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Revista do NUFEN

versão On-line ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.7 no.2 Belém dez. 2015

 

Artigo

 

"Nem tudo pelo crack": uma leitura sartreana acerca da questão da liberdade entre estes usuários

 

"Not everything on crack": a Sartrean perspective on the issue of freedom among these users

 

"No todo por el crack": una lectura Sartreana sobre la libertad entre estos usuarios

Rafael Torres Azevedo; Thabata Castelo Branco Telles

Universidade Federal do Triângulo Mineiro

 

 


RESUMO

A dependência a uma substância psicoativa não pode ser explicada de forma simplista, pois é multideterminada. O uso do crack tem desafiado as políticas de saúde quanto ao tratamento e reinserção do usuário à sociedade. A pesquisa realizada na iniciação científica intitulada: "A vivência da fissura entre usuários de crack: um estudo fenomenológico" mostrou que seria importante a discussão do tema da liberdade em relação à fissura, já que essa é um impeditivo de sair do vício. Nessa pesquisa, realizada no Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas de Uberaba, foram feitas seis entrevistas abertas objetivando explorar as vivências dos usuários. Um dos resultados demonstrou que, apesar da fissura, não é tudo que se faz para ter o crack. Então, sob a visão sartreana, se discute – teoricamente, através de exemplos de achados empíricos – que, mesmo diante dela, há uma liberdade de se buscar um futuro diferente.

Palavras-chave: crack; Fissura; Liberdade.


ABSTRACT

The addiction to a psychoactive substance can only be explained if considering its multiple dimensions. The use of crack has challenged health policies regarding the user treatment and his reintegration into society. The research in scientific initiation titled: "The experience of craving among crack users: a phenomenological study" showed that it would be important to discuss the issue of freedom related to craving, since this is an impediment to leave the addiction. In this research conducted at the Center for Psychosocial Care – Alcohol and Drugs in Uberaba, sixopen interviews were made aiming to explore the experiences of users. One of the results showed that despite the craving, not everything is done to obtain the crack. Then, though a Sartrean comprehension, this topic is discussed that even facing the craving, there is freedom to pursue a different future.

Keywords: crack; Craving; Freedom.


RESUMEN

La dependencia a una sustancia psicoactiva no puede ser explicada de forma simple, pues es multideterminada. El uso de crack ha desafiado las políticas de salud en cuanto al tratamiento e inclusión del usuario a la sociedad. La investigación realizada en la iniciación científica titulada: "La vivencia de la fisura entre usuarios de crack: un estudio fenomenológico", mostró que sería importante la discusión del tema de la libertad en relación a la fisura, ya que eso es un impedimento para salir del vicio. En esa investigación realizada en el Centro de Atención Psicosocial Alcohol y Drogas de Uberaba, fueron hechas seis entrevistas abiertas objetivando explorar las vivencias de los usuarios. Uno de los resultados demostró que a pesar de la fisura, no es todo lo que se hace para tener el crack. Entonces sobre la visión Sartreana, se discute teóricamente a través de ejemplos de datos empíricos que mismo delante de ella, hay una libertad de buscar un futuro diferente.

Palabras-clave: crack; Fisura; Libertad.


 

 

INTRODUÇÃO

O uso de drogas é um fenômeno antigo e com notadas consequências, seja para o usuário, quanto para a sociedade em que ele está inserido (Marques & Cruz, 2000). A dependência a uma substância psicoativa é um assunto complexo e multideterminado, não sendo possível estabelecer um único fator como fonte de explicação. O crack, uma droga derivada da cocaína, possuí efeitos intensos e por isso, o usuário pode ter uma relação exclusiva com a substância. Nesse sentido, atendimentos de suas necessidades podem ficar negligenciados, tais como: sono, afeto, fome, entre outros (Galera, 2013).

