SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.9 issue1Linguagens para facilitar a expressão e a comunicação entre terapeuta e clienteHousehold, can I come in to take care?: A theater-healing at the reach of touch author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Revista do NUFEN

On-line version ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.9 no.1 Belém Jan. 2017

 

Artigo

 

A menina dança: práticas patologizantes em tempo integral

 

The Girl Dance: Pathologizing practices full time

 

La muchacha de la danza: patologizar prácticas a tiempo completo

 

 

Lorena Dias de Abreu; Ana Paula Figueiredo Louzada

Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)

 


RESUMO

Este artigo traz a por meio de uma narrativa, análises das práticas de medicalização/ patologização das crianças no contexto escolar. Dentre os caminhos da narrativa, realçamos a "produção das crianças anormais" e às transformações implícitas nessa produção em meio aos processos de escolarização baseado na idade cronológica e ao ritmo de desenvolvimento. Para tal, aproximamo-nos da constituição histórica da expansão do saberpoder médico e, consequentemente, da captura do campo da infância. Propomos um modo de análise que se pautou na escuta e na sensibilidade, utilizando-se diários de campo e da montagem de narrativas com meninos e meninas, de forma a evidenciar nossas experiências dando visibilidade as práticas de patologização e medicamentalização dos comportamentos infantis.

Palavras-chave: Patologização; Medicamentalização; Infância.


ABSTRACT

This article brings the assembly narrative, undertaking some analysis about the practices of medicalization / pathologizing children at school. Among the ways the narrative, we undertook some analysis about the "production of abnormal children" and the implied changes in this production among the schooling processes that become responsible for relating the performance of children with chronological age and the pace of development. For this, some practices in the school field were highlighted, its relationship with the normalization of children approach the historical constitution of the expansion of medical knowledge-power and hence the childhood field capture. We propose an analysis so that Poutou listening and sensitivity, using field diaries and mounting narrative with boys and girls, in order to highlight our experiences giving visibility to pathologizing practices and medicamentalização of children's behavior.

Keywords: Pathologization; Medicamentalização; Childhood.


RESUMEN

En este artículo se lleva el conjunto de la narrativa, la realización de un análisis sobre las prácticas de los niños medicalización / patologizantes en la escuela. Entre las formas de la narrativa, se realizó un análisis sobre la "producción" de los niños anormales y los cambios implicados en esta producción entre los procesos de escolarización que se convierten en responsables de relacionar el rendimiento de los niños con la edad cronológica y el ritmo de desarrollo. Por esto, algunas prácticas en el campo de la escuela se pusieron de relieve, su relación con la normalización de los niños acercarse a la constitución histórica de la expansión de los médicos saber-poder y por lo tanto la captura campo de la infancia. Proponemos un análisis de manera que poutou escuchar y sensibilidad, utilizando diarios de campo y la narrativa con niños y niñas de montaje, con el fin de poner de relieve nuestras experiencias que dan visibilidad a las prácticas patologizantes y medicamentalização del comportamiento de los niños.

Palabras-clave: Patologización; Medicamentalização; La infancia.


 

 

INTRODUÇÃO

O presente artigo faz parte de uma dissertação de mestrado, cujo título é: "Existências relâmpagos: medicalização em tempo integral". Este trabalho se deu por meio da pesquisa em uma escola de Educação Municipal dando visibilidade aos processos de patologização/ medicalização e medicamentalização das crianças no espaço escolar. Desta forma, algumas questões se sobressaem no intuito de analisarmos: como passamos a localizar em nossas crianças algo de patológico? Por quais notas musicais fomos compondo a melodia da normalidade e em seu descompasso a pretensa ideia de anormalidade?

Para analisarmos tais percursos, escolhemos uma narrativa, A menina dança, pois nela comparecem questões com as quais estamos embrincados, realçando os fios que nos conduzem a estes questionamentos. Tal narrativa tem como objetivo ressaltar as pequenas diferenças e os minúsculos espaços de jogo colocados no cotidiano. Com ela, é possível ter fios de leituras e de interrogações.

Desta forma, nossa narrativa foi construída de maneira a não representar uma história específica, mas composições de várias histórias e vivências, no intuito de que não produzamos sobre estas vidas categorias, e nem que as aprisionemos em classes, menos ainda que delas retiraremos uma lição moral. Uma personagem que existe e que pertence a "uma peça na dramaturgia do real" (p. 3), "existências relâmpagos", "poemas-vida", vidas que "nos retornam pelos múltiplos acasos" (p. 6).

Encontramos com nossas "crianças infames" todos os dias. Elas "compõem o comum, o detalhe sem importância, a obscuridade, os dias sem glória, a vida comum" (Foucault, 2003), vidas comuns que "podem e devem ser ditas, ou melhor, escritas" (p. 11), crianças que não se tornaram heroínas, mas que criam e recriam cotidianamente modos singulares de vida e de existência. Com isso, trazemos nossa narrativa, narrativa comuns de meninos e meninas, entre tantos outros que poderia ser um ou qualquer um. Contudo, para além de uma única criança, nossa narrativa é uma composição de vários meninos e meninas, de várias histórias reais, histórias ouvidas, contadas, vividas.

Trata-se de importar – fazer ver, fazer ouvir, fazer registrar –, como Manoel de Barros, com pequenas histórias "sem importâncias" de meninos e meninas que vagueiam sob a égide da anormalidade em nosso ambiente escolar, sob os rótulos dos processos patologização, dos diagnósticos (médicos, pedagógicos, e etc.).

 

A MENINA DANÇA

Ela chega rodopiando, como se dançasse uma música própria, cantarolando uma letra inventada, entendida somente por ela. Dança vários ritmos, se misturando com a letra e com a melodia, inventando novas canções no pátio da escola, na sala, na aula. Com seu jeito próprio de quem não liga e nem vê que a observam em seu show. Enquanto isso, um grupo de meninas brinca de massinha. Uma lanchonete cheia de bolos, pizzas e vários doces...

Ela vem dançando, também quer participar dos afazeres da lanchonete, não quer ser consumidora, quer planejar e fazer os quitutes. As "donas" das massas não querem sua presença.

– Ela é louca! Doidinha de pedra! Faz coisas estranhas! Vai atrapalhar a gente!

– Mas o que é ser louca, doidinha de pedra? Conhecem alguém louco?

Elas se olham, sem saber muito bem o que dizer...

