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Revista do NUFEN

versão On-line ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.8 no.1 Belém  2016

 

Artigo

 

O processo de identificação e repetição com os modelos intrafamiliares e socioculturais e o ato criativo na perspectiva de Edith Stein

 

The process of identifying and repetition with the intrafamily and socio-cultural models and the creative act in the perspective of Edith Stein

 

El proceso de identificación y repetición con modelos intrafamiliaresy socioculturales y el acto creativo en la perspectiva de Edith Stein

 

 

Eunides Almeida; Roberta Carvalho Romagnoli

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Brasil

 

 


RESUMO

O fenômeno da identificação e da repetição da herança familiar e sociocultural, especificamente quando o que se repete descaracteriza o que é constitutivo do humano e desfavorece o encontro entre duas alteridades, tem sido alvo de grandes preocupações e gerado inúmeros estudos psicossociais, muitos deles reduzindo-o ao extrato psíquico e/ou social. Em Edith Stein é possível clarificar este fenômeno, o que permite apreender o acontecimento da repetição a partir de um ato livre e segundo as leis da motivação, colocando o processo de identificação com o outro e com o mundo como expressão da esfera ativa, numa inter-relação entre as categorias da vida humana com o espaço sociocultural. A transmissão da herança familiar é apreendida para além do plano sensível e do entorno sociocultural, possibilitando a compreensão da relação entre fenômenos psíquicos e processos culturais.

Palavras-chave: Identificação; Repetição; Criatividade; Fenomenologia; Liberdade.


ABSTRACT

The phenomenon of identification and repetition of family and socio-cultural heritage, specifically when it is repeated decharacterizes what is constitutive of human and discourages the encounter between two otherness, has been the subject of great concern and generated numerous psychosocial studies, many of them reducing it the the psychic and / or social statement. Through Edith Stein is possible clarify this phenomenon, allowing apprehend the repeat event from a free act and under the laws of motivation, making the process of identification with the other and with the world as an expression of active sphere, an interrelation between categories of human life with the socio-cultural space. The transmission of family heritage is apprehended beyond the sensible plan and the socio-cultural environment, enabling the understanding of the relationship between psychic phenomena and cultural processes.

Keywords: Identification; Repetition; Creativity; Phenomenology; Freedom.


RESUMEN

El fenómeno de la identificación y repetición de la herencia familiar y sociocultural, especialmente cuando lo que se repite quita el caracter de lo que es constitutivo del ser humano y desalienta el encuentro entre dos alteridades, ha sido objeto de gran preocupación y ha generado numerosos estudios psicosociales, muchos de ellos reduciéndolo al extrato psíquico y /o social. A través de Edith Stein es possible aclarar este fenómeno, lo que permite aprender el acontecimiento de la repetición a partir de un acto libre y bajo las leyes de la motivación, situando el proceso de la identificación con el otro y con el mundo como una expresión de la esfera activa, una interrelación entre las dos categorias de la vida humana con el espacio socio-cultural. La transmisión de la herencia de la familia es detenida más allá del plan sensible y el entorno socio cultural, lo que permite la comprensión de la relación entre los fenómenos psíquicos y procesos culturales.

Palabras-clave: Identificación; La repetición; La creatividad; La fenomenología; La libertad.


 

 

INTRODUÇÃO

Um dos grandes desafios na práxis clínica é a questão da repetição de comportamentos indesejáveis que descaracteriza o que é constitutivo do humano e desfavorece o encontro entre duas alteridades, dentro e fora da comunidade familiar. O fenômeno da repetição da herança familiar e sociocultural, notadamente quando aquilo que se repete conduz a pessoa a distanciar-se daquilo que potencialmente poderia ser, dos valores constitutivos e que dizem respeito à vida ética, desumanizando-a e diminuindo as possibilidades de tornar-se si mesma, tem sido alvo de grandes preocupações e gerado inúmeros estudos psicossociais, muitos deles reduzindo-o ao extrato psíquico e/ou social. Boa parte deles explicita este fenômeno a partir de um determinismo psíquico, ora entendido de modo absoluto e ora como não sendo absoluto e, ainda, existem aqueles que questionam qualquer forma de determinismo desta natureza.

Edith Stein (1891–1942), discípula de Edmund Husserl, oferece uma fundamentação filosófica de forma clara e sistemática para as ciências humanas sobre conceitos básicos e fundamentais. As análises steinianas trazem significativas contribuições para iluminar esta problemática, quando trata da diferenciação entre a dimensão psíquica e a consciência, a definição de pessoa, cujo centro pessoal é livre e possui nas mãos o poder de autodeterminação; o que só é possível em razão de existirem leis que regem o seu processo formativo e que se diferenciam das leis da causalidade psíquica, pois dizem respeito à esfera ativa ou espírito, esta ultima, definida como a categoria do intelecto, que recebe o mundo, e da vontade, que o configura. Além disso, clarifica a compreensão entre os fenômenos psíquicos e culturais, quando os sentidos tomados do mundo cultural, por meio da categoria espiritual, se inscrevem na realidade psíquica tonalizando-a e fazendo parte da vida interior em conectividade com o mundo exterior (Almeida, 2016). Este processo de tomar os modelos do mundo em que se vive numa perspectiva micro e macrossocial é apresentado como uma necessidade própria do humano, que precisa ser preenchido pelo entorno em que vive para ganhar vida e sentido, o que, entendemos, remete à questão da identificação, repetição e do ato de criação.