Dessa maneira, o uso do crack tem desafiado a comunidade científica e as políticas públicas quanto às possibilidades de tratamento e reinserção psicossocial do usuário dependente. Um dos impeditivos para sair do vício é o desejo constante de fazer o uso da droga, desejo esse denominado de fissura, definida por especialistas da Organização Mundial da Saúde (OMS) como uma vontade de ter novamente a experiência dos efeitos de uma determinada substância (United Nations International Drug Control Programme and World Health Organization, 1992, citado por Araujo, Oliveira, Pedroso, Miguel & Castro, 2008). Esse desejo incontrolável de utilizar a droga tem papel fundamental na manutenção da dependência, pelo fato do usuário não conseguir deixar de fazer o uso, colocando este modo de utilização como um problema de saúde pública (Chaves, Sanchez, Ribeiro & Nappo, 2011).

Como uma experiência do ponto de vista fenomenológico, a fissura foi descrita, por Messas (2006), como uma alteração global da consciência que está tingida pelo desejo de consumo de um objeto. Trata-se, portanto de um sentimento intencional, que se dirige à droga como um único fator possível de que esse se realize.

É uma experiência que se situa na fronteira entre o biológico e o psíquico, pois, embora se manifeste na consciência como algo de cunho psíquico, tem a participação, nem sempre clara, da substância que foi ingerida (Messas, 2006). Silveira (1996) afirma que um indivíduo que tem fissura por uma substância química encontra-se diante a uma realidade, seja objetiva ou subjetiva, insuportável, da qual não consegue se esquivar, restando apenas uma alternativa, que é a alteração da percepção do real através do uso de drogas.

Apesar de o crack ser uma droga com um poder de vício considerável e a fissura por essa substância demonstrar isso, observou-se pela pesquisa de iniciação científica realizada, nos anos de 2012 e 2013, vinculada à Universidade Federal do Triângulo Mineiro, que há alternativas a serem exploradas por essa população. Dessa forma, busca-se demonstrar que talvez seja possível ter uma liberdade de escolha no uso do crack. Nesse sentido, o objetivo deste trabalho consiste em compreender e discutir, através de uma leitura sartreana, a questão da liberdade entre usuários de crack, especialmente em experiências vividas de fissura.

 

ESCOLHAS METODOLÓGICAS

Este estudo trata de discussão teórica, ilustrada a partir de um dos resultados de uma pesquisa de iniciação científica realizada no Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas – CAPS-AD de Uberaba. A referida pesquisa tinha o objetivo de verificar o que os usuários de crack vivenciavam no momento de fissura pela droga, assim, para esse estudo, foi necessário a aprovação do Comitê de Ética e Pesquisa – CEP e a aceitação por parte da instituição do trabalho a ser realizado e também por parte dos frequentadores do local.

Os participantes escolhidos para realizar a entrevista foram informados sobre o objetivo da pesquisa, com os procedimentos necessários para sua realização e, após concordarem em participar, assinaram o Termo de Compromisso Livre e Esclarecido. A partir desse procedimento, foram realizadas as entrevistas, que posteriormente foram transcritas para serem feitas as análises. Nessa etapa, 6 pessoas; – uma por dia, dentre várias que participavam da reunião diária - que tinham sido diagnosticadas como dependentes a substâncias psicoativas; em especial ao crack, cujos critérios preenchidos foi a codificação do CID-10 (1993), (F14.2: transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de cocaína - síndrome de dependência e F14.3: transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de cocaína – síndrome de abstinência); realizaram as entrevistas abertas.

Para uma noção mais geral acerca das principais características destes sujeitos, segue tabela:

 

 

A entrevista se deu com a seguinte pergunta disparadora: Como você vivencia a fissura pelo crack? Os entrevistados foram escutados dentro da perspectiva fenomenológica (Moreira, 2002), com intervenções que demonstraram compreensão e acompanhamento dos relatos. As entrevistas duraram cerca de 40 minutos e o número de participantes que foram entrevistados seguiu o critério de saturação, proposto por Moreira (2002). Alcançado o número de participantes que preencheram o objetivo da pesquisa, foram cessadas as entrevistas e iniciadas a análise dos resultados.

Feita a análise fenomenológica dos relatos chegou-se a quatro temas experienciais, sendo que um deles (Nem tudo pelo crack) mostra que, apesar da fissura, muitos usuários não são capazes de se submeterem a certas situações para conseguir a droga.

