SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.7 issue1The speech "love" and "affective dependence" on call to women in violence situationsThe clinic in gestalt-therapy: the gestalt of calls in depressive disorders author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Revista do NUFEN

On-line version ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.7 no.1 Belém  2015

 

Artigo

 

O corpo em expressão na disfunção erétil: as contribuições de Merleau-Ponty e Tatossian

 

The body in expression in erectil edysfunction: the contributions of Merleau-Ponty e Tatossian

 

Cuerpo de expresión en la disfunción: las contribuciones Merleau-Ponty e Tatossian

 

Fabiana De ZorziI; Lucas BlocII, III; Georges Daniel Janja Bloc BorisIII

I Instituto de Psicologia Humanista e Fenomenológica do Ceará-IPHe

II Université Denis Diderot - Paris 7

III Universidade de Fortaleza (UNIFOR

 

 

 


RESUMO

Este artigo se propõe a discutir o corpo que se expressa na disfunção erétil (DE) através das contribuições da fenomenologia do corpo de Maurice Merleau-Ponty e da psicopatologia fenomenológica de Arthur Tatossian. Com a fenomenologia, concebemos a vivência da DE como uma experiência de corpo vivido que ocorre sempre na relação com o outro. A partir de Tatossian, fazemos uma distinção entre sintoma e fenômeno, contemplando aquilo que se apresenta como sintoma, a própria "falha", e o vivido, e utilizamos a distinção entre corpo-objeto e corpo-sujeito como inspiração para compreender a experiência da DE. Com estas contribuições, a DE passa a ser compreendida como expressividade, com sua própria tonicidade, intensidade e intencionalidade. Estas contribuições nos permitem romper com o movimento dicotômico da compreensão do corpo e se constituem como ferramentas importantes para compreender o conteúdo expressivo da disfunção erétil.

Palavras-chave: Corpo, disfunção erétil, Fenomenologia, Merleau-Ponty, Tatossian.


ABSTRACT

This article aims to discuss the body that is expressed in erectility's function (ED) through the contributions Maurice Merleau-Ponty and phenomenological psychopathology from Arthur Tatossian. With the phenomenology, we conceived the experience of ED as a lived-body experience that occurs always in relation to the other. From Tatossian, we make a distinction between symptom and phenomenon, contemplating that which present sit self as a symptom, the "failure" itself, and that which's lived, and we use the distinction between body-object and body-subject as inspiration to understand the experience of ED. With these contributions, the ED become sunder stood as expressiveness, with its own tonicity, intensity and intentionality. These contributions allow us to break away from the dichotomy movement of understanding of the body and constitute as important tools to understand the expressive content of erectile dysfunction.

Keywords: Body, erectile dysfunction, Phenomenology, Merleau-Ponty, Tatossian.


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo discutir el cuerpo que se expresa en la disfunción eréctil (ED) a través de la fenomenología del cuerpo de las contribuciones de Maurice Merleau-Ponty y la psicopatología fenomenológica Arthur Tatossian. Con la fenomenología, concebimos la experiencia de la DE como un cuerpo vivo de la experiencia que siempre tiene lugar en relación con el otro. De Tatossian, se hace una distinción entre los síntomas y el fenómeno, teniendo en cuenta que lo que se presenta como un síntoma, el "fracaso", y vivimos, y el uso de la distinción entre el cuerpo y el objeto sujeto-cuerpo como fuente de inspiración para comprender la experiencia de DE. Con estas aportaciones, De, sea entendido como la expresión, con su propio tono, la intensidad y la intencionalidad. Estas contribuciones nos permiten romper con el movimiento de la comprensión dicotómica del cuerpo y son como herramientas importantes para entender el contenido expresivo de la disfunción eréctil.

Palabras-clave: cuerpo, la disfunción eréctil, la fenomenología, Merleau-Ponty, Tateossian.


 

 

INTRODUÇÃO

De acordo com os parâmetros adotados pelo DSM-5, as disfunções sexuais são compostas por um grupo heterogêneo de transtornos caracterizados pela perturbação significativa da capacidade de resposta sexual ou da experiência do prazer sexual (American Psychiatric Association, 2013). Já a partir da Classificação Internacional de Doenças-10 (CID-10), a disfunção sexual não causada por transtorno ou doença orgânica diz respeito às diferentes manifestações de incapacidade de um indivíduo de estabelecer uma relação sexual como gostaria (Organização Mundia de Saúde, 1993). A resposta sexual é posta, em ambas as classificações, como um processo psicossomático que intervém na causa da disfunção sexual.