Edith Stein apresenta amplas e profundas contribuições ao descrever este processo se desenlaçando em meio às relações intersubjetivas, colocando a vida compartilhada como uma exigência da condição de tornar-se humano e si mesmo e apresentando a dupla responsabilidade entre o ambiente que forma a pessoa e a pessoa que nele se autoconfigura e configura o seu mundo. Neste sentido, é possível pensar na questão da repetição a partir da concepção do sujeito humano como sendo tripartido: o corpo próprio, a psique e o espírito, que em unidade se inter-relacionam e são regidos por um centro pessoal; permitindo a reflexão sobre o fenômeno da repetição sem reduzi-lo ao campo psíquico ou social. De maneira geral, o processo de identificação é reconhecido como sendo um dos mecanismos que explicita a repetição de modelos familiares e socioculturais (Almeida, 2016) e a partir de Edith Stein ele pode ser elevado à dimensão espiritual do ser humano, lançando luzes e novas perspectivas para a compreensão deste fenômeno.

 

DA IDENTIFICAÇÃO AO ATO CRIATIVO: ENTRE CAUSALIDADES E MOTIVAÇÕES

De acordo com Edith Stein, ao entrar no mundo o sujeito "já è" com os objetos e valores que nele circulam. Seu olhar se detém sobre as coisas que o cercam e essas ressoam de alguma maneira em sua interioridade provocando-o e exigindo-lhe uma resposta. Nesse encontro vivencia tanto as características daquilo que se coloca diante dele, como esbarra em sua própria condição tripartida e aberta à existência. Nesse sentido, é todo o seu ser em unidade que se vê impactado por aquilo que o toca, de maneira que em cada uma das categorias constitutivas de seu ser evidencia-se a peculiaridade com que toma para si os objetos que se apresentam, bem como as relações interpessoais que se processam em suas vivências. A pessoa é inserida em mundo que "[...] é um pluriforme mundo espiritual, onde há comunidades e pessoas individuais, formas sociais e obras do espírito." (Stein, 2003a, p. 593-594, tradução nossa). Nele se expressa uma vida cultural que lhe imprime marcas e que dá visibilidade ao externo e universal e ao interno e pessoal, significando que o individual tem sua sede no social. De fato, o homem se configura como um ser cujo modo é próprio e individual, todavia compartilhando de um modo de vida em comunidade. Existem diferentes espaços intersubjetivos nos quais se desenlaça o processo formativo e ao ser lançado no mundo o sujeito precisa lidar com os modelos que o cercam numa perspectiva micro e macrossocial, respondendo de maneira pessoal às suas provocações.

O processo de formação da pessoa se inicia em uma comunidade familiar que, a princípio, precisa responder às suas necessidades físicas, psíquicas e espirituais – criando condições para o seu desenvolvimento – e segue simultaneamente e gradativamente em outros espaços comunitários, que poderão ou não despertar outras potencialidades, aperfeiçoar aquelas que já se encontram desabrochadas e, ainda, provocar novas tomadas de posição que culminem em atos criativos (Stein, 2005b, 2007c; Ales Bello, 2007; Almeida, 2016; Coelho Júnior & Mahfoud, 2006). A vida em comunidade é uma vida em comum notadamente marcada por atos sociais, é um convite para viver uns com os outros e realizar atos propriamente humanos; e estar e viver junto ao(s) outro(s) significa vê-lo(s) agir e ao mesmo tempo agir com ele(s), ajudar a formar e ser formado por ele(s), portanto, é possível afirmar que a vida humana é uma vida cultural (Stein, 2003a).

As diversas comunidades humanas se fundamentam numa comunidade universal que engloba a todas: a humanidade. Cada comunidade possui uma história que se escreve desde o passado à atualidade e que é densamente marcada por valores estéticos, éticos, religiosos e pessoais, expressando tanto uma dimensão de prescrição de comportamentos para seus membros quanto aspectos que vivificam e fortalecem a vida em comum (Stein, 2005b; Coelho Júnior & Mahfoud, 2006; Ales Bello, 1998, 2000, 2015). As comunidades particulares se fundam pela associação, objetivando atos produtivos, com base em modos de pensar que aproximam os indivíduos, em condições e modos de vida comuns ou em uma origem em comum, como é o caso do povo e da família (Stein, 2003a). A vida espiritual da comunidade revela uma abertura para o mundo objetivo e, ao mesmo tempo, a existência de um fluxo de vivências comunitárias contemporâneas aos seus membros, as quais se somam àquelas que se transmitem de geração em geração, compondo uma história repleta de sentidos, que garante a sua continuidade.

Para Stein (2007) as comunidades têm responsabilidade na formação do indivíduo e, de forma especial, aqueles que assumem o papel de "guias", como no caso dos pais que orientam os seus filhos no processo educativo e formativo. Nesse sentido, a comunidade familiar é o primeiro espaço de formação da pessoa humana, nela os valores dos pais são disponibilizados e cada filho em particular é reconhecido como pessoa independente e pode posicionar-se livremente, no sentido de poder tomá-los e assumi-los ou não como seus.

Como realça Stein (2003a), a própria existência do homem em seus elementos constitutivos exige o processo de fazer de si mesmo algo concreto. Essa exigência exibe duas características constitucionais; o dever formar-se a si mesmo e o poder de autoformação. Processo que se desenlaça a partir de sua realidade constitutiva em meio às relações interpessoais que, por sua vez, são contornadas pelo mundo sociocultural, que disponibiliza vários modelos com os quais o sujeito poderá identificar-se. Para Stein (2005a, 2005b) o eu livre tem em suas mãos o poder de decisão do ato a ser realizado, uma vez que é possuidor de uma consciência sobre as possibilidades e as exigências diante das quais realizará suas escolhas no processo de autoconfiguração.