Falar que alguém é louco se tornou tão corriqueiro que mesmo quem fala já não sabe muito bem dizer do que se trata. Se alguém faz algo que não está em sua lista de comportamentos adequados para alguma situação: é louco e ponto final.

– Alguém diferente! Solta uma delas com um ar de ter explicado tudo.

Uma das meninas diz que no bairro dela tem um homem doido, sua mãe fala que é bem doido, "doidinho, doidinho". Ela nos conta que:

"Ele bebe muito, sabe? Fica na rua, não consegue nem levantar, fica gritando com as pessoas, de madrugada ele não vai para casa, fica na rua, dorme ali na rua mesmo, ele não consegue andar, fala coisas estranhas, ele é louco, minha mãe fala que é bem louco, doidinho". Bêbado ou louco? Pouco importa, é louco! E seguem brincando.

Para não ter a presença da menina que dança, elas dividem a massinha, mas para que faça seus doces, bolos e pizzas bem longe. Não queremos os loucos por perto!

Quero experimentar seus quitutes, minha presença pouco importa, ela canta, dança em seu show próprio, não precisa de plateia, faz seus pratos e seu show para si.

Algumas pessoas acham que ela tem alguma coisa errada, tem algo nela que não é normal, a menina-dançante não cabe no "pote da sala", dizem que não consegue interagir direito com as outras crianças, que fica a maior parte do tempo isolada, não fica entusiasmada com as atividades "superinteressantes" que lhes são propostas, é muito distraída e distante. Como não ser distante quando não lhe querem por perto?

Ela deveria ser encaminhada para a educação especial, mas para isso é preciso de um laudo, e este ela não tem, que pena, não é? Não tem um nome para ela, um código, uma logomarca, algo que explique. Logo, dizem que ela se parece com a mãe, a genética aparece:

– A mãe dela é assim, esquecida, dispersa como ela, você tem que falar várias vezes a mesma coisa e ainda assim ela se confunde.

Outros, acham que não, ela é apenas diferente, tem seu jeitinho próprio de interagir com os outros, é um pouco esquecida e dispersa, mas isso não é nada demais para as crianças.

Vamos passear, a dançarina senta ao meu lado. Para quem dança, ficar sentada por muito tempo não deve ser uma tarefa fácil, seus passos e gestos ficam restritos aos jogos com as mãos e ao canto. Não, não possível se mexer muito e nem cantar alto, a música é dela, autoria própria, se você não entende é porque não está inserido nas artes do canto próprio. Já que não podemos cantar, vamos para as artes das piadas, ela conta e ela mesmo ri de si.

Quando crescemos, perdemos o encanto de rir de nós mesmos, ficamos chatos, chatos... Chatos!

A professora grita! Aquietamos nossa música, nossas piadas e nossas risadas saem baixinhas, não podemos chamar muita atenção.

Chegamos ao nosso destino. Um parque no meio da cidade com brinquedos e árvores. Lá também estavam alunos de outra escola.

A dançarina com seus passos de dança logo começa a chamar a atenção das crianças desconhecidas e, com seu jeito travesso e dançante, se coloca nas brincadeiras.

É mais fácil brincar e arrumar espaços com quem não lhe dá o nome de louca instantaneamente! Manter-se dançante não é fácil, dá nó nas cabeças alheias... Com seus passos ela assusta e a palavra louca logo aparece.

– Tia, ela é louca? A menina da escola dela disse que ela é louca.

Pergunto o que aconteceu. Ela afirma que a menina dançante não sabe brincar como elas, sua música não tem sentido, sua dança não segue o compasso das brincadeiras, às vezes, os movimentos se esbarram e causam quedas, machucam ou são incômodos.

Mesmo assim voltam a brincar, danças em ritmos diferentes também compõem. Uma ensina para a outra novos passos possíveis, novos movimentos, novas formas de chamar mais gente para dançar...

A menina dançante não tem muitos amigos na escola em que estuda, sua dança costuma ser um espetáculo solo.

– Ninguém gosta de brincar comigo!!!

Os colegas da escola afirmam esta fala, brincar com ela requer desapego, esforço para entender sua dança, seus passos que incomodam, que tiram as amarras que temos, abalam nosso ritmo monótono e esquadrinhado.

Tento dançar com ela... Em seu passo levanta minha blusa, e coloca o dedo no meu umbigo. Todas as crianças param, se amontoam e dizem que ela dança assim porque é louca, e pedem para que eu não leve a sério seus passos. Uma delas faz o sinal da loucura, aquele em que se balança os dedos fazendo círculo ao redor da orelha, mas esperam o grito da professora sair da boca da pesquisadora.

Todas paradas, olhando, na espera do grito e do castigo.

Ela não grita! Conversa, conversar com quem dança é descobrir passos novos, outras formas de conversar dançando! Dançar entre os movimentos que a vida traz... Dançar... Ela não grita! Pergunta que passo era aquele, o que fazer com um passo assim, sem permissão, sem conversa? Para dançar junto, as duas partes precisam querer e entrar em um acordo sobre o que pode ser feito e o que precisa ser evitado. Os colegas de turma dizem a ela que, para que os outros dancem e aceitem certos passos, precisamos estar de acordo.

A menina dançante faz novos passos, e volta para sua dança solitária...

Nossa dançarina some... Fica dias sem aparecer na escola... Fico inquieta com sua ausência.

O que aconteceu? Será que foi mostrar seus passos em outro local?

Não... Seus passos próprios precisam de um ritmo... Estão tentando colocá-los nos moldes, fazer do movimento inventivo uma coreografia taxada, marcada, com compassos ditados pela disciplina, pela ordem. É preciso ser normal! Sua dança precisa se encaixar na batida do espaço escolar.

Como vão fazer isso? Como se conserta o que não está quebrado, estragado? Nossa menina dançante ganhou uma pílula para orquestrar seus passos, seus pensamentos, a Ritalina1, pílula para tomar prescrita pelo médico, um ser que conserta gente quebrada.

Mas a dançarina precisa de um tempo para a tal pílula fazer sua música mudar de batida, seus passos ritmarem e isso lhe causa muito sono... sono...

Esperam que a tal pílula a deixe mais atenta, mais quieta, que preste atenção, que siga as instruções, que se interesse pelas atividades.

A menina dançante aparece!

Ela continua dançando, com seus passos próprios, uma frustração para quem queria uma coreografia padrão.

Um alívio para quem gosta de novos passos, de ritmos diferentes!