Depois de feita a pesquisa, ficou a indagação e a vontade de entender um pouco mais sobre esta categoria, em que os entrevistados relataram o não uso da droga, mesmo com a fissura por ela. Com essa questão em mente, será analisado e discutido teoricamente, de acordo com a ontologia fenomenológica de Sartre e através de outros estudiosos do autor – como, por exemplo, o psiquiatra Martin-Santos -, o resultado da pesquisa que demonstra que não é tudo que se faz para se ter o crack. Para isso, o conceito de liberdade, como também as noções de responsabilidade, projetos de vida, má-fé, do Outro e das relações intersubjetivas, podem ser úteis para a compreensão dessas vivências.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A liberdade e a facticidade do para-si

Jean-Paul Sartre (1905-1980) foi um filósofo e escritor francês, que embasou o pensamento existencialista. Estudou a fenomenologia do filósofo Edmund Husserl e a ontologia de Martin Heidegger. Para Sartre, o existencialismo é uma filosofia preocupada com o indivíduo e sua responsabilidade. "O Ser e o nada", publicado em 1943, foi seu principal trabalho, na primeira etapa de seus estudos, chamada de filosofia existencial. Nessa fase, Sartre tenta dar forma às estruturas fundamentais da existência humana, mostrando o antagonismo entre a consciência e o mundo objetivo, destacando a liberdade do ser humano (Sartre, 2011).

Na obra "O ser e o nada", Sartre conceitua o fenômeno do ser através das noções de serem- si e ser-para-si. O ser-em-si é o que é, ou seja, algo sem maior explicação, sem segredo, fechado em si próprio. O ser-em-si não se relaciona com o outro, pois é indefinidamente ele próprio e se esgota nisso; ele não é completo, nem incompleto, apenas é, um existente fenomênico (Sartre, 2011). Para Bornheim (1971), o ser-em-si é algo que não pode se relacionar com o outro, pois é fechado em si mesmo. É uma síntese absoluta e por si mesmo já se basta, ou seja, é fechado em sua totalidade.

Já o ser-para-si, ao contrário, se determina a ser na medida em que não pode se coincidir com ele próprio. Essa distância de ser do para-si é o nada, ou seja, o nada é esse buraco no ser, essa queda do em-si rumo a si, na qual se faz o para-si, a possibilidade de ser. A facticidade do para-si é indicação de se buscar algo para ir se desenvolvendo. Assim, no momento em que o para-si se aprofundar em si mesmo como consciência de estar aí, de estar presente, descobrirá motivações e será remetido a si mesmo na sua própria liberdade; de forma que o para-si pode também não ser, e isso faz ele se conscientizar de sua facticidade, como estando aí para nada. No entanto, a possibilidade de ser algo faz do para-si uma possibilidade, um ser se fazendo, na medida em que não é. Dessa maneira, um ser fechado em si será simplesmente aquilo que é (Serem- si), ao contrário, o para-si está se fazendo, uma vez que nele há espaço, tanto para uma negação, quanto para um conhecimento (Sartre, 2011). O para-si se constitui pelo nada, pela facticidade, como uma busca por algo, por um fundamento, esse que, no entanto, torna-se inútil, pois não é, mas busca ser.

O para-si, então, se fundamenta, não como ser, mas como uma liberdade; é o ser dos possíveis (Bornheim, 1971). Assim, o usuário de crack, inicialmente entendido como um ser-em-si, passará a se constituir enquanto um ser-para-si, no momento em que outras possibilidades se abrirem para ele e quando o crack não for mais a única fonte de prazer, pois outras situações poderão proporcionar contentamento e bem-estar, como podemos perceber nas falas a seguir.

R.F. (...) "hoje na parte da manhã... ontem à tarde e hoje na parte da manhã eu comecei a fazer uma reflexão de tudo que eu perdi, do que eu tenho e o que eu posso vir a ter se eu conseguir me entregar de fato a esse tratamento que tá sendo me oferecido aqui..."

L. (...) "mas graças a Deus to confiante, na minha mente, no meu coração, to tranquilo e to feliz, de bem com a vida, apesar de ter perdido minha família, mas eu recupero, eu to vivo ainda, e ela tá viva também."