É por meio da vivência da consciência que o sujeito percebe e conhece a si mesmo (realidade interna) e a realidade externa. Deste modo, a consciência é o que possibilita ao sujeito estar cônscio daquilo que está vivenciando e simultaneamente registrar os atos que se efetivam em seu vivenciar. Ela se encontra na origem de todas as vivências do sujeito, sendo ela mesma vivenciada. Isso quer dizer que, entre outras implicações, o sujeito possui até mesmo a consciência de estar consciente e de conter uma consciência. Por essa razão, a consciência é o que torna possível tanto a manifestação de qualquer realidade ao sujeito, como o ato de conhecê-la. É ela, por conseguinte, a condição para que o indivíduo conheça a sua interioridade e a exterioridade. Portanto, a própria psique só pode ser conhecida porque seus estados se revelam à consciência. Sem a consciência para apreender os atos psíquicos, seria impossível falar de psique e, além disso, essa instância jamais poderia ser qualificada como consequência de tais atos (Cury & Mahfoud, 2013). Existem níveis diferentes de consciência: no primeiro se manifestam os atos perceptivos relativos ao "darse conta de"e no segundo a atividade específica da reflexão, sendo que por meio desta pode o indivíduo tanto realizar uma autoanálise, exprimindo juízos sobre si e tomando consciência das próprias ações, quanto refletir sobre o outro e sobre o mundo dos valores (Stein, 2005; Ales Bello, 2006, 2015; Sberga, 2014). Além desses níveis distinguimos outra característica que parece se expressar em um nível ainda superior ao que mencionamos e que se mostra fundamental quando o que entra em jogo é uma decisão, que por sua vez envolve o campo ético e o próprio processo de autoformação: a consciência se revela como uma luz que clareia a direção do que se coloca em questão na vida de uma pessoa (Stein, 2003a, 2005b).

De acordo com Ales Bello (2006),1 a consciência não possui um caráter apenas espiritual ou apenas psíquico, nem pode ser localizada no sentido físico, e por isso pode ser traduzida como um ponto de convergência das operações que ocorrem nas três dimensões da vida humana. Sendo assim, faz-se necessário pontuar que existe uma vida da consciência enquanto acontece o registro, em níveis distintos, daquilo que ela vivencia. Portanto, ela se apresenta como um fluxo dinâmico e contínuo, um puro fazer-se formado de vivências puras que compõem uma única corrente "por ser derivada de um único eu" (Stein, 2005b, p. 228, tradução nossa).2

Entretanto, essa consciência não alcança uma imagem geral daquilo que o sujeito deve ser e por isso busca um modelo para um modo de ação, estabelecendo critérios que orientem a vontade e a liberdade no processo de autoformação. A consciência reflete sobre e julga os modelos que encontra no mundo circundante, classificando-os valorativamente como bons ou maus e sendo livre para acolhê-los ou rejeitá-los, na medida de seu juízo sobre o impacto de suas próprias ações. Tomar como modelo significa conhecer uma pessoa e receber da mesma a impressão de que se poderia ser da mesma forma. Quando isso ocorre, surge a decisão de tomá-la como modelo e dar a si mesmo uma forma semelhante, visto que só se decide por algo a partir do momento em que se revela e se torna conhecido. Com efeito, tomar como modelo ou não é uma questão de decisão, portanto, trata-se de um ato livre. Diz-nos a filósofa que esta decisão resulta de uma atividade avaliativa e de um ato da vontade que são despertados em um contexto motivacional. Ora, este contexto motivacional está intimamente ligado ao mundo no qual se vive e aos acontecimentos que envolvem as pessoas que nele habitam, com as quais a pessoa entra em contato. Todavia, para que esta se veja motivada em uma direção e não em outra, ela precisa ativar o seu centro pessoal, julgar e posicionar-se de acordo com esse ajuizamento. A partir de Edith Stein, percebemos, por conseguinte, que esse processo não envolve simplesmente uma identificação passiva, uma vez que opera nessa dinâmica a maneira própria como o sujeito tomará para si o mundo que encontra.

A questão da busca de modelos remete às vivências primevas e à força dos primeiros modelos de identificação no processo de subjetivação: as figuras parentais e a rede familiar num horizonte sociocultural. O ambiente familiar faz fronteira com o social e ocupa um lugar privilegiado na transmissão aos filhos dos bens que circulam nesse espaço. Segundo Stein (2003a), a criança não surge com as características típicas de um grupo, mas as desenvolve na medida em que se deixa impactar por sua realidade. A pessoa é impactada pelo universo social e cultural no qual se desenvolve e, portanto, é em certa medida determinada pelos mais diversos conteúdos nele configurados. Determinada, porque seu ser é preenchido pelo contexto desta realidade, e em certa medida, porque sua maneira de responder aos mesmos, no sentido de significá-los, é pessoal e, portanto, esbarramos nas mais diferentes respostas possíveis de um sujeito para outro. Por conseguinte, em seu processo formativo, a pessoa não se reduz à esfera passiva no sentido de receber em si o mundo no qual sua existência é lançada. Isso significa que não se trata de concebê-la apenas no que diz respeito à sua reatividade primeira no encontro com a exterioridade, dado que de seu centro pessoal emana uma resposta e responder, nestes termos, é mais que reação puramente instintiva, porque há uma consciência sobre o que se vive e uma reflexão que implica em juízo e discernimento, ou seja, a pessoa elabora o material cultural que lhe é oferecido.

O eu pessoal ou núcleo pessoal se exprime como o centro da estrutura da pessoa. É ele quem articula e confere uma tonalidade pessoal tanto ao dinamismo do corpo, psique e espírito quanto ao fluxo das vivências que alcançam essas esferas, o que significa imprimir em cada uma dessas realidades o seu selo individual. É por meio do eu pessoal que se processa a singularidade de cada pessoa e que se mantém a unidade interna de seu caráter. O eu pessoal, por conseguinte, se exprime como o princípio formador que prescreve um modo singular ao desenvolvimento das instâncias constitutivas do humano e que, ao mesmo tempo, imprime sua nota individual a cada encontro entre o ser do homem e o mundo dos valores. Assim sendo, é por meio do eu pessoal que o todo da pessoa é plasmado e que se mantém a unidade psicofísica, o que evidencia, por sua vez, a existência de uma lei de conexão entre todas as esferas constitutivas do acontecer humano.