Entre as principais disfunções sexuais, está a disfunção erétil. Segundo a própria OMS (1993), quando há"falha"na resposta genital dos homens, o principal sintoma éa disfunção de ereção. Para que se obtenha o diagnóstico, o DSM-5 definiu os seguintes critérios: a) na margem de 75-100% da atividade sexual com uma parceira deve existir pelo menos um destes três sintomas: 1) dificuldade acentuada de atingir ereção no curso da atividade sexual; 2) de manter a ereção atéo fim do ato sexual e/ou 3) diminuição acentuada da atividade sexual; b) estes sintomas descritos devem permanecer por pelo menos 6 meses; c) os sintomas provocam uma tristeza significativa na pessoa; d) a disfunção não possui uma melhor explicação por um transtorno não-sexual, como consequência de um sofrimento ligado àuma relação ou fatores de stress, uso de substâncias, etc. Além disso, há uma forte associação com a idade, havendo um aumento, em particular, depois dos 50 anos. Entre 13 e 21% dos homens de 40 a 80 anos se queixam de problemas de ereção e entre 40 a 50% dos homens com mais de 60 apresentam importantes problemas de ereção (AmericanPsychiatricAssociation,2013).

De forma geral, os homens justificam a busca por tratamento devido ao fato de uma parte de seus corpos não estar mais "funcionando"e queixam-se de quererem seus corpos de A busca por um tratamento psicoterápico ocorre, frequentemente, após a tentativa sem sucesso de uso de medicamentos. Segundo Afif-Abdo (2008), o medicamento apenas age após algum estímulo sexual, permitindo, assim, que sinais sejam enviados ao cérebro e a ereção seja impedida de realizar seu mecanismo inverso. Trata-se de um efeito restrito diante dos múltiplos fatores que envolvem o quadro da disfunção e épreciso ir além dos fatores orgânicos, relativos apenas ao soma. Como parte do todo, o soma pode ser considerado como a expressão de algo que se passa no corpo vivido que, na busca de equilíbrio, traz consigo todo seu sofrimento, suas dores e suas paixões. A disfunção erétil atinge este homem como um todo, atravessando também as relações que estabelece. Apesar do enunciado psiquiátrico e do próprio discurso dos homens muitas vezes sugerirem que a experiência da disfunção erétilé, em si, uma experiência objetiva, existe uma subjetividade corporal que atravessa esta experiência.

Neste artigo, discutimos as contribuições da fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty e da psicopatologia fenomenológica de Arthur Tatossian para a compreensão da experiência da DE, entendida aqui, como expressividade, com uma tonicidade própria, intensidade, intencionalidade e voltando-se sempre para o outro. Trata-se de, a partir destes referenciais, elucidar a dinâmica deste corpo em expressão e que sofre diante deste modo de (não) funcionar.

Quando Merleau-Ponty identifica o corpo como mediador de toda experiência possível, podemos compreender que o corpo que se expressa na DE é sempre um corpo em relação, como intercorporeidade. Neste sentido, a coexistência de uma parceira, por exemplo, possibilita a DE em uma experiência objetiva, referente a um não ou mal funcionamento, e uma experiência subjetiva de um corpo próprio, noção que tem como fundo a ambiguidade. Discutimos a noção de corpo apresentada por Merleau-Ponty no livro A fenomenologia da percepção como uma possível contribuição para a compreensão da experiência vivida de homens com disfunção erétil. Trata-se de uma via de inspiração para se compreender a noção de corpo em sua relação com o mundo que permite ultrapassar a dicotomia entre corpo e alma comumente difundida nos estudos sobre disfunção erétil.

Arthur Tatossian, psiquiatra francês e representante contemporâneo da psicopatologia fenomenológica, faz uma distinção entre sintoma somático, sintoma psiquiátrico e fenômeno que também pode contribuir significativamente à compreensão da DE pelo fato de contemplar aquilo que se apresenta como sintoma, a própria "falha", e o vivido, a experiência deste sujeito em um modo de funcionamento global. O sintoma da disfunção erétil passa a ser compreendido como uma enunciação do corpo vivido, uma vez que "cada paciente, mesmo diagnosticado ou apresentando sintomas semelhantes a um estilo existencial patológico universal referente a um quadro psicopatológico específico, é considerado uma pessoa singular." (Moreira & Bloc, 2012, p.295).

A psicopatologia fenomenológica nos auxilia no sentido a compreender o modo de funcionamento global do homem, o seu corpo vivido, bem como a sua relação com o outro. Além disso, utilizamos a distinção entre corpo-objeto e corpo-sujeito, proposta por Tatossian, como norte para compreender a experiência da DE.

