulher há, no início, um conflito entre sua existência autônoma e seu "ser-outro"; ensinam-lhe que para agradar é preciso procurar agradar, fazer-se objeto; ela deve, portanto, renunciar à sua autonomia. [...[ fecha-se assim um círculo vicioso, pois quanto menos exercer sua liberdade para compreender, apreender e descobrir o mundo que a cerca, menos encontrará nele recursos, menos ousará afirmar-se como sujeito [...["(p.23).

Essa situação é reforçada quando se estuda a história cultural, observa-se que no decorrer do tempo desde a mitologia até os dias de hoje se contam a os grandes feitos executados pelos homens. Pode-se falar exaustivamente da coragem dos príncipes encantados, da grandiosidade dos deuses gregos, da bravura dos semideuses e da primogenitura de Adão. E por outro lado a futilidade das deusas, a queimação de bruxas na idade média, a feiura das vilãs dos contos de fadas, a passividade das princesas e por fim. a desgraça trazida por Eva e Pandora.

Acarretando assim uma frustração feminina já que não poderá ser grandiosa como eles, e informando a sutilmente a ela que se quiser fazer história será através de um erro para ser tomada como exemplo, ou através da admiração passiva de sua beleza ou por sua retidão, reputação e bondade como se observa nas santas.

Neste contexto é possível compreender porque muitas mulheres tornam-se obsessivas com a beleza, as princesas e as deusas sempre são qualificadas como belas e jovens enquanto as bruxas são velhas e feias, desta forma beleza por si só basta para conquistar o coração do príncipe.

Entretanto quando saímos dos contos para realidade observamos mulheres anoréxicas, transfiguradas por produtos químicos, peles esticadas, corpo modificado em nome da dita "beleza"que nunca chega, ela nunca será bonita ou boa o bastante. Tudo isso não é movido em nome da beleza, mas sim pela obtenção de afeto, como uma forma de ser vista admirada, ou seja, outra forma de pôr se como objeto. Como diz Simone:

"A suprema necessidade para a mulher é seduzir um coração masculino; mesmo intrépidas, aventurosas, é a recompensa a que todas as heroínas aspiram; e o mais das vezes não lhes é pedida outra virtude senão a beleza. Compreende-se que a preocupação da aparência física possa tornar-se para a menina uma verdadeira obsessão; princesas ou pastoras é preciso sempre ser bonita para conquistar o amor e a felicidade; a feiúra associa-se cruelmente à maldade, e, quando as desgraças desabam sobre as feias, não se sabe muito se são seus crimes ou sua feiúra que o destino pune [..["(p.33).

De acordo com a autora a mulher é vitima e algoz da sua própria condição, a submissão exige seu preço, mas também tem suas compensações, ela ao retirar a liberdade também oferece a fuga da responsabilidade

Como tudo tem seu preço e todo o sacrifício tem sua compensação, para autora aprende a se tornar mulher vítima e algoz da sua própria condição. Desta forma, a perda da liberdade oferece também a fuga da responsabilidade. Esta troca é crucial quando a mulher se encontra num mundo a qual não foi ensinada a encarar e sem ferramentas para sobreviver. Pensando desta forma liberdade em troca de segurança pode parecer um negócio atraente, mas de alto custo. Nas palavras de Simone:

"[...[ ao lado da autêntica reivindicação do sujeito que quer para si liberdade soberana, há no existente um desejo inautêntico de demissão e de fuga. São as delícias da passividade que pais e educadores, livros e mitos, mulheres e homens, fazem brilhar aos olhos da menina; ensinam-lhe já na primeira infância a apreciá-las”(p.39).

"Jogos e sonhos orientam a menina para a passividade: mas ela é um ser humano antes de se tornar uma mulher; e já sabe que aceitar a si mesma como mulher é demitir-se e mutilar-se; e se a demissão é tentadora, a mutilação é odiosa.”(p.35).

Em síntese, conclui-se que desde a infância a mulher aprende a se colocar e se identificar com sua condição "feminina"que na maior parte das vezes implica em mansidão, passividade e objetificação. Além disso, essa condição é sustentada por todo um contexto social que vai desde as artes até sua casa, forçando a mulher se identificar a todos os momentos com papéis rígidos e pré-estabelecidos e quando esta não se adequa a eles sofre.

Retomando o volume 1 do livro, nele Simone consegue desmistificar o argumento biológico que sustenta a inferioridade feminina, no volume 2 percebe-se que além dos impactos trazidos pelos argumentos biológicos, os saberes fornecidos pela cultura e as relações sociais também consolidam o mito da inferioridade feminina, impactando na subjetividade e na interação entre homens e mulheres.

Capítulo II – A Moça

Ao término da infância inicia-se uma nova fase: A adolescência, entretanto as duas fases não tem características rígidas e de certa forma situação de uma fase já podem ser encontradas na outra, mas umas características se tornam mais frequentes que outras e há ainda o aumento de obrigações morais e sociais.

Quando a autora descreve as duas fases – a infância e a moça – é observável que a infância e uma fase marcada de mais liberdades e sonhos se quando relacionada a mocidade. Quando criança a menina ainda tem o privilégio da birra infantil, da sinceridade e da impaciência, entretanto ao longo do crescimento é exigido cada vez mais disciplina e apesar de a menina saber que seu destino é casar-se e constituir família esse destino ainda lhe parece distante logo não lhe assombra de imediato.