Ao alocar em si, à sua maneira, o material espiritual ou cultural com o qual se nutre, pode a pessoa agir sobre o seu mundo configurando-o, e este toque revela algo de espontâneo e criativo; pois toda ação que brota da vontade e das profundezas do eu leva o seu selo particular e assina toda obra que resulta como ato criativo (Stein, 2003a, 2005a, 2005b). O vivido na família de origem parece ocupar um lugar privilegiado no processo de autoconfiguração e como esta não se faz sem o enriquecimento de si mesmo com as experiências alheias, calculamos que o fenômeno da identificação ou não com o material espiritual que circula ou a transformação do mesmo, ou ainda, a criação ou não de algo novo, fazem parte desta experiência.

Conforme explicita Stein (2005b), existe um conteúdo da vivência comunitária que se traduz como um núcleo de sentido comum e que servirá de referência para os seus membros. Esse núcleo de sentido, no caso da comunidade familiar, diz respeito à sua história, contemporânea e ancestral, contornada pelo entorno sociocultural. Portanto, ele é uma fonte inesgotável de sentido que entrelaça o cultural de um mundo compartilhado e o individual que é colocado de maneira pessoal por cada um que participa de sua constituição, de modo que o passado e o presente se misturam no fluxo das vivências de maneira inseparável e imprevisível, dadas as leis da motivação. Diante disso, ao inserir-se na vida comunitária, a criança se posiciona, emite juízos pessoais e os registra em si mesma, de modo que os sentidos atribuídos ao vivido em torno daquilo com o qual o seu olhar se depara, pode tanto iluminar sua vida, quando essas vivências se efetivam em meio a um ambiente favorável, quanto obscurecê-la, quando é marcada pelos mais diferentes conflitos intrafamiliares. Esse vivido, contudo, depende principalmente de como cada um se posicionou diante dos acontecimentos que o impactou, o que tira o sujeito de um lugar de vítima de sua herança familiar e o coloca como coautor em seu processo formativo, destacando, de modo especial, o que é possível fazer com aquilo que lhe é dado.

Explicita-nos Stein (2005b) que as vivências originárias se referem ao primeiro olhar do sujeito para aquilo que se apresenta ante ele e que, tomado de modo pessoal, passa a existir em sua interioridade. Entre essas vivências se localizam aquelas que se referem ao primeiro começo e aquelas que emergem motivadas por vivências anteriores. Segundo a filósofa, é necessário ocorrer uma convicção em relação àquilo que se apresenta a uma pessoa, a fim de que este algo seja absorvido e passe a fazer parte de sua vida interior, porque apenas quando se está convicto de alguma coisa é que ela mesma passa a ser afirmada. Desse modo, pode o sujeito fazer uma leitura sobre o que vivencia em família e esta, por sua vez, pode se transformar em um primeiro começo para um modo de pensar, e que, uma vez admitida e afirmada em sua interioridade e transformada em hábito, tornar-seá tão sólida que posteriormente será complexo ceder a uma nova percepção e um novo sentido. A partir disso, consideramos que as primeiras vivências do indivíduo em relação à família de origem se inscrevem em sua interioridade conforme o seu posicionamento pessoal. O sentido atribuído penetra pela esfera psíquica que se encontra aberta para dentro e para fora e lá se aloja (Stein, 2003), recebendo do sujeito uma crença que vale como sinônimo de verdade. Com efeito, esclarece-se como os sentidos atribuídos ao vivido nessa etapa da vida se registram na esfera psíquica e agem sobre a mesma e, portanto, posteriormente, na existência do próprio sujeito que os emitiu, motivando as suas ações. Stein (2005b) afirma que na esfera psíquica habita um conteúdo de sentido que resulta do encontro da interioridade com a exterioridade, de forma que se percebem aqui duas questões fundamentais. Uma faz referência à vida da cultura, que caracteriza o mundo espiritual e que participa diretamente da vida da psique. Outro ponto é que o sentido emitido de forma pessoal - considerando aqui que pode existir algum material ou modelo com o qual o sujeito se identificou - se registra na interioridade do sujeito, passando a agir sobre ele mesmo na forma de enxergar a si e aos outros. De tal modo, o estado psíquico possui um conteúdo de sentido que se instaura no encontro entre o sujeito transcendental e o mundo. Para conhecê-lo torna-se necessário um olhar que se debruce sobre as motivações encerradas no curso das vivências; o que significa considerar, no instante correspondente, tudo aquilo o qual permanece vivo e brota de motivações anteriores. Enfatiza a filósofa que o estado psíquico de uma pessoa está intimamente relacionado com a história de sua vida e a atualidade. Isto permite considerar que a atualidade se entrelaça ao vivido, desde as vivências primevas, numa espécie de intercomunicação que se traduz como conexões de sentido e estas, por sua vez, podem se expressar em estados psíquicos, ou mais especificamente, podem alterá-los.