Ela diz que deu um tempo da escola, pois estava com sono, o remédio que conserta o passo também apaga o corpo... Dá sono... Mas tem dias que ela resiste, que é mais forte do que ele e vai para a escola.

Na aula de Educação Física é proibido ficar parado, é preciso fazer alguma coisa, era preciso estar em movimento. Uma das crianças começa a dançar, apresentar com sua coreografia, um pouco de ballet, eu era a plateia.

Enquanto isso, nossa menina-dançante brinca sozinha, vamos chamá-la para participar da apresentação. Compor com novos passos é sempre bom!

As duas riem e se divertem com seus passos, uma ensina a outra novas maneiras de se apresentar, acabam as apresentações muitas palmas, muitas palmas, minhas palmas.

O que fazemos agora? Não podemos ficar paradas, o professor quer alguma atividade. Que estranho, em uma aula é preciso ficar quieto, na outra é preciso se movimentar sem parar.

Decidimos brincar de contar histórias, mas quem começa?

–Tia, eu começo! Disse nossa menina-dançante.

"Era uma vez uma menina de 8 anos de idade, ela se chama? ... Como é o nome da tia? (Ela pergunta para a colega), ela se chama Lorena, nenhum amigo da escola gosta de brincar com ela, dizem que ela é muito chata, que ela não sabe brincar, que ela não presta atenção nas coisas, que faz piada sem graça, que é louca! Doidinha, doidinha... Aí, ela cresceu...cresceu e cresceu e ficou do tamanho da mãe dela, ficou tão grande que os colegas da escola tinham medo dela, ela assustava eles. Aí ela foi para a casa dos pais dela, lá ela ficava pequenininha, quase nem dava para ver. Pronto, acabou a história!

" Nossa menina dançante, às vezes louca, às vezes contendo em si algo que não é normal, partindo de uma certa concepção de normalidade forjada historicamente. Da mesma forma, a ideia de que se está em descompasso com o que se espera seja preciso uma mudança na batida da música, uma pílula, para endireitar o compasso. Desta forma, alguns passos iniciais se tornam de grande importância para entender o que hoje é considerado uma criança normal ou anormal; conceitos de normalidade, anormalidade e patologia nos auxiliam a entender como a criança tornou-se o personagem de patologização. Nossa jornada começa com Canguilhem (2009) e sua crítica aos usos do termo normal no decorrer dos séculos:

[...] é normal, etimologicamente – já que norma significa esquadro – aquilo que não se inclina nem para a esquerda nem para a direita, portanto o que se conserva num justo meio termo; daí derivam dois sentidos: é normal aquilo que é como deve ser; e é normal, no sentido mais usual da palavra, o que se encontra na maior parte dos casos de uma espécie determinada ou o que constitui a média ou o módulo de uma característica mensurável. Na discussão desses sentidos, fizemos ver o quanto esse termo é equívoco, designando ao mesmo tempo um fato e "um valor atribuído a esse fato por aquele que fala, em virtude de um julgamento de apreciação que ele adota. [...]" (Canguilhem, 2009, p. 48).

Relacionado ao termo normal, o conceito de norma derivou da palavra latina normalis, significando o que é perpendicular. Nessa perspectiva, a norma tem como intuito corrigir, esquadrinhar e endireitar os indivíduos, já normalizar seria o equivalente a impor uma exigência à vida na qual a variedade e a diferença seriam situadas como algo estranho, fora do que é socialmente posto como ideal, pois produzimos, por meio de nossas práticas, a todo o momento o normal e o anormal (Canguilhem, 2009).

Recorre-se a Foucault (1999). Tal autor contribui para tomar os conceitos de norma e de normalização como operatórios para pensar as práticas atuais. Ao pesquisar as condições de existência e de formação de saber das ciências do homem na modernidade – educação, psicologia, psiquiatria, psicanálise, sociologia – Foucault (1999) questiona as formas de poder que tem como alvo o sujeito, considerando que estes saberes são essencialmente estratégicos. Tais saberes fazem aparecer formas novas de sujeitos e de sujeitos do conhecimento, formando no século XIX um saber do homem, da individualidade, do indivíduo normal e anormal baseado em práticas sociais de controle, vigilância e exame.

Ao analisar a arte de punir, Foucault (1999) aponta que foi por meio dos mecanismos disciplinares, mecanismos com alvo no corpo compreendido como máquina, como algo a ser adestrado, formatado, ampliando aptidões, aumentando sua utilidade e docilidade, devendo ser integrado a sistemas de controle e econômicos eficazes, que aparece o poder da norma, homogeneizando as diferenças.

Tal mecanismo punitivo tem como base 5 operações:

[...] relacionar os atos, os desempenhos, os comportamentos singulares a um conjunto que é ao mesmo tempo campo de comparação, espaço de diferenciação e princípio de uma regra a seguir. Diferenciar os indivíduos em relação uns aos outros em função desta regra de conjunto - que se deve fazer funcionar como base mínima, como média a respeitar ou como o ótimo de que se deve chegar perto. Medir em termos quantitativos e hierarquizar em termos de valor as capacidades, o nível, a "natureza" dos indivíduos. Fazer funcionar, através desta medida "valorizadora" a coação de uma conformidade a realizar. Enfim, traçar o limite que definirá a diferença em relação a todas as diferenças, fronteira externa do anormal (a "classe" vergonhosa" da escola Militar). A penalidade perpétua, que atravessa todos os pontos e controla todos os instantes das instituições disciplinares, compara, diferencia, hierarquiza, homogeniza e exclui. Em uma palavra, ela normaliza (Foucault, 1999, p. 153).

Por meio das repartições dos indivíduos a disciplina organiza os espaços; através do controle do tempo ela controla as atividades; especifica o indivíduo generalizando-o por intermédio da vigilância hierárquica; com a sanção normalizadora ela organiza as diferenças, produz e reproduz saberes com a prática do exame.

Mas o que seria a sanção normalizadora pelo qual o poder disciplinar age? Foucault (1999) analisa o caráter da disciplina para mostrar que as instituições constroem para si mecanismos de julgamento, que qualificam e reprimem comportamentos que escapam dos grandes sistemas de punição, no qual tudo é passível de pena, assim funciona a sanção normalizadora. Em se tratando do espaço escolar, por exemplo, ele funciona como um pequeno tribunal, em que atribui leis e penalidades entre os indivíduos, bem como prêmios por mérito.