De acordo com a autora, a moça já sente o peso do seu corpo junto com a proximidade de seu destino, quando criança a menina ainda podia sentir de certa forma a autonomia e apropriação do corpo, mas depois este corpo começa a se modificar, por exemplo, ocorre o crescimento dos seios e acontece a menarca. Além disso, as expectativas sociais aumentam, agora o príncipe encantado está mais próximo, logo "de uma maneira mais ou menos velada, sua juventude consome-se na espera. Ela aguarda o Homem”(p.66)

Durante o crescimento a diferença de tratamento entre os gêneros fica mais evidente, a moça cresce vendo os seus irmãos de mesma idade se envolvendo em brigas, saindo com os amigos, poupado dos afazeres domésticos enquanto ela – a mulher – apesar de estudar, ao chegar em casa vai fazer as atividades domésticas, é desencorajada a sair, fazer uma viagem e ainda tem que aguentar na rua passivamente o assédio masculino, já que o recurso da discussão, da briga e da defesa é privilégio masculino. Como exemplifica a autora:

"Respeitam o esforço que faz o adolescente para se tornar homem e desde logo lhe dão uma grande liberdade. Da moça exigem que fique em casa, fiscalizam-lhe as saídas: não a encorajam em absoluto a escolher seus divertimentos, seus prazeres. É raro ver mulheres organizarem sozinhas uma longa viagem, a pé ou de bicicleta, ou dedicar-se a um jogo como o de bilhar, de bolas etc. Além de uma falta de iniciativa que provém de sua educação, os costumes tornam-lhe a independência difícil. Se passeiam pelas ruas, olham-nas, abordam-nas."(p.72).

"Ela volta à noite para seu lar tomada de um cansaço colossal e com a cabeça cheia das ocorrências do dia. . . Como é então recebida? A mãe manda-a logo fazer alguma compra. Há também que terminar as tarefas caseiras deixadas em suspenso e cumpre-lhe ainda cuidar de sua roupa. É-lhe impossível dar atenção a todos os pensamentos íntimos que continuam a preocupá-la. Sente-se infeliz, compara sua situação com a do irmão que não tem deveres a cumprir em casa e revolta-se.”(p.71).

Para moça a experimentação, a tentativa, a liberdade e ousadia são sancionadas coisa que aos rapazes era incentivada. Aprisionada ás regras e aos costumes dos pais, a jovem procura forma de contornar a situação e adquirir autonomia, na maioria das vezes essa promessa de libertação encontrava-se no casamento. Para Simone o casamento estava além de uma união estável, segundo ela:

"O casamento não é apenas uma carreira honrosa e menos cansativa do que muitas outras: só êle permite à mulher atingir a sua dignidade social integral e realizar-se sexualmente como amante e mãe"(p.67). Para arranjar casamento a moça deve seguir uma série de orientações de como agradar ao homem, e esses padrões são lhes dados desde a infância através dos livros, contos e orientações de outras mulheres, a partir disso podemos observar o quanto a mulher precisa se modificar para agradar o outro e quanto a regras do outro impactam a subjetividade feminina, logo até numa relação afetiva a liberdade e espontaneidade feminina põe-se em último lugar. As orientações mais comuns de acordo com a autora são: "Se desejam esboçar uma amizade, um namoro, devem evitar cuidadosamente parecer tomar a iniciativa; os homens não gostam de mulher-homem, nem de mulher culta, nem de mulher que sabe o que quer: ousadia demais, cultura, inteligência, caráter, assustam-nos. [...[ Ser feminina é mostrar-se impotente, fútil, passiva, dócil."(p.73).

Portanto a jovem já entra na relação afetiva em desvantagem, da mesma maneira que se encontra em outros contextos e quando aspectos como beleza, mansidão, paciência e submissão não lhe são conferidos, na maioria das vezes, acarreta abalos na autoconfiança, autoestima e autoconceito da jovem podendo implicar num adoecimento das relações sociais.

A expectativa de felicidade colocada no casamento também pode gerar uma relação destrutiva e uma dependência social. A mulher depois de casada muitas das vezes tem suas expectativas frustradas, ela sai do jugo do pai para o do marido e ainda precisa executar bem os papéis de esposa, mãe e dona de casa. Em outras situações as mulheres mesmo quando infelizes no casamento hesitam a separação ou mantêm o casamento devido aos extenuantes sacrifícios feitos para consegui-lo e não por afeto ao cônjuge.

Capítulo III – A iniciação sexual

Durante a adolescência iniciam-se as primeiras investidas sexuais, com o início da puberdade há modificações orgânicas e consequentemente psíquicas. Entretanto as condições que os dois gêneros encontram no início da sexualidade são diferentes. Para Simone "a civilização patriarcal votou a mulher à castidade"(p.112) e a ela é incumbida à obrigação de protegê-la, de se manter intocada, até que o outro escolhido por seus pais e estranho à ela possa deflorar-lhe.

Da mesma forma como na idade média a mulher era responsável pela violência masculina exercida contra ela, nos dias atuais esta estrutura ainda se mantém. Apesar de na maioria das situações a escolha do parceiro não ser mais feita pelos pais, a mulher ainda se encontra culpada pela violência contra ela. Se o marido a espanca foi por que ela fez algo para isso, se aparece grávida é por que ela não se protegeu o suficiente, se morre fazendo um aborto é porque ela foi irresponsável de não aceitar o filho indesejado e ainda se estuprada foi ela que provocou o desejo masculino com suas roupas curtas.

Entretanto como em todos os outros contextos, a mulher não foi preparada para lhe dar com sua sexualidade, até sua sexualidade precisa ser despertada pelo outro, ou seja, a autonomia feminina com relação a sua sexualidade é vedada. A única ferramenta que possui é a fantasia, a imaginação de fatos e acontecimentos presenciados, ela sabe que o sexo existe, mas não compreende ao certo o que é e como é feito.

E essas fantasias e falta de informação aumentam a dificuldade da mulher exercer de forma plena sua sexualidade, sempre cercada de representações negativas em torno da sexualidade, dentre elas, o sexo e a masturbação se associados à sujeira e imoralidade, a dor sentida na perda da virgindade, o risco de engravidar, logo toda a sua sexualidade está cercada de riscos que não tem consequência exclusivamente orgânica, mas também moral. De acordo com Simone, na condição feminina a todo o momento:

"[...[ não basta à jovem deixar fazerem; dócil, lânguida, ausente, não satisfaz o parceiro nem se satisfaz. É-lhe solicitada uma participação ativa numa aventura que nem seu corpo virgem nem sua consciência atopetada de tabus, proibições, preconceitos, exigências [...["(p.117). "incidentes verificados na infância ou na juventude engendrem nela profundas resistências; estas são por vezes insuperáveis: o mais das vezes a jovem esforça-se por desprezá-las, mas surgem nela então conflitos violentos. Uma educação severa, o medo do pecado, o sentimento de culpabilidade em relação à mãe criam barreiras poderosas. A virgindade é tão valorizada em muitos meios que perdê-la fora do casamento legítimo parece um verdadeiro desastre. A jovem que cede por fraqueza ou surpresa pensa que se acha desonrada. A "noite de núpcias", que entrega a virgem a um homem que em geral ela não escolheu realmente, e que pretende resumir em algumas horas — ou instantes — toda a iniciação sexual — não é tampouco uma experiência fácil. ."(p.118).