Assim sendo, cada ato do sujeito se fundamenta em suas vivências pessoais e comunitárias, passadas e atuais, e alguns deles se assentam e se sustentam naquilo que permanece vivo das vivências primeiras, de modo que algumas repetições que se apresentam na atualidade não podem ser reduzidas ao campo psíquico, pois nelas também coabitam as leis da motivação (Stein, 2005b). Presumimos que o fato de uma criança ter diante de si vários modelos e, além disso, de que um único modelo possa ter em si vários traços expõe que o ato de se identificar com um e não com o outro, de uma maneira e não de outra, exibe algum juízo sobre aquilo que se apresenta a ela e, por conseguinte, se trata de uma atividade estritamente espiritual, ainda que em unidade com as condições encerradas na esfera passiva. Isso tudo, em nossa concepção, coloca a questão da identificação na mesma categoria na qual a liberdade e a vontade são qualidades constitucionais, o que nos leva a conjecturar que essa atividade não é senão um posicionarse de modo particular. Como não existe posicionamento sem liberdade, o modo de se identificar corresponde a um ato espiritual pelo fato de resultar de uma ação livre, de maneira que a identificação não pode ser reduzida e explicitada apenas como um mecanismo puramente psíquico. É bem verdade que existe o contágio psíquico, como descreve Stein (2005b) sobre a composição da "associação da massa". Nestas situações, a figura dos guias pode ser tão impositiva que termina por enfraquecer os outros ao ponto de suas atividades espirituais ficarem arrefecidas, pelo menos temporariamente. Contudo, ainda que na situação do contágio, estaria a liberdade extinguida?

Em nossa concepção, apenas por meio das motivações que surgem em cada vivência podemos compreender a flexibilidade que se evidencia muitas vezes no ato de identificar-se com os modelos disponíveis no mundo. Se isso se confirma, então talvez seja possível concluir que, quando o sujeito repete um ato pelo fato de ter se identificado a alguém, esse fenômeno não pode ser entendido em absoluto como resultado de um determinismo, porque não pode ser explicitado unicamente pelas leis da causalidade psíquica, uma vez que a esfera ativa atua nesse processo. Com efeito, ao olhar para esse fenômeno a partir da esfera ativa e, portanto, tomá-lo como atividade espiritual, deveremos considerar que a repetição envolve o ato de julgar aquilo que se toma como modelo, o que, por sua vez, diz respeito a um ato de posicionar-se, cuja particularidade faz referência ao eu pessoal e às motivações que o levam numa direção específica. Seguindo essa reflexão, não seria a repetição, em alguma medida, o efeito de um ato de liberdade?

Cogitamos que a repetição, ou parte dela, não se furta de ser um ato espiritual. Isso significa que talvez ela possa ser situada como o efeito de um querer e de uma margem de liberdade, porquanto o ser humano exprime em sua constituição as leis da motivação, revelando que sua dimensão espiritual, mais precisamente o eu pessoal, pode elevar-se acima das outras realidades internas e externas, expressando uma capacidade inerente de autoconfiguração. Nessa direção, teríamos que refletir sobre como se pode querer repetir, por exemplo, algo que ao mesmo tempo se condena, como no caso de modelos intrafamiliares e sociais que são violentos e antiéticos. Calculamos que talvez se possa explicar esse fenômeno, ou pelo menos parte dele, pelas motivações pessoais que conduzem uma pessoa a tal ato. Toda formação implica também em autoformação. Ao mesmo tempo em que o indivíduo é formado pelo espaço em que vive, ele age cooperativamente na formação deste espaço e em sua autoformação. Isso quer dizer que a repetição precisa ser pensada como um fenômeno que se dá em meio a essa realidade de formação/autoformação e que não pode ser vista de modo separado da esfera ativa ou espiritual, ou seja, reduzida ao campo psíquico. Seguindo este raciocínio, percebe-se que a liberdade desempenha um papel importante na questão da herança familiar, demonstrando que o sujeito se posiciona livremente perante sua história e atua em seu processo de autoformação.

A questão das conexões de sentido (Stein, 2005b) lança possibilidades para a compreensão das repetições de conteúdos de vivências originárias em família de origem; uma vez que o enfoque não recai sobre o acontecimento em si, mas sobre a maneira pessoal com a qual o sujeito elabora aquilo com que seu olhar se depara. De tal maneira, cogitamos que aquilo que se repete da herança familiar é o que é captado de maneira pessoal, segundo as motivações pessoais despertadas em acontecimentos específicos, as quais, portanto, exprimem um sentido particular para o ato que posteriormente será efetivado. Ante todas essas reflexões, percebe-se a necessidade de lançarmos luzes sobre o campo das motivações pessoais na autoformação, tanto para que se efetivem as repetições quanto para os atos criativos. Percebemos que as motivações surgem do contexto motivacional no qual a pessoa vivencia um determinado acontecimento, e este último, por sua vez, abarca os conteúdos pessoais de cada ator que o compõe, bem como, num âmbito maior, os aspectos culturais que os envolvem. É por meio das motivações pessoais que pensamos ser possível apreender o sentido que determinadas ações possuem para os sujeitos que as concretizam e, com isso, buscar uma compreensão para suas identificações que se fazem de forma única e imprevisível.

Uma vez que é inegável a força que as figuras intrafamiliares exercem na vida dos sujeitos, consideramos fundamental refletir sobre o ato de posicionar-se e a permanência de conteúdos de sentido que emergem nas vivências originárias e que teimam - aqui nos referimos principalmente às situações de sofrimento para os sujeitos – por fixar-se na dimensão afetiva, transformando-se em esquemas que, embora não determinem uma pessoa de forma absoluta, limitam a percepção das próprias possibilidades em desmantelálos e efetivar novas formas de ser.