Adoecer não significa um acometimento exclusivamente somático, "mas uma forma de estar no mundo, que inclui a dimensão corporal não apenas como efeito, mas como fonte de sentidos." (Freitas, 2011, p.154). A doença retira o homem dos movimentos aos quais está habituado e o coloca na busca do "gesto expressivo". No caso destes homens sobre os quais se debruça este artigo, eles buscam um tratamento que traga o funcionamento de seus corpos de volta, algo que cesse suas inquietações e angústias diante de um vivido permeado pela privação de uma satisfação sexual e relacional.

 

Corpo vivido e sexualidade: contribuições de merleau-ponty à disfunção erétil

Para Merleau-Ponty (1945/2006), a sexualidade não éum ciclo autônomo. Ela possui uma ligação interna com o ser cognoscente e agente inteiro. Sua percepção, motricidade e representação constituem um arco intencional em uma relação de expressões recíprocas. No caso da DE, é fundamental situá-la no sentido de uma configuração do sujeito e do mundo, além do aparato fisiológico que tende apenas a representar uma construção elementar, sem nenhuma relação com o sujeito que a experiência e expressa.

Ao falar do comportamento sexual e afetivo de Schneider no livro A fenomenologia da percepção, Merleau-Ponty (1945/2006) identifica a impotência sexual masculina como uma alteração da estrutura da percepção ou da experiência erótica. No caso de Schneider, a percepção erótica foi destruída, ou sua libido alterada, isto é, alterou-se a disposição corporal que assume como erótica, como a percepção do outro ou o desejo que o liga a este outro através da corrente da sexualidade. Schneider não mais consegue acessar conotações afetivas ou ideológicas, o mundo para ele é"afetivamente neutro." (Merleau-Ponty, 1945/2006, p.217). Ele não procura por si mesmo uma relação sexual, imagens ou conversas sobre tais questões que pudessem fazer nascer nele o desejo. Suas reações são locais e, embora suas representações táteis, tanto quanto as visuais, estejam diminuídas, não háum desencadeamento deste desejo sem o contato. Durante o ato sexual, Schneider responde aos estímulos por algum tempo, porém, o desejo se apaga quando sua parceira chega ao orgasmo ou ela se afasta.

Para Merleau-Ponty (1945/2006), a partir da noção de arco intencional, não existem reflexos sexuais ou puro estado de prazer. Distintamente de um reflexo puramente biológico, o esquema sexual requisita uma capacidade de representação. Merleau-Ponty ilustra tal situação no próprio caso de Schneider que, ao ser solicitado pelo médico que indique a parte de seu corpo em que a régua estaria tocando, não consegue esboçar tal representação. Entretanto, contrapõe Merleau-Ponty, ao ser picado por um mosquito, em um reflexo involuntário, ele coça o local. A partir deste exemplo, ele considera que, quando não existe uma intenção endereçada àsexualidade, nem mesmo a palavra satisfação possui significado:

Se os próprios estímulos táteis, que em outras ocasiões o doente utiliza muito bem, perderam sua significação sexual, foi porque, por assim dizer, eles deixaram de falar ao seu corpo, de situá-lo do ponto de vista da sexualidade ou, em outros termos, porque o doente deixou de endereçar ao seu ambiente essa questão muda e permanente que é a sexualidade normal. No normal, um corpo não é percebido apenas como um objeto qualquer, essa percepção objetiva é habitada por uma percepção mais secreta: o corpo visual é subtendido por um esquema sexual, estritamente individual, que acentua as zonas erógenas, desenha uma fisionomia sexual e reclama os gestos do corpo masculino, ele mesmo integrado a essa tonalidade afetiva. (Merleau-Ponty, 1945/2006, p.216).

O corpo, como veículo para a abertura no mundo, pode não perceber os estímulos necessários para uma relação sexual quando não estáenvolvido nela. Diferente de uma percepção objetiva, de uma consciência de algo, a percepção erótica se faz no mundo, na relação com o outro. Estamos retratando aqui, não simplesmente uma concepção de corpo, mas uma concepção de corporeidade, que não diz respeito ao corpo em seu caráter objetivo, mas a um corpo em que pousa uma tonalidade afetiva, um corpo vivido. Este corpo próprio é atravessado por experiências vividas que o tocam e o afetam, estando sempre ancorado no mundo e mediado através das relações com os outros. Ele não éapenas sujeito da receptividade sensível, como afirma Barbaras (1991), mas é o traço de uma existência como ponto de passagem de uma dinâmica expressiva.

Uma possível contribuição da noção de corpo vivido de Merleau-Ponty para o quadro de homens que sofrem de disfunção erétil sugere que o corpo contém e produz a do sujeito, assim como o sujeito "se sujeita"ao que o corpo impõe ou aos seus limites (Legrand, 2010). Nosso corpo éum organismo fisiológico para o qual devemos nos render. Um homem não pode exigir-se uma ereção em um relacionamento sexual sem que de fato aconteça um imbricamento entre o seu desejo como ser sensível e sentiente e o seu esquema corporal.