Por mais que Simone hesite, ela acaba reproduzindo estereótipos sociais com relação a mulher, isso se parece com os mitos brasileiros com relação ao desejo das brancas (frias) e das negras (fogosas). A autora reproduz esse estereótipo entre as escandinavas (frias) e espanholas e italianas (fogosas),

"na necessidade sexual: as escandinavas são sadias, robustas e frias. As mulheres "temperamentais" são as que conciliam o langor ao "fogo", como as italianas ou as espanholas, isto é, cuja ardente vitalidade se funde por inteira na carne. Fazer-se objeto, fazer-se passiva não é a mesma coisa do que ser um objeto passivo: uma mulher amorosa não é nem uma sonsa nem uma morta; há nela um impulso que sem cessar se abate e se renova."(p.117).

A crítica colocada à autora é sobre a reprodução de um pensamento colonialista. Da mesma maneira de quando a mulher branca ao se fazer submissa pode estar desempenhando um papel ativo, a mulher italiana ou espanhola ao se fazer fogosa ou ativa pode estar se colocando na situação de objeto, pois de acordo com os parâmetros sociais a mulher submissa é a ideal para casar, as mulheres fogosas sempre constituíram um outro lugar como as de amantes ou prostitutas lugares esses que para elas se tornam estanques.

Em síntese, é observado que a iniciação sexual feminina é discutida nas instâncias orgânicas, psíquicas e sociais. Enquanto que o homem não é imoral e nem lhe são impostas sanções sociais quando perde a virgindade logo cedo, a mulher já é considerada impura quando não mais virgem, e se o pecado for descoberto o sofrimento psíquico é enorme. É interessante que até as prostitutas são embutidas discriminações sociais negativas, enquanto ao homem (mesmo casado) que frequenta os bordéis a nada é afetado, enquanto quem se expõe ao risco e exerce o papel da procura é o homem.

Incorreríamos num erro se acreditássemos que o modelo como o homem vive é o ideal assim como o que a mulher vive é o sofrido, o que questionamos aqui é o direito que cada um tem de exercer sua própria sexualidade, assim como a mulher tem o direito de exercer sua sexualidade sem ser discriminada, o homem da mesma forma, deveria ter o direito de se manter virgem sem ser taxado de "homossexual”. Acreditamos que um não deve ser tomado como medida para o outro, mas o respeito ás suas escolhas devem ser o parâmetro de todas as medidas.

Capítulo IV – A lésbica

A autora discute neste capítulo os estereótipos em torno das homossexuais, neste capítulo Simone discute a autonomia do desejo dissociada à anatomia genital. Segundo a autora, a homossexualidade é a prova de que o desejo não se define unicamente pela genitália, da mesma forma como a anatomia não justifica as discriminações sociais sofridas pelo gênero.

Logo as questões a discutir nesse capítulo são: já que a orientação do desejo não é definida na genitália, quais são os fatores que o afetam quando se discute a homossexualidade feminina?

Primeiramente a autora desmistifica a "feminilidade"como prerrogativa das mulheres heterossexuais, ou seja, as características masculinas e femininas não são constitutivas do sujeito, mas são de caráter fluido. Nas palavras da autora:

"DE BOM GRADO imaginamos a lésbica com um chapéu de feltro ríspido, de cabelos curtos e gravata; sua virilidade seria uma anomalia traduzindo um desequilíbrio hormonal. Nada mais errôneo do que essa confusão entre a invertida e a virago. Há muitas homossexuais entre as odaliscas, as cortesãs, entre as mulheres mais deliberadamente ‘femininas'; inversamente, numerosas mulheres ‘masculinas' são heterossexuais."(p.144).

A autora posteriormente critica algumas teorias que qualificam a sexualidade, dentre elas a psicanálise, segundo ela, há teorias de que a sexualidade masculina é acabada, ao passo que a feminina fica no meio caminho e só a homossexual possuiria uma sexualidade tão "rica"quanto a masculina. Assim, "a sexualidade feminina tem uma estrutura original e a ideia de hierarquizar as libidos masculina e feminina é absurda”. Portanto erotismo é "uma história psicológica em que os fatores fisiológicos são envolvidos, mas que depende da atitude global do sujeito em face da existência."(p.145).

Apesar das sexualidades não serem comparadas de forma valorativa, discute-se no texto o caráter viril da homossexualidade feminina. Simone afirma que, assim como todas as outras características a virilidade, não é uma prerrogativa masculina. Desta forma o caráter viril da homossexualidade não é imanente, mas originada pela responsabilidade de enfrentar o mundo sem o homem. Nas palavras da autora:

"O que dá às mulheres encerradas na homossexualidade um caráter viril não é sua vida erótica que ao contrário, as confina num universo feminino: é o conjunto das responsabilidades que elas são obrigadas a assumir pelo fato de dispensarem homens. Sua situação é inversa à da cortesã que adquire por vezes um espírito viril à força de conviver com os homens."(p.144).