Existem limites para a criação no que diz respeito à autoformação e, do mesmo modo, existem inúmeras possibilidades traçadas pela esfera espiritual que opera nessa construção. Partindo da afirmação antropológico-filosófica steiniana podemos pensar que a herança familiar não se impõe aos sujeitos no sentido de forçá-los a agir do mesmo modo, como se não houvesse outra saída, mas se apresenta como uma provocação, como um convite para a configuração de um modo de ser e de se relacionar com o outro, o qual não pode ser tomado, de forma alguma, como desconectado do contexto sociocultural que abraça o homem. A grande questão é que nem sempre as relações intrafamiliares se mostram como um espaço que permite aos filhos ativar todas as potencialidades da esfera ativa para posicionarem-se de forma mais adequada. Conjecturamos que, em situações de intensos sofrimentos, as defesas dos filhos e suas capacidades pessoais, podem encontrarse diminuídas em razão do alto teor emocional envolvido nessas situações, de modo que possam se deixar arrastar, como no contágio psíquico, ao ponto de seus juízos não terem a clareza necessária para uma elaboração mais favorável para suas vidas. Se alguns sentidos que os indivíduos emitem desde a mais tenra idade se efetivam em meio às circunstâncias de violência física ou psicológica na rede familiar, como desconsiderar que as situações de desamor, desrespeito, não reconhecimento, agressividade, ofensas, desautorização, egocentrismo, frieza, indiferença, possessividade, aprisionamento, entre outras, ainda que não determinem o modo de agir e ser dos filhos, dada a liberdade de posicionar-se, irão impactar em algum grau os filhos? Como afirma Stein (2005b), todas as atitudes nas relações intersubjetivas dentro de uma comunidade afetam os seus membros, sejam elas positivas ou negativas.

O conceito de acontecimento na perspectiva fenomenológica permite compreender que as experiências vividas em certos acontecimentos alteram radicalmente a vida de uma pessoa e a percepção que ela possui sobre si mesma e sobre o mundo no qual ela vive (Romano, 1999). Ao se implicar em determinados eventos surge uma resposta pessoal que resulta em autoconfiguração e esta, por sua vez, pode conduzir uma pessoa a descobrir-se naquilo que ela é. Contudo, a autoconfiguração nem sempre é sinônimo de autenticidade, ainda que envolva em algum grau a liberdade e a criatividade. Isso nos leva a considerar que pode alguém perder-se de si mesmo, em alguma medida, levando uma existência mais distante daquilo que poderia ser. Somando essas reflexões ao fato de que nem tudo o que há no mundo orienta e ajuda uma pessoa a descobrir-se e tornar-se si mesma (Stein, 2007), a herança familiar pode se tornar um espaço para a autoconfiguração nos dois sentidos aqui expostos.

Conforme o pensamento steiniano, embora as vivências e seus conteúdos não permaneçam imutáveis ao longo da existência, o sujeito não segue continuamente em frente com um vivenciar sempre novo e sem olhar para trás, de modo que aquilo com o qual se deparou um dia e que por ele foi apropriado volta a surgir e se soma ao que já se encontrava alojado em sua interioridade. Os enlaçamentos de sentido permitem captar certas conexões entre as vivências. Assim, as motivações que se despertam nas vivências originárias e naquelas vivências que seguem motivadas pelas primeiras demonstram que as conexões de sentido são suficientes para desencadear de uma vivência atual um transcurso associativo (Stein, 2005b). Deste modo, aquilo que se apresenta do vivido na atualidade não pode ser tomado como uma determinação de um modelo que se impõe à vontade e do qual não se pode escapar, mas como um convite contínuo e sempre novamente motivado. Isso significa que, mesmo quando se percebe na atualidade, no encontro entre duas alteridades, uma conexão de sentido com a maneira como o sujeito tomou para si esquemas de modelos intrafamiliares, podemos compreender esse fenômeno – que a princípio pode suscitar a ideia de uma repetição da qual não se pode escapar – a partir das motivações que o levaram a identificar-se. Sendo assim, é inegável que nesse processo nos deparamos com uma margem de liberdade que permite um posicionar-se e cujo desfecho pode ser uma identificação.

Se, como afirma Stein (2005b), a criança busca modelos com os quais possa se identificar, concluímos que, a princípio, a identificação e até a repetição não devem ser compreendidas como um fenômeno desfavorável e destrutivo para as identidades dos sujeitos. Isso se justifica pelo fato de que tanto a esfera psíquica quanto a espiritual necessitam ser preenchidas pelo material que o mundo disponibiliza, mundo que abrange tanto a família como a sociedade num sentido mais amplo. A identificação, em nossa compreensão, expõe duas questões importantes: quanto à qualidade daquilo que está disponibilizado no espaço no qual o sujeito se forma e quanto ao fato de minar a sua singularidade. Assim sendo, identificar-se aos modelos intrafamiliares e socioculturais em alguns aspectos pode ser algo positivo e valioso para a criança. Para nós a grande questão parece ser quando aquilo que tomamos das relações intersubjetivas se soma ao que somos sem retirar de nós a nossa singularidade ou se, contrariamente, o que elegemos na identificação se sobrepõe à nossa individualidade, ou seja, nos leva para longe do que significaria ser si mesmo, distanciando-nos daquilo que deveríamos ser para assumir algo, muitas vezes, inversamente ao que se é. Isso significa que nas relações intersubjetivas podemos despertar aquilo que somos de fato somando-o com o tesouro das experiências alheias e, nesse caso, a identificação seria um enriquecimento, um ato livre de querer tornar-se, segundo Stein (200b), como aquele modelo que ajuizamos desejável, mas sem que isso roube de nós a nossa singularidade no sentido de autenticidade. Se os modelos intrafamiliares, por exemplo, alcançam atitudes éticas, podem ser eles uma referência de um bem com o qual os filhos queiram e devam se identificar. Após todas essas discussões podemos questionar: o que se transmite? Para nós, o que se transmite na herança familiar e que serve de referência para a identificação são os sentidos emitidos pela atividade espiritual e alocados na esfera psíquica, tanto entre as pessoas quanto entre as gerações. E estes, por sua vez, estão sujeitos às mudanças pelos diversos acontecimentos que sucedem na existência de uma pessoa.