Ambos se desenvolvem para além da ordem do pensamento, na ordem do vivido, do encontro com o outro. Segundo Merleau-Ponty (1945/2006), "é preciso que exista um Eros ou uma Libido que animem um mundo original, dêem valor ou significação sexuais aos estímulos exteriores e esbocem, para cada sujeito, o uso que ele fará de seu corpo objetivo" (p. 215). A sexualidade não deve ser compreendida em si, mas como fenômeno em seu caráter intencional que pousa sobre "as potências internas do sujeito orgânico" (p.215), uma compreensão que vai além do funcionamento do organismo de forma isolada.

No esquema corporal dos estímulos exteriores sobre o corpo, Merleau-Ponty (1945/2006) atenta que o corpo responde no sentido de uma consciência global de suas partes, no sentido de uma integração ativa aos projetos do organismo. Paralela àexplicação biomédica acerca do processo de excitação, pode-se refletir ao que Merleau-Ponty (1945/2006) aponta sobre a "qualidade sensível", em que a presença ou a ausência de uma percepção não são efeitos da situação de fora do organismo, elas representam a maneira pela qual se refere a eles. Merleau-Ponty (1945/2006) afirma que

Uma excitação não é percebida quando atinge um órgão sensorial que não está"harmonizado"com ela. A função do organismo na recepção dos estímulos é, por assim dizer, a de "conceber"uma certa forma de excitação. Portanto, o "acontecimento psicofísico"não émais do tipo da causalidade "mundana", o cérebro torna-se o lugar de uma "enformação"que intervém antes mesmo da etapa cortical, e que embaralha, desde a entrada do sistema nervoso, as relações entre o estímulo e o organismo (p.114).

Esta informação está no sentido de tornar o acontecimento da ereção possível e a excitação acontece e se organiza em um esquema corporal. A excitação é apreendida e reorganizada por funções transversais, no sentido que não estão centralizadas nem pelo aparato sexual, que permite a ereção peniana, nem pelo cérebro, pois são irradiadas pelo corpo todo. Há um entrecruzamento com a cultura, com a biologia e com as perspectivas próprias da relação com o outro que a fazem assemelhar-se à percepção que ela vai suscitar.

A forma que se desenha no sistema nervoso, esse desdobramento de uma estrutura, não posso representá-los como uma série de processos em terceira pessoa, transmissão de movimento ou determinação de uma variável por outra. Não posso ter dela um conhecimento distante. Se adivinho aquilo que ela pode ser, é abandonando ali o corpo objeto, partes extra partes, e reportando-me ao corpo do qual tenho a experiência atual, por exemplo, à maneira pela qual minha mão enreda o objeto que ela toca antecipando-se aos estímulos e desenhando ela mesma a forma que vou perceber. Só posso compreender a função do corpo vivo realizando-a eu mesmo e na medida em que sou um corpo que se levanta em direção ao mundo (Merleau-Ponty, 1945/2006, p. 114).

A experiência da disfunção erétil não épor si sóuma experiência objetiva, a experiência vivida compõe esta experiência de corpo que se move no mundo e lhe admite um tom distinto a cada sujeito. No "normal", seria a expressão de um "eu posso", não no sentido de uma escolha de ter ereção, mas de uma experiência pré-reflexiva das disponibilidades expressivas da corporeidade. Na disfunção erétil, esta possibilidade é frustrada e o corpo permanece imóvel diante da experiência. Para Merleau-Ponty (1945/2006), o "corpo éesse núcleo significativo que se comporta como uma função geral e que, todavia existe e éacessível àdoença." (p. 204). Ou seja, a própria doença também é uma forma de comunicação com o outro.

A disposição do corpo próprio é de caráter afetivo e a ausência do orgasmo, como recusa ao contato com o outro, éum recurso que Merleau-Ponty (1945/2006) utiliza, se posicionando a favor da psicanálise, para ilustrar que a sexualidade não se resume à genitalidade. Ele sugere que não existe uma experiência puramente sexual, pois o afetivo também faz parte do campo da experiência sexual do sujeito. Ao se falar de uma história sexual, se estáfalando de uma forma geral de vida.

A "vida genital estáengrenada na vida total do sujeito" (p.219) e não permite compreensões causais, sejam elas da ordem do psíquico ou do organismo. A doença, ou o sintoma, é atravessado também pela recusa do outro. Os próprios sintomas simbolizam uma atitude, seja ela de conquista, seja ela de fuga. A experiência é o corpo em ato expressivo e espontâneo no encontro com outro corpo vivido. Sendo assim, ésomente na relação sexual que o homem experiencia a disfunção erétil. O corpo, através de signos habitados por significações próprias, simboliza a sua existência, a sua atualidade em tempo e espaço, em constantes presentificações.