Essa sanção, penalidade, correção, é normalizadora, pois atua sobre os pequenos atos, as menores condutas, busca o conhecimento dos comportamentos mais sutis, atuando onde o sistema de leis deixa de agir. O que lhes interessa são os pequenos procedimentos de utilização do tempo, as formas de se pronunciar um discurso, como se usa os corpos e a sexualidade, "toda uma micropenalidade do tempo (atrasos, ausências, interrupções das tarefas), da atividade (desatenção, negligência, falta de zelo), dos discursos (tagarelice, insolência), do corpo (atitudes incorretas, gestos não conformes, sujeira), da sexualidade (imodéstia, indecência) " (Foucault, 1999, p. 149).

A sanção normalizadora permite isolar, agir, avaliar e julgar as pequenas atitudes empregando formas sutis de punição. Com a função de inibir os desvios, por meio da comparação, da diferenciação, da homogeneização, da hierarquização e da exclusão, ela age para que o desvio não se repita e para que sejam criadas condutas cada vez mais conforme as regras, e estabelece recompensas com a função de classificar as condutas válidas ou não. A partir do século XVIII, a norma se estabeleceu como um princípio de coerção no ensino, com a instauração de uma educação padronizada e a criação das escolas normais (Foucault,1999).

A combinação das técnicas de vigilância e da sanção normalizadora ocorre por meio do exame, sendo este um controle normalizador, uma vigilância que permite qualificar, classificar e punir e, ao mesmo tempo, uma prática altamente ritualizada, relacionando a formação do saber e um exercício de poder. O exame inverte a visibilidade do poder disciplinar, pois este poder se exerce tornando-se invisível, captando os sujeitos em um mecanismo de objetivação, de visibilidade.

O exame também permite que os indivíduos sejam situados em uma rede contínua de anotações escritas, criando uma série de códigos de individualidade que permitem transcrever e homogeneizar os traços individuais. Tais anotações pontuam o indivíduo como um objeto descritível e analisável sob o controle de um saber permanente, por outro lado, opera a construção de um sistema comparativo que permite medir fenômenos globais, e também a caracterização de fatos coletivos, a descrição de grupos, estimativa dos desvios e sua distribuição em uma população.

Outra peculiaridade do exame é fazer de cada indivíduo um "caso". O caso seria o indivíduo tal como é descrito, medido e comparado a outros, comportando sua própria individualidade. Esse mesmo indivíduo deve ser treinado, classificado, excluído, normalizado etc. O exame permite que se mantenha a singularidade com seus desvios, seus traços particulares, suas capacidades e aptidões, bem como o mecanismo disciplinar utilize cada indivíduo de forma personalizada, com a intenção de estabelecer uma normalização que não visa uma uniformização das individualidades, mas sua adequação.

No âmbito educacional, o exame é um aparelho ininterrupto, pois "é na escola uma verdadeira e constante troca de saberes: garante a passagem dos conhecimentos do mestre ao aluno, mas retira do aluno um saber destinado e reservado ao mestre. A escola torna-se o local de elaboração da pedagogia" (Foucault, 1999, p. 155).

Foucault (1999) aponta que nas disciplinas as crianças são mais individualizadas que os adultos, assim como o louco mais que o homem normal e o doente mais que o são, pois tendo a norma e os desvios como referência, há a fabricação da individualidade. Assim, a normalização se torna um instrumento de poder, pois ela acrescenta ou substitui graus de normalidade que são formas de pertencimento a um corpo social, mas que se divide por meio da distribuição de classes.

O que seriam essas normas e como elas se apresentam diante de nós? Qual a sua relação com o que é chamado de patológico?

As normas têm como objetivo integrar todos os aspectos da vida humana. No âmbito social, a norma deixa de valer como regulação interna e passa a prevalecer como prescrição e valoração. Nas explanações de Canguilhem (2009), ele aponta diferenças entre o que seria o normal social e o normal vital, essa diferenciação estaria no fato de que as exigências das normas do organismo são internas e inerentes à possibilidade de vida, já a normalização se estabelece por meio de escolhas sociais e decisões que são exteriores ao que é normalizado, são expressões que muitas vezes não são percebidas, mas são estabelecidas baseadas nas relações de um dado contexto social e histórico. Belém, 9(1), 01-19, jan. – ago., 2017.

O normal é aquele baseado em um modelo ótimo, com a intenção de moldar pessoas, gestos e atos conforme esse modelo, aquele que se distancia do que é padrão é tido como incapaz, anormal. O conceito de normal qualifica negativamente aqueles que não se enquadram e lhes atribui um valor do que é "torto", "inconveniente". Consequentemente, passa a existir entre o normal e o anormal uma relação de exclusão delimitada por certas regras, com um incentivo à correção. Segundo Canguilhem (2009), a instituição pedagógica e a sanitária foram as responsáveis por tornar o termo normal popular, estabelecendo-o no discurso e divulgando seu uso fora do ambiente científico.

O termo patológico, de acordo com Bautheney (2011), tem como referência a "saúde" e há duas formas de designá-lo. A primeira é por um viés qualitativo, que pode ser definido como norma, em que há "falta ou por excesso de um comportamento, de estimulação de uma capacidade que supostamente poderia ser desenvolvida" (p. 160). A outra forma seria o entendimento do termo patológico como problemas de funcionalidade. Se o sujeito receber uma "estimulação adequada" e ainda não responder de acordo com os padrões socialmente estabelecidos, deduz-se que talvez não se tenha estrutura para processar determinado estímulo ou haja uma falha nesses mecanismos

Essas noções distintas de patológico, como falta/excesso ou como falha, darão margem ao surgimento de práticas terapêuticas também distintas. No primeiro caso, se há falta ou excesso é necessário que ocorra então uma compensação. No segundo, quando o que é patológico no sujeito é visto como algo que falha, as práticas terapêuticas podem agir no sentido de tentar garantir uma reparação (Bautheney, 2011, p. 161).

Tais terapêuticas convergiriam para as práticas (psico)pedagógicas ortopédicas, às quais tem a intenção de ajustar as crianças à normatividade e corrigi-las (BAUTHENEY, 2011).

Conforme Canguilhem (2009), "Diversidade não é doença, o anormal não é o patológico" (p. 53). Mas o que seria ser anormal e quais relações se estabelecem entre os termos patologia e anomalia? A anormalidade seria a ausência de normalidade, ou seja, a perturbação da capacidade de equilíbrio e "o esforço que a natureza exerce no homem para obter um novo equilíbrio" (p. 12). Anomalia representa aquilo que é desigual, irregular, designando algo descritivo que pode simplesmente significar o que é diferente e não necessariamente patológico, enquanto anormal faz referência à valoração, ou seja, em comparação com um modelo socialmente desejado.