Em Edith Stein percebemos que a identificação é uma das possibilidades no processo de autoconfiguração, uma vez que o ser humano possui uma dimensão criativa que emana do eu pessoal. O ato criativo se efetiva por meio de uma abertura para dentro e para fora e se mostra como expressão da singularidade que parte do eu pessoal. Na ação do eu pessoal se exprime a vontade e a criatividade, uma vez que tudo aquilo que a vida pessoal expressa, cria e configura, corresponde ao exercício das capacidades correspondentes à pessoalidade (Stein, 2003b, 2005a). O ato criativo resulta da ação da vontade e esta, por sua vez, encontra-se orientada por e para a nota individual que somente o eu pessoal é capaz de conferir. Entendemos que o ato criativo só pode ser alcançado em meio ao processo de autoformação e este, por sua vez, só pode ser apreendido em sua totalidade na medida em que é avaliado na unidade e interatividade da condição tripartida em intercomunicação com o espaço formativo, ou seja, a comunidade humana. Deste modo, a autoconfiguração faz correspondência à esfera ativa ou vida espiritual e calculamos que a identificação e a repetição não podem ser pensadas como "separadas" deste processo e, consequentemente, desta categoria, uma vez que estas se evidenciam justamente nas bases e em meio à formação do indivíduo.

Graças a sua origem anímica, toda a ação da vontade – e igualmente toda a ação impulsiva que proceda das profundidades do "eu" – leva o selo da peculiaridade pessoal e o imprime também na obra criada por ela. A vida pessoal que se expressa por um movimento da mão, se manifesta em tudo o que a mão produz: nos traços da escritura, nos sinais que deixam o pincel ou o martelo (de maneira análoga, os produtos do pensamento, além de seu conteúdo objetivo, contêm vestígios da espontaneidade interior a quem devem a sua existência). O mundo inteiro em que um indivíduo atua leva o selo de sua personalidade: de seus traços típicos e de sua peculiaridade pessoal. (Stein, 2005a, p. 818, tradução nossa)3

A criatividade nasce, portanto, da unidade entre corpo, psique e espírito em intercomunicação com o meio cultural, mas é por meio da esfera ativa que ela revela os vestígios da espontaneidade nos movimentos da mão que é orquestrada pelo eu pessoal; aqui ela ganha luz, forma e expressividade que são únicas. O ato criativo não diz respeito apenas às obras materiais que carregam a peculiaridade de uma pessoa, mas também às maneiras de pensar sobre o mundo, o que resulta em um modo de ser assim e não de outra maneira. Isso é autocriação. A espontaneidade, em nosso entender, é a essência mais alta que expressa um ato criativo, pois exprime que existe algo que o sujeito coloca de si mesmo e que escapa ao universo de sua socialização. A capacidade de criar e configurar faz parte do processo formativo e, para que não haja adestramento ou deformação da pessoa, "a formação desde fora tem que contar com a formação desde dentro." (Stein, 2003b, p. 178, tradução nossa).4 A formação se distingue do adestramento por uma participação viva e intensa da esfera ativa no contato com a exterioridade, em que, por meio da liberdade e da vontade, nota-se quais valores são assumidos pela pessoa como próprios. Estes serão trabalhados e desenvolvidos por ela, considerando-se sempre que este processo se desenlaça em meio aos limites naturais de cada ser humano (Stein, 2003b).

Assim, o ato criativo que diz respeito à autoformação se apresenta desde muito cedo, quando a criança toma para si o mundo de forma singular e imprevisível, quando reconfigura o vivido a partir de um olhar diferente de outrora, quando suas respostas são surpreendentes e diferentes do esperado e o seu modo de ser ultrapassa os modelos disponíveis no mundo que habita. Tudo isso revelar que, mesmo diante dos limites impostos pela condição natural e pela sociedade na qual ela nasce, a imprevisibilidade se encontra ali, dizendo que o sujeito humano não é determinado de modo absoluto e não se reduz à vida da psique.

Diante de todas as reflexões expostas podemos concluir que, como Stein (2005b) justifica, apesar de existirem limites à ação da liberdade que são impostos pelo corpo e pela psique, estes não impedem a autoconfiguração e, portanto, a autocriação. Essas duas dimensões são consideradas territórios que delimitam as possibilidades em torno das potencialidades e as possíveis direções pelas quais o espírito pode e deve livremente dar curso ao seu desabrochar. Vale ainda ressaltar que para Stein (2003a)5 – no que se refere à formação social de tipos:

[...] aquilo no que a pessoa se converte quando toma a configuração de um tipo novo não se soma sem mais ao que ela era antes, e tampouco desaparece por completo isso que a pessoa já era. O que era, resulta formado de novo pelo que a pessoa recebe agora em si e pela atitude que toma ante esses elementos novos. (p. 722, tradução nossa).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante das análises steinianas, concluímos que a vida interior de uma pessoa não se reduz à vida da psique e não se resume às leis de causalidade do tipo qualitativo, pois abriga os conteúdos de sentido que se inscrevem no encontro entre o sujeito tripartido e o mundo – considerando que a alma, em sua dupla abertura para dentro e para fora, leva o que lhe é próprio e ao mesmo tempo é transpassada e nutrida pela exterioridade, mas isso não é tudo. É necessário avaliar que, no instante correspondente a uma vivência, o que entra em jogo não é apenas o momento presente somado a tudo aquilo que permanece vivo e que através das conexões de sentido brota das motivações das vivências anteriores, pois existe outro fator que é fundamental: toda a vida de uma pessoa está marcada pelo seu núcleo pessoal – aquela consistência imutável de seu ser – que não é determinado causalmente e que prescreve o curso de seu desenvolvimento imprimindo-lhe um selo que é pessoal, pois ele não é o resultado das elaborações efetivadas ao longo da existência, e sim o agente que as organiza a partir das possibilidades e limites reais inseridos na condição humana e no mundo em que ela acontece. O núcleo da personalidade não é resultado da evolução, mas aquele que, ao contrário, prescreve o curso da evolução, tornando-se, portanto, fonte de determinação, revelando, por sua vez, que a liberdade que se desponta na estrutura das vivências e que é comum a todos os indivíduos, se exprime de modo singular nos atos de uma pessoa (Santos, 2011; Stein, 2003a, 2005b).