Merleau-Ponty (1945/2006) compreende o sintoma corporal como um engessamento do "movimento para o futuro, para o presente vivo ou para o passado, o poder de aprender, de amadurecer, de entrar em comunicação com outros." (p.227). A existência amarra-se e o corpo se torna o "esconderijo da vida" (p. 227), ou ainda, em referência a Binswanger, "a forma escondida do ser próprio." (p. 229). A existência pessoal éuma retomada histórica e a expressão do ser em situação. Uma história que tanto diz respeito às minhas posições pessoais, como também a algo que é intersubjetivamente compartilhado. A experiência é reconhecível e comunicável para outrem e tem o seu momento comum.

É através do corpo que o sujeito estásituado e em contato com o mundo, com os outros corpos, e écomo corpo que o sujeito "se relaciona, que percebe o outro e que se percebe porque o outro épercebido." (Alvim, 2007, p. 5). Através do corpo e da DE sua mundaneidade, o sujeito se reconhece como homem. Ambiguamente, poderíamos compreender que, através de um sistema de trocas, na vivência com outros corpóreos e os múltiplos contornos que constituem a experiência de corpo, se dáa experiência do que éser homem, na construção de um corpo que épróprio e também compartilhado.

Este não funcionamento sinaliza a presença de algo. O sintoma é expresso, ele expressa uma situação e tangencia outros contornos. O aparato fisiológico isolado não dá conta da experiência do corpo e qualquer compreensão que se restrinja a esta via reduz esta experiência a dimensão biológica, deixando de lado o sujeito que ali, indissociavelmente, está presente. Com a noção de corpo vivido de Merleau-Ponty e a dimensão ambígua que esta noção assume ao considerar a posição deste corpo como sujeito e objeto, tocante e tocado, visível e vidente, é possível sairmos de um olhar dicotômico, gerando subsídios para a compreensão do corpo sempre em relação e constituído por múltiplos contornos. Nosso corpo se faz da tessitura do mundo e também se mantém presente ao continuamente compor estes fios.

 

A psicopatologia fenomenológica de Tatossian na compreensão da disfunção erétil

Arthur Tatossian, representante contemporâneo e um dos principais nomes da psicopatologia fenomenológica francesa, faz uma distinção entre sintoma somático, sintoma psiquiátrico e fenômeno que pode nos auxilia na compreensão da DE. Segundo Tatossian (1979/2006), mesmo quando falamos em um sintoma somático existe uma vinculação com o indivíduo, pois se trata de um corpo como propriedade privada, algo próprio do indivíduo, estando, inclusive, os sintomas ligados a ele. O sintoma somático também possui um caráter de independência, podendo representar apenas uma parte da realidade, ou seja, pode existir uma independência entre um e vários outros sintomas (Tatossian, 1979/2006; Bloc & Moreira, 2013). Vale ressaltar que no caso da DE erétil muitos dos pacientes acreditam em problemas no funcionamento do órgão sexual, uma atribuição apenas ao caráter somático, algo descartado através de exames.

Tatossian (1982/2012, 1983/2012) considera problemático situar o sintoma apenas no campo do soma e como algo que o sujeito não participa. Se ele está ausente, se não participa, o sintoma acaba sendo visto como algo imposto de forma involuntária, colocando o sujeito na posição de portador e vítima deste sintoma. No caso da DE propriamente dita, isto também pode ser problemático por retirar a posição ativa do sujeito e acabar orientando para um tratamento puramente voltado para este sintoma, sem levar em consideração o indivíduo em seu funcionamento global e as relações que ele estabelece. Este olhar pode, inclusive, proporcionar um elo de dependência e aprisionamento do sujeito ao seu "cuidador"e aos medicamentos que, por hora, vêm sendo a melhor e menos invasiva opção médica.

O caráter de independência dos sintomas não é possível no sintoma psiquiátrico. Para Tatossian (1979/2006), ele sempre atinge seu valor na relação com os outros. Trata-se de uma dificuldade de comunicação que parte de referenciais e de padrões de normalidade. Em relação àdisfunção erétil, nos remete aos diferentes padrões de comportamento que são colocados sobre o homem, àexigência de "ser homem", de se manter homem e responder aos estímulos para a manutenção de uma "normalidade esperada". Além disso, e como ponto fundamental, podemos perceber que este éum fenômeno que aparece na relação, sempre envolvendo outra pessoa. Não existe DE em uma experiência individual, como na masturbação, por exemplo. Embora o sintoma psiquiátrico se apresenta como índice fundamental de uma experiência, ele impõe certos limites para uma compreensão fenomenológica, neste caso, da DE. O sintoma psiquiátrico sinaliza para a presença de algo, mas ele não pode ser reconhecido como o adoecimento propriamente.