A partir dessas duas falas, podemos observar a liberdade atrelada ao ser-para-si, principalmente nos momentos em que o primeiro sujeito faz uma reflexão das coisas que já perdeu devido ao uso do crack, mas, ao mesmo tempo, traz a questão de que ele pode, usando de sua liberdade de escolha, começar a se tratar e ter uma nova forma de viver. Ele pode desenvolver algo novo, uma nova possibilidade de viver sua vida de forma mais saudável.

Na segunda fala, podemos observar essa questão do ser-para-si, especialmente no momento em que o sujeito diz que mesmo tendo "perdido" sua família, ele, por estar vivo, pode ter a possibilidade de recuperar o convívio familiar e viver novos momentos, já que seus familiares também estão vivos.

Conforme dito anteriormente, esta perspectiva do ser-para-si ressalta as possibilidades do ser que, neste âmbito, não se encerra em si mesmo e se abre enquanto campo de conquista de sua facticidade, como pôde ser apreendido nas falas acima.

Liberdade enquanto exercício de responsabilidade

Relacionada ao ser-para-si, a liberdade aparece como possibilidade de fazer algo, assim, a liberdade está atrelada à responsabilidade, já que nós estamos condenados à liberdade e isso demanda que tenhamos responsabilidade pelos nossos atos. Estamos sempre respondendo às exigências do meio em que vivemos, por isso somos responsáveis e livres (Sartre, 2011).

A liberdade tem como princípio um projeto adiante, uma vez que o homem jamais acaba em si mesmo, mas transcende, projeta-se para além de si, pois não é algo fechado. Assim, a liberdade também não é, mas está sendo, na medida em que busca a si mesma, sem, no entanto, se encontrar completamente, pois não consegue prever o que virá (Sartre, 2011). A escolha, então, é considerada livre se for de tal maneira que poderia ser de outra forma. Sartre (2011) afirma que "ser livre não significa obter o que se quis, mas sim, determinar-se a si mesmo a querer" (p. 595). Dessa forma, a partir do momento em que o usuário conseguir entender que a sua liberdade está atrelada a sua responsabilidade, ele poderá rever aquele modo como está vivendo e isso poderá ser essencial para o seu futuro e projeto de vida. Este ponto tornará possível um cuidado maior com a sua maneira de se relacionar com a droga e isso poderá proporcionar um porvir novo, um futuro diferente.

Em pesquisa brasileira acerca da liberdade na perspectiva sartreana, Silva (1997) mostra que o pensamento de Sartre reflete o existencialismo nas múltiplas faces em que o homem vive, como política, família e educação. Nesse contexto, ela pondera que o ser humano tem a responsabilidade de escolha e essa deve ser extremamente responsável e feita com muito cuidado. Erthal (2012) retoma que o ser humano é responsável por suas escolhas. Para ela, apesar de várias influências do meio, como família, cultura e sociedade, essas mesmas influências não nos determinam de fato. Para a autora, o ser humano não está feito, mas vai sendo constituído com o passar das suas vivências; sua forma de trabalhar consistiria em proporcionar ao indivíduo capacidade de escolhas. Já Schneider (2013) afirma que a liberdade define o ser, é sua condição e, é a facticidade do homem. Porém, essa mesma liberdade é delimitada pelas contingências, que dão mais valor ainda à liberdade, pois o indivíduo escolhe dentro de determinadas condições.

Ainda sobre esta temática, Perdigão (1995) menciona que liberdade é fazer escolhas concretas, escolhas essas que têm resistências que se opõem e, por isso, dão maior valor ao conceito de liberdade, já que elas envolvem as pressões do meio. No entanto, essas pressões não são capazes de acabar com a possibilidade de resposta, já que podemos sempre responder de alguma maneira a tudo o que nos rodeia. A liberdade dá a possibilidade de realizarmos ou não um projeto, ou seja, trata-se da tentativa de buscar algo.