A diversidade não é sinônima de doença, e anormal não deve ser confundido com um estado patológico, pois isso faz do anormal o adjetivo de anomalia. "O anormal não é o patológico. Patológico implica em pathos, sentimento direto e concreto de sofrimento e de impotência, sentimento de vida contrariada" (Canguilhem, 2009, p. 53). Seguindo este pensamento, pode-se afirmar que o comumente denominado de anormal seria apenas uma nova forma de normalidade, uma forma diferente de ser normal. Pois, ao considerar que a doença é uma reação para se obter a cura, ser "diferente" é uma forma de ser normais. "Não existe fato que seja normal ou patológico em si. A anomalia e a mutação não são em si mesmas, patológicas. Elas exprimem outras formas de vida possíveis" (Canguilhem, 2009, p. 56).

Para Canguilhem (2009), não pode haver normas gerais para tratar um sujeito, ou seja, não existe uma normatividade universal, tornando o limite entre o que seria normal e patológico dúbio. Por conseguinte, "o anormal só pode ser apreciado numa relação" (p. 74), na relação com sua história, com quem interage, com o médico, com o analista...

Quem pode afirmar e apontar aqueles que são "normais ou não"? Em qual momento as crianças passam a ser objetivadas como "anormais"? Quando elas passam a ser alvo de classificações e rotulações, passíveis de intervenções?

 

AS CRIANÇAS COMO ALVO DA PADRONIZAÇÃO

Foucault (2006), nos anos de 1973-1974, debatia com historiadores em um curso no Collège de France a temática do Poder Psiquiátrico. Nesse percurso, para nós, é de maior interesse as aulas nas quais foram problematizadas a "criação da criança anormal" e a generalização da psiquiatria por meio dessas crianças.

As práticas médicas e pedagógicas emergem juntamente com a emergência das crianças anormais e do conceito de desenvolvimento. De acordo com Foucault (2006), foi graças às crianças anormais que a psiquiatria infantil surgiu, isto é, buscando determinar, em bases morais e fisiológicas, as anomalias e determinando as escalas normais de desenvolvimento. Caberia às escolas (com suas práticas pedagógicas) relacionar o rendimento das crianças à idade cronológica e ao ritmo de desenvolvimento, e detectar possíveis indícios de anormalidade ou de algum tipo de incompatibilidade com o que era esperado para tal idade. Todas as crianças que estivessem nas escolas passariam pelo crivo estabelecido como normal de acordo com sua idade. Passou, assim, a existir uma crescente generalização do poder psiquiátrico sobre toda e qualquer forma de vida humana que "desviasse" dos padrões.

O que possibilitou a generalização do poder da psiquiatria e sua saída do espaço asilar foi seu interesse pela infância e pelos parâmetros de normalidade dos comportamentos infantis. A psiquiatrização das crianças no séc. XIX está relacionada com a compreensão das categorias de idiotia, imbecilidade e com a tentativa de retirá-las do campo da loucura (Foucault, 2006). Contudo, a "criança louca" só aparece no século XIX no consultório particular de Charcot, com seus cuidados em torno da histeria (Foucault, 2006). Nos consultórios tentavase, por meio das anamneses (um momento no qual o paciente explana sobre sua história de vida, sua composição familiar, passando por sua concepção e nascimento até o momento em que entrou no consultório) e interrogatórios (que eram feitos não apenas com os pacientes, mas também com seus familiares), captar na infância os indícios de uma loucura já instituída, sinais de predisposição hereditária. Até o século XVIII não havia distinção entre imbecilidade, estupidez, idiotia e loucura, todas, mesmo com suas diferenças, estavam reunidas dentro da concepção de loucura.

Nesse mesmo século, os processos de natalidade, mortalidade, longevidade, os problemas econômicos, os problemas políticos, as taxas de reprodução e de fecundidade da população se tornaram os primeiros alvos de controle biopolítico. As doenças passaram a ser consideradas como algo que diminui e enfraquece a vida. A medicina, de forma geral, passou a ter função de higiene pública, coordenando o tratamento médico, centralizando informações, normalizando o saber, promovendo campanhas para o aprendizado da higiene e medicalizando a população (Capponi, 2012).

Como efeito da psiquiatrização da infância, a partir do século XIX há uma mudança nas elaborações teóricas para que fosse possível a separação entre a debilidade mental e a loucura (Foucault, 2006). Esquirol (citado por Foucault, 2006, p. 261) e Belhomme (citado por Foucault, 2006, p. 261) elaboraram definições baseadas na noção de desenvolvimento, ou mais corretamente, na ausência de desenvolvimento:

Nessa medida, o desenvolvimento é comum a todo mundo, mas é comum muito mais como uma espécie de ótimo, como uma regra de sucessão cronológica com um ponto ideal de chegada. O desenvolvimento é, portanto, uma espécie de norma em relação à qual nos situamos, muito mais do que uma virtualidade que possuiríamos em nós (Foucault, 2006, p. 263).

Ao ter como base as noções de um desenvolvimento como "sucessão cronológica com um ponto ideal de chegada" (Foucault, 2006, p. 263), Esquirol (citado por Foucault, 2006, p. 260), de forma simplista e binária, diferenciou a idiotia da demência e da loucura. Segundo ele, a idiotia seria a ausência de desenvolvimento, portanto, a criança não evoluiria, não haveria o que fazer para lhe proporcionar evolução. Com esse pensamento, a psiquiatria afirma a idiotia como incurável e como um nível máximo de degeneração humana ou uma filiação à monstruosidade

Todavia, é somente por volta dos anos de 1840 que surge a institucionalização psiquiátrica efetiva da infância. Um de seus grandes propulsores foi Édouard Seguin (citado por Foucault, 2006, p. 262), que forneceu os maiores conceitos que a Psicologia e a Psicopatologia utilizaram ao longo do século XIX. Contrariando as formulações de Esquirol (citado por Foucault, 2006, p. 261), a idiotia seria a interrupção do desenvolvimento fisiológico e psicológico e não uma ausência de desenvolvimento. A criança retardada, por sua vez, teria um desenvolvimento mais lento, o que acarretaria uma distância gradual e intransponível em relação às outras crianças (Foucault, 2006).