Neste capítulo a autora desfere várias críticas ás teorias psicanalíticas em torno a mulher junto com a sua feminilidade, de modo geral as teorias psicanalíticas são caracterizadas por um conformismo com relação a condição feminina, na qual qualquer "desvio"é carregada de inautenticidade ou desajuste. O que para a autora só se resume em uma tentativa feminina de fazer-se sujeito, ou até mesmo revoltar-se contra sua condição. Segundo a autora para os psicanalistas:

"A homossexualidade pode ser para a mulher uma maneira de fugir de sua condição ou uma maneira de assumi-la. O grande erro dos psicanalistas está em, por conformismo moralizador, encará-lo somente como uma atitude inautêntica."(p.146)

De acordo com a autora o grande erro é a naturalidade com que é imposto o destino feminino, as teorias acreditam que para ser mulher é preciso ter um destino feminino, logo se conformar com a submissão. Tornando qualquer questionamento feminino ou qualquer posição diferente como algo patológico.

Desta forma a problematização feita pelas teorias psicanalíticas é: Por que as mulheres não aceitam sua condição? Por que elas agem com profunda revolta se não podem torna-se marinheiras ou esportistas? Enquanto que o questionamento de Simone é anterior a isso, a problematização é: Por que a mulher o aceita? O que as tornam impotentes ou incapazes de mudar sua condição?

Através das teorias são dadas as respostas mais óbvias e definitivas "é a sua vontade de imitar o homem"desta forma o homem, ou melhor, o falo se torna novamente a medida de todas as coisas, o moralizador de todos os comportamentos e o motivo de todas as ações. E isso se torna mais fácil ainda quando se localiza no inconsciente, desta forma a mulher não se torna apta a discernir suas ações, ela só está seguindo os passos de uma instância a qual não tem controle.

"Definir a lésbica ‘viril' pela sua vontade de ‘imitar o homem' é votá-la à inautenticidade. Já disse a que ponto os psicanalistas criam equívocos aceitando as categorias masculina-feminina tais como a sociedade atual as define. Com efeito, o homem representa hoje o positivo e o neutro, isto é, o masculino e o ser humano, ao passo que a mulher é unicamente o negativo, a fêmea. Cada vez que ela se conduz como ser humano, declara-se que ela se identifica com o macho.”(p.148)

Logo, a condição feminina encontra-se numa encruzilhada, pois a suas ações sempre são justificadas pelo seu organismo, ou seja, sua biologia, entretanto quando elas escapam a genitália, quando o desejo se orienta de outra forma, como no caso das lésbicas, a explicação se orienta para a "inveja do masculino”. Uma inveja que não se justifica já que sua biologia e fragilidade não lhe permitem fazer o mesmo ou na mesma qualidade que o homem, logo o mais saudável é a aceitação passiva de sua realidade. Em síntese:

"se a levar em consideração os valores para os quais ela transcende, o que conduz evidentemente a considerar que ela faz a escolha inautêntica de uma atitude subjetiva. O grande mal-entendido em que assenta esse sistema de interpretação está em que se admite que é natural para o ser humano feminino fazer de si uma mulher feminina: não basta ser uma heterossexual nem mesmo uma mãe, para realizar esse ideal; a "verdadeira mulher" é um produto artificial que a civilização fabrica, como outrora eram fabricados castrados."(p.148).

 

Parte II – Situação

Capítulo I – A mulher casada

Neste capítulo, a autora traz o casamento e o papel que exerce na história da mulher, principalmente pelo fato deste ser tradicionalmente proposto à mulher e, a partir dele, se definem as condições de celibatária, frustrada ou revoltada pela vida que lhe é imposta. Dito isto, a autora se propõe neste capítulo a analisar a condição do casamento principalmente a partir da ascensão burguesa.

Devido as evoluções econômicas da condição feminina, a instituição do casamento também sofrera mudanças: vem se tornando uma união consentida de duas individualidades distintas, cujas partes possuem obrigações, o adultério é considerado renúncia de contrato e o divórcio já pode ser garantido. Nesta nova perspectiva do casamento, a mulher deixa de ter uma função meramente reprodutora, a gravidez perde o caráter de servidão natural e se torna algo assumido voluntariamente. Apesar disso, a autora expõe que o casamento sempre se apresentou de maneira distinta para o homem e para a mulher, pois apesar de ambos os sexos serem necessários um ao outro, não se apresentava uma relação recíproca uma vez que a igualdade entre os sexos não existia, pois socialmente o homem é tido como um indivíduo amplo que exerce ações e funções no coletivo.

Retomando o que fora explicado no volume I de O Segundo Sexo, a autora apresenta que a mulher sempre esteve ligada à questão da herança e da propriedade privada, cujo contrato passava de pai para marido por meio do casamento. Nesta dinâmica, a sociedade dos homens dá margem para que o homem se torne pai e esposo, enquanto a mulher é escrava ou vassala de seu pai, irmãos e - após casar - do marido, portanto "(...) a mulher sempre foi dada em casamento a certos homens por outros homens.” (p. 166). Sendo assim, a escolha do seu destino nos séculos XVIII e XIX fora estritamente restrita, o casamento é o colocado como a justificativa de sua existência, uma vez que o modo que a mulher tem de se ascender social-economicamente por não possui liberdade intelectual, econômica e social como o homem.

No casamento, era exigido que a mulher ficasse sob proteção e tutela do marido, visando atender às necessidades sexuais dele e tomar conta do lar e, apesar da poligamia ser consideravelmente tolerada, o homem deveria assegurar alguns direitos e privilégios a sua esposa. O casamento era um "encargo"e um "benefício"para ambos, porém, como exposto anteriormente, não há igualdade ou simetria entre os dois sexos:

"(...) as jovens, o casamento é o único meio de se integrarem na coletividade e, se ficam solteiras, tornam-se socialmente resíduos. Eis por que as mães sempre procuraram tão encarniçadamente colocá-las. Na burguesia do século passado [XIX[ mal as consultavam. Ofereciam-nas aos pretendentes eventuais em "entrevistas" combinadas de antemão."(p. 167).

A partir deste ponto, a autora afirma que há passividade a mulher diante do casamento, ou seja, ela era "dada"em casamento pelos pais, enquanto que o homem "resolvia"casar, deixando exposto qual sexo era potencialmente autônomo. Tal aspecto, segundo a autora, ainda se conserva no modelo de sociedade atual e o "amor"é visto como um serviço que a mulher presta ao homem, portanto o corpo da mulher é posto com um objeto que se compra.