Santos (1964), psiquiatra que propõe uma psicanálise existencial de base sartreana, também discute o conceito de liberdade. Diferentemente de Sartre, o autor discute que não são todas as ações humanas que poderiam ser entendidas numa liberdade pura, já que existem adversidades que atrapalham nossa liberdade plena. Estes consistem em momentos cruciais em que somos chamados à liberdade; neles, não podemos deixar de decidir, sabendo que mesmo a inibição de uma ação também é uma decisão. Atrelado à liberdade nas escolhas, um projeto de vida auxilia essa tomada de decisão, que acontece, de maneira autêntica, após uma crise, em que, a partir dela, uma nova liberdade é assumida. A liberdade, então, exerce sua tendência à realização por meio de um projeto que, ao mesmo tempo, é objetivo e transcendente.

Por fim, Bornheim (1971) afirma que o homem é liberdade de si mesmo e configura-se como um para-si – que se determina a ser algo. A liberdade, ao contrário de como é pensada por Santos (1964), e da forma como é pensado por Sartre, é algo que está na origem, não se fazendo como um conjunto de motivos e adversidades, mas sim, é algo anterior a tudo isso. A liberdade se mostra como um motivo maior, recusando determinismos e condicionamentos, ela é a indeterminação absoluta.

Observa-se o quanto a liberdade, somada à responsabilidade, faz parte da vida do ser humano, já que estamos a todo o momento respondendo a situações do cotidiano. Junto com esses dois fatores, há um projeto que impulsiona o ser a querer algo, um projeto de vida maior, uma vez que buscamos a autorrealização ao atender as nossas necessidades. Esse projeto, muitas vezes, terá resistências que dificultarão a sua realização e serão estas dificuldades que farão dele algo singular. O usuário de crack, no momento em que vislumbrar um novo porvir, terá motivos de repensar aquela maneira que está vivendo e poderá fazer escolhas em que a droga não seja mais a única fonte de prazer.

Pensamos então, a importância da liberdade somada à responsabilidade e a um projeto de vida singular que, somados com o auxílio e escuta de profissionais capacitados, principalmente nos momentos de mais dificuldades e de possíveis recaídas, podem ser muito importantes para um viver diferente. Entende-se que, mesmo diante das adversidades, o ser humano exerce sua liberdade na busca de autorrealização dos seus objetivos.

Esta questão da liberdade, atrelada à responsabilidade, pode ser exemplificada através das seguintes falas dos entrevistados:

M. – "Bom, é o seguinte... eu fiquei... 11 meses e... 11 meses e 8 dias é... sem ter essa fissura mais forte, tinha assim, tinha uma vontade de usar, mas ela assim, durava alguns segundos, vamos dizer, vinha aquela vontade assim, mas eu no exercício do dia-a-dia, trabalhando, estudando, é, é, eu acabava que esquecia essa vontade, ela vinha e ia embora."

R. (...) "ontem eu usei um determinado, uma determinada quantidade e depois por saber que eu tinha que vir pra cá, que tinha responsabilidade eu não bebi nem usei, parei e tinha na minha casa um rapaz que foi, que levou pra mim a droga, levou uma garrafa de vodka e ele ficou bebendo a noite inteira e eu querendo dormir, falava pra não fazer barulho, ele é ativo-compulsivo, depois que acaba a droga ele também queima a lata e aquilo foi me incomodando, me deixando irritado e eu fui dormindo aos poucos, aos poucos, pelo motivo de eu estar aqui. Se fosse um final de semana talvez eu teria embalado totalmente ..."

Podemos observar, nestas duas falas, a relação entre a liberdade e a responsabilidade, atreladas a um projeto de vida, a algo que faz com que os sujeitos, mesmo diante da vontade de fazer o uso, escolheram não fazê-lo. No primeiro caso, podemos notar que o emprego e o estudo eram o projeto do sujeito, ou seja, mesmo vivenciando a fissura de fazer o uso da droga, esses dois projetos seus faziam com que essa vontade de usar não fosse maior que seus objetivos. Mesmo diante das adversidades, o sujeito conseguiu ficar sem fazer o uso, pois, seja por uma liberdade pura, dita por Sartre (2011), ou uma liberdade atrelada às adversidades, como afirma Santos (1964), o ser humano tende a realização de seus objetivos, entendidos aqui enquanto seus projetos de vida.