O desenvolvimento se torna uma dimensão temporal pela qual todos passariam, afetando a nossa vida orgânica e psicológica, mas que para alguns poderia parar em um certo momento. Comum a todos, portanto é uma espécie de norma. Seguin (citado por Foucault, 2006, p. 264) considera que o retardo mental e a idiotia não seriam doenças, mas desvios da norma, variações no desenvolvimento normativo da criança. Dessa forma, as crianças idiotas e retardadas deveriam ter os mesmos cuidados oferecidos às crianças tidas como "normais", todas deveriam ter acesso à educação (Foucault, 2006).

Com esse padrão de normalidade do desenvolvimento, as crianças tidas como normais serviram como parâmetro para o que se esperava como um processo de desenvolvimento adequado. Dessa forma, tanto a idiotia quanto o retardo mental passaram a integrar os desvios normativos. Enquanto a debilidade mental e a idiotia estavam no ponto interior da temporalidade da infância, ou seja, estavam em uma temporalidade mais lenta, ainda assim estavam em concordância com o que se colocava como processo, não estando no rol das doenças (Foucault, 2006).

Acreditava-se que a única forma de curar o idiota e o retardado era a imposição da educação: "a terapêutica da idiotia foi a própria pedagogia, uma pedagogia mais radical" (Foucault, 2006, p. 265). Ou seja, ao não se enquadrar no que se esperava enquanto gradação do desenvolvimento era preciso que fosse imposto a essas crianças uma pedagogia considerada uma terapia, uma pedagogia de caráter laboral.

No final do Século XIX, Foucault (2006) mostra a escola como sendo o local em que seria possível filtrar e identificar os que não acompanhavam o desenvolvimento esperado como normal. Assim, o poder psiquiátrico faz com que o poder escolar se afirmasse, especificando os que são retardados mentais ou não

Com efeito, é no fim do século XIX que o ensino primário generalizado vai servir de filtro, e as grandes pesquisas que ocorrerão no fim do século XIX sobre a debilidade mental se desenrolarão no meio escolar, isto é, é efetivamente às escolas que se pedirão os elementos da pesquisa. É com os professores que essas pesquisas serão feitas, é sobre a natureza e as possibilidades de escolarização que as questões vão se referir [...] nos anos de 1892-1893, uma pesquisa sobre a debilidade mental, ele [o pesquisador] se dirigirá aos professores e perguntará, para identificar os idiotas, os imbecis, os débeis, quais são as crianças que não acompanham devidamente a escola, quais são as que se fazem notar por sua turbulência e, enfim, quais as que não podem mais sequer frequentar a escola (Foucault, 2006, p. 269).

Observa-se que a escola é apresentada como um espaço de normalidade, como uma "ferramenta" especial, na qual a pedagogia passa a ser considerada uma forma de tratamento, uma terapêutica que oferecerá as ferramentas adequadas para se obter a normalidade das crianças. Foucault (2006) apresenta a diferença entre o professor com suas ferramentas pedagógicas e o psiquiatra. O professor será aquele que detém a verdade, que manipula o juízo, e o pensamento, já o psiquiatra manipula a realidade e transforma o erro em verdade

O psiquiatra é aquele que – e é aí que sua tarefa se define - deve proporcionar ao real o suplemento de poder necessário para impor a loucura e, inversamente, o psiquiatra vai ser aquele que deve tirar da loucura o poder de subtrair-se ao real (Foucault, 2006; p. 164).

A psiquiatria, enquanto ciência e detentora do poder sobre a loucura define o que é verdade em relação a esta e sobre esta realidade exerce seu poder, "O poder psiquiátrico é esse suplemento de poder pelo qual o real é imposto à loucura em nome de uma verdade detida de uma vez por todas por esse poder sob o nome de ciência médica, de psiquiatria" (Foucault, 2006, p. 165).

Quanto mais cedo fosse feita a intervenção, melhores e maiores as chances de recuperação. De forma indireta, os loucos adultos foram questionados quanto a sua infância, na busca por razões para sua loucura, de tal modo que, quanto mais cedo se intervisse, melhores resultados haveria, afastando a loucura do futuro adulto.

Para existir e ser reconhecida enquanto saber, a psiquiatria precisou situar a loucura enquanto doença e como um perigo. Esta posição abriu espaço para duas frentes de trabalho: a higiene-profilaxia, (campo da psicologia/psicopedagogia e higiene social) e a cura (campo da psicofarmacologia e terapêuticas). Que por sua vez abriram espaço para a constituição de um campo disciplinar, primeiramente estabelecido nas famílias, tornando possível a vigilância sobre seu comportamento, seu caráter e sexualidade. Desse modo, a criança passa a ser monitorada pela psiquiatria por meio da família, posteriormente, passa as questões vão se referir [...] nos anos de 1892-1893, uma pesquisa sobre a debilidade mental, ele [o pesquisador] se dirigirá aos professores e perguntará, para identificar os idiotas, os imbecis, os débeis, quais são as crianças que não acompanham devidamente a escola, quais são as que se fazem notar por sua turbulência e, enfim, quais as que não podem mais sequer frequentar a escola (Foucault, 2006, p. 269). Observa-se que a escola é apresentada como um espaço de normalidade, como uma "ferramenta" especial, na qual a pedagogia passa a ser considerada uma forma de tratamento, uma terapêutica que oferecerá as ferramentas adequadas para se obter a normalidade das crianças. Foucault (2006) apresenta a diferença entre o professor com suas ferramentas pedagógicas e o psiquiatra. O professor será aquele que detém a verdade, que manipula o juízo, e o pensamento, já o psiquiatra manipula a realidade e transforma o erro em verdade O psiquiatra é aquele que – e é aí que sua tarefa se define - deve proporcionar ao real o suplemento de poder necessário para impor a loucura e, inversamente, o psiquiatra vai ser aquele que deve tirar da loucura o poder de subtrair-se ao real (Foucault, 2006; p. 164). A psiquiatria, enquanto ciência e detentora do poder sobre a loucura define o que é verdade em relação a esta e sobre esta realidade exerce seu poder, "O poder psiquiátrico é esse suplemento de poder pelo qual o real é imposto à loucura em nome de uma verdade detida de uma vez por todas por esse poder sob o nome de ciência médica, de psiquiatria" (Foucault, 2006, p. 165).

Quanto mais cedo fosse feita a intervenção, melhores e maiores as chances de recuperação. De forma indireta, os loucos adultos foram questionados quanto a sua infância, na busca por razões para sua loucura, de tal modo que, quanto mais cedo se intervisse, melhores resultados haveria, afastando a loucura do futuro adulto.