A mulher adquire alguns direitos somente depois do casamento, assim como a maternidade, que é respeitada apenas caso a mulher seja casada. E, devido a este aspecto que garante direitos, a mulher geralmente apresenta o casamento em seu projeto para o futuro. Dado isto, a autora expõe a mulher apresenta esta dinâmica de buscar a se casar, a qual fora construída por todas as questões históricas referentes aos modelos sociais provenientes dos séculos XVIII e XIX.

Em seguida, a autora discute que a sexualidade da mulher fora historicamente reprimida, principalmente em sua formação familiar e o casamento significava a sua iniciação sexual e seu primeiro contato com o ato sexual. Tal fato trazia prejuízos ao emocional e psicológico da mulher devido ao contato muitas vezes brutal e súbito com a sua sexualidade e com o dever imposto pelo casamento de ter relações sexuais com o seu marido. Além disso, a mulher se vê afastada de abruptamente de seu ambiente familiar e se vê dependente de um homem que mal conhece, tornando-se angustiante a ideia de se casar. Diante de tais considerações, a autora expõe o caráter paradoxal do casamento: é instituído por instâncias sociais, econômicas e religiosas, no entanto, para que o próprio casamento seja aceito e instituído é exigida a "noite de núpcias”:

"Mas o princípio do casamento é obsceno porque transforma em direitos e deveres uma troca que deve basear-se num impulso espontâneo. Ele dá aos corpos, forçando-os a se apreenderem em sua generalidade, um caráter instrumental, portanto degradante. O marido congela-se, muitas vezes, à idéia de que cumpre um dever, a mulher tem vergonha de se sentir entregue a alguém que exerce um direito sobre ela."(p. 191)

Sendo assim, a autora expõe que o fato de o casamento não se constituir por uma vontade espontânea de ambas as partes, a infelicidade, a traição, o ciúme exagerado e a excessiva preocupação com a ordem e a limpeza do lar são experiências que aguardam a mulher. O marido é colocado como intermediador entre ela e o universo fora da casa, enquanto que o universo da esposa se resume em apenas cuidados domésticos e preocupações em atender às necessidades do marido. A mulher "reina"em seu lar, pois somente neste espaço ela se vê e com considerável poder, diferentemente do homem que tem acesso a vários espaços sociais. Nas palavras da autora: "O fato de ter o código suprimido a "obediência" dentre seus deveres [do casamento[, não modifica em nada a situação; esta não assenta na vontade dos cônjuges e sim na própria estrutura da comunidade conjugai."(p. 209).

Para concluir, a autora defende que o casamento deve ser instituído de duas forças autônimas que se esforçam para se complementarem mutuamente, perdendo o caráter de abdicação, fuga e remédio no qual fora construído. Para a autora, esta utopia não é impossível, uma vez que tal realidade existe em algumas relações dentro e fora do casamento, na qual ambos são ao mesmo tempo amigos e amantes, sem procurar no outro uma razão exclusiva para viver. Sendo assim, a autora expõe que a concepção tradicional do casamento, que esboçada neste capítulo, ainda sofre modificações, mas ainda se perpetua a opressão diferenciada entre os cônjuges. Há mulheres que encontram autonomia e independência por meio do trabalho, no entanto este se torna uma fadiga a mais se relacionado ao casamento devido à maternidade. E é neste posto que a autora iniciar o próximo capítulo.

Capítulo II – A Mãe

O filho, segundo a tradição, que deve assegurar à mulher autonomia, se como esposa a mulher não é indivíduo completo, ela pode ser realizar apenas assumindo o papel de mãe, uma vez que a maternidade é exposta como a "vocação natural"da mulher. Sendo assim, segundo a autora, a concepção do filho pode se realizar sexual e socialmente a mulher, porém a função reprodutora da mulher não se dá mais somente pelo acaso biológico e sim, pela vontade.

Assim, a autora traz a discussão sobre o aborto e suas implicações na constituição na condição da mulher, uma vez que tal prática está sujeita a vida amorosa de boa parte das mulheres. Apesar de o aborto ser concebido como imoral e busca assegurar os direitos do embrião, desinteressa-se por ele depois que nasce. Diante disso, a autora defende que os argumentos contra o aborto legal não têm peso por se utilizar somente do argumento católico que afirma ter alma o feto, enquanto isso o aborto continua a fazer parte da realidade da mulher e, devido a vários motivos que a levam a fazê-lo, se submete à tratamentos e cirurgias clandestinas que podem lhe custar a própria vida.

Tal risco, principalmente para as mulheres pobres, pode parecer muito mais favorável que se escandalizar socialmente com um filho não desejado. Já para as mulheres ricas, o aborto pode ser realizado de modo mais "terapêutico”. O aborto faz parte da vida da mulher, não importa sua condição social. E, pelo fato da maternidade ser tida como inerente à mulher, ela tende a se sentir culpada por realizar o aborto. Para a autora, tal fato é tido como a renúncia da sexualidade:

"Estes [os homens[ proíbem universalmente o aborto; mas aceitam-no singularmente como solução cômoda; é-lhes possível contradizerem-se com um cinismo absurdo; mas a mulher experimenta essas contradições em sua carne ferida; ela é geralmente demasiado tímida para se revoltar deliberadamente contra a má-fé masculina; conquanto considerando-se vítima de uma injustiça que a decreta criminosa à força, sente-se humilhada, maculada; ela é que encarna, numa figura concreta e imediata, em si, a falta do homem; êle comete a falta, mas livra-se dela na mulher; êle diz somente palavras, num tom suplicante, ameaçador, sensato, furioso: esquece-as depressa; cabe a ela traduzir essas frases na dor e no sangue."(p. 257)

A autora expõe que a relação que a mulher tem com a gravidez é algo extremamente subjetivo, ela enfrenta a gravidez de modo ambíguo: ao mesmo tempo que deseja se livrar dos incômodos fisiológicos, a mulher também quer dar à luz ao um ser que venha lhe complementar para se sentir um ser em si, com valor próprio, o que é uma ilusão.