Com a noção de fenômeno, oriunda da fenomenologia filosófica desde Husserl, passando também por Heidegger, Tatossian (1979/2006) resgata a dimensão da experiência fenomenológica e, assim, reposiciona também a noção de sintoma. Citando HubertusTellenbach, também representante da psicopatologia fenomenológica, Tatossian considera que o fenômeno é aquilo que

..estando o mais frequentemente escondido, pode vir à luz por certas modalidades de aproximação ou isto que –mais raramente- já está à luz. Nos sintomas que se mostram temos somente, para falar com propriedade, a experiência de que alguma coisa está presente, que justamente não se mostra, mas que somente se anuncia ou se revela –a saber, a doença ou a alteração.É porque a doença se anuncia nos sintomas, sem se mostrar, que os sintomas obrigam a inferências diagnósticas. Para qualquer coisa que se mostra, não hánecessidade de inferência (Tellenbach citado por Tatossian, 1979/2006, p.42).

Diante de algo que estáescondido, a fenomenologia assume justamente o papel de desvelar este fenômeno. Não há inferência possível para o fenômeno porque ele sempre se reconduz a ele mesmo, se mostrando como "a expressão do ser humano inteiro que se confunde com ele" (Tatossian, 1984, p.10). No caso da DE, voltar-se para o fenômeno significa ir além da doença ou do sintoma, no sentido de compreendê-la como modo de funcionamento global. Trata-se de reconhecer o movimento do sujeito, ou ainda, neste caso, a ausência de um movimento existencial, um aprisionamento, que justamente caracteriza uma compreensão fenomenológica da psicopatologia.

A DE édescrita pelo sujeito como único modo de funcionamento possível. Ao ir além do sintoma, ainda que este ocupe um papel importante, épossível o desenvolvimento de uma intervenção que vise resgatar o movimento existencial do sujeito, repleto de possibilidades. Ao focar apenas no sintoma, o foco tende a ser apenas a falha, a ausência de ereção. Ou seja, o modo como se compreende uma experiência implica diretamente nas vias de tratamento escolhidas. No caso da DE, como enfatiza Grassi (2004), o próprio sintoma psicopatológico demanda por uma compreensão que possa ir além de uma "falha"na resposta genital dos homens. A dificuldade de ereção, ou a ausência dela, não pode ser caracterizada apenas como uma pista, um índice a ser percebido pelo clínico na experiência de contato com o seu paciente e o seu vivido.

É através do vivido, inscrito no corpo, constituído por múltiplos contornos, que podemos compreender a disfunção erétil. A expressão sexual intenciona o outro, tanto para afirmá-lo como para negá-lo. O fenômeno não éintrínseco, interior, pois se não existe o outro não existe manifestação do sintoma. A compreensão médica, supondo uma leitura empírica do fenômeno, não reconhece a posição e a função da alteridade na expressão sexual. Em uma perspectiva fenomenológica, voltamo-nos para o vivido. Não se trata aqui de descartar o sintoma, mas de utilizá-lo como via de compreensão desta experiência (Bloc & Moreira, 2013), como fenômeno em expressão.

Trata-se de enfatizar a vivência do sujeito em seu corpo próprio, com diversos modos de expressão e que sofre diante de sua impotência. Um sofrimento que se vincula ao outro, ao mundo e produz implicações para além do ato sexual. Háuma tendência ao desenvolvimento de práticas reducionistas que acabam voltando-se excessivamente para este corpo no sentido de apenas consertá-lo, negligenciando a experiência vivida e os múltiplos contornos que a compõem; elementos centrais para a fenomenologia.

O corpo éconstantemente ignorado, sendo objetivado, efemeramente, em circunstâncias de fome, sede, fadiga (Tatossian, 1982/2012) e, aqui poderíamos incluir, sexo também. Para se compreender o corpo vivido, Tatossian faz a distinção entre "o corpo que eu sou e que não é mais que um comigo e o corpo que eu tenho, e que me estando disponível como instrumento e mesmo como coisa, não é exatamente eu em certo sentido." (Tatossian, 1982/ 2012, p. 102). O corpo que eu sou ou corpo-sujeito denota a própria vivência do corpo, um corpo no qual me reconheço. Já o corpo que eu tenho ou corpo-objeto édiferente do soma e atua como ponto de ligação com o mundo, possibilitando a intersubjetividade em um corpo que pode ser visto como o outro vê. Trata-se de dois pólos necessários em que um equilíbrio marca um funcionamento saudável. Pensar a DE como um desequilíbrio entre estes dois pólos pode nos ajudar na sua compreensão.