Para existir e ser reconhecida enquanto saber, a psiquiatria precisou situar a loucura enquanto doença e como um perigo. Esta posição abriu espaço para duas frentes de trabalho: a higiene-profilaxia, (campo da psicologia/psicopedagogia e higiene social) e a cura (campo da psicofarmacologia e terapêuticas). Que por sua vez abriram espaço para a constituição de um campo disciplinar, primeiramente estabelecido nas famílias, tornando possível a vigilância sobre seu comportamento, seu caráter e sexualidade. Desse modo, a criança passa a ser monitorada pela psiquiatria por meio da família, posteriormente, passa para as demais instituições sociais, sendo a ciência das condutas e dos indivíduos anormais (Bautheney, 2011).

A disjunção entre a criança louca e a anormal fez com que a psiquiatria se ligasse a escola, ao poder militar e às famílias para que pudessem identificar e, posteriormente, tratar os que escapassem ao modelo estabelecido socialmente com ideal. Ela passa a ter o poder sobre o anormal, a definir e corrigi-lo. Primeiramente organiza e descreve como síndromes anormais uma gama de condutas desviantes, tendo grande influência sobre os comportamentos que passaram a ser localizados no âmbito da anormalidade "(...) Será construída uma ciência das condutas desviadas sem que, para isso, seja necessário sair completamente do domínio da medicina" (Caponi, 2009, p. 541).

Isso permitiu que a psiquiatria passasse a ter um duplo controle, a controlar as condutas indesejáveis na infância, que podem vir a prejudicar a vida adulta, e sobre as condutas indesejáveis dos adultos, que estariam fixados na infância. Possibilita a generalização da psiquiatria, abrindo espaço para o que Foucault (2002) chamou de "ciência das condutas normais e anormais" (p. 391).

Durante todo o século XIX, os adultos eram considerados como loucos e as crianças como anormais. Ao ter a infância em sua mira de ação e ao mesmo tempo como alvo do seu poder e saber é que a psiquiatria pode mirar o adulto A infância como fase histórica do desenvolvimento, como forma geral de comportamento, se torna o instrumento maior da psiquiatrização. E direi que é pela infância que a psiquiatria veio a se apropriar do adulto, e da totalidade do adulto.

A infância foi o princípio de generalização da psiquiatria; a infância foi, na psiquiatria como em outros domínios, a armadilha de pegar adultos (Foucault, 2002, p. 386- 387).

Contudo, para que os comportamentos pudessem ser classificados, efetivamente, como "normais ou anormais", "bastará que seja portadora de um vestígio qualquer de infantilidade" (Foucault, 2002, p. 388); todas as condutas das crianças são passíveis de serem examinadas, pois são capazes de bloquear, reduzir a conduta do adulto. E, da mesma forma, todas as condutas dos adultos poderão ser psiquiatrizadas, pois, de alguma forma, podem ser rebatidas ou transportadas para as condutas das crianças.

Com a problematização da infância, e como efeito da generalização da psiquiatria, foi preciso estabelecer uma relação entre comportamentos automáticos e a discrepância em relação à norma de conduta socialmente imposta. Essa relação permitiu que as condutas fossem colocadas no nível da saúde mental ou no nível da doença menta.

Pelo exposto, há duas formas de ver o que é denominado de norma, por um lado, a norma como regra de conduta, como forma de se comportar, como uma lei informal que se opõem ao que é estranho e diferente. E do outro lado, a definição está relacionada ao funcionamento orgânico ajustado e adaptado que se opõe ao que é patológico e mórbido. A segunda perspectiva estabeleceu uma ligação entre a psiquiatria, a biologia e a neurologia. Isto é, a neurologia do desenvolvimento ou de suas interrupções, a biologia geral, no nível dos indivíduos e das espécies, garantindo o funcionamento da psiquiatria enquanto poder médico.

A psiquiatria assume o comportamento, seus desvios, suas anomalias, tomando como referência o desenvolvimento normativo. Com isso, foi preciso que a psiquiatria construísse novas teorias para abranger a anormalidade, compor uma nova nosografia para organizar e descrever não somente os sintomas de doenças, mas síndromes de anomalias, síndromes anormais que abrangiam diversas condutas desviantes. Com esta nova nosografia, há o retorno do delírio, usado pelos alienistas para diagnóstico da loucura, recolocando o anormal enquanto doença. Ao fazer esse retorno, era possível medicar o anormal.

Há também a introdução da noção de estado, relacionado à concepção de desenvolvimento. O estado seria uma espécie de causa que tornariam as doenças possíveis, uma "espécie de fundo causal permanente, a partir do qual podem se desenvolver certo número de processos, certo número de episódios que, estes sim, serão precisamente a doença" (Foucault, 2002, p. 397), podendo produzir qualquer coisa a qualquer hora "espécie de fundo causal que é, em si, uma anomalia". Dessa forma, tudo pode ser desviante ou patológico no corpo ou no comportamento. O que apresenta grandes vantagens, pois pode estabelecer uma relação com qualquer elemento físico ou conduta desviante e, ao mesmo tempo, encontrar um modelo fisiológico para explicar.

Com a noção de estado, se coloca a questão de como surgem esses estados? Para saber a causa justificadora de tal estado, a psiquiatria vai buscar respostas nos pais, nos ancestrais, na família, na hereditariedade. A hereditariedade é considerada a origem do estado anormal, constitui uma metassomatização. A teoria da hereditariedade psiquiátrica é baseada em um laxismo causal indeterminado, em que tudo pode ser causa de tudo. Uma doença pode provocar nos descendentes a mesma doença ou pode produzir qualquer outra doença de qualquer tipo. Ela serve para explicar o aparecimento de um estado, basta encontrar qualquer indício desviante na rede da hereditariedade para justificar um estado no sujeito descendente (Foucault, 2002, p. 400).

Fundamentada na teoria da hereditariedade, essa nova nosografia vai estabelecer a teoria da degenerescência. O degenerado é o portador do perigo, é o incurável e cientificamente medicalizado. Segundo Lobo (2008), os médicos brasileiros entendiam que fatores morais poderiam degenerar a população

Mas havia forças do mal a combater – eis a tarefa dos médicos no interesse das famílias, da raça e da espécie. Nas famílias, a hereditariedade mórbida poderia produzir o dessemelhante; na raça, o retorno ou a paralisação no ancestral primitivo e selvagem; na espécie, o perigo da extinção gradativa dos traços de humanidade – destruição de sua forma autêntica [...] (Lobo, 2008, p. 55-56).