A relação da mãe com o seu filho após o parto, segundo a autora, depende de diversas questões, dentre elas: a relação com o marido, as relações construídas com a sua família, e as preocupações consigo mesma. Devido a estas questões, a mulher pode se alienar ao filho de modo a justificar a sua existência por meio dele, assim como pode ser fria e não manifestar seu "instinto materno”. Para a autora, a mulher precisa aceitar a condição de grávida de modo livre e sinceramente desejada, pois:

"(...) é preciso que a jovem mulher se encontre numa situação psicológica, moral e material que lhe permita suportar-lhe o fardo, sem o quê as consequências serão desastrosas. É criminoso, em particular, aconselhar o filho como remédio a melancólicas ou neuróticas; faz-se com isso a infelicidade da mulher e da criança. A mulher equilibrada, sadia, consciente de suas responsabilidades é a única capaz de se tornar uma "boa mãe"."(p. 290).

Para concluir, a autora afirma que a mulher transcende o papel doméstico e o materno na civilização moderna, para além de uma perspectiva generalizada de "a"esposa, "a"mãe e "a"dona de casa. A mulher moderna busca ser notada de modo singular, e busca esta satisfação por meio de sua vida social.

Capítulo III – A Vida Social

A autora expõe que a mulher buscar se realizar e se afirmar por meio de seus adornos, de suas vestimentas. E tais elementos, segundo a construção social, revelam a conduta da mulher que vive na sociedade, ou seja, os seus adornos indicarão se ela é uma mulher solteira, casada, uma prostituta etc. Sendo assim, há uma regra de como se vestir, uma vez que a mulher dita com "pudor"não pode expor seu lado sensual e tampouco buscar a atenção dos homens por meio de seus adornos, tal postura é condenada.

Ao sentir-se admirada pelo modo como está vestida, a mulher busca a valorização de si mesma, busca se realizar, afirma a sua beleza: "Veste-se para se mostrar: mostra-se para se fazer ser."(p. 305). Além disso, para se revestir de modo mais atraente, a mulher busca se reunir com outras mulheres e expor de modo elegante sua residência e suas experiências domésticas. Tais reuniões entre mulheres proporcionam a afirmação do universo que lhes é comum, uma vez que o universo dos homens se mostra totalmente oposto.

Devido casamento frustrado vivido por uma mulher - explicado no capítulo anterior – ela é comumente levada a condição do adultério para se sentir firmada e valorizada sexualmente. Quanto a isso, a autora declara que:

"(...) a escolha de um amante é limitada pelas circunstâncias, mas há nessa relação uma dimensão de liberdade; casar-se é uma obrigação, ter um amante um luxo; é porque êle a solicitou que a mulher cede; tem certeza, senão do amor, ao menos do desejo dêle; não é para obedecer às leis que êle se executa."(p. 318)

Além disso, a mulher busca prazer de modo diferenciado do homem, ela não aceita se deitar com um homem de menores condições que as suas: ela tem o cuidado de escolher. A mulher pode procurar satisfações sexuais, mas não pretende dar ascendência a um amante de baixa condição, por exemplo. Apesar disso, o adultério cometido pela mulher é essencialmente mal visto se comparado ao feito pelo homem na sociedade patriarcal. Para concluir a autora expõe que as amizades, o adultério, os adornos e a vida mundana são tidos como divertimentos para a mulher ajudam-na "(...) a suportar seus constrangimentos mas não os destroem. São falsas evasões que não permitem em absoluto à mulher ser autenticamente dona de seu destino.” (p. 322).

Capítulo IV- Prostitutas e Hetairas

O casamento teria a prostituição como correlativo imediato, de acordo com Morgan "o hetairismo acompanha a humanidade até em sua civilização como uma sombra projetada sobre a família"de forma que o marido obriga a esposa à castidade, mas não se satisfaz com o regime que lhe impõe.Dessa forma, a prostituta é onde o homem liberta sua turpitude e ao mesmo tempo a renega, e ela sempre será tratada como pária. Economicamente a prostituta se assemelha à mulher casada, pois ambas veem o ato sexual como um serviço, a prostituta tem vários clientes que lhe pagam tanto por vez e a mulher casada tem um contrato com um só homem para a vida inteira.

Uma diferença relevante entre a prostituta e a mulher casada se mostra de forma que a mulher casada é de certa forma respeitada como ser humano, já a prostituta não tem os mesmos direitos evidenciando aspectos da escravidão feminina. A miséria e a falta de trabalho são variáveis que colaboram para a escolha da profissão de prostituta, de acordo com Parent-Duchâtelet muitas prostitutas eram recrutadas entre as domésticas. Pelo fato de as arrumadeiras não terem expectativa de melhora de vida e serem abusadas no trabalho, muitas vezes lhes cabiam ser amantes de seus patrões e satisfazê-los sexualmente.

Outra estatística é de que a maioria das prostitutas na cidade vieram do campo, defloradas jovens consentido por ignorância e sem experimentar o prazer. Essas jovens sofrem o traumatismo do defloramento e não necessariamente se veem como prostitutas e têm dificuldade de descreverem-se. Muitas mulheres também encaram a prostituição como meio de aumentar sua renda, há também as mulheres que entraram na prostituição através da violência de cafetões, onde ela se vê escravizada e sem possuir autonomia do próprio corpo.

A maioria das prostitutas consideram-se moralmente adaptadas à sua condição pois se sentem integradas numa sociedade que reclama de seus serviços, suas condições materiais são mais preocupantes do que sua condição moral e psicológica, pois são expostas a inúmeras doenças, muitas também engravidam e por vezes abortam em condições desumanas, a probabilidade de adquirir um vício tóxico também se mostra grande, entre outras problemáticas situacionais as quais elas se expõem. A prostituta que faz comércio de sua generalidade tem concorrentes, mas há bastante trabalho para todas, e mesmo através das suas disputas elas se sentem solidárias. A hetaira que procura distinguir-se é a priori hostil a quem almeja, como ela, um lugar privilegiado.