O segundo relato, em consonância com este mesmo pensamento, se refere a um projeto, em que a pessoa escolhe não fazer o uso, mesmo com a vontade de usar. Isto pode ser notado quando o sujeito da pesquisa diz que só não fez o uso da droga, por ter que comparecer ao local de tratamento, no dia seguinte, no que podemos pensar também a importância desse tratamento para ele, já que o mesmo sujeito disse que, se não tivesse o compromisso, talvez tivesse embalado no uso. Pensemos, então, nas diferentes formas de propiciar ao usuário se sentir pertencente e importante nos lugares que ele frequenta, pois isso pode ser seu projeto de vida e o início de um viver diferente.

 

Liberdade e má-fé

Além do conceito de liberdade, entender o conceito de má-fé é fundamental no que diz respeito à dependência química, pois é um assunto que interfere na forma de ser dessas pessoas, já que muitas enganam a si mesmas, fingindo ou não querendo enxergar a forma real que estão vivendo.

Sartre (2011), afirma que a má-fé é, de certa maneira, mentir pra si mesmo, escondendo a verdade, mesmo sabendo dela. Quando a pessoa age de má-fé, ela passa a ser tanto enganador, quanto enganado e, de algum modo, sabe que está agindo dessa forma. Na má-fé, a pessoa pensa que não é o que é, e isso faz com que as críticas que lhes são feitas não as atinja, ela passa a não reconhecer a verdade. Para o autor, a má-fé tem por objetivo colocar-se fora do alcance, então a pessoa foge do que não se pode fugir, ou seja, daquilo que se é. Assim, a má-fé, além de fazer com que se negue aquilo que se é, mostra-se como sendo aquilo que não é. A má-fé também sabe de sua estrutura, sabe a forma que age e por isso toma precauções para não ser descoberta.

Para Perdigão (1995), a má-fé é entendida como oposto de sinceridade, sabendo que o ser sincero é aquele que é o que realmente é, sem querer se passar por outro. Assim, a má-fé, mesmo sabendo da verdade, apresenta-se de maneira mentirosa. Ela nos permite acreditar em mentiras contadas por nós mesmos, mesmo sabendo da verdade. Bornheim (1971), diz que a má-fé transforma uma crença em saber e faz também com que a realidade humana seja aquilo que não é, ou seja, um processo de autoengano.

O uso de drogas pode influenciar muitas pessoas a mentirem para si mesmas, fazendo com que elas pensem que aquele uso não está interferindo na maneira delas viverem, que é algo passageiro e que logo as coisas voltarão a ser como eram. Mesmo sabendo disso, as pessoas que fazem uso dessa substância, usando de sua liberdade, mas agindo de má-fé, mentem para outras pessoas, principalmente as próximas, como amigos e familiares, e também, para elas mesmas. Esses usuários, muitas vezes passam por um processo de autonegação e acabam não percebendo ou não querendo perceber as mentiras contadas por eles próprios, com nos exemplos abaixo:

M. "(...) ah um só não vai dar nada não, você vai pitar um só e vai ficar... vai dar só aquela onda só e pronto, aí você para. Mas, na realidade eu sei que não vai ficar numa só, não fica..."

A. "(...) aquela coisa fica na minha cabeça, nossa meu Deus só uma, mas eu sei que não vai parar só naquela uma entendeu, é burro aquele que se ilude falando que fuma só uma, porque é mentira..." / "(...) eu tava manipulando o tratamento, eu fumava e chegava aqui e falava que tava ótima, sendo que eu não tava..."

Podemos observar, por esses dois relatos, como as pessoas, usando de sua liberdade, mas agindo de má-fé, tentam enganar outras pessoas, principalmente próximas à elas, quando, na verdade, elas estão enganando a si mesmas. No primeiro relato, o sujeito sabe que, mesmo antes da ação de usar, que terá dificuldades em parar - o uso, para ele, não vai ficar apenas em um só, e ele tem a consciência disso. No entanto, diante da fissura, a sua liberdade, atrelada à falta de um projeto, contribui para que ele use a droga de modo desmedido, pois a vontade, muitas vezes, é mais forte do que algo que o auxiliaria a exercer controle no uso.