Era preciso, então, prevenir, educar os desejos, isolar o mal. Desse modo, a escola se torna uma instituição cada vez mais importante, pois:

[...] A educação teria, então, um duplo papel: a prevenção dos males, a fim de evitar o contágio físico e moral das crianças e dos jovens com os fatores de degenerescência (condições ambientais de circulação do ar, umidade, promiscuidade, doenças transmissíveis, hábitos de alimentação, condutas imorais – masturbação, pederastia, coitos excessivos, alcoolismo etc.), e a correção dos males reversíveis pela ação da disciplina, dos bons exemplos e do trabalho intensivo [...] (Lobo, 2008, p. 56).

Com a degeneração, a psiquiatria consolida um estado de anomalia, e não de doença, resgatando o poder psiquiátrico. Passa a relacionar os desvios de conduta a um estado que é ao mesmo tempo hereditário e definitivo, portanto, não há mais sentido em procurar cura. Baseado nisso, sua função passa a ser a de proteger a sociedade dos perigos proporcionados pelos anormais e ordená-los "Ela se torna, ciência da proteção cientifica da sociedade, ciência da proteção biológica da espécie" (Foucault, 2002, p. 402). Ao se tornar essa instância de proteção e defesa, a psiquiatria se posiciona no lugar da justiça, controlando e manipulando a sociedade.

Desse modo, vemos a psiquiatria dar lugar a um racismo. Muito diferente do "racismo étnico", esse racismo é contra o anormal, uma segregação contra qualquer indivíduo portador de um estado, de um estigma ou de qualquer "defeito" que possa ser transmitido a seus herdeiros o mal que trazem em si. Um racismo que possibilita filtrar todos os indivíduos. Dessa maneira, é possível vincular o racismo à psiquiatrização da sociedade, caracterizada como uma forma da relação saber-poder (Foucault, 2002).

Esse saber-poder utiliza a loucura e a criminalidade como forma de exclusão e decide sobre a vida e a morte. Esta aproximação foi o efeito da intensificação do movimento de higiene mental, visto que, para este, era preciso prestar atenção aos sinais de delinquência e insanidade surgidas na infância. Era função do psiquiatra, nesse movimento, apontar os sinais que indicariam a deficiência mental ou problemas de conduta aos quais pais, professores e agentes sociais deveriam ficar atentos (Bautheney, 2011).

De acordo com Bautheney (2011), somente em 1937 a psiquiatria infantil foi reconhecida como especialidade médica. Segundo ela, a partir do século XX passaram a surgir outras indagações sobre a saúde mental das crianças para além da idiotia, do retardo e da inteligência. Destacavam-se questões relacionadas aos processos de educação e às crianças que tinham problemas por conta de erros dos pais, os quais acarretariam ou a debilidade mental ou a criminalidade. Assim, elas precisavam ser vigiadas e ajustadas.

A noção de desenvolvimento normal (que teve forte adesão e circulação social) possibilitou o surgimento de questões relativas ao que seria normal para cada faixa etária, facilitando uma aproximação maior entre médicos e professores. A psiquiatria infantil ofereceu seus saberes normativos e os professores os consumiram, saberes estes a serem aplicados em práticas pedagógicas, selecionando os alunos que deveriam ser encaminhados aos "especialistas" na prevenção das anormalidades. O médico é quem irá ensinar ao professor as formas para melhor desenvolver moralmente seus alunos, pois é na escola que a criança passa grande parte do dia, e esse lugar se torna alvo das investidas médicas, não apenas sobre os alunos, mas também em sua organização institucional (disposição do mobiliário, as práticas pedagógicas, disposição das salas) (Bautheney, 2011).

 

CONCLUSÃO

Longas histórias de enquadramento, sanções e tentativas de apaziguamento. Fazer caber nos esquadros, nas linhas de desenvolvimento prévios, homogeneizar idades e etapas. A infância, em suas redes de atendimento escolar, de saúde, de assistência, dispõe em torno de si de uma trama histórica e atualizada cotidianamente.

Como exercício de análise, retome a narrativa A menina dança presente no início deste artigo. O que ela faz ver? O que faz falar? O que desloca? Saia, vá a rua, a escola, a unidade de saúde. Como a infância dança? Como interage nessa rede que faz consertar as avarias? Se as histórias de regularidade e patologização se repetem, que as narrativas de infâncias outras possam ser escritas, visibilizando as infâncias além dos esquadros.

 

Referências

BAUTHENEY, K. F. (2011). Transtornos de aprendizagem: quando "ir mal na escola" tornase um problema médico e/ou psicológico. (Tese de doutorado) Universidade Federal de São Paulo, SP.         [ Links ] CANGUILHEM, G. (2009). O normal e o patológico. (6ª ed.) Forense Universitária.         [ Links ]

CAPONI, S. (2012). Classificar e medicar: a gestão biopolítica dos sofrimentos psíquicos. R. Inter. Interdisc. INTERthesis, v.9, n.2, p. 101-122.         [ Links ]

CAPONI, S. (2009). Biopolítica e medicalização dos Anormais. Phisis Revista de Saúde Coletiva. 19, [2], 529-549.         [ Links ]

FOUCAULT, M. (1999). Vigiar e punir. O nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes.         [ Links ]

FOUCAULT, M. (2002). Os anormais. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

FOUCAULT, M. (2003). A verdade e as formas jurídicas. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

FOUCAULT, M. (2006) O poder psiquiátrico. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

LOBO, L. F. (2008). Os infames da história: pobres, escravos e deficientes no Brasil. Rio de Janeiro: Lamparina        [ Links ]

 

 

Notas sobre os autores:

Lorena Dias de Abreu: Mestre em pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia Institucional Universidade Federal do Espírito Santo (UFES); E-mail: lorena.d.abreu@hotmail.com.

Ana Paula Figueiredo Louzada: Professora Adjunta do Departamento de Psicologia Programa de Pós-graduação em Psicologia Institucional - Laboratório de Afetos e Biopolíticas - Universidade Federal do Espírito Santo (UFES); E-mail: paulalouzada27@gmail.com.

 

Recebido em: 10/11/2016
Aprovado em: 10/11/2016

 

 

1 A Ritalina é um medicamento da classe dos psicoestimulantes, composto pelo metilfenidato, é amplamente indicado para os casos de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade.

Creative Commons License