Por fim, a atitude da hetaira tem analogias com a do aventureiro, pois ela se encontra muitas vezes a meio caminho entre a seriedade e a aventura propriamente dita, visa os valores convencionais, se atribui tanta importância a sua glória que, não é somente por poder econômico: procura nisso a apoteose do seu narcisismo.

Capítulo V - Da maturidade à velhice

A história da mulher, pelo fato de se encontrar ainda encerrada em suas funções de fêmea, depende muito mais que a do homem de seu destino fisiológico. Todo período da vida feminina é calmo e monótono, mas as passagens de um estágio para o outro são de uma perigosa brutalidade. A mulher é bruscamente despojada de sua feminilidade, perde ainda jovem a fecundidade e seu encanto erótico, tais coisas que justificavam socialmente sua existência e sua felicidade. Com o passar do tempo, a mulher que se sacrificou será mais desnorteada, de forma que olhará para trás e verá seu quinhão de tempo esgotado para fazer aquilo que desejava de sua vida, ela se apavora com as estreitas limitações que a vida lhe infligiu. Pelo fato de ser mulher, suportou seu destino passivamente,parecendo que lhe roubaram suas possibilidades, que escorregou da juventude para a maturidade sem ter tomado consciência disso.

As dificuldades da menopausa prolongam-se em certos casos até a morte, na mulher que não se conforma em envelhecer. Despojada de seus atrativos pelo hábito e o tempo, a esposa tem bem poucas possibilidades de reacender a chama conjugal. A partir do momento em que a mulher consente em envelhecer sua situação muda, ela torna-se um ser diferente, assexuado mas acabado: uma mulher de idade, podendo considerar então que a crise da menopausa terminou por aí.

Dessa forma, a mulher que possui descendentes começa a investir nos filhos como uma forma de sobreviver neles. Já em certos casos, quando a mulher não tem descendentes e não se interessa pela sua posteridade ela tenta algumas vezes criar homólogos. Propõe aos jovens sua ternura maternal, não é somente por hipocrisia que declara amar seu jovem protegido como um filho, os sentimentos maternos inversamente são amorosos. A mãe envelhecida e a avó reprimem seus desejos dominadores, dissimulam seus rancores e contentam-se com o que os filhos consentem em lhes dar, mas então não encontram mais socorro neles, continuam disponíveis diante do deserto do futuro, presas da solidão, da saudade e do tédio.

Pode acontecer também que certas mulheres se empenhem de corpo e alma numa empresa e tornem-se realmente ativas, então não procuram mais ocupar-se tão somente, visam certos fins, produtoras autônomas, evadem-se da categoria parasitária que aqui consideramos, porém essa conversão é rara.

Divertida ou amarga, a sabedoria da mulher velha permanece ainda inteiramente negativa: é contestação, acusação, recusa, é estéril. Em seus pensamentos, como em seus atos, a mais alta forma de liberdade que a mulher parasita pode conhecer é o desafio estóico ou a ironia cética. Em nenhuma idade de sua vida ela consegue ser ao mesmo tempo eficiente e independente.

Capítulo VI - Situação e caráter da mulher

A própria mulher reconhece que o universo em seu conjunto é masculino, o quinhão da mulher é a obediência e o respeito, ela não tem domínio, nem sequer em pensamento, sobre essa realidade que a cerca. Não somente ela ignora o que seja uma verdadeira ação, capaz de mudar a face do mundo, mas ainda perde-se no meio desse mundo como no coração de uma imensa e confusa nebulosa. Sabe servir-se mal da lógica masculina.

De maneira geral, embora reconhecendo, em conjunto, a supremacia dos homens, aceitando-lhes a autoridade, adorando-lhes os ídolos, ela vai contestar-lhes o reinado palmo a palmo, daí o famoso espírito de contradição que amiúde lhe censuraram, não possuindo um domínio autônomo, não pode opor verdades, valores positivos aos que os homens afirmam, pode, entretanto negá-los. Sua negação é mais ou menos sistemática segundo a maneira por que nela se dosam respeito e rancor. Mas o fato é que ela conhece todas as falhas do sistema masculino e se apresenta em denunciá-las.

 

Parte III: Justificações

Capítulo I - A narcisista

Pretendeu-se por vezes que o narcisismo era atitude fundamental de toda mulher, e na realidade, o narcisismo é um processo de alienação bem definido: o eu é posto como um fim absoluto e o sujeito nele foge de si. Muitas outras atitudes se encontram na mulher e a verdade é que as circunstâncias convidam a mulher, mais do que o homem a voltar-se para si mesma e a dedicar-se a seu amor. Se assim pode propor-se a seus próprios desejos, é porque desde a infância se apresentou a si mesma como um objeto.

Rica de seus tesouros desconhecidos, marcada por uma estrela fasta ou nefasta, a mulher toma a seus próprios olhos a necessidade dos heróis de tragédia que um destino governa. Toda sua vida se transfigura num drama sagrado. A generosidade da narcisista é-lhe aproveitável: mais do que nos espelhos é nos olhos admirativos de outrem que ela divisa seu duplo aureolado de glória. Muitas mulheres, imbuídas de sentimento de sua superioridade, não são entretanto capazes de manifestá-la aos olhos do mundo, sua ambição será então utilizar, como instrumento, um homem a quem convencerão dos méritos delas, não visam a valores singulares através de livres projetos, querem anexar valores feitos ao seu eu, voltar-se-ão portanto para os que detêm influência e glória.

Capítulo II - A amorosa

A palavra "amor"não tem o mesmo sentido para um e outro sexo, Byron disse que o amor é apenas uma ocupação na vida do homem, ao passo que é a própria vida da mulher. Em verdade, não é de uma lei da natureza que se trata, é a diferença de suas situações que se reflete na concepção que o homem e a mulher têm do amor. É somente no amor que a mulher pode harmoniosamente conciliar seu erotismo com seu narcisismo, fazer-se objeto carnal, presa, contradiz o culto que ela rende a si mesma: parece-lhe que os amplexos lhe gastam e lhe emporcalham o corpo ou que lhe degradam a alma.