A motivação, como um emaranhado de sentido, implica que diversas ações podem ser efetivadas ou não em razão dela. Há de se considerar, portanto, que existem características essenciais da esfera espiritual que configuram os atos livres, de modo que as leis da motivação também exprimem a exigência da liberdade. A liberdade se revela como condição inseparável que permite ser pessoa em termos universais e ser si mesmo no sentido de sua singularidade, pois como esclarece a filósofa, o indivíduo se forma como pessoa também porque há a possibilidade real de poder atuar como senhor de suas vivências. Qualidades como liberdade, vontade, querer, decisão e propósito vão enunciando a pluralidade de propriedades constitutivas da esfera ativa que se exprimem nas vivências intencionais, nos atos e gestos de tecer-se a si mesmo no mundo, bem como a complexidade do sujeito humano que acontece em meio às leis da causalidade e da motivação, expondo que; apesar de ser possível alguma previsibilidade em termos qualitativos e de possibilidades essenciais respectivamente, a imprevisibilidade se mostra ainda de forma mais viva e acentuada quando entram em cena os atos livres. Santos (2011), de forma esclarecedora, acentua que a investigação steiniana dá um salto ao descrever como as leis espirituais atuam na vida cotidiana, permitindo alcançar que apenas por meio das motivações é possível pensar em um tipo de causalidade por liberdade, que, portanto, se distingue da causalidade psíquica, pois se trata de um efeito do querer (da vontade). Suas investigações oferecem respostas importantes ao problema da liberdade e um horizonte a partir do qual se pode buscar uma superação do determinismo psicofísico.

A análise sobre as vivências intencionais mostra que, em meio às leis da motivação, a relação entre gerador e gerado não corresponde a uma lógica causal dos dados sensíveis, mas à conexão das leis de sentido em meio às quais se manifesta um eu que também gera um determinado efeito por meio de um ato voluntário que se traduz como querer. Enquanto na causalidade existe um efeito que corresponde a uma relação de necessidade, na motivação o gerado possui outra lógica, pois um ato motivado é fundamentado em meio às inúmeras motivações que ocorrem ao mesmo tempo em uma vivência – excepcionalmente quando o que entra em jogo são as relações interpessoais que, por sua vez, são circundadas pelo horizonte de sentido de um mundo cultural – e que podem sempre sofrer alterações mediante novas motivações.

Se considerarmos que, como explicita Stein (2003a, 2005a, 2005b), existe um eu que é real e que faz referência à vida sensível da psique e igualmente um eu que é real e que diz respeito às qualidades propriamente espirituais, os horizontes para refletir sobre a identificação se ampliam. Muitas tentativas de sair de um raciocínio ancorado em um determinismo psíquico, seja ele absoluto ou não, terminam por pisar no mesmo terreno do extrato sensível da vida psíquica, o que, em nosso entender, significa tentar explicitar as qualidades que são próprias da vida espiritual a partir do mesmo, como algo deduzido e encerrado nessa esfera. Ou são ignoradas inúmeras propriedades que pertencem à esfera espiritual, ou aquelas que são captadas, como no caso da liberdade, tendem a ser reduzidas ao plano sensível. Notamos a possibilidade de uma causalidade como o efeito da forma pessoal como os sentidos são tomados pela esfera ativa e inscritos na vida psíquica. Se for assim, a questão não seria afirmar que no ser humano não existe causalidade a fim de dar provas de sua liberdade e de um não determinismo, mas considerar que existem causalidades distintas, sendo uma delas determinada pelo querer e pela liberdade regidos pelas leis motivacionais, e é justamente também por essa razão que não se trata de um determinismo absoluto. Diante do exposto, a identificação e a repetição como atividades espirituais estariam classificadas, em alguma medida, como atos livres e isso significaria, que se apoiam nas leis que regem a vida espiritual, de forma que uma e outra se explicitariam a partir das motivações despertadas nos inúmeros encontros intersubjetivos da rede intra e extra familiar.

 

Referências

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Nota sobre as autoras

Eunides Almeida (PUC-MG): Doutora em psicologia Clínica pela PUC Minas. Mestre em psicologia social pela PUC Minas. Especializada em clinica fenomenológico existencial pela FEAD e professora de especialização Lato Sensu pela Faculdade Ciências Médica.

Roberta Carvalho Romagnoli (PUC-MG): Docente da pós-graduação stricto sensu da PUC-MINAS. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. Pós-doutorado pela Universidade Cergy Pontoise., França.

 

Recebido em: 07/07/2016.
Aprovado em: 20/10/2016.

 

 

1Essa definição de Ales Bello se refere à consciência na perspectiva de Edmund Husserl e seus discípulos, sendo um deles Edith Stein.
2
[...] que la corriente es una sola, porque brota de un único yo.
3
Gracias a su origen anímico, toda acción de la vonluntad – e igualmente toda acción impulsiva que proceda de las profundidades del "yo" – lleva el sello de la peculliaridad personal y lo imprime también en la obra creada por ella. La vida personal que se expresa por un movimiento de la mano, se manifiesta em todo lo que la mano produce: en los trazos de la escritura, em las huellas que dejan el pincel o el martillo (de manera análoga, los productos del pensamiento, además de su contenido objetivo, contienen vestigios de la espontaneidad interior a la que deben su existencia). El mundo entero en el que un individuo actúa, lleva la impronta de su personalidad: de sus rasgos típicos y de su peculiaridad personal.
4[...] la formación desde fuera tiene que contar con la formación desde dentro, si no hay adestramento y no formación, o deformación.

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