É possível falarmos de um desequilíbrio entre este corpo-sujeito e este corpo-objeto, em que as constantes tentativas de consertá-lo colaboram ainda mais para este desequilíbrio na medida em que pouco considera este corpo vivido como um todo. Uma das principais vias de intervenção éa medicamentosa. Com o remédio, muitas vezes se acaba por desvincular a DE do sujeito que a experiência, uma pura objetivação de um quadro patológico. Ou seja, busca-se curar a doença através do remédio que tem o papel de devolver a potencialidade que foi perdida ou minimizada; foca-se apenas no corpo-objeto. Não se trata de negar ou negligenciar a importância do uso de remédios, mas da importância de pensá-lo criticamente e como aliado de algo mais amplo que envolve o sujeito como um todo e suas relações.

O corpo-objeto éo que nos possibilita o contato com o mundo, que nos permite um reconhecimento e uma intercorporeidade. Através dele, podemos, por exemplo, nos vermos e sermos vistos, demonstrando uma dimensão objetivável importante. Isto nos leva diretamente àcompreensão da DE em sua dimensão relacional. Há um outro que está presente na relação e demanda por uma via que o contemple também. Háuma vivência de um corpo, como sujeito, de alguém que vivencia tal experiência e hátambém um corpo que évisto em sua expressividade e torna tal experiência ainda mais difícil para aquele que a vivencia. A dificuldade estáem contemplar estas vias na busca de atingir um equilíbrio. Este sujeito precisa voltar a se reconhecer neste corpo e, ao mesmo tempo, assumir sua expressividade perante os outros. Trata-se aqui de ser sujeito e objeto da experiência da sexualidade, eis o desafio de qualquer intervenção e compreensão que se proponha a ir além de um modelo puramente orgânico.

 

Considerações finais

Compreendemos que, no tocante à disfunção erétil, a "falha", mesmo que pudéssemos compreendê-la a partir de uma concepção psicogênica, não permite uma compreensão da expressividade do fenômeno na experiência sem compreender os contornos corporais da DE. Ou seja, não se trata de algo psicológico que repercute no corpo ou uma falha no funcionamento mecânico de um aparelho. Ao nos voltarmos para este corpo vivido, visamos contemplar uma experiência que évivida, como modo de funcionamento global em que não háuma cisão.

Ao desenvolver uma fenomenologia do corpo, Merleau-Ponty nos fornece ferramentas sólidas para se compreender a DE na medida em que acentua o caráter próprio da experiência do corpo e reconhece a sexualidade em sua via expressiva e constituída na relação com o outro. O corpo afeta e étambém afetado, produzindo-se sentidos e, neste caso, gerando sofrimento e adoecimento. Esta lente nos permite se distanciar do aprisionamento contemporâneo de um corpo máquina que falha e éprogressivamente objetivado, e nos direciona ao caráter sensível do corpo, elemento fundamental na sexualidade. A disfunção erétilcomumente remete a uma impotência que, em termos fenomenológicos, se assenta justamente na composição da experiência como expressividade e produção de sentido na relação com o mundo, entre corpos.

Reconhecemos na psicopatologia fenomenológica de Tatossian também uma contribuição latente por posicionar o sintoma como índice importante, mas parcial, e apontar para a necessidade de se evidenciar o modo de funcionar do sujeito como fenômeno. Quanto mais se objetiva o corpo e suas expressões, menos o sujeito éreconhecido, abrindo espaço para desequilíbrio e instabilidade. O corpo ésujeito e objeto e quanto mais equilíbrio houver, mais saudável tende a ser o funcionamento; eis o percurso na busca de resgatar a potência sexual.

A fenomenologia filosófica, representada neste artigo através da contribuição de Merleau-Ponty, e a psicopatologia fenomenológica, com Tatossian, são aliadas e convergentes, podendo dialogar na busca da compreensão do corpo vivido na DE, seja na composição de elementos teóricos e elucidativos sobre o corpo, seja como ferramenta para o desenvolvimento de uma fenomenologia clínica centrada na experiência de corpo do sujeito. Nosso corpo estásempre em expressão, o desafio écontemplá-lo em suas diferentes possibilidades e formas de expressão que exigem o reconhecimento de sua dimensão, ao mesmo tempo, subjetiva e objetiva.