A mulher que se submete com prazer a caprichos masculinos igualmente admira na tirania que se exerce sobre si a evidência de uma liberdade soberana. Cumpre atentar para o fato de que, se, por uma razão qualquer, o prestígio do amante arruína-se, pancadas e exigências se tornarão odiosas: só valem como manifestação da divindade do bem-amado. Neste caso é alegria embriagante sentir-se a presa de uma liberdade estranha: é para um existente a mais surpreendente aventura achar-se criado pela vontade diversa e imperiosa do outro, a obediência cega é a única possibilidade de mudança radical que um ser humano pode conhecer.

No dia em que for possível à mulher amar em sua força, não em sua fraqueza, não para fugir de si mesma mas para se encontrar, não para se demitir mas para se afirmar, nesse dia o amor tornar-se-á para ela, como para o homem, fonte de vida e não perigo mortal. Enquanto isso não acontece, ele resume sob sua forma mais patética a maldição que pesa sobre a mulher mutilada, incapaz de se bastar a si mesma. As numerosas mártires do amor testemunharam contra a injustiça de um destino que lhes propõe, como derradeira salvação, um inferno estéril.

Capítulo III - A mística

O amor foi apontado à mulher como sua suprema vocação e, quando o dedica a um homem, nele ela procura Deus: se as circunstâncias lhe proíbem o amor humano, se é desiludida ou exigente, é em Deus mesmo que ela escolherá adorar a divindade. A mulher está acostumada a viver de joelhos, espera normalmente que a sua salvação desça do céu onde reinam os homens, eles também estão envoltos em nuvens, é para além dos véus de sua presença carnal que sua majestade se revela.

A mulher busca primeiramente no amor divino o que a amorosa exige no amor do homem: a apoteose de seu narcisismo, esse olhar soberano, atenta e amorosamente fixado nela, é uma milagrosa fortuna. É sob a figura do esposo que Deus aparece de preferência à mulher, por vezes ele se mostra em sua glória, deslumbrante de brancura e de beleza, dominador, veste-a com um vestido de núpcias coroando-a, tomando-a pela mão e prometendo-a uma apoteose celeste. No entanto, a mulher não tem em todo caso domínio sobre o mundo, não se evade de sua subjetividade, sua liberdade permanece mistificada, só há uma maneira de realiza-la autenticamente: projetá-la mediante uma ação positiva na sociedade humana.

 

Parte IV - O caminho da libertação

Capítulo I - A mulher independente

Foi através do trabalho que a mulher cobriu em grande parte a distancia que a separava do homem, só o trabalho pode assegurar-lhe uma liberdade concreta. Desde que ela deixa de ser um parasita, o sistema baseado em sua dependência desmorona, entre o universo e ela não há mais necessidade de um mediador masculino.

Para a mulher casada o salário geralmente representa apenas um complemento, para a mulher que já é ajudada é o auxilio masculino que se apresenta como o inessencial, mas nem uma e nem outra adquirem com seu esforço uma dependência total. Porém, existe hoje um número assaz grande de privilegiadas que encontram em sua profissão uma autonomia econômica e social. São elas que pomos em questão quando indagamos das possibilidades da mulher e de seu futuro. A mulher que se liberta economicamente do homem nem por isso alcança uma situação moral, social e psicológica idêntica a do homem.

Assim, é a mulher independente dividida hoje entre seus interesses profissionais e as preocupações de sua vocação sexual, tem dificuldade em encontrar seu equilíbrio, se o assegura é à custa de concessões, de sacrifícios, de acrobacias que exigem dela uma perpétua tensão. Então muito mais do que nos dados fisiológicos é que cabe procurar a razão do nervosismo, da fragilidade que muitas vezes observam nela.

 

CONCLUSÃO

Dessa forma, é possível concluir que a despeito de lendas, nenhum destino fisiológico impõe ao macho e à fêmea, como tais, uma eterna hostilidade. A humanidade é coisa diferente de uma espécie: é um devir histórico, define-se pela maneira pela qual assume a facticidade natural. A escravização das mulheres pelos homens e a desvalorização da feminilidade foi uma etapa necessária da evolução humana, mas teria podido engendrar uma colaboração dos dois sexos.

Libertar a mulher é recusar encerrá-la nas relações que mantém com o homem, mas não as negar, ainda que ela se ponha para si, não deixará de existir também para ele: reconhecendo-se mutuamente como sujeito, cada um permanecerá entretanto um outro para o outro, a reciprocidade de suas relações não suprimirá os milagres que engendra a divisão dos seres humanos em duas categorias separadas: o desejo, a posse, o amor, o sonho, a aventura e as palavras que nos comovem: dar, conquistar, unir-se conservarão seus sentidos. Ao contrário, é quando for abolida a escravidão de uma metade da humanidade e todo o sistema de hipocrisia que implica, que a seção da humanidade revelará sua significação autêntica e que o casal humano encontrará sua forma verdadeira.

 

 

Recebido em junho de 2014
Aprovado em novembro de 2014

 

 

Nota sobre as autoras:
Celete Chaves Barra:
graduanda em psicologia pela Universidade Federal do Pará e pesquisadora do Núcleo de Teoria e Pesquisa do Comportamento no projeto
APRENDE (Atendimento e Pesquisa sobre Aprendizagem e Desenvolvimento). e-mail: celestecbarra@outlook.com

Denise Raissa Lobato Chaves:
graduanda em psicologia pela Universidade Federal do Pará e bolsista de iniciação científica PIBIC/CNPq.e-mail: denny.raissa@gmail.com

Raissa Cruz dos Santos:
graduanda em psicologia pela Universidade Federal do Pará e pesquisadora no Laboratório de Neurociências e Comportamento (LabNec). e-mail: raissa-cds@hotmail.com