Na segunda fala, o sujeito diz que, usando de sua liberdade, mas agindo de má-fé, manipulava o tratamento, mentia para os profissionais que estavam com ele, mas que, na verdade, a mentira era para si mesmo. Observa-se que a má-fé expõe este processo em que o usuário mente para as pessoas que estão próximas a ele e também para ele próprio, principalmente quando há a falta de um projeto que o auxilie na liberdade de escolha de um querer diferente em relação ao uso desmedido da droga.

 

O papel do Outro na liberdade

Além da má-fé, Sartre (2011) discute o conceito do Outro, que interfere na minha forma de ser, ou seja, sempre me sinto de uma maneira singular, dependendo da presença do Outro. Tenho necessidade do Outro para captar plenamente aquilo que sou, e o Outro é tanto aquele que eu vejo, quanto aquele que me vê, com diferentes experiências e pensamentos. Para Perdigão (1995), o Outro é esse que interfere na nossa forma de ser, da mesma forma que nós interferimos na maneira dele. Esse Outro tem vontades, experiências, sentimentos diferentes dos meus, além de um projeto e uma organização do mundo diferente da minha, assim, para eu saber completamente do Outro, precisaria ser sujeito da consciência dele, o que é impossível, já que a minha vivência é completamente diferente das coisas vividas por ele.

Bornheim (1971) apresenta o Outro como um mediador de mim mesmo, pois me apreendo influenciado pela forma que penso que o Outro me observa. Ele me auxilia no processo de autoconsciência, pois é pelo seu olhar que eu me faço e que se constroem as relações humanas. É pela consciência que o Outro tem que eu me torno algo, e não apenas um em-si, sendo pelo Outro que minha consciência também se faz, e a intersubjetividade ocorre. É nessa relação, em que ocorrem muitas vezes conflitos de pensamentos, de vivências singulares, que o para-si se faz. Assim, o para-si é relação com o Outro.

A presença do Outro, como foi descrito pelos usuários, entrevistados neste estudo, interfere na forma de cada um ser, e isso também é observado na dependência de drogas, pois muitas vezes, quando se tinha que ir aos locais de tratamento, eles relataram não fazer o uso. A presença de uma pessoa, muitas vezes, modifica a relação com o uso da droga, além disso, uma conversa, um trocar de ideias, um diálogo com o Outro fizeram muitos usuários repensarem a forma de uso e buscarem algum auxílio:

M. "(...) só que a partir do momento que eu parei de usar droga, eu cortei todas de uma vez só, foi tudo. Eu falei: eu não quero mais nada, cortei tudo, ai até de princípio eu não dei abstinência que até então, onde eu parei de usar droga foi um local onde que as pessoas mais usa droga que foi dentro de uma penitenciária. Que antes eu via todo mundo usando droga, eu via gente se escravizando por causa da droga, lavando até cueca de outros pra poder usar, esfregando vaso de cadeia pros outros pra poder usar a droga. E, eu vendo aquilo eu falava: nossa... nossa se eu tivesse no uso eu tava desse jeito, é, então onde eu ficava assim, me policiando através disso eu ficava vendo, nossa, se eu tivesse no uso eu tava fazendo desse jeitinho, nossa que dó desse cara, eu ficava com dó da pessoa sabe? Vendo o que a pessoa se submetia pra poder alcançar a droga, aí eu não usava a droga..."

L. "(...) mas graças a Deus me ergui, levantei, graças a Deus e ao CAPS também de eu te procurado aí e consegui..."

A."(...) e parei. E conheci uma pessoa que hoje em dia a gente tá até junto, ela faz tratamento aqui também e tá sem uso há um ano e três meses...." / "(...) a sorte é que eu to com o pessoal do apoio, que se não numa dessa eu não estaria aqui não..."

Observamos, nesses três relatos, a importância do Outro, atrelado à questão da liberdade, principalmente nos momentos em que esse Outro auxiliava de alguma forma em um cuidado maior do usuário. No primeiro relato, o sujeito traz que só de observar o sofrimento de Outros que estavam presos como ele, e que precisava se submeter a situações humilhantes para poder ter a droga foi o motivo dele, usando de sua liberdade, não querer usar. No segundo exemplo, esse Outro não era uma pessoa, mas o tratamento que lhe estava sendo oferecido, e que foi crucial para sua melhora, na perspectiva de um cuidado dirigido ao usuário.