 

Referências

American Psychiatric Association. (2013). Diagnostical and statistical manual of mental disorders (5ª ed.). Washington DC: APA. Elsevier Masson, Issy-les-Molineaux.         [ Links ]

Afif-Abdo, J. (2008). As soluções para o tratamento da disfunção erétil. Psique Especial Ciência & Vida, 9, 66-69.         [ Links ]

Alvim, M. B. (2007). Ato artístico e ato psicoterápico como Experiment-ação: diálogos entre a fenomenologia de Merleau-Ponty, a arte de LygiaClark e a Gestalt-terapia. Tese de doutorado, Brasília, Universidade de Brasília.         [ Links ]

Barbaras, R. (1991). De l'êtreduphénomène: surl'ontologie de Merleau-Ponty. Grenoble: J. Millon.         [ Links ]

Bloc, L. & Moreira, V. (2013). Sintoma e fenômeno na psicopatologia fenomenológica de Arthur Tatossian. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 16(1), 28-41.         [ Links ]

Freitas, J. (2011). Corpo e Subjetivação: reflexões sobre uma possível contribuição da fenomenologia àpsicologia. In: Cremasco, M.V. (Org) O sofrimento humano em perspectiva. Enfoques psicológicos. Ed CRV.         [ Links ]

Grassi, M. V. F. C. (2004). Psicopatologia e disfunção erétil. São Paulo: Escuta.         [ Links ]

Legrand, D. (2010). Myselfwith No Body? Body, Bodily-ConsciousnessandSelf- consciousness. In: D. Schmicking & S. Gallagher (eds.), Handbook of Phenomenology and Cognitive Science (pp.181-200) Springer Science+Business Media B.V.         [ Links ]

Merleau-Ponty, M. (2006). Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes. (Original publicado em 1945).         [ Links ]

Moreira, V. & Bloc, L. (2012). Clínica do Lebenswelt (mundo vivido): articulação e implicação entre teoria e prática. In: Tatossian, A. & Moreira, V. Clínica do Lebenswelt. Psicoterapia e psicopatologia fenomenológica. São Paulo: Escuta.         [ Links ]

Organização Mundial de Saúde. (1993). Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento da CID-10. Descrições Clínicas e Diretrizes Diagnósticas. Porto Alegre: Artmed.         [ Links ]

Tatossian, A. (1984). Phénoménologie de laSchizophrénie. Arch. SuissesNeurol.,Neurochir., Psychiatr., 135, 9-15.         [ Links ]

Tatossian, A. (2006). A Fenomenologia das Psicoses. São Paulo: Escuta. (Original publicado em 1979).         [ Links ]

Tatossian, A. (2012). Fenomenologia do corpo. In: Tatossian, A. & Moreira, V. Clínica do Lebenswelt. Psicoterapia e psicopatologia fenomenológica.São Paulo: Escuta. (Originalmente publicado em 1982).         [ Links ]

Tatossian, A. (2012). Depressão, vivido depressivo e orientação terapêutica. In: Tatossian, A. & Moreira, V. Clínica do Lebenswelt. Psicoterapia e psicopatologia fenomenológica. São Paulo: Escuta.(Original publicado em 1983).         [ Links ]

 

Recebido em 08 de junho de 2015
Aprovado em 22 de março de 2016

 

Notas sobre as autoras

Fabiana De Zorzi - Mestre em Psicologia Clínica pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Graduada em Psicologia pela Universidade de Caxias do Sul-RS (UCS). Formação em Terapias Cognitivas pelo Centro de Controle do Stress-RS. Gestalt-Terapeuta pelo Centro de Estudos em Gestalt do Rio Grande do Sul. Membro do Instituto de Psicologia Humanista e Fenomenológica do Ceará-IPHe. E-mail: contato@fabianadezorzi.com

Lucas Bloc - Doutorando em Psicopatologia e Psicanálise na Université Denis Diderot - Paris 7, bolsista Capes Processo 0998/14-1. Graduado em Psicologia pela Universidade de Fortaleza - UNIFOR. Mestre em Psicologia pela UNIFOR (2010-2012). Professor efetivo do curso de Psicologia da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Pesquisador do APHETO - Laboratório de Psicopatologia e Psicoterapia Humanista-fenomenológica Crítica do Mestrado de Psicologia da UNIFOR e do Centre de RecherchesPsychanalyse, Medicine etSociété(CRPMS). Presidente do Instituto de Psicologia Humanista e Fenomenológica do Ceará-IPHe. E-mail:bloclucas@gmail.com

Georges Boris - Psicólogo (1981), mestre em Educação (1992) e doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará(2000). Professor titular do Curso de Psicologia (1985) e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia (1997) da Universidade de Fortaleza - UNIFOR. Psicoterapeuta humanista-fenomenológico, formador de psicoterapeutas e supervisor com foco em Gestalt-Terapia. Coordenador do Laboratório de Psicopatologia e Psicoterapia Humanista-Fenomenológica - APHETO. E-mail: geoboris@uol.com.br