E, por fim, o Outro, no terceiro trecho, ressalta o relacionamento entre duas pessoas, que pode ser o início de um viver diferente também. No mesmo caso, mas em outra situação, o sujeito acrescenta que o apoio de profissionais (Outro) é muito importante, já que relatou que, se não fosse esse apoio, estaria em outro lugar, muito provavelmente fazendo o uso desmedido da droga.

 

Possibilidades a partir da noção sartreana de liberdade no fenômeno da fissura

Como já foi discutido anteriormente, somos livres para responder às exigências do meio. Atrelado a essa liberdade, temos possibilidades de fazer ou não fazer algo, ou seja, há uma responsabilidade na forma de respondermos às solicitações diversas. Junto a essa responsabilidade, projetos de vida e a busca por um futuro diferente nos impulsionam a algo renovado. Nesse trabalho, que é uma parte subsequente de uma pesquisa de campo já mencionada, observamos que, quando os usuários vislumbram um novo porvir, um para-si em busca de motivações, de novas possibilidades, surge o início de uma vida diferente, com novos horizontes, mesmo diante da fissura de usar a droga. Relembrando que a droga em questão é o crack, cujos efeitos são intensos e que tem um poder de vício bastante considerável.

Assim, pelos relatos feitos, percebemos que, apesar da fissura pelo crack, muitas pessoas, usando de sua liberdade, escolhem ficar sem fazer o uso, seja por ter passado por problemas e querer um horizonte diferente, por ter ajuda de algum tipo de religião ou mesmo uma espiritualidade maior, por ter auxílio de pessoas próximas, por ter compromissos - como trabalho, estudo -, ou mesmo por ter que ir ao tratamento e ter observado pessoas sofrendo devido à vontade de usar a droga. Ou seja, várias contingências atrapalham o dependente a deixar ou diminuir o uso. Dessa forma, a pessoa poderá parar de usar ou ter uma relação não muito prejudicial com a substância, no momento em que ela tiver outras possibilidades e não ver mais a droga como única escolha de seus projetos. Santos (1964) relata que, nesse momento, a pessoa poderá iniciar uma nova etapa da vida, essa, que também poderá ser rompida a qualquer hora e, entender que isso possa acontecer, fará com que o indivíduo saiba que é passível de falha e que o processo terá que ser recomeçado, já que o mesmo não é algo decisivo, mas sim gradativo. É a partir desse instante que o sintoma perde um pouco de sua periculosidade e a relação com a droga passa a ser entendida de forma mais real.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Entender o que os dependentes químicos vivenciam no momento de fissura é algo muito complexo e, por isso, requer muita atenção e cuidado por parte das pessoas que trabalham com esta população. A fissura – muitas vezes relatada como um impeditivo de sair do vício, em que o adicto enxerga apenas na alteração da percepção da realidade, pelo uso de drogas, uma via para se livrar de sua existência, muitas vezes, sofrida - precisa ser repensada, no tocante à maneira de ser compreendida e trabalhada, pois consiste em um dos momentos mais cruciais em que o usuário vivencia sua relação com a droga.

Ressalta-se que compreender o modo como eles vivenciam a liberdade diante do uso também é fundamental, já que projetos de vida, relações familiares, de amizade, compromissos, dentre outros fatores, podem ser a válvula de escape e o início de um viver diferente, em que a droga não seja mais a única fonte de satisfação.

Entendendo mais sobre a fissura e repensando formas de se trabalhar com essa população, especialmente no momento em que há este forte impulso de usar o crack, o uso dessa substância passará a ser visto de uma maneira menos estigmatizante e, dessa forma, poderemos subsidiar intervenções e terapêuticas mais efetivas para essas pessoas – e menos desvinculadas de suas realidades.

 

Referências

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Nota sobre as autoras

Rafael Torres Azevedo. Universidade Federal do Triângulo Mineiro. E-mail: ratoaz@hotmail.com.

Thabata Castelo Branco Telles. Universidade Federal do Triângulo Mineiro. E-mail: thabata@gmail.com.

 

Recebido em: 17/12/2015
Aprovado em: 05/08/2016

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